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Leandro Vilar

sábado, 30 de junho de 2012

Temp(l)os de consumo: memórias, Territorialidades e cultura histórica nas Ruas recifenses dos anos 20 (século XX)


Temp(l)os de consumo: memórias,
Territorialidades e cultura histórica nas
Ruas recifenses dos anos 20 (século XX)

Iranilson Buriti de Oliveira1

O espaço comunica; mostra, a quem sabe
ler, o emprego que o ser humano faz dele
mesmo.
Antonio Viñao Frago


As fotos aqui utilizadas foram escolhidas por mim.

Ruas. Territórios desejados por homens, mulheres, ricos e pobres, trabalhadores e vagabundos, senhoras moralistas e meliantes, homens de negócios e pedintes, as ruas se constituem no aparelho circulatório de andantes, de negociantes, em territórios nos quais circulam memórias e economias simbólicas. As ruas são a geografia de desejos e de perversões, de manifestos e procissões, de passeatas, de protestos e aclames religiosos. As ruas são territórios de consumo e de formação de identidades e cultura histórica.

As ruas encantam com seus códigos, com suas histórias. As ruas têm fôlego, memórias para serem revisitadas através de profissionais interessados em compreender, no patrimônio histórico-cultural urbano, os signos que educam os sentidos de moradores e transeuntes. Mas as ruas foram abandonadas, por décadas, como objetos de investigação do historiador, preso a conceitos que excluíam as placas como possuidoras de historicidade.

Este texto, portanto, ancorado em pressuposto teórico-metodológico da Nova História Cultural, busca analisar a relação entre economia e territorialidades a partir da cultura histórica, dita consumista, presente nas ruas do Recife no início do século XX, vistas e ditas como espaços de consumo. Entenda-se que o conceito de consumo não é territorializado apenas pela sua estrita definição econômica, mas como consumo de imagens, de sons, de ritmos e de valores que emergiam nesse contexto histórico.

Ruas. Territórios sócio-espaciais dos prazeres proibidos e dos lazeres permitidos, das dores, dos gritos e do silêncio das madrugadas mortas, gélidas, monótonas ou, talvez, calientes. Geografia desejante para os sujeitos afeitos aos novos códigos de sensibilidade e de consumo, à proporção que emergem como o lugar do desenraizamento, a partir do qual se projeta a decadência das sociabilidades tradicionais e de seus códigos culturais. Ruas. Espaços que comunicam, que educam (e deseducam!), que ensinam posturas, que possuem historicidades.

As ruas possuem almas, como escreveu o cronista carioca João do Rio, nos idos da primeira década do século passado, referindo-se aos espaços urbanos do Rio de Janeiro. Mas as ruas foram abandonadas, por décadas, como objetos de investigação do historiador, preso a conceitos que as excluíam como possuidoras de historicidade.

Estudar as ruas é um convite à história urbana, perscrutando a memória da cidade e a cidade na memória. Estudar as ruas é compreender a educação num sentido amplo, procurando entender a documentalidade e a pedagogia da memória através de suas placas, de suas praças, de seus habitantes, das lojas situadas em cada esquina, em cada micro-espaço, disputando clientes com as outras de ramo comercial semelhante. Estudar as ruas é verificar de que maneiras a cultura histórica pode ser trabalhada mediante práticas pedagógicas que entendam o patrimônio histórico-cultural enquanto espaço de memória, de transmissão de saberes e de constituição de identidades, pois as ruas fazem parte de uma pedagogia da memória que envolve história local, acontecimentos históricos de cunho nacional e regional, emancipação política, além de construir uma paisagem de nomes de personalidades diversas, tais como mestre-escola, professoras, parteiras, agricultores, comerciantes, religiosos, políticos, dentre outros que desfilam no panorama sócio-cultural da urbe enquanto construtores de tempos e de templos, de cartografias, de práticas locais de consumo e lazer.

Nos diversos nomes de ruas, não temos apenas um patrimônio histórico-cultural a ser preservado, mas um acervo que auxilia na produtividade de memórias várias que fazem parte de um diálogo entre o presente e o passado, entre a história e a educação patrimonial, entrelaçando vozes, vivências, gestos, subjetividades, falas, posturas, escolhas, educação do olhar e do consumir, do sentir, do fazer e do ensinar histórias, do construir uma memória plural.

Essa postura amplia o conceito de patrimônio cultural expresso na Constituição de 1988, e rompe, mais uma vez, com a historiografia positivista pautada na concepção tradicional de preservação da ação dos “heróis nacionais”, na perpetuação da história oficial baseada no culto à genealogia da nação em detrimento de outros sujeitos históricos.

Há histórias de vida registradas nas tabuletas que, muitas vezes, passam despercebidas pelo olhar do andante nada curioso. A rua é uma produção territorial que quase nada seria, se não fosse batizada. Anônima, não teria vida, não teria glória nem tragédias, não seria lembrada. Mas as ruas não são unívocas.

Em cada cidade foram definidas e redefinidas ao longo dos anos, mas foi no início do século XX que sua fisionomia ganhou nova expressividade, com a emergência de novas práticas de consumo, de consultórios médicos e de cartazes propagandísticos.

O que dizer das ruas do Recife dos anos 20, que educavam os sentidos da população com a divulgação dos novos códigos de consumo, a exemplo da Rua Nova, Rua da Imperatriz, Rua de Cabugá, Rua Marquês de Olinda, territórios de encontros das novas gerações que não sabiam mais comandar engenhos, exortar e castigar negros, mas falar em política, discutir literatura, códigos jurídicos, ginástica sueca, métodos de aprendizagem escolar, enredos de filmes e peças de teatro? Os assuntos ligados ao engenho, à caldeira, ao açúcar, às pragas que atacavam a cana-de-açúcar pareciam cada vez mais distantes. Próxima mesmo era a Confeitaria Bijou, localizada na Rua Nova, e batizada como o ponto de convergência dos elegantes do Recife, com orquestras de foxtrotes, com chás e sorvetes também saboreados pelas sinuosas melindrosas com os seus cabelos “a la garçonne” e pelos vaidosos e provocantes almofadinhas2.

Rua Marquês de Olinda, no começo do século XX, Recife.
A Rua Nova disputava o título de mais elegante e mais frívola do Recife. As vozes adjetivavam-lhe diferentemente: “despudorada”, “fútil”, “boêmia”, “prostituída”, “mal-educada”. De ponta a ponta estava estruturada pelos territórios desejados, estonteando as famílias a Casa Costa Campos, a Casa Sloper, a Casa Francesa, a perfumaria Rosa dos Alpes, as marcas chiques da Chanel e da Patoualimentando as inquietações das melindrosas e almofadinhas aturdidos pelo gozo de consumir o instantâneo, o publicitário, a marca-espetáculo, o divertimento industrializado3.

É possível fazer uma leitura das ruas com as suas casas de moda, a partir do início do século XX, como um espaço de consumo negador das formas de consumir os signos da casa-grande do engenho, negador do perfil familiar que se apega às práticas e discursos do campo, da sociedade escravista, do Império brasileiro, ao mesmo tempo que participam da produção de subjetividades como mediadoras da reprodução do capital. Muitas ruas no cenário republicano em processo de modernização são palcos que dão evasão aos desejos, que provocam inquietações em homens e mulheres na busca de uma postura social mais livre para amar, namorar, casar, passear, viver, comprar.

Negando o passado, as ruas da cidade moderna impactam os tradicionalistas, que se armam com discursos e práticas que renegam o presente como benéfico para as famílias, como é o caso de Gilberto Freyre e de todos os simpatizantes do seu discurso.

Nesse território impactante, o carnaval substitui o entrudo e ao invés do melamela surgem novos produtos, a exemplo dos confetes, serpentinas e bailes de máscaras. Em 1920, a firma Pereira, Leça & Cia., Rua Nova, 214, anunciava “aos seus amigos e amáveis fregueses” o estoque que acabara de chegar de lança-perfume “Paris”, confetes e serpentinas. Tudo para tornar o carnaval do Recife e dos seus arrabaldes um verdadeiro misto de alegria e liberdade, mergulhando os participantes num ambiente de gritarias, de uivos metálicos produzidos pelos zabumbas, charangas, instrumentos diversos que retiniam nos ouvidos e emudeciam as vozes.

A ordem de Momo era dançar, travestir-se, pular no império das máscaras, facécias e balangandãs, movido por forças estranhas provocadas pelas alucinações do lança-perfume e pela marcha executada pela orquestra do Clube Carnavalesco Lenhadores4. Em meio a explosões de alegria e de exaltação, o carnaval moderno ainda trazia consigo um limite de forma, ainda havia temor nos excessos que pudessem comprometer o caráter e a moral familiares.

Bandeira comemorativa do centenário do Clube Carnavalesco Lenhadores
No Brasil como um todo, o carnaval moderno ainda era celebrado com receituários prescritos, com posições demarcadas, com coreografia de gestos e movimentos prefigurados: “Era uma herança de convenções à espera de serem revividas com maior ou menor intensidade, mas não um desafio para ultrapassar todas as convenções e se precipitar na vertigem da extravagância”5.

A rua era o palco de muitas visitações no período carnavalesco. Mas, depois do carnaval, a rua continuava como um espaço desejante, territórios para outros consumos. Na Rua de Cabugá, nº 9, encontravam-se os mais requintados produtos no empório A Ville de Pariz6 que atraíam os olhos educados pela modernidade e que sentiam paixão pelos ornamentos, pelos objetos decorativos, pelas obras de arte do novo século XX.

A moda apresentava um gosto pelo espetáculo teatral, pelo produto importado, exigindo uma educação dos sentidos para conviver com a multiplicidade nesses espaços. Lojas como A Ville de Pariz difundiam esse prisma de teatralidade e de gozo estético com a exposição de suas joias e bijuterias multicoloridas, mostravam o fascínio do efeito e do artifício, do refinamento dos prazeres do olho, ao venderem lunetas e pince-nez; exibiam a delicadeza dos detalhes ornamentais com os relógios de várias marcas.

Tais produtos contrastavam, de certo modo, com as mercadorias vendidas na Casa Maravilha, que oferecia produtos mais “nacionais” ao público, destacando-se pela venda de xarope de alho do mato e urucu, xarope de mulungu, tônico de juá e mutamba para queda de cabelos7, signos de um Brasil agrário e não-industrializado.

A Ville de Pariz, assim como outras lojas do Recife, seduzia os compradores e controlava-os mediante o consumo. À liberdade de comprar dada pela sociedade capitalista, soma-se outro dispositivo disciplinar. Mudou apenas a lógica do exercício de poder, pois os saberes da moda continuam disciplinando os corpos, legitimando este ou aquele produto, marca, casa comercial. O controle se instrumentalizará através de outros mecanismos tecnológicos como o aprender, o conhecer, o selecionar a etiqueta. Esse tipo de disciplinamento é, conforme Rocha, um ato de reciprocidade, “continuamente referido e desejado, porque ele liberta, responsabiliza, torna os indivíduos autônomos, conscientes, justos, democráticos”.

Mulheres vestidas como "melindrosas", como passou a se chamar esse tipo de moda feminina nos anos 20. 
Ao ser internalizada, a vigilância reforça cotidianamente as classificações entre bons ou maus costumes, desejáveis ou indesejáveis, passados ou atuais. Amparada na dialética da superação constante, não serão mais necessários diversos “gestores”da família tradicional - padres, mucamas, irmãos, pais - inspecionando o comportamento de cada um, pois o vigilante torna-se qualquer um: aquele que dá o exemplo, que ensina a melhor postura, que adota a norma, que prescreve que atitudes tomar, que roupas são elegantes, que espaços são permitidos. “Pelo caminho da argumentação, do convencimento, das justificadas razões, sujeita-se o outro”8.

