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Leandro Vilar

terça-feira, 22 de maio de 2012

Cristianismo Copta

O Cristianismo copta é uma das várias igrejas cristãs existentes pelo mundo, sendo uma das mais antigas da História e particulares em suas origens, já que foi a primeira igreja cristã estabelecida no continente africano. Ao longo dos séculos, a igreja copta se desdobrou em várias outras igrejas de mesma vertente, e hoje possui adeptos em vários cantos do mundo. Entretanto nesse trabalho procurarei contar um pouco da origem desta igreja.

São Marcos

A história do Cristianismo no continente africano começa bem cedo ainda no tempo do Império Romano, quando o Egito era uma província do mesmo. Segundo fontes religiosas e historiadores romanos, gregos, judeus, etc., o Cristianismo teria sido pregado no continente pelo apóstolo Marcos Evangelista, o qual viria a se tornar São Marcos. 

Pintura copta retratando São Marcos.
De acordo com alguns historiadores do século I como Eusébio de Cesareia, por volta de 43, Marcos viajou de Roma para a Alexandria, com a missão de pregar a palavra de Cristo no Egito. Nessa época, Alexandria era a maior cidade da província egípcia, e o porto mais importante do império no continente africano. Alexandria era uma metrópole da Antiguidade, tendo crescido muito desde que foi fundada no século IV a.C por Alexandre, o Grande. Nesse caso, pessoas de vários cantos do império romano e até mesmo de além desse, iam para essa cidade.

Porém, não foi apenas pelo fato de Alexandria ser uma cidade grande e movimentada, nela já existiam pequenos grupos de judeus por essa época. Os primeiros cristãos foram judeus que aceitaram Jesus Cristo como sendo o Messias, logo estes judeus acabaram posteriormente se tornando os cristãos. Tal fato, levou alguns historiadores a denominarem estes indivíduos de "cristãos primitivos" ou "judeus-cristãos".

Sendo assim, São Marcos, contava com a ajuda desses judeus dos quais alguns enxergavam Cristo como salvador, e assim isso facilitaria sua pregação naquelas terras. 

São Marcos pregando em Alexandria, Gentile Bellini. 
Nessa época, havia uma pequena parcela de judeus pelo Egito, já que muitos deixaram o país há vários séculos. Não obstante, parte da população ainda cultuava os deuses egípcios, e pelo fato de o Egito ter sido dominado pela Dinastia Ptolomaica de origem greco-macedônica por quase três séculos, o helenismo introduzido no país pelos Ptolomeus, levou parte da população a adorar os deuses gregos e posteriormente os deuses romanos, quando os mesmos conquistaram o país em 30 a.C. 

Sendo assim, na grande maioria o Egito era uma nação politeísta, e tal peso e influência foram marcantes até que o Cristianismo de fato se estabelece-se na região. Embora a tradição religiosa diga que São Marcos foi o primeiro Patriarca ou Papa de Alexandria, tendo fundado a Igreja de Alexandria, o cristianismo só veio a tomar corpo no Egito propriamente, três séculos depois, já que até então tudo ainda era recente, Jesus havia morrido e ressuscitado por volta do ano 34, o Novo Testamento ainda não existia, os apóstolos ainda estavam espalhando sua palavra pelos três continentes, e as igrejas cristãs ainda estavam por se formar. 

De qualquer forma, segundo a tradição copta, o cristianismo copta teve origem com São Marcos, porém outro problema surgiu: no Novo Testamento cita-se três Marcos, o que faz complicar a identidade de qual desses Marcos realmente pregou em Alexandria. Oficialmente considera-se Marcos Evangelista, o santo em si. Porém, fontes apócrifas e de alguns outros historiadores da época, sugerem que não foi Marcos Evangelista, mas sim João Marcos, discípulo de São Paulo, o qual teria sido enviado pelo próprio, para Alexandria. E o terceiro seria Marcos, primo de São Barnabé

Alguns historiadores interpretaram os três Marcos sendo a mesma pessoa, sendo na realidade um erro de interpretação, porém o teólogo Hipólito de Roma, disse que esses não eram a mesma pessoa, e que de fato foi Marcos Evangelista o pregador de Alexandria. Ainda hoje há discussões sobre esse assunto, sobre a identidade de São Marcos, e em que época realmente ele pregou em Alexandria. Mas de qualquer forma, não irei me aprofundar nesse debate e seguirei em frente. 

O domínio romano no Egito

Quando São Marcos chegou em Alexandria a situação entre os judeus e os romanos não eram das melhores. Nessa época o imperador Tibério (14-37) cobrava da província o imposto do trigo (annona), algo que irritava muitos devido a grande porcentagem que eles tinha que pagar ao Estado. Isso gerou revoltas especialmente em Alexandria, onde o número de judeus era maior. O Estado tivera que intervir para apaziguar os protestos. 

"O imperador Nero (54 – 68) enviou exploradores ao reino de Meroe, com o qual mantinha relações comerciais pacificas; Vespasiano tornou-se popular em Alexandria, onde se lhe atribuíram poderes miraculosos; Trajano (98 – 117) reduziu as legiões estacionadas no Egito a apenas uma, o que indica uma situação de calma. Este último imperador ainda mandou abrir um canal ligando o Nilo ao mar Vermelho com o propósito de desenvolver o comércio com o Oriente e competir com as rotas das caravanas, que levavam a Síria por territórios fora do controle romano. Todas essas medidas beneficiaram Alexandria, ainda o principal porto do Mediterrâneo. E importante observar, ainda, que Trajano enviou o trigo de que o Egito necessitava quando a fome assolou esse pais, invertendo a norma que obrigava o Egito a pagar o annona a Roma". (DONADONI, 2010, pp. 197-198).

Porém, embora Trajano tenha realizado boas ações na província do Egito, foi durante o seu governo que o mesmo enviou legiões para Jerusalém para conter uma revolta na cidade, entretanto o confronto foi tão implacável que parte da cidade foi destruída. Em reação a tal ato, os judeus de Alexandria se rebelaram contra a autoridade romana e um novo conflito se instaurou na cidade. Tal episódio ficou conhecido como "Guerra dos Judeus"O general romano Márcio Turbo pôs fim a guerra, destruindo a colônia judia na cidade. Isso apaziguou por vários anos a revolta dos judeus. No entanto a situação do Egito iria piorar daqui pela frente, e tal fato contribuiu para a disseminação do cristianismo.  

Os imperadores Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio, embora tenham realizados bons governos, o que lhes rendera o título de um dos "cinco bons imperadores", enfrentaram problemas com os egípcios, que afetaram a relação da província e sua obediência ao Estado. Os pequenos camponeses cada vez mais estavam ficando pobres e os ricos ainda mais ricos, ao mesmo tempo, o apoio do governo para a classe baixa havia diminuído drasticamente, o que levou a uma série de revoltas pela província.

No século III todo o império entrou em crise, crise essa causada pela má gestão dos imperadores, corrupção, intrigas, traições, guerras, revoltas, etc. Durante quase um século, todo o império permaneceu em crise, até que recuperou-se durante o governo de Diocleciano (284-305).

O copta

Foi por volta do século III que surgiu o termo copta, palavra essa que se referia a egípcio, sendo uma variação da palavra grega aiguptios de onde originou-se a palavra egípcio. Inicialmente, copta designava tanto o povo que vivia no Egito e um dos idiomas utilizado no país, a língua copta, surgida no século III, baseada no alfabeto grego e na escrita demótica, sendo essa de origem egípcia. Assim, quando o Antigo Testamento foi traduzido para o grego, os cristãos coptas como ficaram conhecidos, transcreveram o Antigo Testamento para seu idioma, isso contribuiu para a identidade desses cristãos. 

Edição da Bíblia escrita em língua copta.
Logo com o passar do tempo, o termo copta não apenas designava os habitantes do Egito, mas passou a designar também os cristãos egípcios e posteriormente os cristãos da Igreja Copta, como será visto mais adiante. 

O cristianismo se firma no Império Romano

Foi a partir do governo do imperador Constantino, o Grande (306-337) que o cristianismo em todo o império começou a ganhar seu reconhecimento oficial pelo Estado. Constantino foi o primeiro imperador a adotar o cristianismo como sua religião, e posteriormente em 313, foi outorgado o Édito de Milão, onde na época os dois imperadores, Constantino e Licínio assinaram o édito decretando liberdade de culto no império e o fim da perseguição religiosa.