O jornal, com os seus anúncios comerciais, torna-se aos poucos um “grande bazar”, implantando cada vez mais imagens em suas propagandas objetivando despertar os olhares dos leitores, engendrando novas coordenadas de produção da subjetividade ao afirmar padrões estéticos, éticos e políticos.

Os publicitários desejam que o produto anunciado cause no leitor uma necessidade de consumi-lo, o que leva Guattari a denominá-la de sujeição subjetiva, pois que, ao agenciar certos comportamentos, a publicidade promove o consumo de determinados produtos, interferindo, com seu discurso pedagógico, nos níveis mais íntimos da subjetividade9. Torna-se, portanto, um elo entre o sistema de produção e o universo de consumo, estreitando a confiança entre o produtor e o consumidor.

Conforme Ortiz, a publicidade moderna “já não mais se fundamenta na ‘utilidade’ dos bens apresentados e dirige-se diretamente à imaginação, aos desejos. Ela é sugestão, deve ‘prender a atenção’, ‘despertar’ as necessidades virtuais do consumidor.

Os produtos são ‘lançados’ antes mesmo que a vontade em adquiri-los se manifeste; o que requer a sistematização deste mundo material e imaginário”10. Quando a noite cai, algumas ruas centrais do Recife se vestem com trajes de sedução. Os tempos dividem as famílias. As crianças vão dormir.

Os adultos, embebidos pelos sabores da Confeitaria Bijou, visitam também o Cinema Moderno, o Pathé, o Vitória, o Royal, o Polytheama, deslumbrados pelos artistas do porte de Clark Gable, Carlitos, Louis Wilson, Helena Ferguson, Harold Lloyds, Helene Chadwich, Theodore Roberts, Errol Flynn, Olivia de Havilland e Dorothy Dalton, que contracenavam em filmes como Orgulho de Campeiro, Piratas do Ouro, A Herdeira do Aristocrata, O Maricas, O Homem que não gostava de mulheres, Idílio da Selva, Quo Vadis?, Meia-Hora, Capitão Blood, A Jóia Fatal, inaugurando novas formas de sociabilidade e fissurando o jeito de viver da família educada aos moldes tradicionais.

Antigo prédio do Cinema Moderno, Recife.
Seduzidos pelos estilos de vida mostrados na cenografia, esses novos sujeitos enfeitam-se da cabeça aos pés, sob conselhos da Mme. Garcia, subjetivando as tendências da moda e da Alta Costura11 como um “estilo de vida”, respondendo aos seus movimentos metamórficos, suas extravagâncias e renovações dos valores mundanos, exibindo seus artifícios e ornamentações em territórios distintos. 

Escutam os programas da pioneira Rádio Clube de Pernambuco12. Usam jóias compradas na Casa Gerard, chapéus capelline ou conotier na Chapelaria Adolfo e vestem-se comandados pelas modistas da Rua da Imperatriz, distribuídas em casas comerciais como Atelier Viegas, A Maison Chic, A Deusa da Moda, Ave do Paraíso13, nomes que reluzem o afrancesamento da moda, bem como as metáforas a ela ligadas: a moda é deusa, é paraíso para almofadinhas e melindrosas, para todas as “aves” que levantam voos no território da modernidade. A sociedade produzia suas normas e estas precisavam de sujeitos para poder se concretizar, se atualizar, se materializar, se fazer e se refazer por intermédio de “um sistema complexo de relações sociais, elos que se impõem aos seus membros, indicando (...) tudo aquilo que é estritamente necessário e tudo o que é dispensável ou superficial para que se possa criar e sustentar o evento que se deseja construir”14.

Rua da Imperatriz no começo do século XX, Recife. 
Esses novos costumes ganham visibilidade após os anos 20, encarregando-se da formação de uma sensibilidade social, passando a ser vistos como integrantes das instituições sociais como escolas e clínicas, que veem em muitos filmes “verdadeiras aulas” de higiene e de bom comportamento. A moda, como uma arte moderna, ganhava uma linguagem própria e dava visibilidade a determinados modelos de organização familiar e de métodos pedagógicos, embriagados pela mística do progresso.

O médico, assim como o estilista, renovava as formas e os conteúdos sociais, ditava os preceitos higienistas, levando homens e mulheres a se identificar com o corpo sadio e a absorver os conteúdos higiênicos de caráter social, tais como eugenia, mortalidade, saneamento, organização fisiológica, moléstias da coletividade e epidemias15. Ser saudável entrou na moda. Não se identificam mais com os chás de erva cidreira, de capim santo, com os lambedores caseiros bastante comuns no espaço do engenho. 

Agora o discurso médico receita os remédios de boticas. É lá que se deve comprar a saúde, nas fórmulas químicas, nas bulas de remédio e não mais no mato, na natureza. O espaço natural vai sendo cada vez mais desterritorializado em nome de um espaço moderno, produzido pelo homem, para comportar as novas gerações que subjetivavam essa educação sanitária, esses “costumes sadios”. 

Homens vestidos de terno, assim como era comum nos anos 20.
No entanto, os ensinos sobre a higienização do corpo permitem perceber uma pedagogização segundo o gênero: às mulheres, lições de sexualidade feminina, puericultura, função educativa e profissional da mulher. Nesses programas, a economia moral está claramente explicitada no tocante à sexualidade e à função materna. O mesmo não se constata quanto aos planos de educação masculina, que restringem o acento moral à abordagem da educação sexual ou o combate aos vícios16.

Nomes franceses e ingleses (Clark, Maison Chic, Sloper) invadiam as placas das lojas comerciais da Rua Nova, da Rua da Imperatriz e do centro comercial do Recife, desbancando os nomes regionais batizados em épocas passadas. Essas ruas tornavam-se os “laboratórios” das novidades, com suas casas “ilustres”, suas renovações de roupas e acessórios a cada estação do ano, seus desfiles de elegâncias diárias, as audácias de determinados trajes expostos nas vitrines.

Não apenas se vestia à França e à Londres. Falava-se por elas, consumia-se o estrangeirismo também verbalmente. Era chique usar vocábulos estrangeiros: maison, five o’clock, coiffeur, leit-motiv, fourreau, plissée, biscuit, bibelot, bidè. Os discursos sobre a moda favorecem o vocabulário estrangeiro, mostrando a necessidade que as escolas tinham de introduzir o estudo dos idiomas francês e inglês, retirando, assim, as línguas clássicas como latim, que passou a ser visto e dito como ultrapassado.

Assistimos, nesse momento, ao que Gilles Deleuze denominou de mimese da representação, pois os sujeitos se subordinam a novas referências de sensibilidade, dizibilidade e visibilidade que emergem histórica e socialmente17. Dessa maneira, conforme pensou Guattari, os indivíduos são agenciados capitalisticamente a destacarem-se socialmente dos demais, individualizando-se ao assumirem os referenciais de poder e de prestígio social modelizados sob os signos do capitalismo, buscando competir, vencer, destacar-se, ser o melhor nessa moldura de valores gestados historicamente e estabelecidos culturalmente18.

As vitrines disputavam clientes com seus sapatos de salto alto vendidos na Casa Clark, Rua da Imperatriz, 269, ou na Sapataria Colombo, Rua Nova, 230. Sapatos borzeguins e botinas para homens, sapatos de camurça e de vários estilos para as mulheres fazem do sapateiro um artista; tecidos finos como sedas, crepes-da-china, cetim, charmeuse, merinós, veludos e cretones vestiam as mulheres, como melindrosas que ostentavam extravagante elegância em casacos, túnicas, sobressaias e manguinhas curtas; perfumes para transpirar um odor estrangeiro, como o “delicioso, suave e refrescante English Lavender da Atkinsonsque, na Coluna Suplemento Feminino, do Diário de Pernambuco, era apresentado como possuidor de uma fragrância deliciosa que lhe envolve num sutil encantamento durante o dia inteiro...19; joias e maquilagens para tornar a mulher mais “fina” e elegante, como os batons da Michel Cosmetics, apontados como conservadores e protetores dos lábios, o pó de arroz Coty e o leite de colônia para suavizar a pele feminina.

A Casa Gondim, sita à Rua Nova, 155, oferecia uma variedade de produtos para “limpar” e tornar cheirosas as famílias: pasta Kolynos, loção Mitigal para conceiras, loção brilhante F. Amours, odol, sabonetes thermal, sândalo e rialto, capilotônico, lâminas azuis Gillete, camisa crepe santé e outros produtos “elegantes”20 mostrados como fundamentais para emancipar mulheres e homens “intoxicados” pelos odores da bagaceira, do Cais do Apolo, dos mascateiros do passado.

O capitalismo, com as suas agências de divulgação, modeliza “esteticamente” a subjetividade, criando padrões de belo e feio, cheiroso ou fedorento, o que confere status ou não, a roupa que se deve vestir, o ambiente que se pode frequentar, que objetos se deve transportar para ser reconhecido como importante pelo grupo de que participa.

Adereçados de tecidos e joias, homens e mulheres desfilavam seus modelos na Praça da República, nos cinemas Moderno, Polytheama, no Teatro Santa Izabel, no Passeio Público, nos velódromos, nos chás das Cinco Horas, no Clube do Sport Club do Recife, no Jockey Club, na Confeitaria Cristal. A cada novo adereço, esses sujeitos celebravam o instantâneo, negando as formas de se adereçar do passado envolto em tradição e mesmice, rompendo com o signo do costume e do permanente; inflamando-se pelos saberes e odores estrangeiros, esnobando-se por se fazer diferente dos demais modelos de educação, como a popular e a de elite rural. São novas cartografias que desterritorializam os indivíduos tradicionalistas, pois legitimam o tempo presente e o definem como moderno ou mundano, característica de uma família envolta na “excelência social” e na superficialidade.

Praça da República no começo do século XX, Recife.
Esta é uma época em que há a substituição da latrina de barril, dos banhos de gamela e dos banhos de assento pelo water-closed, um espaço decorado com bidê, pias, privada para defecar, urinar, responder às necessidades fisiológicas. É o momento de substituição do carneiro pelo velocípede; o cinema vencia o circo com as fitas de Asta Nielsen, entrando em moda outros hábitos e oferecendo à família inovações como o telefone, a pistola mauser, o almanaque para leituras femininas, o sabonete reuter, a máquina fotográfica kodak, a injeção para curar e prevenir doenças, os biscuit para enfeitar as casas. 

Estão em voga o étagère (que os brasileiros aportuguesaram em “atagé”), o bibelot, a retreta em volta do coreto, o chapéu vitoriano, o calendário (cromo) de Boas Festas, a máquina de datilografia, o chopp, os chás lipton, o uso do ventilador, as flores artificiais, os cristais, os relógios.

Os novos ambientes domésticos afastavam-se dos antigos pelo seu colorido e multiplicação de apetrechos decorativos. Quando os consumidores compram a máquina kodak, o sabonete reuter ou qualquer outro produto moderno, eles não são movidos apenas pelo desejo de romper com os signos do passado. São movidos, também, pelos valores estabelecidos pela publicidade, agenciadora de diversos interpretantes afetivos21 e pela lógica consumista das ruas, sempre a convidar o transeunte para dar uma olhadinha nas vitrines.

Propaganda americana das máquinas fotográficas Kodak Six-16 e Kodak Six-20.
Tornava-se crescente a urbanização da vida e da paisagem nacionais, à medida que crescia a idealização dos valores urbano-industriais, contribuindo para que as pessoas organizassem suas vidas dentro desse novo cenário sócio-econômico.

As famílias numerosas começaram a ser substituídas pelas médias (cinco, seis, sete filhos) e a disparidade na idade dos cônjuges começou a diminuir22. O modelo familiar prevalecente no Brasil até o final do século XIX perde aos poucos suas coordenadas, sua geografia estável e torna-se impreciso. Os indivíduos que ainda resistem à estandardização da modernidade sentem-se desorientados diante do espaço moderno que é instaurado no país, cujos sujeitos amam o cinema, os clubes, o estrangeirismo, os métodos modernos de se aprender a ler, a escrever e a contar.

Albuquerque Júnior traduziu esse espaço como um organismo em funcionamento, que passa a incorporar os sinais deixados pela história, os signos do progresso e da modernização. Esse historiador, comentando a nova sensibilidade voltada para o espaço produzido, assim se reporta: O espaço que deixa de ser apenas espaço telúrico, pitoresco, tropical.

"O espaço não visto mais como imitação da natureza, mas como criação humana, configuração intelectual de formas. (...) Um novo espaço preciso e indeterminado, coerente e ambíguo. Um espaço relacional, relativo ao tempo e aos sujeitos. Um espaço em movimento, em rotação, onde o mundo já não existe de forma banal, deixando de ser apenas encantamento plástico naturalista".23

As ruas, portanto, são espaços de memória traduzidos nos muitos signos que nela circulam. São patrimônios histórico-culturais que merecem ser preservados, revisitados, analisados. Em cada placa - Rua Nova, Rua da Imperatriz, Rua de Cabugá, Rua do Bom Jesus - está um arquivo a contar os causos, os episódios que fizeram (e fazem) parte de uma história e que permitem a constituição de uma memória local. Estudar Recife nos anos 20 e 30 significa descobrir como os homens ordinários, em seus fazeres ordinários, subjetivaram códigos modernos e foram educados pela lógica capitalista. Mas a história não é uma homogeneidade. Da mesma forma que muitos se renderam ao “império do efêmero”, um grande número de pessoas, entre eles intelectuais do porte de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Mário Sette, se posicionaram contrários às novidades que desconstruíam o jeito de ser tradicional em detrimento de uma educação voltada para os métodos modernos.

Rua do Bom Jesus, Recife.
As ruas são, assim, temp(l)os de consumo, território de práticas culturais. Por trás das frágeis tabuletas que as nomeiam, é possível se pesquisar história, memória e trocas econômicas. É possível lembrar os tempos e as estações, as ruas calçadas, arborizadas, pavimentadas, enlameadas, varridas, pintadas, ajardinadas, poeirentas, esburacadas, pobres ou ricas de recursos materiais. É viajar no tempo da história e no território da memória, perscrutando as ruas adultas, idosas, senis... fazendo o passado explicar e justificar o presente... Ruas jovens, adolescentes, recém-nascidas... obrigando o hoje a apontar para um amanhã certamente diverso: passarão as pessoas, ficarão as lembranças; outros sentimentos povoarão a cidade e novas ruas redesenharão seu jeito único de ser. É assim que as ruas, entre sonhos coloridos e realidades em preto e branco, vão contando as histórias das cidades24.

NOTAS:
1. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Unidade Acadêmica de História e Geografia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. Bolsista Produtividade CNPq.
2 “Modas”. Diário de Pernambuco. Recife, 11 jan. 1925, p. 7 (suplemento magazine).
3 Confira SETTE, M. Maxambombas e maracatus. 3. ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1958, p. 229.
4 “Carnaval de 1920”. Diário de Pernambuco. Recife, 17 jan. 1920, p. 6. “Carnaval: iluminação da Rua Direita”. Diário de Pernambuco. Recife, 29 jan. 1920, p. 3. “Carnaval”. Diário de Pernambuco. Recife, 13 dez. 1920, p. 3.
5 SEVCENKO, N. Literatura como missão. 2 ed., São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 105.
6 A loja La Ville de Pariz recebia o mesmo nome de uma loja francesa, o maior magazine da França especializado em confecções, empregando cerca de 150 pessoas e movimentando, ainda no final do século XIX, um volume de negócios de 10 milhões de francos. Cf. ORTIZ, R. Cultura e modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 134.
7 “Casa Maravilha”. Diário de Pernambuco. Recife, 10 ago. 1921.
8 ROCHA, M. C. “Espaços escolares: nada fora do controle”. In: I Congresso Brasileiro de História da Educação - Educação no Brasil: história e historiografia. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 11.
9 GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 25 e seguintes.
10 ORTIZ, Cultura e modernidade, p. 174.
11 Conforme Gilles Lipovetsky, a Alta Costura nasceu em Paris no final do século XIX, caracterizando-se por ser uma confecção original criada sob o signo do luxo e sob medida, opondo-se à produção em série e barata, que imita “de perto ou de longe os modelos prestigiosos e griffés da Alta Costura”. A Alta Costura é singularizada pelas técnicas empregadas em sua confecção, pelos preços, pelos renomes que lhe cercam (Worth, Rouff, Patou, Chanel, Cristian Dior) e pelo público consumidor. É uma empresa industrial e comercial de luxo, cujas criações produzem uma obsolescência propícia ao consumo. Cf. LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades modernas. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 70.
12 Quando ainda não existiam transmissões radiofônicas na América do Sul um grupo de amadores, sob a liderança de Augusto Joaquim Pereira, fundou a Rádio Clube de Pernambuco, no dia 6 de abril de 1919. Vinte dias depois, seus estatutos foram aprovados e publicados pela Imprensa Nacional. Um edital de inauguração foi publicado dias antes no Diário de Pernambuco: “São convidados os amadores de Telegrafia Sem Fio (TSF - como era conhecido o rádio) a comparecerem à sede da Escola Superior de Eletricidade (Ponte d’Uchoa) no próximo domingo, 6 do corrente, às 13h, para a fundação da Rádio Clube”. As primeiras instalações funcionaram no Parque Treze de Maio. No início dos anos 20, utilizando discos emprestados, a Rádio Clube transmitia óperas, obras clássicas e recitais, que eram ouvidos através de um rádio receptor, construído artesanalmente e acompanhado por fones de ouvido. Em 1922, Oscar Moreira Pinto junta-se à Rádio Clube e, um ano depois, ela passa a operar com recursos próprios, mudando para a avenida Cruz Cabugá.
13 Ver a coluna “Scenas e Telas”, Diário de Pernambuco, 1º fev. 1920, p. 5; 6 fev. 1920, p. 2; 3 mar. 1920, p. 3. O chapéu capelline era indicado para as madames que usavam vestidos leves. O chapéu canotier era mais sofisticado, feito de palha preta envernizada e guarnecida com um “bandeau” egípcio feito de penas laqueadas, pretas e vermelhas, orladas de ouro. Sobre a Rádio Clube de Pernambuco, cf. “Rádio Club”. Diário de Pernambuco. Recife, 4 out. 1925, p. 3.
14 DAMATTA, R. A casa e a rua. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 13.
15 FALCÃO, J. “Melhoramentos do Recife”. Diário de Pernambuco. Recife, 12 fev. 1920, p. 3.
16 STEPHANOU, M. “Saúde pela Educação: escolarização de saberes médicos na primeira metade do século XX”. In: I Congresso Brasileiro de História da Educação - Educação no Brasil: história e historiografia. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 327.
17 DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1982.
18 GUATTARI & ROLNIK, Micropolíticas, p. 31-39.
19 Diário de Pernambuco. Recife, secção de anúncios, 1920-1930.
20 “Casa Gondim”. Diário de Pernambuco. Recife, 3 out. 1920, p. 9; “Casa Gondim”. Diário de Pernambuco. Recife, 10 ago. 1921.
21 Acerca dessas mutações nos utensílios e nos ornamentos de casa, verificar: FREYRE, G. Ordem e progresso. 43. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. FREYRE, G. Casa Grande & Senzala.26. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989, p. 46. No Diário de Pernambuco essas transformações podem ser visivelmente encontradas nas secções de anúncios propagandísticos.
22 FREYRE, Ordem e progresso, p. CXLIII.
23 ALBUQUERQUE JR., D. M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1998, p. 28.
24 ALBUQUERQUE JR., A invenção..., p. 28.







segunda-feira, 25 de junho de 2012

A expansão islâmica: VII-XII

O Islamismo é uma das três maiores religiões monoteístas da atualidade, sendo a terceira de origem abraâmica, ou seja, na qual considera o Deus de Abraão como o Ser Supremo do universo. Surgida no século VII d.C, o Islão fora desenvolvido e pregado pelo árabe Mohammed ou Maomé, dando início a uma religião que se espalharia pelo mundo, levando uma nova interpretação da palavra de Deus (Allah). Hoje o Islão, é a religião com o maior número de seguidores e a que mais cresce no mundo, tendo um número de convertidos estimados em cerca de 1,6 bilhões, ganhando adeptos em todos os cantos do planeta, e não obstante, ainda é uma religião marcada por preconceitos, que criticam seu conservadorismo e sua suposta tendência bélica, alegando-se que os muçulmanos são terroristas, algo que a mídia distorceu ao longo desses anos, baseada na forma de como certas pessoas interpretaram as escrituras no Al-corão

Todavia nesse texto, falarei das origens do Islão e como se deu o seu expansionismo do século VII ao XII, até que se torna-se uma religião forte e influente pela Ásia, África e parte da Europa. 

O PROFETA

Antes de adentrar o assunto do expansionismo, deve-se falar primeiro de sua origem, e essa se encontra com o profeta Mohammed. Mohammed nasceu em 570 na cidade de Meca, atualmente na Arábia Saudita. Era filho de um caravaneiro chamado Abdalá ibn Abd al-Mutalib (545-570), o qual pertencia ao Clã Quraychita dos Banû Hâchim. Sua mãe fora Amina bint Wahab (?-576), do Clã Zuhra, dos Quraychita. Os Quraychita eram o clã que governava a cidade de Meca, a qual na época do profeta contava com uma população entre 15 a 25 mil habitantes. Porém, Mohammed pertencia a uma linhagem pobre do clã. 

Mohammed pregando em Meca, pintura do século XV.
Abdalá se casou com Amina, e essa engravidou de seu primeiro filho, porém durante uma viagem que Abdalá realizava, acabou adoecendo e veio a falecer antes de voltar para casa, assim Mohammed não chegou a conhecer o seu pai. Tendo nascido, Mohammed viveu com a mãe e a ama-de-leite até os cinco anos de idade, quando sua mãe faleceu, então ele fora dado aos cuidados do seu avô paterno, Abd al-Mutalib (497-578), o qual era guarda da fonte de Zemzem próximo a Caaba. Porém, dois anos depois, seu avô faleceu, e a tutela de Mohammed passou para um dos irmãos de sua mãe, Abu Talib (549-619). Mohammed passou os anos seguintes vivendo sob a guarda de seu tio, tendo desenvolvido uma grande amizade futura com um dos filhos desse, Ali, o qual viria adotá-lo após a morte de seu pai.

Já pela adolescência, Mohammed começou a trabalhar e a viajar, chegou a visitar a Síria e o Iêmen por volta de 583, possivelmente em sua viagem a Síria tenha conhecido judeus, cristãos e tenha visto alguma igreja e ouvido falar sobre o Cristianismo e Deus.

Posteriormente por volta de 590 ele conheceu uma rica viúva chamada Khadidja, para quem passou a trabalhar nos seus negócios e posteriormente se apaixonou pela mesma. Khadidja tinha por volta dos 40 anos, e ele estava com 25. Mesmo assim, os dois acabaram se casando por volta de 595, e tiveram seis filhos, dois homens que morreram ainda cedo e quatro mulheres. 