Esse foi o primeiro passo para que o cristianismo agora conseguisse sua guinada até se firmar como religião predominante do império romano. Em 393, o imperador Teodósio, o Grande decretou o Cristianismo como sendo a religião oficial de todo o império. Teodósio aboliu os antigos deuses romanos e outros deuses adorados nos domínios do império, embora que tal mudança não surtiu resultados de imediato, o que levou o imperador a decretar uma forte onda de repressão, ordenando o fechamento ou destruição de locais pagãos: templos, santuários, bibliotecas, escolas, monumentos, etc. Mas, já estava aberto o caminho para os cristãos, esses não seriam mais perseguidos e agora tinham direito e liberdade de pregarem sua religião. 

Por essa época, o Novo Testamento já havia sido concluído, e a Bíblia como conhecemos hoje já estava formalizada, logo ela foi traduzida para o copta e isso facilitou a pregação de novos adeptos. 

A pregação no Egito


A cristianização efetiva do Egito começou por volta do século III e se acentuou até o século VII, quando os árabes chegaram em massa ao país e passaram a controlá-lo, trazendo consigo uma nova religião que crescia rapidamente, o Islamismo. Por hora, me prenderei a falar do primeiro momento, depois retomo a questão do confronto com o Islão.

Alguns aspectos foram importantes para que o povo egípcio adotasse a nova fé trazida pelos cristãos: nem todos eram favoráveis ao culto dos deuses romanos, os egípcios possuíam uma forte tradição de vida após a morte; possuíam ideias de paraíso e inferno, algo que os gregos e romanos compartilhavam também, mas de forma diferente; os egípcios também acreditavam em ressurreição e até mesmo possuíam um símbolo que foi associado a cruz cristã, o ankh.

Desde as épocas mas antigas do Egito, a crença em uma vida após a morte e na imortalidade da alma, foi difundida entre esse povo. As múmias eram formas de como principalmente os faraós, os sacerdotes e a elite encontraram para preservarem seus corpos para a outra vida. Não obstante, acreditava-se que após ficar algum tempo no Outro Mundo, os deuses concederiam aos mortais, a possibilidade de ressurreição, daí também o fato de se preservarem os corpos, já que a alma voltaria a habitar o mesmo corpo.  

Não obstante, outra questão que envolve a ideia de ressurreição está ligada ao deus Osíris, o qual segundo a tradição religiosa, Osíris foi enganado pelo seu invejoso irmão, o deus Seth, o qual o assassinou e esquartejou o seu corpo, jogando os pedaços no Nilo e aos quatro ventos. A esposa de Osíris, Ísis, junto com sua irmã Néftis (a qual era esposa de Seth), foram atrás de reunir os pedaços do corpo de Osíris, a fim de ressuscitá-lo. As duas deusas conseguiram ressuscitar o irmão, entretanto, Osíris partiu para o Mundo dos Mortos, vindo a se tornar juiz desse.


A morte e a ressurreição de Osíris foi comparada a morte e a ressurreição de Cristo.
Nesse aspecto, os egípcios já estavam familiarizados com a ideia de morte e ressurreição, logo não acharam estranho Cristo ter ressuscitado. Quanto a deusa Ísis, essa era considerada como a "Grande Mãe", e seu culto já havia se espalhado pela Grécia, Roma, Ásia Menor e pela Fenícia. Logo, os cristãos também se valeram dos atributos dessa deusa e a associaram a Virgem Maria, e o filho do casal, o deus Hórus, foi associado a imagem do Menino Jesus, embora ambos tenham aspectos diferentes: Hórus além de ser o deus do céu, e guardião dos faraós, era também o deus da vingança. 


A esquerda, representação de Ísis amamentando Hórus. Na direita a Virgem Maria e o Menino Jesus. A imagem dos deuses egípcios foram associadas a imagem cristã de Maria e Jesus. 
Quanto o ankh (fala-se anak ou anrr), essa passou a ser chamada pelos coptas de cruz ansata ou cruz copta. O ankh de fato lembra uma cruz, e simbolizava na escrita hieroglífica egípcia a vida após a morte, ressurreição, vida, imortalidade da alma, etc. Logo, se a cruz cristã personificava a morte de Cristo, seu flagelo para salvar a humanidade, a esperança de salvação nele, etc., foi fácil adaptar esse símbolo a nova religião.


ankh foi equiparado a simbologia da cruz dos cristãos.
"Desse modo, a experiência religiosa do Egito deve ter colaborado para a propagação de uma outra religião de salvação – como se pode considerar, sob alguns aspectos, o cristianismo –, principalmente por se tratar de um pais em que as preocupações com a vida além‑túmulo sempre foram um fator preponderante na especulação religiosa. Alem do mais, durante alguns séculos existiu no Egito uma colônia judaica, cuja presença, já a época de Ptolomeu Filadelfo, fora motivo para a tradução grega do texto da Bíblia, conhecida como “Septuaginta”.Portanto, e provável que, desde muito cedo e em diferentes comunidades; fossem conhecidos no Egito os fundamentos bíblicos do cristianismo, o que a principio deve ter facilitado a difusão da nova religião. Em verdade pouco se conhece do assunto. (DONADONI, 2010, p. 206)". 

Não obstante, além dessas "similaridades" religiosas que facilitaram a assimilação da nova crença, o próprio estado político e histórico do Egito nessa época contribuiu para a disseminação do cristianismo.

Um primeiro fator ligado a esse, era a língua e a cultura. Embora o país tenha sido dominado pelos greco-macedônicos por quase três séculos e depois pelos romanos ao longo de quase cinco séculos, por incrível que pareça, nem todo mundo falava grego ou latim, ou tinha acesso a cultura helênica e romana, tais culturas era apenas acessadas pelas elites, logo a massa camponesa, não sabia em muitos casos falar grego ou latim, e muito menos ainda sabiam ler. 

Assim, uma forma que foi encontrada para se pregar a nova religião as massas, era se adequar a "língua do povo", nesse caso o copta foi essa solução. Embora no Egito se falasse outras línguas também, o copta era razoavelmente conhecido em toda a província, mesmo que apenas poucos soubessem escrevê-lo. 

"O cristianismo, assim como o gnosticismo e o maniqueísmo, adotou o copta na forma de um ou outro dos seus diversos dialetos provinciais ou regionais. Esse fato significa não apenas que os sacerdotes falavam as classes mais humildes da população, aquelas que não tinham acesso a cultura grega das classes dominantes, como também que, no domínio da religião, dava-se prioridade a cultura nacional e a população nativa, que praticamente não gozava dos benefícios da Constituição Antoniniana e estava impedida de participar dos novos quadros de cidadãos do Império". (DONADONI, 2010, p. 206). 

Assim o cristianismo copta como ficaria conhecido, começou a se tornar a "religião do povo". As pessoas que não gostavam de adorar os deuses gregos e romanos de seus senhores, que eram excluídos dos direitos de cidadania outorgados pelas constituições de alguns dos imperadores, começaram a enxergarem no cristianismo um local de acolhimento. Nesse caso, a condição de crise que o império romano vivenciou ao longo do século III, que afetou profundamente as classes baixas, foi também um dos fatores que levou as pessoas a procurarem acolhimento, e o cristianismo desde cedo se mostrou como uma religião que acolhia qualquer indivíduo que passasse a profetizar Cristo como o caminho para Deus, logo para a salvação e a vida eterna; ao mesmo tempo, as igrejas e mosteiros cristãos eram locais onde se abrigava os desvalidos e aqueles que buscavam ajuda.

O cristianismo se apresentava como uma religião acolhedora, solidária e caridosa, algo diferente dos deuses greco-latinos, que eram divindades extravagantes e as vezes perversas (alguns deuses egípcios também tinham essas qualidades).

No entanto os romanos não aceitaram de bom grado esse crescimento no número de cristãos na província. Durante o governo do imperador Décio (249-251) esse cobrava de seus súditos a oferenda de grãos e incenso, os quais deveriam serem queimados em sua homenagem, no entanto os cristãos negavam-se a realizar essa oferenda pagã, Décio soube dessa afronta e se irritou com os cristãos, ordenando que aqueles que desobedecem tal rito, seriam punidos. 

Imperadores que o antecederam e o sucederam também perseguiram os cristãos e outros cultos do império. O último grande incidente que ocorreu contra os cristãos foi no governo de Diocleciano em 303, o qual ordenou uma perseguição em massa de cristãos em alguns cantos do império. Apenas a partir do governo de Constantino, como foi dito anteriormente, é que as perseguições efetuadas pelo governo se findaram. 

Os anacoretas

Ainda por volta do século III e em diante surgiram os chamados monges anacoretas. Tais monges cristãos haviam decidido se retirarem para locais distantes das cidades, a fim de viverem uma vida de isolamento ao mundo e vivendo restritamente para os ofícios da fé. Tal prática foi chamada no Egito de anacoreta (anachoresis). Nesse caso os gregos, romanos e bizantinos usavam a palavra anachoresis para se referir ao indivíduo que fugia da cidade a fim de não querer pagar os impostos, posteriormente tal termo passou a também designar os cristãos eremitas, especialmente os monges, embora também tenham surgido comunidades e povoados de anacoretas no deserto e em locais mas distantes das cidades. 


Santo Antão do Deserto
Santo Antão do Deserto ou do Egito (251-356) foi um dos poucos santos que escolheram a vida de reclusão e isolamento. Antão é considerado o "Pai de Todos os Monges". Sua vida posteriormente escrita nas hagiografias medievais, tornou-se exemplo para os monges cristãos, embora que muitas ordens não foram adeptas totalmente do enclausuramento, ou seja, viver apenas no mosteiro. 

"Ademais, os numerosos documentos relativos a vida dos monastérios mostram-nos que se tratava de grandes organizações proprietárias de terras, animais, oficinas, lojas e instalações agrícolas. Um convento podia ser rico e ativo, e seus monges pessoalmente pobres, dedicados a vida contemplativa; tal solução, como se percebe facilmente, assemelha-se aquela que levou ao desaparecimento das pequenas propriedades em favor dos latifúndios. Os monges encontravam nos conventos a satisfação não somente de suas aspirações religiosas, mas também de um desejo profundo, peculiar aquela época: a fuga as dificuldades da vida e a proteção contra uma autoridade discricionária. Esse fato pode explicar a ocorrência de uma população monástica numerosa, que chegava a alcançar as dezenas de milhares, conforme documentos da época. A utilização dos monastérios como refugio contra o Estado, ou ao menos como um atenuante da incapacidade deste em cumprir as responsabilidades para com as populações, levou as autoridades eclesiásticas a ocuparem cada vez mais o lugar das autoridades civis". (DONADONI, 2010, p. 210).

Antes do édito outorgado por Constantino e Licínio no século IV, tais mosteiros e comunidades eram fontes de ataques pelo Estado, no qual enxergavam nestes locais centros de resistência e rebeldia ao império. De fato, nessas comunidades, as pessoas não pagavam impostos ao Estado e viviam sob os costumes cristãs, logo não obedeciam as leis romanas e muito menos os ritos helênicos.

O Concílio de Calcedônia (451)

Entre outubro e novembro de 451 na cidade de Calcedônia na época Bitínia (hoje norte da Turquia) fora realizado o quarto Concílio Ecumênico do Cristianismo. O principal tema a ser debatido dizia respeito a natureza de Jesus Cristo, teria sido ele homem e deus ao mesmo tempo, ou teria apenas uma dessas naturezas?

No século IV, o presbítero Ário (256-336) iniciou em Alexandria um debate que punha em dúvida a natureza de Cristo. Ário inicialmente tentou convencer em 318 o bispo Alexandre de que Jesus era o Filho de Deus, que foi criado por Deus e houve um tempo que não havia o Filho, isso implicava que a Trindade fosse negada. A partir da defesa de Ário, surgiu a doutrina do Arianismo, na qual defendia a natureza humana de Cristo e punha em dúvida sua natureza divina. 

No século V, o Patriarca de Constantinopla, Nestório (386-451) defendeu o argumento a respeito da natureza de Deus a desassociando o lado humano do divino. Diferente de Ário que questionava a natureza divina, Nestório dizia que deveria se interpretar Jesus possuindo naturezas distintas, logo, ele discordava da ideia de chamar Maria de a "Mãe de Deus", mas dizia que o correto seria dizer, Maria a "Mãe de Cristo". O Patriarca de Alexandria, Cirilo (375-444) atacou ferrenhamente a ideia de Nestório, alegando que isso era heresia. De fato no Concílio de Éfeso em 431, o assunto sobre a dualidade da natureza de Cristo foi considerado herético, alegava-se que Jesus seria Pai e Filho, logo, o Filho de Deus e o Filho do Homem. 

Mesmo assim a doutrina de Nestório ganhou muito adeptos, e após a sua morte seus adeptos continuaram a pregar suas ideias dando origem ao Nestorianismo, o qual foi inicialmente a principal vertente do cristianismo que adentrou a Ásia, chegando até mesmo a China. 

Por fim, quando chegou-se em 451, novamente esse assunto voltou a ser posto em debate, a Igreja criticava as doutrinas do arianismo e do nestorianismo alegando como sendo pensamentos que desvirtuavam os cristãos da verdadeira pessoa de Cristo.

O imperador romano Marciano (392-457) convocou o concílio e reuniu centenas de bispos e doutores da Igreja a fim de por um fim nesse impasse. Foi decidido que o arianismo e o nestorianismo além de outras crenças como o gnosticismo e o maniqueísmo, e outros assuntos, eram pensamentos heréticos e falsos que desvirtuavam a imagem de Cristo e a crença na Trindade. Logo, foi decretado que as igrejas de Roma, Jerusalém, Constantinopla, Alexandria e Antioquia deveriam negar a influência dessas doutrinas, porém nem todos concordaram com isso. 

O Patriarcado de Alexandria e de Constantinopla apresentaram proximidade ao arianismo e ao nestorianismo. O Patriarca de Constantinopla nessa época era Dióscoro, este era um monofisita e o seu antecessor foi nestoriano. Em Alexandria parte dos membros da Igreja apresentavam-se como adeptos ao monofisismo e outros negavam essa crença, por fim, no concílio originou-se o primeiro cisma na cristandade, os nestorianos e arianos continuaram a pregar sua doutrina e assim fundaram suas próprias igrejas, nesse caso a emergente Igreja Copta adotou o monofisismo.

O monofisismo se baseava nas doutrinas do Eutiaquinismo e do Apolarianismo, embora o Arianismo possua alguns aspectos similares a essas doutrinas. Ambas as doutrinas defendiam que Jesus possuía uma natureza humana envolta pelo divino, e não as duas naturezas em si na mesma pessoa, logo isso punha em dúvida a Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), e alegava que os milagres e a ressurreição de Cristo foram dons dados por Deus e não algo próprio de sua natureza divina. Isso levou ao rompimento dos coptas com a Igreja de Roma, de Jerusalém, Constantinopla e de Antioquia, e dentro do próprio Patriarcado de Alexandria.

Após o Concílio de Calcedônia os membros do Patriarcado de Alexandria se dividiram, uns passaram apoiar diretamente as exigências propostas em Calcedônia, ficando ligados a administração do Patriarcado de Constantinopla, os que discordaram do concílio, romperam com o patriarcado alexandrino e surgiu assim a Igreja Ortodoxa de Alexandria e a Igreja Ortodoxa Copta

"As decisões do Concilio de Calcedônia (451), que resolveu definitivamente a questão ao declarar obrigatória a crença na união intima de duas naturezas em Cristo, deflagraram em Alexandria uma crise que durou até a conquista muçulmana. Após o Concilio, Alexandria passou a ter dois patriarcas: um melquita (do árabe malik, que significa rei), nomeado por Constantinopla e subordinado ao rei, que exercia os poderes administrativo, judiciário e policial, e um monofisita, que se opunha ao anterior e era, aos olhos dos egípcios, o defensor da única verdade teológica aceitável – a unidade da natureza de Cristo. O poder do patriarca melquita, estribado na legitimidade e na forca imperiais, chocava-se com o do patriarca monofisita, que tinha como apoio um sentimento nacional cada vez mais antibizantino". (DONADONI, 2010, p. 209). 

Embora carregue o nome ortodoxo, a Igreja Copta não está em comunhão com as Igreja Católicas, Ortodoxas e Protestantes, sendo uma Igreja independente, apenas compartilhando a doutrina cristã entre si. 