Em 610, Mohammed aos 40 anos, teve a revelação do Senhor. Ele costumava rezar e meditar em cavernas nos arredores de Meca, e gostava de passar um tempo longe do tumulto da cidade, embora que naquela época, Mohammed reza-se para outros deuses, já que nas Arábias, cultuavam-se vários deuses, desde deuses locais, à deuses de origem persa, mesopotâmica, egípcia, fenícia, etc., até mesmo Deus era conhecido por alguns, devido ao comércio com os judeus e cristãos.

No entanto, fora por volta do mês do Ramadã, hoje equivale a partes dos meses de setembro e outubro, enquanto Mohammed se encontrava orando ou meditanto em uma caverna no Monte Hira, o Anjo Gabriel (Jibreel) se revelou para ele. Gabriel lhe dissera que Deus o havia escolhido para ser seu profeta, e ele teria a missão de levar a palavra do Senhor aos homens. 

Caverna no Monte Hira, onde Mohammed tivera a revelação de Deus.
Naquele momento, Mohammed não sabia no que pensar ao certo, para ele tal criatura poderia ser um gênio maligno ou outro ser. De acordo com alguns relatos, Mohammed fora consultar um primo de sua esposa, chamado Waraqa, o qual era um cristão nestoriano. Waraqa lhe explicou a respeito de Gabriel, Deus e Cristo, e dissera que Mohammed havia tido uma revelação do Senhor. 

As revelações continuaram, logo Mohammed aceitou a nobre missão de se tornar um profeta de Deus e levar a sua palavra ao povo. Assim, Gabriel lhe ditou os versos do Corão, o qual se tornou o livro base do Islã. Embora o Corão mantenha muitas semelhanças com a Bíblia, sua estrutura e organização são totalmente diferentes, e até mesmo algumas histórias do Antigo e Novo Testamento não existem no Corão, o qual fora escrito de uma forma mais poética, na qual facilita sua recitação e aprendizado, já que é comum os muçulmanos recitarem diariamente vários versículos da obra. Não obstante, era comum entre os árabes daquela época, escrever e recitar poemas, daí o Corão ter essa característica.  

Inicialmente, Mohammed pregou para sua esposa, filhos, parentes e amigos próximos. Por volta de 612 ou 613 ele começou a pregar publicamente em Meca, mostrando-se como profeta de Alá. Suas pregações de início, foram dirigidas as pessoas da classe baixa, já que até então embora fosse um comerciante, não era tão rico ao ponto de se encontrar entre a elite. Assim, Mohammed pregava nas praças, ruas, campos, casas, etc., para camponeses, artesãos, ferreiros, pequenos artistas e mercadores, soldados, escravos, entre outras pessoas, sendo que alguns iam assistir seus sermões apenas por curiosidade.

Com o tempo, toda a cidade já tinha ouvido falar de um tal profeta de um deus único, chamado Alá, o qual estava pregando em Meca, falando acerca da benevolência de seu deus aos justos, o castigo aos culpados; sobre o Paraíso e o Inferno; sobre em se fazer o bem e orar a Alá, e não se cultuar ídolos e se fazer sacrifícios, etc. Isso chamou a atenção dos sacerdotes de Meca que viam isso como um ultraje aos seus deuses. Logo, protestos daqueles que defendiam o politeísmo começaram a surgir. Principalmente depois que Mohammed atacou a idolatria pagã feita na Caaba (segundo a tradição, a Caaba teria sido construída por seguidores de Abraão, porém fora convertida em templo pagão). 

Por volta de 615, a situação começou a se complicar em Meca a respeito da nova fé pregada por Mohammed. Alguns de seus parentes e amigos foram ameaçados de morte, nesse caso, um primo do profeta, chamado Dja'far ibn Abi Talib, fugiu de Meca, com um grupo de companheiros e se refugiou no Reino dos Negus na Abissínia (Etiópia). Nesse caso, Abi Talib iniciaria a pregação do islamismo na África. 

Em 619 ou 620, Khadidja faleceu, e além disso alguns parentes e amigos do profeta também já haviam morrido nesse tempo, e cada vez mais Mohammed era perseguido pelas ruas e ameaçado de morte, então ele tentou se refugiar na vila de Tafy próximo a Meca, mas esses o expulsaram, temendo que com ele o mal viesse para vila. Porém, a solução surgiu no mesmo ano. Fora oferecido ao profeta abrigo em Medina (na época a cidade ainda se chamava Yatrib) ao norte; lá existia uma comunidade judia, e alguns viajantes e comerciantes já haviam espalhado rumores acerca do profeta e de seu deus.

"Entonces probó suerte en Yatrib, vieja ciudad situada junto a un oasis a 350 km al norte de La Meca, cuya poblácion, de unas 3000 almas, más campesina y menos comerciante que la de La Meca, mantenía sin embargo continuas relaciones con los mecanos. Tres tribus judías arabizadas, los Nadir, los Qurayza y los Qaynuqa, se habían estabelecido allí hacía bastante tiempo; a ellas se unieron dos tribus árabes yemeníes, los Awz y los Jazray; estas, después de haber vencido a las tribus judías, lucharon entre sí, venciendo los Awz". (MANTRAN, 1973, p. 21).

"Ele [Mohammed] não foi imediatamente. Parlamentou por dois anos, enviando um discípulo para pregar em Medina e destruir, ali, os ídolos. Depois começou a mandar os adeptos que fizera em Meca, para Medina, a fim de esperá-lo; não queria entregar-se a aderentes desconhecidos em uma cidade estranha. Esse êxodo dos fiéis continuou, até que, por fim, não ficaram senão ele e Abu Becre". (WELLS, 1988, p. 9).

Em 622, novamente tendo sofrido uma tentativa de assassinato, Mohammed decidiu deixar Meca e ir para Medina (Yatrib), nessa viagem, a única pessoa que o acompanhou fora seu amigo de longa data, o comerciante Abu Becre ou Abu Bakr (573-634), os dois deixaram a cidade de noite e adentraram pelo deserto a fim de despistar seus perseguidores até que finalmente chegaram em Medina dias depois. Tal episódio ficou conhecido como Hégira. A Hégira é o marco do início do Calendário Islâmico, o qual passou a contar o tempo a partir da fuga do profeta da cidade de Meca.


A fuga de Mohammed de Meca para Medina é chamada de Hégira e consiste em um importante acontecimento na história do profeta, já que em Medina ele passou a coordenar a conversão e unificação das tribos árabes.
"La instalación de Mahoma en Yatrib señala un cambio decisivo en la vida del Profeta, en su actuación para hacer triunfar la nueva religión. La ciudad de Yatrib, que se llamaria desde entonces Medinat al-nabi (Medina, la Ciudad del Profeta), se convertió desde entonces en sede activa de una comunida cuyo jefe espiritual y temporal era Mahoma. Allí se creó el primer centro de oración proprio de la comunidad, el masyid (mezquista), lugar de prostración, pero también lugar de reunión. Allí, sobre todo, se organizó esta comunidad, base indispensable para cualquier progreso futuro: ya no se trataba únicamente de predicar el Islam, había que pornelo en prática y convertilo en una fuerza". (MANTRAN, 1973, p. 22-23).

Aos 52 anos de idade, Mohammed se tornaria um chefe poderoso, ganhando respeito e amigos em Medina, além de inimigos também. Logo ele levou à cabo a sua missão de espalhar a palavra de Alá pelo mundo. Assim os dez anos que se seguem, várias expedições pelas Arábias promoveriam a unificação das tribos e das cidades, embora que alguns ainda resistissem a aceitar a crença em um único deus, ou a se subjugar ao domínio de Medina, em muitos casos, o profeta realizou casamentos para firmar alianças, casando-se com filhas ou irmãs dos chefes dos outros clãs, ou realizando casamentos com suas filhas e primas. Em alguns dos casos, batalhas foram travadas para se conquistar e derrotar os inimigos, tais batalhas ficaram conhecidas sob a iniciativa da jihad ("esforço"), embora que passou a ser conhecida no Ocidente como sinônimo de "guerra santa".

Não obstante, Meca contrariada pela traição realizada por Medina, entrou novamente em guerra contra essa. O profeta também enviou missionários e embaixadores para Pérsia, Índia, Egito, Abissínia, pelos domínios bizantinos e na Terra Santa.


Através da fé, de alianças e de guerras, as tribos árabes foram unificadas sob o domínio do profeta Mohammed.
Mohammed provavelmente não voltou a realizar grandes viagens, porém viajava para se encontrar com chefes tribais a fim de realizar acordos de cooperação ou de paz, ao mesmo tempo levava a palavra de Alá consigo. Depois da morte de Khadidja, Mohammed adotou a poligamia, prática comum entre os árabes e outros povos da época, assim até o final da vida ele se casou mais doze vezes, tendo vários filhos, embora que todos seus filhos homens morreram ainda jovens. 

Em 631 ele retornou para Meca, agora pacificada após a vitória do exército de Medina. Lá, Mohammed visitou a Caaba e ordenou a destruição dos ídolos dos deuses pagãos, e ordenou que o templo fosse reformado, embora que só ganharia seu aspecto de hoje, anos depois. Dessa forma Mohammed restituiu a Caaba como local de culto à Alá, assim como havia sido originalmente erguida pelos discípulos de Abraão. Ao mesmo tempo, a população de Meca se converteu ao islamismo, adotando-o como a religião oficial da cidade. Dessa forma Mohammed instituiu a peregrinação (hadj) a Meca como uma obrigação de todo muçulmano, já que a cidade ficava mais próxima do mundo árabe do que Jerusalém, amplamente defendida pelos cristãos e judeus. 


A Caaba em tempo de peregrinação (hadj).
Mohammed faleceu aos 62 anos em 632 na cidade de Medina, embora alguns digam que na realidade ele viajou para Jerusalém a pedido de Alá, de onde no Monte do Templo fora elevado ao céu. Independente de se ele morreu ou fora elevado para o céu, o profeta não deixou herdeiros homens tanto para seu patrimônio quanto para o seu legado e missão, continuar com a pregação do islamismo. 

Esses herdeiros passariam a adotar o título de califa ("sucessor"), o qual se designava como líder dos muçulmanos, ou seja, aqueles que tinham como fé o Islã. Assim, o velho amigo do profeta e também sogro deste, Abu Becre fora escolhido como seu sucessor, sendo o primeiro adotar o título de califa. Porém nessa época uma divergência surgiu, alguns não aceitavam Abu Becre como sucessor do profeta, estes alegavam que o verdadeiro sucessor de Mohammed era seu primo Ali ibn Abi Talib (600-661), o qual teria sido eleito sucessor do profeta no último sermão dado pelo profeta. 

Na época com 32 anos, Ali negou a aceitar o cargo e concordou que Abu Becre fosse o escolhido. Porém, alguns partidários não concordaram com isso, assim dentro do Islã surgiram duas vertentes, os sunitas que apoiavam a escolha de Becre e os xiitas que apoiavam a escolha de Ali. De qualquer forma, tal tendência ainda existe hoje, sendo os xiitas mais conservadores a respeito das leis do Corão em relação aos sunitas. 


O ISLÃO

Antes de prosseguir para o assunto acerca da continuação da expansão, já que muitos historiadores consideram que a mesma tenha se iniciado com Mohammed, falarei um pouco da religião que ele passou a desenvolver e pregar. O Islamismo, Islão, Islã ou Islame, vem da palavra árabe aslama "submissão", nesse caso, submissão a Deus (Alá). Os adeptos dessa fé são chamados de muçulmanos, que vem da palavra árabe muslim "aquele que se submete". Logo, dizer que todo árabe é muçulmano é uma afirmativa errônea, já que nem todos os árabes são muçulmanos, embora sua maioria o seja.