Cruz da Igreja Ortodoxa Copta.

O Cristianismo chega a Núbia

A Núbia compreendia uma antiga região que se estendia da primeira catarata do Nilo até um pouco depois da sexta catarata do Nilo, e de leste a oeste, seguia do Mar Vermelho ao Deserto da Líbia. Hoje o território núbio se encontra entre o sul do Egito e o norte do Sudão.

Localização do antigo território da Núbia entre a primeira e sexta catarata do Nilo.
Na Núbia foram encontradas artefatos e sítios de assentamentos, povoados e cidades de mais de 4 mil anos de idade. A ocupação da Núbia é tão antiga quanto a do Egito. Nesse caso o que nos interessa é que por volta do século III d.C, o Reino de Méroe o qual governava essa região terminou, dando espaço para o surgimento de pequenos Estados, logo sugiram três novos reinos na Núbia. 

Na parte norte, o povo Nobata expulsou os Blêmios (Bega ou Buga), ocupando a região e fundando o Reino dos Nobatas ou Nobatia. O reino ficava localizado entre a primeira catarata até a região do Dal, a qual fica entre a segunda e terceira cataratas. Os nobatas foram os primeiros núbios a se converterem ao Cristianismo devido a sua proximidade com as fronteiras egípcias ainda na época do Império Romano. 

Os romanos até que tentaram conquistar a Núbia mas acabaram falhando, então decidiram propor um acordo de paz, desde que o acordo não fosse descumprido, os núbios estariam em segurança. Ao mesmo tempo eles podiam comercializar com os romanos, tendo acesso a navegarem pelo Nilo até o Mediterrâneo. 

Nesse caso, ainda no século III os primeiros cristãos coptas teriam chegado na Núbia, tendo sido mercadores, viajantes ou foragidos, os quais fugiam da perseguição romana. Eles se estabeleceram no Reino dos Nobatas. Na década de 1960, escavações arqueológicas encontraram na cidade de Faras, capital do reino, uma igreja cristã possivelmente anterior ao século V, provando que a cristianização dessa região é bem mais antiga, já que até então acreditava-se que o cristianismo teria se difundido pela Núbia por volta do século VI com as missões religiosas dos bizantinos. 

Afresco de Santa Ana, encontrado em uma igreja copta em Faras.
"Isso prova que a fé cristã já alcançara os Nobatas, ganhando adeptos entre os pobres, muito antes que a imperatriz Teodora de Bizâncio enviasse a missão chefiada pelo padre Juliano para cristianizar oficialmente a Núbia. Outra prova da penetração precoce da fé cristã entre os núbios são os mosteiros e eremitérios existentes na região desde o fim do século V. Podemos, pois, afirmar tranquilamente que a religião cristã já se infiltrara aos poucos na Núbia bem antes da sua conversão oficial – que ocorreu, segundo João de Éfeso, em 543". (MICHALOWSKI, 2010, p.334).

Os reis nobatas se converteram ao cristianismo e oficializaram a religião cristã copta como a religião do reino. Logo igrejas e túmulos cristãos foram erguidos pelo reino. E por volta do século V, surgiu o segundo reino núbio, o Reino de Makuria ou Makuria (Muqurra em árabe), o qual ficava localizado na região central da Núbia, entre a terceira catarata e a quinta, tendo a cidade de Dongola como sua capital. 

Diferente dos nobatas que eram cristãos coptas, os makurias se tornariam cristãos ortodoxos, sofrendo influência direta da Igreja de Constantinopla e de Alexandria, devido especialmente a missão cristã enviada pelo imperador bizantino Justino II entre os anos de 567-570. Porém, um século mais tarde, os makurias passariam a adotar a doutrina monofisita dos coptas, se tornando cristãos coptas também. 

No século VI formou-se no sul da Núbia entre a quinta e sexta catarata o terceiro reino, o Reino de Alodia (ou Alwa em árabe). A capital do reino era a cidade de Soba, próxima da atual Cartum no Sudão.  

"Por volta de 580, com o apoio dos Nobatas, chegava a Alodia uma missão bizantina, mas seu chefe, o bispo Longino, verificou que o pais já estava em parte convertido pelos axumitas. Temos, portanto, ao fim do século VI, uma Núbia já cristã, composta de três reinos: Nobadia, ao norte; Makuria, no centro, e Alodia, ao sul. As relações entre os três ainda não estão bem definidas, pelo menos durante o inicio de sua existência autônoma. (MICHALOWSKI, 2010, p. 338). 

Localização dos três reinos núbios.
No século VII, por volta de 616, os exércitos persas do rei Cósroes II invadiram o Egito e o conquistaram, o retirando dos domínios dos bizantinos, isso rompeu os laços de amizade e dependência entre a Igreja da Núbia que era subordinada a Igreja de Alexandria. Tal causa pode ter sido um dos fatores para que os cristãos ortodoxos se tornassem coptas. Ainda no século VII em 651, os persas foram derrotados e expulsos do Egito pelos árabes, que passaram a tomar conta da região. Os árabes trouxeram consigo uma nova e crescente religião, o Islamismo. 

De início eles ficaram retidos no Egito e continuaram a seguir para o oeste até chegarem hoje o que é o Marrocos e depois adentrarem a Península Ibérica, embora que posteriormente, eles iniciaram viagens pela costa leste da África em direção ao sul. Todavia, nesse momento eles não mostraram interesse na Núbia, assim os núbios ficaram relativamente seguros por um tempo, e a fim de conseguirem manter sua religião, costumes e independência, os reis dos três Estados realizaram acordos com o sultão do Egito, em troca de oferecem tropas e mercadorias, desde que mantivessem sua integridade. Nesse caso, os reinos de Nobatia e Makuria acabaram se unificando, e permaneceram cristãos até o século XIV, após isso o islamismo tomou conta. 

"Foi sem dúvida por causa das primeiras escaramuças entre núbios e árabes do Egito que dois reinos núbios, o do norte e o do centro, se uniram num só Estado. Baseando-se em fontes árabes, mais antigas, Maqrizi afirma que, em meados do século VII, o mesmo rei, Qalidurut, governava a Núbia setentrional e central,até os limites de Alodia. Já as fontes cristas parecem provar que a união da Núbia foi obra do rei Merkurios, que subiu ao trono em 697 e fez de Dongola a capital do reino unido. A este rei se atribui a introdução do monofisismo em Makuria". (MICHALOWSKI, 2010, p. 340).

A partir do século VIII, o Reino de Makuria como continuou a se chamar o Estado unificado dos nobatas e makurios, começou a prosperar graças aos eficientes governos de seus reis, tendo sido o primeiro deles Merkurios, o qual reinou de 697 a 722. Embora tivessem assinado um acordo de não-agressão, e dados momentos, os núbios chegaram a confrontar os árabes do Egito, não obstante, novas igrejas foram construídas e outras foram reformadas e adornadas ricamente, o comércio crescia, e o Estado ficava mais rico, embora isso não significava que a desigualdade social diminui-se. 

"Descobriram-se recentemente em Qasr Ibrim alguns papiros importantes para o esclarecimento das relações entre o Egito e a Núbia durante esse período. Trata-se de uma correspondência entre o rei da Núbia e o governador do Egito: do texto mais longo, datado de 758, consta um protesto escrito em árabe por Musa K’ah Ibn Uyayna contra os núbios que desrespeitavam o baqt. As expedições militares não são, porem, as únicas evidencias de que o Estado núbio já florescia no inicio do século VIII. Ha testemunhos arqueológicos do extraordinário desenvolvimento da arte, da cultura, da arquitetura monumental núbia a esse tempo. Em 707, o bispo Paulos reconstruiu a catedral de Faras, decorando-a com esplendidos murais. Durante o mesmo período, importantes edifícios religiosos foram construídos na antiga Dongola, e outras igrejas foram cobertas de magníficas pinturas, como em Abdallah Nirqui e es-Sebua". (MICHALOWSKI, 2010, p. 341).