A lua crescente e a estrela são os símbolos que representam o Islão.
No Islão, considera-se Alá como o deus único e Senhor do Universo, criador de tudo e de todos. Considera-se também a existência dos anjos, servos do Senhor e de demônios, servos do Diabo. Acredita-se também nos profetas os quais começaram com Abraão, sendo Mohammed o último desses. Nesse caso, Jesus Cristo é visto como um dos cinco grandes profetas, sendo o antecessor de Mohammed. Os muçulmanos não o veem como sendo o Filho de Deus e o Filho do Homem, logo não aceitam a Trindade, embora que considerem os milagres feitos por Cristo e sua ressurreição.

Alá escrito em árabe.
O Islã prega a concepção do Juízo Final, do Paraíso para os benevolentes e o Inferno para os pecadores; considera que os crimes cometidos durante a vida, serão julgados na morte, daí que se deve sempre pregar o bem, não pela salvação própria, mas pelo bem ao próximo e para Deus, assim como ele exigiu. 

O Islã considera a legitimidade e a crença dos livros sagrados, como o Torá dos judeus e a Bíblia dos cristãos, porém o Alcorão é o livro supremo de sua doutrina. No entanto, entre o islamismo existe mais um importante livro, o Sunnah, o qual consiste na copilação das leis do islamismo (Hadith), sendo esse livro dividido em duas partes: o hadith ou hadiz, o corpo de leis ensinados pelo profeta e o sira, o qual consiste em uma biografia do profeta. Nesse caso, os chamados sunitas levam em consideração o Sunnah, embora esse não tenha sido escrito por Mohammed, mas sim por seus parentes e amigos mais próximos dele. No entanto, os xiitas dão maior valor ao Alcorão, o qual traz a palavra de Alá. 

O Alcorão é o quarto livro mais vendido no mundo, chegando próximo aos 900 milhões de exemplares já vendidos.
O Islã se fundamenta em cinco bases (arkan):
  1. A profissão de fé (chahada): na qual diz que Alá é o único deus verdadeiro e que Mohammed é seu legítimo profeta, servo e mensageiro de sua palavra.
  2. Oração (çalat): deve-se orar cinco vezes ao dia para Alá, no amanhecer, ao meio-dia, a tarde, ao pôr-do-sol e de noite, voltado para Meca. Nas sextas-feiras, o devoto deve ir a mesquita orar e assistir o sermão dado pelo iman
  3. Jejum (çawm): deve ser feito no mês do Ramadã (o mês da revelação). Ao longo dos trinta dias do mês, deve-se jejuar durante o dia e alimentar-se apenas de forma frugal durante a noite. Durante este período, também deve-se manter a abstinência sexual durante os trinta dias. 
  4. Peregrinação a Meca (hajj): os muçulmanos que vivem próximo a Meca devem ir até a Caaba durante o período de peregrinação. Já os que vivem longe, devem pelo menos uma vez na vida realizarem a peregrinação. 
  5. Esmola (çadaqa, zakat): todo o muçulmano é obrigado a pagar uma vez por ano o zakat, o qual consiste num tributo dado a comunidade islâmica como forma de ajudar na organização dessa e na caridade. Considera-se o tributo como um ato de boa fé, onde você doa sua riqueza para ajudar os outros. O zakat diferente do dízimo, cobra uma valor menor do que 3%. 
O islamismo permite a poligamia, tendo o homem o direito de possuir até quatro esposas (embora que vários califas, sultões e homens ricos, possuíram ao longo da história, haréns com dezenas e até mesmo centenas de mulheres), desde que consiga mantê-las e seus filhos de forma igualitária, se não, recomenda-se que permaneça monogâmico. Em geral, grande parte dos homens muçulmanos são monogâmicos.

A mulher deve cobrir a cabeça com um véu, em sinal de respeito ao marido, aos filhos e a sua família. Dependendo do país as restrições ao uso do véu são mais conservadoras, levando as mulheres a usarem a burca a qual lhe cobre o rosto e o corpo. Os homens também possuem o costume de cobrir a cabeça com turbantes e outros tipos de chapéus, embora não seja o seu uso obrigatório.

Dependendo do país, as mulheres possuem maior liberdade perante a sociedade, sendo permitidas andarem sozinhas, dirigirem e trabalharem em certos empregos, em outros isso não é permitido. 

O consumo de bebidas alcoólicas em muitos países muçulmanos é proibido, já que o profeta Mohammed alertou os homens dos males que a bebida causa e o vício que ela gera, assim os muçulmanos são conhecidos como grandes consumidores de chá e café. Entretanto, o consumo de tabaco não é proibido. 

O Islão é uma religião quase que totalmente iconoclasta, havendo poucas imagens que representam o profeta Mohammed e outros profetas. Entretanto, em alguns livros e murais, há representações de passagens do Corão, fatos históricos e cenas do cotidiano, sendo essas apresentadas em livros, e não nas mesquitas, as quais em geral é comum encontrar apenas o nome do profeta e de Alá gravado nas paredes e em murais. Existe uma grande predominância de mosaicos geométricos e abstratos, conhecidos como arabescos


Arabescos na Mesquita Azul, Istambul, Turquia.
"A ética muçulmana combina no mesmo espírito, para o indivíduo e a colectividade, um conjunto de práticas em que surge, na unidade de uma fé que deve inspirar todas as atitudes, uma dupla preocupação de ascese espiritual e de esforços para a felicidade de todos. Ilustram as primeiras proibições, sobretudo alimentares, seja a carne de porco ou de animais não sangrados, sejam as bebidas fermentadas, de que o Corão condena pelo menos o abuso, se não o uso. Quanto à preocupação do bem da maioria, aparece numa moral ao mesmo tempo optimista e comunitária, cuja ideia geral é que Deus quer, cá em baixo, o bem-estar material do seu povo, implicando este bem-estar a manutenção da felicidade individual aquém do egoísmo e do excesso: princípios, por conseguinte, de justiça, se não de equidade social". (MIQUEL, 1971, p. 59).

Dependendo atualmente do país, há variação de como as leis contidas no Alcorão são interpretadas e empregadas nas leis do país, daí alguns países serem mais conservadores e exaltados do que outros nesse quesito.

A EXPANSÃO

Os califas inspirados

Os califas inspirados, bem guiados, ortodoxos ou rashadun (inspirado), foram os quatro primeiros califas que sucederam Mohammed após a morte deste em 632. Sendo assim, o termo rashadun refere-se ao fato de que cada um dos sucessores eram próximos do profeta. Abu Becre era um velho amigo e sogro; Omar era também sogro; Otman era amigo de longa data do profeta, tendo sido um dos primeiros a se converter, além de ter sido genro do mesmo; por fim, Ali era primo, o qual fora adotado por Mohammed, e também seu genro. Assim, pelos laços familiares e pela longa convivência que tiveram com o profeta, possuíam maior noção a respeito da fé islâmica e da política desenvolvida por Mohammed.

Califado de Abu Becre (10/632-12/634)

"Quem verdadeiramente corporificou o espírito do Islã não foi Maomé, mas o seu íntimo amigo e adepto, Abu-Becre. Não há dúvida que se Maomé foi a inteligência e a imaginação do primitivo Islã, Abu-Becre foi a sua consciência e a sua vontade. Em suas vidas conjuntas, era Maomé quem dizia as coisas, mas era Abu-Becre quem as acreditava. Quando Maomé vacilava, Abu-Becre o fortalecia e sustentava". (WELLS, 1988, p. 17).

Abu Becre estava decidido e expandir o islamismo para o norte, assim deu início as campanhas que levaram as tropas muçulmanas em direção a Síria e a Hira, na época em território Persa. Nesse caso, a Síria estava sob o domínio dos bizantinos, porém no século VII, tanto o Império Bizantino do basileu Heráclio (575-641), quanto o Império Persa do xá Yazdegerd III (?-651) estavam em decadência após vários anos de guerras entre si, e tal fato ajudou os muçulmanos a vencerem os exércitos inimigos e a ganharem apoio dos Estados vassalos e tributários desses, que queriam se ver livres dos mesmos. Ao mesmo tempo, parte das tropas utilizadas tanto por bizantinos como persas eram formadas por árabes que viviam no norte das Arábias, ou viviam na Síria e na Pérsia. Baseado no quesito cultural, Abu Bacre pretendia convocar esses árabes a se juntarem a causa muçulmana, e de fato isso veio a acontecer. 

"Ao iniciar-se o governo de Abu-Bacre, achava-se apenas formalmente encerrada a guerra entre a Pérsia e o Império Bizantino. Ambos os lados haviam feito grande uso de auxiliares árabes; diversas cidades e colônias de árabes cristianizados, dispersas sobre a Síria, professavam uma lealdade apenas nominal a Constantinopla; as fronteiras persas, entre a Mesopotâmia e o deserto, estavam sob o controle de um príncipe árabe tributário, cuja capital se encontrava em Hira". (WELLS, 1988, p. 18).

Abu Becre não viveu tempo suficiente para acompanhar o desenvolvimento das campanhas que dera início, embora seus exércitos já tivessem adentrado a Síria e a Pérsia, mas foram derrotados, porém seu sucessor é que consolidaria as iniciativas propostas por Becre, e levaria para mais além a influência dos islamismo.

Califado de Omar (12/634-22/644)

Omar ibn al-Khattab (586-644) é considerado o mais poderoso e influente dos califas inspirados. Fora sob seu governo que a expansão realmente se deu e fora vista. Não obstante, além de conquistar fiéis, Omar conquistou territórios, subjugou inimigos, e organizou a administração do seu califado, dando aos califas posteriores um Estado mais vasto do que o Império Bizantino e Persa naquele tempo, e tão rico quanto os mesmos.

"Agora, porém, sob o o governo do segundo califa eleito, Omar, hábeis chefes de tropas mais numerosas investiram contra a Palestina, Síria, Iraque e Egito, encontrando pela frente uma resistência surpreendentemente fraca e ineficaz. E o que principiara como simples incursões de pilhagem e saque, à maneira habitual dos árabes, transformara-se, imperceptivelmente, em campanhas de conquista permanente". (KIRK, 1967, p. 30).

Em 634 o general Khalid ibn al-Walid (592-642) derrotou as tropas gregas-bizantinas na Terra Santa, conquistando toda a região com exceção de Jerusalém e de Cesareia. No ano seguinte ele avançou em direção a Damasco, capital da Síria. Após uma vitória fácil contra os bizantinos, os sírios assinaram o acordo de rendição, mas apenas em 636 é que consolidaram o seu domínio na Síria, derrotando o exército bizantino enviado pelo imperador para recuperar a província. Não obstante, na Síria já existia uma comunidade de árabes vivendo há vários anos por lá, isso facilitou o entendimento do califa com os sírios.

No ano seguinte, a cidade de Hira, na época na Pérsia, hoje no Iraque também se juntou aos muçulmanos, e de lá eles continuaram sua viagem em direção a Bagdá e o interior do Império Persa, embora que os persas indignados com a derrota inicial reforçaram seus exércitos, isso retardou o avanço das tropas árabes. Não obstante, os exércitos seguiam em direção a Mesopotâmia e a Armênia no norte. E em 638 Jerusalém se rendeu aos muçulmanos aceitando seu acordo de paz, porém para decretar a união ao califado, o Patriarca de Jerusalém, na época Sofrônio I, exigiu que o califa Omar viesse em pessoa a cidade para tomá-la. 