Afresco copta retratando Santo Antônio.
No final do século VIII e começo do IX, o rei Yoannes anexou o norte da Alodia aos seus domínios, expandindo o reino cristão copta dos Makurias. Nessa época, o Estado se encontrava a caminho de seu apogeu o qual se perpetuaria até o século XIII quando os árabes vindos do Egito conquistariam a Núbia no século seguinte. A população na região central chegou a 50 mil habitantes, um número grande para época, ainda mais se levando em consideração que o clima é árido. Mas graças as melhorias na irrigação, as plantações aumentaram, e a produção de alimentos também, permitindo um crescimento populacional por todo o reino. Ao mesmo tempo, com um maior número de pessoas, havia um maior número de trabalhadores, logo, Makuria realizava comércio com Constantinopla, a Etiópia e com outros reinos em direção ao centro-oeste do continente através de rotas fluviais e terrestres. 

Os ricos passaram se vestirem à moda bizantina, as casas se tornaram maiores, mais belas e mais adornadas externamente e internamente. As igrejas, palácios e outros edifícios passaram a serem melhor construídos e mais ricamente decorados. Cerâmicas, tecidos e produtos vindos da Ásia, foram encontrados em escavações pela Núbia, conotando a prosperidade e a influência desse reino. 

"Em suma: ate o século IX, a Núbia gozou de um período inicial de prosperidade, sem ser muito perturbada pela vizinhança dos muçulmanos, em geral pacíficos. Não é fácil discernir uma unidade cultural entre as primeiras comunidades cristas da Núbia. Em Faras, aristocratas e oficiais administrativos falavam grego, como também os dignitários da Igreja. O clero compreendia inclusive o copta, que talvez fosse a língua de muitos refugiados. Quanto ao dialeto núbio, embora largamente empregado pela população, não chegou até nos em forma escrita. Os registros que temos são de data bem mais recente, provavelmente não anterior a meados do século IX. Estava ainda por vir, ao redor do ano de 800, o período áureo da Núbia crista". (MICHALOWSKI, 2010, p. 349).

O Império Axum se torna cristão

Axum ou Aksum compreendia um império localizado na costa do Mar Vermelho, compreendendo atualmente parte dos atuais territórios da EritreiaEtiópia e Djibouti. Desde o século I d.C, os romanos e outros povos do Mediterrâneo oriental já conheciam tal império. Tal fato, é tão evidente, que alguns reis de Axum, sabiam falar e escrever em grego e até mesmo conheciam aspectos da cultura greco-romana, revelando que tal região não era tão desconhecida assim dos europeus e asiáticos do Mediterrâneo. 

O império de Axum do ano 100 a 940.
Antes de se converter ao cristianismo, o império conheceu várias religiões. Distintos povos que ali viveram, trouxeram suas religiões. Estudos revelam que existiram cultos a deuses greco-romanos, egípcios, árabes, babilônios e deuses locais. Até mesmo há indícios de que houvessem judeus vivendo naquelas terras. 

"No entanto, ainda falta esclarecer se esse tipo de culto relativamente desenvolvido e de domínio exclusivamente real e aristocrático ou também popular. Sobre a existência do judaísmo na Etiópia, inúmeros fatores testemunham a presença de um grupo que professava a religião hebraica; a historia dos reis, Tarike Neguest, menciona-o brevemente. Esse grupo teria inclusive governado durante algum tempo. Mesmo deixando de lado a narrativa do Kbre Neguest (Glória dos Reis), considerado pelos clérigos etiopês como um livro basilar de historia e literatura, e no qual todos os reis de Axum são erroneamente ligados a Salomão e Moisés, certas tradições, transmitidas através dos séculos, aludem a presença de fieis da religião judaica. Os indícios são a circuncisão e a excisão infantil, alem do relativo respeito pelo sabá. Os cantos sagrados e as danças litúrgicas acompanhadas de tambores, sistros e palmas evocam a dança dos judeus e do rei Davi diante da arca da aliança". (MICHALOWSKI, 2010, p. 427).

Inicialmente creditou-se a cristianização dos axumitas como tendo sido obra de São Mateus e posteriormente de São Tomé. O famoso mercador veneziano, Marco Polo (1254-1324) fala brevemente sobre a "Província de Abastia" nome pelo qual ele chamava a Etiópia. Polo conta em seu livro que na Abastia do século XIII, haviam cristãos, muçulmanos e judeus, mas era o rei cristão que governava o país. Polo, diz que foi São Tomé o responsável por cristianizar tal país, antes de viajar para a Índia onde veio a falecer. 

Posteriormente quando Axum se tornou cristão, e o Estado da Etiópia se formou, surgiram lendas dizendo que os reis da Etiópia eram descendentes dos filhos do rei Salomão com a rainha de Sabá, ou descendentes de Moisés. Ambas as histórias procuravam legitimar ainda mais a presença da cultura judaico-cristã naquelas terras; o aproximando cada vez mais de Roma, Constantinopla, Alexandria e Jerusalém. 


Pintura retratando o Rei Salomão e a Rainha de Sabá. De acordo com antigas lendas etíopes, alguns reis teriam sido descendentes dos filhos do casal.
Mas, se não existem documentos que comprovem com garantia que São Mateus ou São Tomé viajaram para Axum e ali converteram novos fiéis, o responsável pelo cristianismo em Axum possivelmente tenha sido São Frumêncio (?-393), o qual no século IV, teria iniciado a pregação do cristianismo entre os axumitas. No texto etíope, Tarike Neguest (História dos Reis) e de acordo com os historiadores Eusébio e Rufino, afirmam que Frumêncio foi o responsável por pregar o cristianismo em Axum. Sobre isso, Rufino dá alguns detalhes bem interessantes.

São Frumêncio, Bispo de Axum.
"Segundo Rufino, um certo Merópio de Tiro desejava ir as Índias (a exemplo do filósofo Metrodoro) com dois jovens parentes, Frumêncio e Edésio. Na volta, ao aproximar-se de um porto (no mar Vermelho?), seu barco foi atacado pela população. Merópio morreu e os dois jovens irmãos foram conduzidos até o rei de Axum. O mais jovem, Edésio, tornou-se escanção, enquanto Frumêncio, graças a sua cultura grega, fez-se tesoureiro, conselheiro do rei e tutor de seus filhos. Considerando-se a data de chegada dos dois jovens, e de crer que esse rei tenha sido Elle Ameda, pai de Ezana. Após a morte de Elle Ameda, sua esposa tornou-se regente e pediu aos dois jovens para permanecerem com ela a fim de administrar o pais ate que seu filho estivesse em idade de reinar". (MICHALOWSKI, 2010, p. 428). 

Possivelmente tal história tenha sido "enfeitada" para contar a chegada de Frumêncio a Axum. A respeito do futuro santo pouco se sabe de suas origens. Ele nasceu em Tiro na Fenícia, tendo sido educado na cultura helênica. Possivelmente, Frumêncio tenha na realidade partido como missionário de Alexandria para Axum, a fim de pregar. De qualquer forma, não se sabe ao certo como o santo realizou seu trabalho, mas sabe-se que ele foi nomeado por São Atanásio de Alexandria (295?-373), na época Patriarca de Alexandria, a assumir o posto de Bispo de Axum. Assim, Frumêncio retornou para Axum e batizou a família real, a partir desse feito o cristianismo começou no século IV a caminhar para se tornar a religião oficial, embora que de imediato nem todo mundo aceitou abandonar a crença em seus deuses para cultuar um novo deus.

"Provavelmente, não foi sem dificuldade que a corte axumita deu esse passo. A partida de Frumêncio para Alexandria e seu regresso a Axum como bispo parecem ter ocorrido num clima de dúvida e apreensão, de que o prelado não deixou de tirar proveito". (MICHALOWSKI, 2010, p. 429). 

"Nem as obras estrangeiras nem os escritos locais já publicados fornecem uma indicação precisa quanto a data de introdução do cristianismo em Axum. Tanto a historia dos reis, Tarike Neguest, como o Guedel Tekle Haymanot afirmam que os irmãos Frumêncio e Edésio chegaram em 257 da Era Cristã, ao passo que o regresso do primeiro a Axum como bispo se teria dado em 3157. Outras fontes dão as datas de 333, 343, 350, etc. Todas essas datas afiguram-se arbitrárias. Algumas obras estrangeiras assinalam que o rei Elle Ameda, pai de Ezana, morreu por volta de 320-25. Fixando-se a maioridade em quinze anos e levando-se em conta a partida e o regresso de Frumencio, o batismo do rei Ezana teria ocorrido entre 350 e 360". (MICHALOWSKI, 2010, p. 430). 

Assim como foi o caso de Roma, onde Constantino se tornou o primeiro imperador cristão, no caso de Axum, o rei Ezana se tornou o primeiro rei cristão dos axumitas, algo que nem todo mundo aprovou. Constantino trabalhou até o fim da vida para legitimar cada vez mais a nova religião no império e de fato sua dúvida sobre isso, o levou apenas no final da vida a se batizar como um cristão, já que parte da nobreza e do Estado não aceitavam a ideia de um imperador cristão, algo que Ezana vivenciou também. 

Moedas de prata com a efígie do rei Ezuna, soberano de Axum de 320 a 360.
"Do mesmo modo, como observaram Guidi e Conti-Rossini, o rei Ezana e sua família, por temor ou amor-próprio, não abandonaram repentinamente o culto de seu antigo deus em favor da religiao crista. A famosa inscrição registrada pela expedição alemã em Axum (DAE, n. 2) que se inicia com as palavras “Com a ajuda do Senhor do céu e da terra ...”, considerada por todos os etiopês como o primeiro testemunho de Ezana sobre sua conversão ao cristianismo, mostra explicitamente seu desejo de assimilar a nova religião a velha crença nos deuses Beher e Meder, evitando mencionar o nome de Cristo, sua unidade com Deus e a trindade que ele forma com o Pai e o Espírito Santo. A expressão “Senhor do céu e da terra” – Igzia Semay Wem –, pronunciada pela primeira vez no século IV pelo primeiro rei cristao, continuou a ser usada até hoje". (MICHALOWSKI, 2010, p. 430). 

Não obstante, devido a proximidade de Axum com a cultura greco-latina, e com as cidades de Alexandria e Constantinopla, tais fatores contribuíram para que o cristianismo adentrasse esse reino e se espalha-se inicialmente pela classe alta, conhecedora da cultura helênica, para depois ganhar as massas, algo inverso da realidade da Núbia. O Synaxarium (espécie de hagiografia) diz o seguinte sobre o trabalho de Frumêncio:

“[...] Ele [Frumêncio] chegou ao país de Ag’Azi [Etiópia] durante o reinado de Abraha e Atsbaha [Ezana e seu irmão Atsbaha] e pregou a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo em todo o país. E por essa razão que ele é chamado Abba Selama [Pai da Paz]. Depois de haver conduzido o povo da Etiópia à fé [cristã], ele morreu na paz de Deus [...]”. (MICHALOWSKI, 2010, p. 431 apud MEKOURIA, T. T. 1966-7. v. II, pp. 203‑17).

Ezana ou Abraha e seu irmão Atsbaha trabalharam junto para transformarem o cristianismo na religião oficial de Axum. Foi sob o governo dos dois que ergueu-se a primeira catedral cristã na cidade de Axum.

Da esquerda para direita, São Frumêncio (Selama), Ezana (Abraha) e Atsbaha. Afresco da igreja de Abraha we Atsbaha, século XVII. 
"A influência dos dois irmãos, especialmente a de Abraha, foi imensa no país. A ele se deve a construção da cidade de Axum e de sua primeira catedral.Inúmeras igrejas e conventos gabam-se de ter sido fundados por ele, sem esquecer a importante participação de seu irmão Atsbaha e do bispo Frumêncio nessa obra, assim como de outros religiosos, não mencionados nas fontes. O reino cristão de Axum parece ter sido governado por uma sorte de triunvirato do tipo teocrático, “ABRAHA‑ATSBAHA‑SELAMA”, sendo Selama o nome atribuído pelos religiosos a Frumêncio". (MICHALOWSKI, 2010, p. 431). 

Ao longo dos séculos V e VI, vários pregadores surgiram por todo Axum, eram chamados de tsdkan (justos) e os tesseatou kidoussan (Nove Santos). Tais homens começaram a trabalhar como padres e monges, construindo igrejas e convertendo o povo. Os chamados Nove Santos foram pregadores que fugiram do Egito e da Arábia devido ao fato de defenderem o monofisismo contra o diofisismo, seu oposto. Assim tais homens chegaram a Axum, onde encontraram abrigo e terreno favorável a sua doutrina. 

Os Nove Santos, óleo sobre tela, Zeloul Yohannes, 1960. 
"A historia dos reis, Tarike Neguest, faz breve alusão a chegada dos Nove Santos: “Sal’adoba deu a luz All’Ameda, e durante o seu reinado chegaram de Roma [Constantinopla] os Nove Santos. Eles consolidaram [Asterat’ou] a religião e as leis monasticas”14. De acordo com algumas fontes locais, All’Ameda reinou entre 460 e 470, e, segundo outras, entre 487 e 497. Pode-se, pois, situar entre essas datas a chegada dos santos. Alguns autores acreditam que sua vinda se deu no século VI (na época de Caleb e de Guebre Meskel), o que parece menos provável". (MICHALOWSKI, 2010, p. 436). 

Tais "santos" viajaram por várias regiões distantes do império e até mesmo para fora de seus domínios, que atualmente corresponderiam ao território da Etiópia, para pregarem o cristianismo. Igrejas, mosteiros e conventos foram construídos nas cidades e localidades que eles visitaram, sendo alguns destes construídos em cavernas em rochedos, outros foram erguidos em locais de difícil acesso como em montanhas, a exemplo do mosteiro em Debre Damo. Ao mesmo tempo, os "santos" e outros pregadores contaram com o apoio dos reis Caleb e Guebre Meskel, os quais foram fervorosos defensores do cristianismo. 

Mosteiro copta de Abba Aregawi na montanha Debre Damo, Etiópia. 
"Os templos dos deuses da época pré‑axumita ou axumita pré‑cristã eram quase sempre construídos em lugares elevados, junto a grandes árvores e regatos. Debre‑Damo, Abba Penteleon, Abba Metta’e de Chimzana e Yeha são testemunhos desse fato. Após a conversão dos reis axumitas, todos esses templos foram transformados em igrejas". (MICHALOWSKI, 2010, p. 438). 

A medida que Axum se tornava cada vez mais cristão a partir do século VI em diante, a literatura e filosofia do país sofreu influência por causa desses fatores. Os axumitas davam muita atenção e credibilidade aos textos bíblicos e até mesmo textos apócrifos. Embora personagens bíblicas como Davi, Salomão, a rainha de Sabá, Josué e outros eram exaltados como "heróis", os imperadores romanos Constantino, o Grande e Teodósio II eram também vistos como heróis para o cristianismo. 

"As personagens bíblicas mais celebradas pelos religiosos eram Josué, Sansão e Gedeão. O Cântico dos Cânticos, os Provérbios, o Livro da Sabedoria de Salomão, o Livro do Filho de Siraque, etc. eram considerados obras de verdadeira filosofia, superiores aos escritos de Platão e Aristóteles. Virgilio, Sêneca, Cícero e os sábios medievais do Ocidente eram totalmente desconhecidos. A sociedade crista da Etiópia admira Davi mais que a qualquer outra personagem bíblica, considerando-o antepassado de Maria e da chamada dinastia salomônica. Os etiopês religiosos veneram os Salmos e acreditam que ler o salmo do dia todas as manhas os protegera de todo mal. A leitura constante dos salmos lhes asseguraria, como acreditava Davi, a aliança exclusiva com Deus Todo-Poderoso. O Livro dos Salmos, recitado nas mais diversas ocasiões, desempenha um papel preeminente na sociedade crista etíope. Assim, durante os funerais, por exemplo, os Debterotches ou chantres dividem entre si os salmos e os recitam ao lado do ataude, enquanto outros padres se concentram na leitura do Quenzete, o livro funerário, muito parecido com o antigo Livro dos Mortos egípcio". (MICHALOWSKI, 2010, pp. 446-447).

A importância dos Salmos era tão grande, que havia homens chamados de chantres os quais eram responsáveis por recitar ou cantarem em coro os salmos, algo visto em Axum, posteriormente na Etiópia e em outros países na Europa e Ásia. Hoje a função dos chantres não existe mais.