Omar aceitou a exigência e curiosamente realizou a viagem de 600 milhas à camelo, acompanhado de um único escravo. Depois de dias de viagem, chegaram a Jerusalém onde se diz, que seus generais, comandantes e capitães o aguardavam, todos ricamente vestidos com tecidos caros e usando joias, porém o califa repudiou tal ato, já que pregava a humildade e o desapego as coisas materiais. De qualquer forma, o patriarca Sofrônio I fechou o acordo com Omar, assim Jerusalém manteria seu governo e suas comunidades cristãs, e agora muçulmanas, e Omar garantiria a proteção e a manutenção da cidade. Nesse caso, os judeus negaram-se a aceitar o novo governo, e Omar ordenou sua expulsão da cidade, embora que posteriormente eles regressaram. 

Diferente do que se pensa, a respeito da violência cometida pelos muçulmanos em se matar aqueles que não queriam serem convertidos, no início não fora bem assim, e até mesmo depois, já que muitos califas preferiam ganhar aliados.

Em 639 o general Amr ibn al-As chegou ao Egito, na época província do Império Bizantino, já possuindo uma grande população de cristãos, embora fossem divididos em ortodoxos e coptas, além de haver comunidades judias também. Mas, devido ao desgosto da população com o Estado bizantino, e a fragilidade das tropas na província, os exércitos árabes os venceram sem muita dificuldade, e os governantes locais aceitaram se unirem ao califa, embora sabendo que o islamismo havia chegado para ficar. Em 642, o Egito havia sido conquistado, embora apenas a parte norte. Em 643, o general Amr ibn al-As fundou a cidade de Fastat (Nova Cairo), hoje a cidade é a atual capital do país. 

Nos cinco anos seguintes, os exércitos árabes continuaram a seguir viagem ao longo da costa africana no Mediterrâneo, passando pelo que hoje é a Líbia e chegando até o começo da fronteira da atual Tunísia. Subjugaram os exércitos persas no Iraque, conquistando a Babilônia e se apossando de toda a Mesopotâmia, de lá os generais seguiram para o norte, conquistando em 642 a cidade de Dvin ou Tvin, capital da Armênia na época. Para leste, eles continuaram a adentrarem os territórios persas.

Domínios do Califado de Omar em 644, quando alcançou sua máxima extensão.  
Em quatorze anos depois da morte do profeta, os domínios islâmicos já iam da África do Norte ao começo da Índia, do Iêmen a Armênia, compreendo um dos maiores impérios da época, conquistado em um curto espaço de tempo, pela fé, pela diplomacia e pela guerra. Se por um lado, Omar coordenou suas campanhas militares magistralmente, ele também cuidou de assegurar a coesão desse crescente Estado.

"A tarefa de improvisar um sistema administrativo para o vasto império árabe foi levada a efeito, principalmente, pelo segundo califa, Omar. A autoridade nas províncias foi colocada nas mãos dos comandantes militares árabes que as tinham conquistado. Guarnições árabes foram estabelecidas em acampamentos recentemente criados em cada um dos países conquistados, dos quais Fustat, perto do velho Cairo, e Baçorá, no baixo Iraque, são exemplos. A fim de manterem sua identidade separada da dos povos dominados, aos árabes não era permitido, inicialmente, adquirirem terras fora da Arábia. A administração civil foi deixada entre as mãos daqueles em que o conquistador árabe a encontrara: cristãos de educação grega, nas terras do Império Romano, e não-muçulmanos e de educação persa, nas terras do antigo Império Persa". (KIRK, 1967, p. 33).

"Contudo, os novos governantes árabes precisavam de regularizar também, a posição legal dos milhões de seus súditos não-muçulmanos, que representavam esmagadora maioria da população do império. Nesse ponto, Omar seguiu o exemplo de Maomé, deixando tranquilas as comunidades cristãs e judaicas do Hedjaz setentrional, que ele colocara sob sua tutela, com a condição de pagarem um tributo anual. Omar ampliou esse critério a todos os habitantes cristãos e judeus do império islâmico, bem como aos zoroastrianos, na Pérsia; e assim, esses súditos tornaram-se conhecidos como Al-Adhima ou "povos do convênio"". (KIRK, 1967, p. 33).

Em 644, Omar fora traiçoeiramente assassinado por um dos seus escravos cristãos que havia se revoltado contra ele. Tendo morrido tão de repente, chegou ao ponto de não ter deixado um sucessor proclamado.

Califado de Otman (22/644-34/656)

Otman ibn Affan, Utman, Otomão ou Osmã (570-656) fora o terceiro califa inspirado, tendo sido casado com duas filhas de Mohammed, o que lhe garantia a proximidade a família do profeta. Como Omar não deixou nomeado seu sucessor, Otman convocou um conselho (sura) formado por seis membros, eleitos entre os melhores partidários do Profeta, sendo alguns destes próximos a ele. Então esse conselho elegeu oficialmente Otman como sucessor de Omar, passando esse a governar como novo califa, entretanto, os xiitas não aceitaram tal escolha, alegando que Ali não fora consultado sobre isso, e que era para o mesmo ser eleito califa, tal questão traria problemas no futuro.

Otman pertencia a rica família dos Omíadas de Meca, tendo os Omíadas sido uma das últimas famílias a se converterem ao Islã. Sobre o governo de Otman, o império islâmico sofreria abalos em sua estrutura, o califa era um homem velho, sem sabedoria e experiência para a guerra e a política, sua má gestão levaria a conflitos entre setores do Estado muçulmano. Não obstante, alguns historiadores apontam que Otman fora o primeiro califa a dá mais atenção as conquistas sob um olhar de conquistar poder, glória e riquezas, do que propriamente levar à cabo a conversão de outros povos. 

"Por otra parte, Utmana accedió al poder en um momento de crisis: las conquistas habían enriquecido a los conquistadores musulmanes, y les habían comunicado, para escándalo de los creyentes más fanáticos y austeros, el gusto por el lujo y el deseo de incrementar sus gananacias. El gobierno por su parte también se había enriquecido y poseía sumas enormes: ya no dependia directamente del ejército y distribuía, o cobraba, las pensiones según criterios que no coincidían siempre con los méritos contraídos". (MANTRAN, 1973, p. 50).

Ao mesmo tempo embora que algumas campanhas militares ainda continuassem, como a conquista da ilha de Chipre em 649, e a ampliação dos domínios no Egito e a expansão pela Pérsia prosseguia de forma lenta, Otman não realizou grandes conquistas como seu antecessor, mas seus generais mostraram aos árabes o poder da marinha. Chipre e posteriormente a Lícia (hoje no sul da Turquia) foram conquistadas por uma frota formada por navios egípcios com marinheiros sírios-árabes. Em 655, a recente tropa árabe derrotou os bizantinos na costa da Lícia adquirindo aquele território para o império islâmico, eles também chegaram a visitar Creta, o sul da Grécia e a Sicília na Itália, mas anos depois, voltariam para tentar atacar essas regiões. Os árabes de simples nômades do deserto, se tornariam exímios navegadores. Durante o Califado Omíada, a porção oriental do Mediterrâneo estaria sob o domínio dos mundo islâmico. 

Mas se por um lado, Otman não esteve ligado diretamente as proezas náuticas, este soube se valer de sua posição como califa para tornar sua família ainda mais poderosa. O governo de Otman ficou conhecido por um forte nepotismo, o califa nomeou vários parentes seus: tios, irmãos, filhos, sobrinhos, primos, netos, para importantes cargos no exército e no Estado por todos os cantos do império, especialmente na Síria, onde a família Omíada começou a se concentrar. O califa nomeou seu primo Muawiya como governador da Síria, algo que suscitou a revolta de muitos, especialmente pelo fato de que Muawiya era filho de Abu Suyfan, outrora inimigo do profeta. Isso gerou a revolta de segmentos da sociedade que esperavam serem reconhecidos por seus méritos, mas foram relegados a isso, ao mesmo tempo, os xiitas viam nisso um ato de petulância e abuso de poder, já que o califa estava inegavelmente favorecendo sua família. 

Para piorar a situação do califa, em meados do seu reinado, Otman publicou uma nova versão do Alcorão, a qual ficou conhecida como versão vulgar. A mesma fora acusada na cidade de Kufa por ser fraudulenta. Um antigo companheiro do profeta, chamado Avd Allah ibn Mas'ud, alegava que o califa havia forjado certas partes do texto sagrado, isso incitou a revolta tanto dos sunitas quanto dos xiitas. A versão fora abolida posteriormente, acusada de profana e falsária, mas isso não libertou o califa da culpa.

Em 655, com seus 85 anos, Otman ainda não havia escolhido seu sucessor propriamente, mas tudo indicava que nomearia seu primo Muawiya, novamente os xiitas voltaram a se rebelar contra essa escolha, eles queriam que Ali fosse o escolhido. Neste contexto, surgiram os chamados kharijitas, os quais defendiam que qualquer homem digno e de bem, poderia ser nomeado califa, não sendo necessário ser um parente do profeta. O movimento se fortaleceria nos anos seguintes, mas em 656, Otman fora assassinado em casa a golpes de espada por uma multidão revoltosa. Algumas versões dizem que ele fora perseguido pelas ruas e cercado em casa, outras alegam que quando sua casa fora invadida, ele estava rezando naquele momento.

Com a morte de Otman, uma pequena guerra eclodiu em meio ao governo do Estado muçulmano, três frentes se digladiariam: Ali apoiado pelos xiitas, os Omíadas tentariam eleger Muawiya e os kharijitas tentariam eleger seu próprio califa. 

Califado de Ali (34/656-40/661)

Ali ibn Ali Talib (600-661) fora primo e genro de Mohammed, casado com Fátima. Desde a morte do profeta, Ali por ser o mais próximo do mesmo, já que viveu sob a tutela de Mohammed por vários anos, e depois disso como seu genro, era considerado o predileto para ser o sucessor do profeta, porém, depois das reviravoltas já mencionadas, em 656, com a morte de Otman em Meca, Ali o qual se encontrava em Medina fora eleito pelo povo como novo califa. Mas seu curto reinado de cinco anos seria bem tumultuoso. Muawiya apoiado por sua família tentaria ganhar o poder, o grupo dos kharijitas passaria a ser apoiado por Aisha, uma das esposas de Mohammed, a qual não gostava de Ali.


O califa Ali (direita) em sua investidura ao cargo.
"Sin embargo, no sólo tenía enemigos: en su favor tomaron posicíon los viejos creyentes fieles a la família del Profeta; los enemigos de Aysa hicieron otro tanto; pero especialmente contó con el apoyo de las tres grandes plazas fuertes musulmanas, Basra, Kufa y Fustat, cuyas tropas se habían sido liberadas de la tutela de los gobernadores nombradospor Utman". (MANTRAN, 1973, p. 53).

A história do reinado de Ali fora marcada pela guerra de sucessão, sendo assim ainda em outubro de 656, ocorreu próximo a Basra ou Baçora no Iraque, aconteceu a Batalha dos Camelos, onde as tropas de Aisha e do general Zubayr foram derrotadas pelos exércitos do califa, Aisha fora capturada e mantida prisioneira em Meca até o fim de sua vida.

"Ali tinha quase todas as virtudes, exceto as de um bom governante: energia, capacidade de decisão e de previsão. Era um guerreiro brilhante, um bom conselheiro, um verdadeiro amigo e um inimigo generoso... mas não tinha talento para as realidades nuas e cruas, da maquinaria política, sendo ludibriado por rivais sem escrúpulos, mas cientes de que "a guerra é um jogo de enganos e ardis". (KIRK, 1967, p. 34-35). 

No ano seguinte ainda no Iraque, as tropas de Ali enfrentaram o exército Sírio de Muawiya, depois de uma dura batalha, fora oferecida uma trégua, mas o general de Muawiya a quebrou e contra-atacou o exército do califa, mas seu exército ainda saiu vitorioso, no entanto a situação não estava nada boa. Os domínios na África se mostravam neutros ao confronto até 658, quando Amir ibn al-As tomou o controle da região, revelando-se aliado de Muawiya. 

Ali tentou promover um conselho de arbitragem o qual ocorreu em 658, como forma de discutir e debater essa questão, assim foram nomeados arbítrios para essa causa, entretanto em 660 os árbitros não haviam chegado a um consenso de quem deveria permanecer no poder e as outras questões julgadas no processo, porém ainda no mesmo ano Ali fora proclamado oficialmente califa em Jerusalém, no entanto, a oposição ainda não estava convencida disso. Muawiya não reconhecia Ali como califa de direito, então Ali estava determinado a liderar um ataque decisivo a Síria e depor o inimigo o qual se recusara abandonar o cargo de governador durante esses anos.

Em 661, enquanto o califa se encontrava em Kufa no Iraque, organizando os preparativos para o ataque na Síria, Ali fora assassinado por um membro dos kharijitas. Com a sua morte, finalmente Muawiya assumiu como califa e transferiu a capital do califado de Meca para Damasco, a qual se tornaria o centro da Dinastia Omíada.

Dinastia Omíada (40/661-130/750)

Califado de Damasco (40/661-130/750)

Muawiya estava decidido a se tornar o próximo califa, assim proclamou-se califa ainda no mesmo ano, porém ele tratou de imediatamente de por ordem no império, de acabar com essa guerra civil pela sucessão e de mostrar a sua autoridade como verdadeiro califa. Abū ʿAbd Ar-Raḥmān Muʿāwiya ibn ʾAbī Sufyān (602-680), transferiu a capital do império, de Meca para Damasco, a tirando das desavenças políticas de Meca e Medina, ao mesmo tempo em Damasco na Síria, sua autoridade era maior, já que fora por longos anos governador da mesma, assim ele deu início ao Califado de Damasco, governado pela Dinastia dos Omíadas. Por um lado isso não agradou muita gente, os quais consideravam uma ofensa transferir a capital da cidade sagrada de Meca.  


Fachada da grande Mesquita dos Omíadas construída entre 636-715, sendo ampliada pelos califas omíadas, representa a glória da Dinastia Omíada, sendo a maior mesquita da Síria. 
Muawiya para acabar com os problemas que envolviam a sucessão dos califas, decretou que a sucessão seria hereditária, logo nomeou seu filho Yazid I como seu sucessor, e assim ao longo dos 90 anos que os Omíadas governaram, a sucessão se tornou hereditária. 

Segundo, o califa reorganizou o poder estatal o concentrado em suas mãos, se no passado, os governadores das províncias possuíam certas liberdades e regalias, acabaram perdendo isso, o califa se tornava o senhor temporal e secular, o legítimo representante do povo árabe e da nação islâmica.

Terceiro, Muawiya criou um conselho (sura) em Damasco, o qual ficou responsável pelo Poder Executivo, não obstante para cada uma das províncias ele criou conselhos locais (wufud), os quais deviam se reportar diretamente a capital em tempos em tempos, e participar das propostas de governo sugeridas pelo califa, além de tais conselhos realizarem o trabalho de porta-voz dos problemas de cada província. Ao mesmo tempo os wufud mantinham os governantes locais na linha, já que poderiam apontar desfalques ou irregularidades destes, ao califa. 

Quarto, O califa querendo por fim as revoltas e desavenças geradas pelas tribos beduínas (nome dado aos nômades do deserto árabe), realizou pactos que o aproximou dos chefes dessas tribos, assim, as hostilidades se apaziguaram por hora. Quanto aos xiitas e kharidjitas ele pôs fim aos focos de resistência e rebelião, e ao longo de seu governo não houveram grande manifestações dos mesmos. 

A respeito das conquistas, durante o seu governo foram realizadas duas expedições contra Constantinopla, capital dos bizantinos, ambas fracassaram; não obstante, os árabes reconquistaram Chipre, que havia sido recuperada pelos bizantinos, chegaram também a realizar novas visitas a Creta e a Sicília, e em 670 fora fundada a cidade de Kairum no que hoje é a Tunísia, África. Tal cidade seria uma base importante para as excursões contra Cartago e avanço para o oeste. 

"Mu'awiya supo utilizar en gran manera su cualidad esencial, el hilm, la fineza política, gracias a la cual ha podido ser considerado - a pesar de la oposicion abbasí y si'í - como uno de los más grandes califas musulmanes". (MANTRAN, 1973, p. 62).

O filho mais velho de Ali e Fátima, Hassan fora convencido de assinar um acordo com Muawiya, desistindo de qualquer ato que ele tentasse de proclamar-se califa, Hassan aceitou o acordo, porém posteriormente acabou morrendo envenenado. Assim o califa Muawiya conseguiu estabilizar o império e garantiu que o mesmo posteriormente continuasse a crescer e a prosperar, embora que em algumas momentos houveram crises. 


Mas se por um lado Muawiya assegurou-se no poder e deu nova ordem ao império, os três califas que o sucederam não puderam fazer o mesmo. Yazid I governou por três anos, empreendeu ataques contras os bizantinos os quais se mostraram iniciativas fracassadas para os árabes; teve que confrontar uma rebelião de Hussein (segundo filho de Ali e Fátima) e do governador de Meca, Abd Allah ibn al-Zobair (624-692) . Em Medina o povo se rebelou contra o governo desastroso de Yazid, além de apoiarem Hussein como novo califa. 

Yazid enviou um exército para apaziguar a rebelião, causando muitas mortes, incluindo a de Hussein, e no ano seguinte em 683, Meca se rebelou, e novamente o califa enviou um exército para apaziguar a rebelião, nesse incidente, al-Zobair tentava se promover como novo califa, porém a batalha fora tão intensa que a própria Caaba chegou a ser parcialmente destruída na época, mas al-Zobair conseguira fugir. 

"Esta severidad contribuyó al mantenimiento de un espíritu de oposición por parte de los si'ies y los jariyíes y, a la subida al trono de Yazid en 680, estalló una revuelta, primero en Medina, donde Husayn, hijo segundo de Ali, y Abd Allah ibn Zubayr rehusaron reconocer al nuevo califa". (MANTRAN, 1973, p. 63).

Porém, misteriosamente, o califa Yazid I faleceu aos 38 anos, no mesmo ano.  As causas de sua morte são incertas, mas acredita-se que fora assassinado. Fora sucedido pelo seu filho Muawiya II (661-684) o qual governou apenas por um ano, abdicando do governo após uma batalha de meses contra o governador al-Zobair o qual por sua vez ainda tentava se proclamar califa. Ainda no mesmo ano, Muawiya II morreu. Em seu lugar assumiu Marwan I (623-685), o qual continuou com a luta contra o governador rebelde de Meca, até conseguir derrotá-lo em 685, mas acabou falecendo no mesmo ano. A situação da guerra civil iniciada por al-Zobair em 683 só teve fim propriamente sob o governo do quinto califa, Abd al-Malik (646-705), filho de Marwan I, o qual trouxe a paz ao império e iniciou seus anos dourados. 

Abd al-Malik continuou os seis anos seguintes a confrontar al-Zobair, o qual havia fugido de Meca, até que finalmente fora derrotado em 691 e morto no ano seguinte. Nesse tempo, al-Malik recuperou a autoridade do califa sobre a Arábia, o Iraque e a Pérsia, executando os traidores e conspiradores e pondo fim aos focos de rebelião dos e xiitas e kharidjitas; continuou com as campanhas de expansão, sendo que em seu domínio, as tropas muçulmanas já haviam se apossado do que hoje é a Tunísia na África e continuavam a seguir para o oeste atravessado o Magreb (hoje Marrocos), as tribos nômades berberes no deserto do Saara não foram um grande empecilho para os conquistadores que já estavam habituados ao deserto.

"Até os anos de 700, o Islame, no essencial, fortaleceu as suas conquistas, voltando a instalar-se onde não tinha feito senão razias, demarcando campos, fundando cidades: se exceptuarmos as expedições realizadas, na terra ou no mar, contra Constantinopla, não o vemos, então progredir territorialmente senão na África do Norte, onde avança para o Marrocos". (MIQUEL, 1971, p. 79).

Mas se por um lado, o califa conseguiu confirmar sua autoridade no poder e além de continuar com a expansão territorial pela África; Abd al-Malik ordenou a reconstrução da Caaba; reformulou o serviço postal do império; decretou a língua árabe como a língua oficial do império e ordenou a construção do Domo da Rocha em Jerusalém.


Fachada do Domo da Rocha em Jerusalém, construída pelo califa Abd al-Malik, considerado um dos monumentos mais importantes do Islã. Embora seja de origem islâmica, o templo se encontra sobre o Monte do Templo, local sagrado também para judeus e cristãos. 
Outro grande feito do califa Abd al-Malik fora a reorganização das finanças do Estado e do sistema monetário, o qual até então não era homogêneo, já que em partes do império era utilizada a moeda de ouro do denário dos bizantinos e a moeda de prata do dracma dos persas. Abd al-Malik, criou a Casa da Moeda em Damasco e passou a cunhar suas próprias moedas de ouro e prata, o dinar e o dirheme, sendo o dinar a moeda de ouro, contendo quase que dez vezes o valor de um dirheme.  Ambas as moedas eram baseadas nas versões bizantina e persa, embora agora trouxessem a grafia árabe e a efígie de seu governante.


Um dinar com a efígie do califa Abd al-Malik.
"Com as moedas, os produtos e as rotas adaptaram-se ás condições derivadas da conquista, sem que se transformassem radicalmente. Ainda que conheçamos mal nesta época, podemos supor que os velhos centros de produção artesanal ou agrícola mantiveram as suas tradições: tecidos, papiro e trigo do Egito; armas, cereais e azeite da Síria; tecidos de luxo e pérolas de Susiana e da Pérsida (Fârs)". (MIQUEL, 1971, p. 80). 

Com o novo sistema monetário ficou mais fácil comercializar produtos do Egito na Síria, da Pérsia na Arábia, da Armênia no Iraque. Não obstante, os árabes aumentavam seu controle no Mediterrâneo Oriental e no Mar Vermelho, e nos anos seguintes conquistariam outras importantes cidades da Rota da Seda no Turquestão, além de empreenderem viagens marítimas para o sul da costa leste africana e para a Índia. 

Após vinte anos de governo, Abd al-Malik estabilizou os problemas do império, reorganizou-o e lhe trouxe prosperidade. Com a sua morte, fora sucedido pelo seu filho Al-Walid I (668-715). Do governo de Al-Walid, os três califas que o sucederam, Sulayman (715-717), Omar II (717-720) e Yazid II (720-724) ainda mantiveram a paz, a ordem e a prosperidade no império.

Fora sob o domínio desses três califas que o império islâmico chegou a sua máxima extensão e sua prosperidade. Al-Walid e Omar II são lembrados por terem construído mesquitas, fortalezas, palácios, estradas e outros prédios, além de terem promovido reformas e ampliações de algumas cidades. 