A Etiópia cristã

"Se quisermos desenhar um mapa da Etiópia no século VII, seus contornos não seriam definidos. Colocaríamos os nomes das cidades e das regiões, pouco numerosas, mencionadas por Cosmas Indicopleustes em sua Topografia Cristã, composta aproximadamente na metade do século VI. Essa obra fornece informações de primeira mão sobre regiões vizinhas do Nilo, do Mar Vermelho e
do Oceano Índico. Nela, encontra‑se indicado, por exemplo, que “de Axum (...) até o país dos incensos, denominado Berbéria e que, ao longo do oceano, não se encontra próximo, mas longe de Sasu, última região dos etíopes, há mais ou menos quarenta dias”. Cosmas fala também de mercadores, centenas deles, que sulcavam esse país, negociando o gado, o sal e o ferro, sem dúvida também, produtos do artesanato bizantino por “pepitas de ouro”. Também havia comércio de especiarias, de incenso e de canela". (MICHALOWSKI, 2010, pp. 653-654).
Mapa atual da Etiópia
Como foi apontado anteriormente, o norte da atual Etiópia, compreendia parte do território do Império de Axum, entretanto, as terras ao sul desse império pertenciam a distintos governantes, em geral chamados de bérberes pelo fato de falarem um idioma comum chamado bérbere. Entretanto, devido ao forte comércio entre Axum e essas terras o conhecimento a respeito do cristianismo começou a se difundir, e posteriormente o mesmo ocorreria com o islamismo.

No século VII o Império de Axum começou a entrar em declínio. Os persas da Dinastia Sassânida passaram a lutar contra os bizantinos pelo controle do comércio no Mar Vermelho, os axumitas não possuíam poderio militar para confrontar os persas, isso prejudicou sua autonomia mercantil no Mar Vermelho. Ao mesmo tempo, conflitos entre os pequenos Estados etíopes também afetaram as rotas de comércio por terra e a paz entre os vizinhos de Axum.

No século VIII, os árabes começaram a conquistar terras dos axumitas na península arábica, isso abalou a relação de não-agressão entre os axumitas e os árabes, os quais impulsionados pela expansão de sua nova fé, almejavam por conquistar terras e pregar as palavras do Alcorão

"Um dos fatores que contribuíram com a queda do reino de Axum a partir do século VII e com o seu desaparecimento ao longo do século VIII foi certamente a invasão das regiões setentrionais da Etiópia pelos bēdja, cuja “força de expansão”, segundo a expressão do historiador Conti Rossini, foi considerável, nessa época. Um dos mais potentes dos grupos bēdja, os zanāfidj, invadiu o planalto eritreu pelo vale do Barka". (MICHALOWSKI, 2010, p. 659).

Os bedjas formavam vários pequenos reinos pelo território etíope, estendendo seus domínios em direção ao oeste, sul e norte, adentrando até mesmo nas fronteiras da Núbia, entretanto, esses povos eram pagãos aos olhos dos axumitas, porém em alguns desses pequenos Estados, já haviam cristãos e até mesmo mosteiros e igrejas, mostrando que nem todos eram inimigos dos axumitas. Quanto a queda do império axumita pouco se sabe a respeito dos seus últimos anos, já que não foram encontrados documentos que falem acerca de seu período entre os século IX e X. 

Com a queda de Axum os bedjas e outros povos assumiram os domínios dos axumitas. Pelo fato de alguns profetizarem o cristianismo como sua fé, o mantiveram, entretanto outros eram judeus, pagãos e alguns passaram a adotar o islamismo. A coexistência desses grupos religiosos levaram a embates entre si, gerando conflitos armados, saques, destruição de vilas e templos.

Não obstante, embora nesse contexto tumultuado de conflitos, o cristianismo conseguiu se firmar na Etiópia pós-axumita, e em breve os imperadores etíopes, adotariam o cristianismo como religião oficial do seu novo império e trariam de volta o legado dos imperadores axumitas.

Na Etiópia se estabeleceram desde o século V, vários monges copistas os quais foram fundamentais para a tradução tanto do Novo Testamento para outras línguas como o sírio, o bérbere, gueze, etc., além da tradução de textos apócrifos. 

"No que concerne ao Antigo Testamento, salvo os livros canônicos definitivamente reconhecidos pelo Concílio de Trento, os etíopes traduziram vários textos bíblicos considerados apócrifos por outras Igrejas. Dentre eles, é preciso mencionar o Livro de Henoc, o Livro dos Jubileus, a Ascensão de Isaías, o Pastor Hermes e o Apocalipse de Esdras. Importa notar que foi somente na língua gueze que tais livros apócrifos foram conservados integralmente: em outras línguas, só possuímos fragmentos. Foi, pois, no curso desses séculos obscuros que surgiu uma das contribuições mais importantes da Etiópia para a literatura cristã". (MICHALOWSKI, 2010, p. 664).

Embora os axumitas possuíssem língua escrita, existem poucos documentos da época de seu império; os séculos VII ao XII ainda são em grande parte desconhecida a história desses povos que habitavam a Etiópia. Se por um lado a literatura etíope tivera forte influência cristã, já que em sua maioria os poucos livros que se produziam eram quase todos ligados a textos religiosos, bíblicos ou apócrifos, os quais eram em geral recitados ou cantados pelos chantres e outros eclesiásticos. Apenas parte da elite e do clero é quem sabiam ler e escrever, o restante da população dependia da oralidade desses homens. 

A respeito da construção de igrejas e mosteiros, já foram citado no tópico anterior a construção de mosteiros e igrejas no que hoje é o norte da atual Etiópia, na época Axum, como tendo sido trabalho iniciado pelos chamados Nove Santos. Tais igrejas vistas em Debre-Damo e regiões vizinhas eram construções simples e datavam por volta do século V ou VI, tais mosteiros e igrejas não se assemelhavam aos vistos no Egito, Núbia, Itália e Constantinopla, porém por volta o século XI, novas igrejas surgiram especialmente no norte do país, onde o cristianismo era mais fervoroso. 

Nesse caso, a cidade de Lalibela, fundada pelo rei Lalibela da Dinastia Salomônica (diziam ser descendentes de Salomão e a rainha de Sabá) por volta do século XII, representam algumas das mais famosas construções cristãs da Etiópia. Ao todo em Lalibela existem onze igrejas, um mosteiro, vários sepulcros e outras construções religiosas. 

Mapa mostrando a localização das igrejas na cidade de Lalibela, Etiópia.
Embora as igrejas não sejam tão grandiosas e exuberantes como na Europa desse período, as igrejas de Lalibela são singulares no fato de que foram todas esculpidas em rocha vulcânica. Nesse caso, ainda não se sabe ao certo como foram realmente construídas, já que a rocha vulcânica é uma das rochas mais duras do mundo, mesmo assim os etíopes medievais conseguiram construir essas igrejas de rocha maciça. 

A igreja de Bieta Giorgis (São Jorge) em forma de cruz. Foi escavada e esculpida na rocha da montanha.

Todas as igrejas são conectadas entre si por túneis, atravessando até mesmo o rio Yordannos, como pode ser visto no mapa anterior. Acreditasse que o rei Lalibela tenha ordenado a construção desse complexo, com o intuito de criar um local de peregrinação para os cristãos coptas, já que nessa época era comum os cristãos visitarem Jerusalém em peregrinação, entretanto a Terra Santa se encontrava sob o período das Cruzadas, logo, ora Jerusalém estava sob o domínio dos cruzados, ora estava sob o controle dos muçulmanos, assim Lalibela seria uma alternativa para os cristãos africanos e qualquer um que profetizasse o cristianismo de vertente copta. 

Igreja de Biet Maryam (Casa de Maria)
Lalibela hoje e por longos anos ainda continua sendo um dos principais locais de peregrinação dos cristãos etíopes, apenas atrás da cidade de Aksum, outrora capital do império de Axum.

Se por um lado a tentativa de Lalibela de criar uma "Nova Jerusalém" na Etiópia estava dando resultados, entretanto a Dinastia Salomônica que governava o país nessa época, em breve enfrentaria duros problemas, os árabes iriam se estabelecer com força e determinação na Etiópia, pondo em confronto as duas religiões e costumes. 

A interação com o islamismo entre os etiopês e árabes advêm de alguns séculos, desde a época do surgimento do Islão no século VII, profetizado pelo último grande profeta Maomé (570-632). Nesse período, Maomé ou Muhammed, enviou uma carta ao povo Negus (nadjashi em árabe) que habitava a Etiópia fora dos domínios do Império Axum, a serem convidados a adotarem a nova fé que ele estava pregando pela Arábia. 

Não obstante, Amr ibn al‑‘As, na época um pagão ainda, viajou em missão diplomática pelo Egito, Núbia e Etiópia, entretanto, Amr posteriormente se converteu ao islão e passou a pregar a nova fé na África, até mesmo um primo do profeta, chamado Dja‘far ibn Abī Tālib, fugiu com alguns seguidores se estabelecendo no Reino dos Negus, onde conseguira refúgio. Assim como foi com o cristianismo e outras religiões em seu início, o islamismo foi combatido e seus pregadores perseguidos, o próprio Maomé sofreu várias tentativas de assassinato ao longo da vida. 

Assim, de acordo com esses relatos, Dja‘far ibn Abī Tālib teria convertido os Negus de pagãos para muçulmanos. No entanto, ainda demoraria muito tempo para o islamismo ganhar força na Etiópia. 

"As relações entre o jovem Estado muçulmano e a Etiópia nem sempre foram amigáveis. Já, quando Maomé ainda estava vivo, uma frota etíope atacara o porto árabe de Shu‘ayba e, alguns anos mais tarde, o califa ‘Umar foi forçado a enviar quatro navios e duzentos homens para combater “os etíopes que cometeram inúmeros crimes contra os muçulmanos da Arábia”, mas essa expedição contra os axumitas não parece ter dado grandes resultados. No decorrer do século VII, os etíopes permaneceram os senhores incontestáveis do Mar Vermelho, e os muçulmanos apenas conseguiram inverter progressivamente essa relação de força". (CERULLI, 2010, p. 673).

Em resposta aos ataques dos axumitas e etíopes, os árabes conquistaram o arquipélago de Dahlak onde fundaram um sultanato que permaneceria controlando aquelas águas por alguns séculos, embora tenha sido atacado várias vezes ao longo da História.


O arquipélago de Dahlak em frente a costa da atual Eritreia, na época de sua fundação no século VIII, tal costa pertencia ao Império Axum.
O Sultanato em Dahlak consistiu em um porto seguro para os navios árabes comercializarem pelo Mar Vermelho e seguirem viagem para o sul da África e as Índias. Por volta do século XI, o sultanato se encontrava firme e forte, e ao mesmo tempo nessa época, a Dinastia Fatímida (909-1171) já estava estabelecida permanentemente no Egito e conquistado várias terras em direção ao oeste, onde hoje é o Marrocos e adentrando os atuais domínios do Sudão. 

Os califas fatímidas ainda continuariam a tentar expandir seus domínios em direção a Europa e o Império Bizantino. De qualquer forma, no século XIV como foi apontado anteriormente, a Núbia que até então possuía um pacto com os árabes para preservar sua independência, fé e costumes, foi finalmente conquistada, e o próximo a ser dominado era a Etiópia.


"Embora no norte o Estado cristão de Axum impedisse uma maior propagação do Islã, a situação era bem diferente no sul da Etiópia. Ali também, vindo do mar, o Islã seguia a rota natural que vai do Golfo de Djibouti às mais ricas regiões do sul e do oeste do planalto etíope, passando pela depressão do vale do Hawāsh. A progressão do Islã ocorreu mais uma vez pelas rotas comerciais; de fato, naggadie (“mercador” em amárico) ainda hoje significa “muçulmano” na língua dos galla da Etiópia Meridional15. Assim foram convertidos ao Islã diversos povos da Etiópia Meridional, remontando da costa do Mar Vermelho e do Golfo de Aden até o Nilo Azul. Foi dessa maneira que se constituíram diversos sultanatos muçulmanos, governos locais transformando‑se provavelmente em Estados islâmicos. Nesses sultanatos dominava uma aristocracia hereditária que era, ou alegava ser, de origem árabe, ao passo que a população era etíope e pertencia certamente à família cuchita dos Sidama". (CERULLI, 2010, p. 676).

Assim, a região norte da Etiópia a qual era mais fervorosamente cristã consistiu em um baluarte da cristandade copta na região, porém a porção meridional e sul do país foi cada vez mais sendo islamizada, constituindo pequenos Estados islâmicos. O primeiro sultanato que foi estabelecido na Etiópia, foi o Sultanado de Damut, posteriormente invadido e conquistado pelos negus que profetizavam o cristianismo. Sucedendo Damut se formaram vários outros pequenos sultanatos até que no século XII, o Sultanato de Ifat passou a controlar grande parte da Etiópia, coexistindo ao lado do Império etíope de Aksum e de outros pequenos Estados.


Mapa retratando a Dinastia Salomônica da Abissínia (Aksum) e o Sultanato de Ifat, no ano de 1300.
Embora o Sultunato de Ifat tenha terminado por volta de 1415, os embates entre cristãos, judeus e muçulmanos ainda continuariam a ocorrer pelo país, e os árabes ainda continuariam a expandir seus domínios para o sul do continente. Entretanto, nessa época o cristianismo estava adentrando o continente na costa oposta. Os portugueses começavam a realizar viagens pela costa ocidental, fazendo comércio, construindo feitorias e entrepostos, e ao mesmo tempo difundido o cristianismo Católico Apostólico Romano

Nos séculos seguintes, a Etiópia foi dividida entre os cristãos coptas e os muçulmanos, entretanto, hoje cerca da metade da população do país profetiza o cristianismo copta, na outra metade se encontram muçulmanos, judeus e outras religiões de matriz africana.

As igrejas ortodoxas africanas

Desde a pregação do cristianismo no século I no continente africano até o século XX, logo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Igreja Ortodoxa Copta com sede em Alexandria era a responsável pela administração do cristianismo copta no continente, tal fato é evidente quando se ler o título dado ao Patriarca ou Papa de Alexandria: "Papa de Alexandria e Patriarca da Predicação de São Marcos e de toda a África".


Papa de Alexandria, Shenouda III (1923-2012). Shenouda foi papa de 1971 até 2012.
Logo todas as igrejas localizadas ao longo da história, pela Núbia, Axum, Etiópia, Eritreia, Djibouti, Sudão, etc., estava subordinadas ao papa de Alexandria e o seu Sinodo, algo que vemos com os católicos pelo mundo em relação ao Vaticano. Entretanto fora no século XVIII, por volta de 1741 que membros da Igreja Ortodoxa Copta se separam da ordem e fundaram a Igreja Católica Copta, a qual está em comunhão com o Vaticano e possui seu próprio patriarca como líder.


Ícone copta de Jesus Cristo.
No século XX, após a Segunda Guerra, em 1959, a Etiópia declarou independência em relação a Alexandria, fundando a Igreja Ortodoxa Etíope, a qual conta com cerca de metade da população do país como fiéis. Logo, a nova igreja possui seu próprio patriarca e sínodo  O mesmo também ocorreu em Eritreia, onde em 1998 fora fundada a Igreja Ortodoxa EritreiaNão obstante, atualmente existem cristãos coptas em vários outros países fora do continente africano, em especial nos Estados Unidos, Canadá e Austrália.

Igreja copta de Santo Antônio e Santo Shenouda, Berlim, Alemanha.

NOTA: Atualmente existem seis igrejas não-calcedonianas, ou seja que não aceitaram as exigências decretadas no Concílio de Calcedônia. Essas são: Igreja Ortodoxa Copta, Igreja Ortodoxa Etíope, Igreja Ortodoxa Eritreia, Igreja Apostólica Armênica, Igreja Ortodoxa Síria e Igreja Ortodoxa Indiana.

Referências Bibliográficas:
DONADONI, S. O Egito sob dominação romana. História Geral da África - vol. II: África Antiga. Editado por Gamal Mokhtar. 2a edição, Brasília, UNESCO, 2010. 
MICHALOWSKI, K. A cristianização da NúbiaHistória Geral da África - vol. II: África Antiga. Editado por Gamal Mokhtar. 2a edição, Brasília, UNESCO, 2010. 
MEKOURIA, Tekle Tsadik. Axum cristãoHistória Geral da África - vol. II: África Antiga. Editado por Gamal Mokhtar. 2a edição, Brasília, UNESCO, 2010. 
MEKOURIA, Tekle Tsadik. O Chifre da ÁfricaHistória Geral da África - vol. III: África do século VII ao XI. Editado por Mohammed El Fasi. 2a edição, Brasília, UNESCO, 2010.
CERULLI, Enrico. As relações da Etiópia com o mundo muçulmanoHistória Geral da África - vol. III: África do século VII ao XI. Editado por Mohammed El Fasi. 2a edição, Brasília, UNESCO, 2010.