Vista atual da Mesquita de al-Nawabi ou Mesquita do Profeta, Medina. Na época, Al-Walid I, reformou e remobiliou toda a mesquita.
Mas se por um lado ambos se mostraram construtores, também se revelaram interessados na guerra e na conquista. Em 698, Cartago fora conquistada pela segunda vez pelas tropas árabes. O governador Musa ibn Nusayr, levou a cabo a conquista do Magreb (Marrocos) entre 705 e 708, tendo chegado os domínios do império a costa do Oceano Atlântico. 

Entretanto os árabes estavam interessados nas terras que ficavam do outro lado do Mar Mediterrâneo, já que eram mais convidativas do que o deserto ao sul. Assim, em 710 fora realizada uma expedição de reconhecimento, até que no ano seguinte o governador de Tânger no Magreb, Tariq ibn Ziyad (670-720) liderou o exército que invadiu a Península Ibérica, na época governada pelos visigodos

O general Tariq ibn Ziyad, conquistador da Península Ibérica.
Tariq e seu exército aportaram num rochedo no lado europeu, tal lugar fora batizado em sua homenagem, chamando-se Djebel el-Tarik ou Jabal Tariq ("monte de Tariq"), o qual após ser traduzido, passou a ficar conhecido como Gibraltar, nome que conserva ainda hoje.

A Península Ibérica e territórios vizinhos antes da chegada dos árabes em 711.
Com seu exército, Tariq avançou para o interior, derrotando o fraco exército dos visigodos, o qual seu reino encontrava-se em crise. Ao mesmo tempo, eles não encontraram muita resistência por parte da população e até mesmo receberam ajuda de alguns judeus. Ainda em 711, Córdoba e Toledo foram tomadas, e nos cinco anos seguintes, as tropas muçulmanas conquistariam quase toda a península, com exceção do norte da mesma, embora chegaram a atravessar os Pirineus em 720, adentrando o sul da França. Os árabes batizaram a Ibéria de Al-Andalus.

Os árabes-berberes (nome dado a miscigenação entre os dois povos) ficariam conhecidos como mouros, sarracenos e morenos, assim como os portugueses e espanhóis os chamariam. A rápida conquista da península, permitiu que os muçulmanos fincassem raízes profundas, e ali permaneceriam estabelecidos até serem definitivamente expulsos no século XV. 

Em contra partida, enquanto as campanhas no oeste se mostravam vitoriosas sobre a Europa, no leste, o império era expandido em direção a Índia e a China. Entre 699-700 o atual Afeganistão havia sido conquistado, nos anos seguintes a região da Transoxiana (hoje no território do Uzbequistão) fora conquistada. Bukara caiu em 709, Samarcanda em 712 e Fergana em 714. Todas essas cidades eram importantes centros econômicos da Rota da Seda, e faziam ligação da Pérsia a China. 

Em 710, Muhammad ibn al-Qasim, genro do governador al-Hayyay, conquistou o Beluchistão (território hoje no Paquistão) e dali adentrou o Punjab (região entre o Paquistão e a Índia), e lá em 713 conquistou a cidade de Multan, importante centro budista da região, porém as tropas árabes foram repelidas, e tiveram que abandonar a empreitada na Índia. A última grande aventura dessa leva aconteceu em Kashgar em 715, hoje na atual China, mas os árabes acabaram sendo derrotados e perderam o controle da região. 

O império islâmico: Em marrom os domínios na época de Mohammed (622-632); Em laranja, os domínios durante o Califado Rashdun (632-661); Em amarelo os domínios durante o Califado Omíada de Damasco (661-750).
O Império dos Omíadas como é também chamado, alcançou uma extensão quase do tamanho do Império Romano, embora alguns historiadores aleguem que tenha ultrapassado o mesmo. Seus domínios iam da costa do Oceano Atlântico até o Punjab no Paquistão, do Iêmen ao Monte Cáucaso na fronteira com a atual Rússia. 

Porém, com a morte do califa Yazid II em 724, seu sucessor Hisam ibn Abd al-Malik vivenciaria um período de crises e sucessivos problemas que culminariam na decadência da Dinastia Omíada. Embora tendo se deparado com algumas crises e revoltas na Espanha, Egito, Iraque e Pérsia, Hisam conseguiu se manter no poder e governou por vinte anos. Sob seu governo, ele retomou os ataques aos domínios bizantinos, mostrando-se muito infrutíferos; continuou a promover a expansão na Europa pela Ibéria, embora que em 732 na Batalha de Poitiers na França, as tropas muçulmanas foram derrotadas por Carlos Matel (avô do futuro rei Carlos Magno), com a derrota para os francos, os muçulmanos rapidamente perderam seus domínios na França e posteriormente acabaram sendo expulsos totalmente do reino. 


Carlos Martel enfrentando os muçulmanos na Batalha de Poitiers, 732, França. 
Embora com essa derrota, os domínios na Ibéria ainda ficaram garantidos. No oriente, as tropas perderam os domínios além do Punjab e no norte no Turquestão chinês. Em suma, grandes conquistas não foram realizadas no seu governo, porém, Hasim é lembrado por seu interesse em promover a educação, as artes e o conhecimento no seu império.

Hasim ordenou a fundação de várias escolas, promoveu e patrocinou artistas, ordenou a construção de bibliotecas, a tradução de textos gregos, romanos, egípcios e persas, atualizou as reformas legais e administrativas do califa Omar II. Porém, embora o império ainda vivencia-se relativa prosperidade, a paz estava sendo perturbada. Os kharidjitas estavam promovendo revoltas na África do Norte e no Iraque, e os beduínos voltaram a se rebelar e para completar o Clã dos Abássidas se fortalecia cada vez mais. Os Abássidas eram rivais do Omíadas de longa data, remontando desde a época do profeta. 

Em 743, Hasim morreu devido as consequências de uma difteria, sendo substituído por seu sobrinho Walid II o qual governou por poucos meses. Em seu breve governo, o califa tentou garantir sua autoridade e preparou seus possíveis sucessores, porém acabou morrendo em combate enquanto enfrentava Sulayman ibn Hisham (732-747), filho do califa anterior, o qual não aceitava não ter sido nomeado seu sucessor, assim declarou guerra a Walid II pelo poder, acabou o matando em uma batalha na Síria, próximo a Damasco.

Mas mesmo com a morte de Walid II, Sulayman não conseguiu se proclamar califa, em seu lugar fora eleito Yazid III, filho de Walid II. Mas devido a uma doença, Yazid III se encontrava muito debilitado na época e morreu em outubro de 744, antes de morrer havia nomeado seu irmão Ibrahim, porém esse se via diante de dois poderosos pretendentes ao poder, Sulayman o qual ainda tentava tomar o poder e agora Marwan ibn Muhammed ibn Marwan (688-750), o qual não aceitava a nomeação do "fracote" do Ibrahim.

Marwan II, outrora fora general e governador, se dirigiu a Damasco e forçou Ibrahim a abdicar do poder, esse o fizera ainda em 744, assim Marwan II o enviou para o exílio e voltou sua atenção para os focos de revolta e a tentativa de  Sulayman de se tornar califa. O exército de Sulayman fora derrotado no final de 744 no Vale de Beqaa, hoje no Líbano. Sulayman fugiu para a Índia onde faleceu em 747. 

Os últimos anos do califado Omíada foram marcados por intensas revoltas: os kharidjitas reunidos no que hoje é Omã, promoveram um levante os levando a ocupar o que hoje é o Iêmen, chegando a ocuparem Meca e Medina, os mesmos não aceitavam a autoridade do califa Marwan II e queriam eleger seu próprio califa, porém em 748, a revolta fora sufocada. Porém o grande inimigo do califa se encontrava no Iraque. Desde de 743 os abássidas viam tirando proveito da situação que o império vivenciava para formar alianças que os fortaleceriam pelos anos seguintes.

Sabendo que grande parte da população era xiita, os abássidas ergueram uma bandeira negra em oposição a bandeira branca dos omíadas, nesse caso, o negro significava o luto pelos filhos de Ali: Hassan e Hussein, ambos assassinados pelos  omíadas, assim os abássidas tomaram a causa dos xiitas, os quais não reconheciam a autoridade dos omíadas, com isso eles conseguiram o apoio de quase todo o Iraque e da Pérsia (atual Irã). Os abássidas promoveram ligações como outros chefes e líderes de outras províncias. Entre 747 e 749, o governador da província de Jurassão (corresponderia hoje ao norte do Irã), Abu Muslim incitou a revolta em sua província, oficializando apoio a Abu Abas, além de que em 749, Abu Abas fora reconhecido como califa pelo Iraque e pela Pérsia. 

Em  25 de janeiro de 750, os exércitos do califa foram derrotados na Batalha de Zab no Iraque, onde as tropas abássidas lideradas por Abu Abas Abdalá ibn Moa Med (721-754) conseguiram uma grande vitória marcando praticamente o fim dessa guerra iniciada desde 747. Com a derrota, Marwan II deixou o Iraque e fugiu para o Egito, lá fora capturado e executado em 5 de agosto, seus dois filhos nomeados herdeiros também foram mortos. Porém, Abu Abas não parou por aí, sua ira contra os Omíadas fora tamanha que ele ordenou que todo omíada que fosse encontrado deveria ser executado, tal ato lhe rendeu a alcunha de al-Saffah ("o sanguinário"). Entretanto um primo de Marwan II, chamado Abd al-Rahman ibn Muawiya, conseguiu fugir dos seus captores e se exilou na Espanha, onde fundaria posteriormente o Califado de Córdoba, autônomo ao domínio dos abássidas. 

Com a morte de Marwan II, Abu Abas decretou o fim da Dinastia Omíada no poder do império islâmico, em seu lugar ele fundou seu próprio califado.

Dinastia Abássida (130/750-678/1299)

Embora tenha durado mais de quinhentos anos, os abássidas não tiveram a mesma sorte dos omíadas de se manter o controle sobre o império. Várias revoltas levaram a criação de emirados e posteriormente de califados autônomos ao governo abássida, enfraquecendo cada vez mais sua autoridade. Não obstante, no século XI, os turcos já possuíam grande autoridade na política abássida, ao ponto de que alguns historiadores alegarem que os califas estavam sujeitos aos interesses de determinados líderes turcos. 

De qualquer forma, devido a amplidão do assunto, me prenderei a citar alguns califas, alguns aspectos de seus governos e alguns fatos importantes para a história da dinastia.

Califado de Bagdá (130/750-637/1258)

Ainda em 750 o recém proclamado califa Abu Abas ainda levava a cabo a perseguição aos omíadas e seus aliados, ao mesmo tempo, transferiu a capital de seu novo império da Síria para o Iraque, onde sua família detinha maior autoridade, não obstante, nomeou vários parentes para cargos no exército e no Estado.

Entretanto, al-Saffah não parou por aí. Depois de ter se garantido no poder por hora, realizou um ataque inusitado, atacou os seus aliados xiitas, os quais Abu Abas sabia que haveriam de se sublevar contra o seu governo. Assim seus antigos aliados foram perseguidos e mortos. O califa ordenou a execução dos filhos e netos de Ali, de forma que não houvessem herdeiros seus a serem reclamados ao califado. 

Em 751, Abu Abas enviou um exército para combater os chineses no Turquestão, no final os árabes saíram vitoriosos, porém, no ano seguinte os bizantinos invadiram a Armênia e a conquistaram, dando início a primeira grande derrota dos abássidas, ainda em 752, o califado perdeu domínio sobre Languedoc na França. Por fim, Abu Abas faleceu em 754, não tendo deixado grandes feitos além do sangue derramado para se conquistar o poder e dado o ponta pé inicial para a criação do Califado Abássida, o qual só iria se firmar propriamente nos anos seguintes. 

Seu sucessor fora seu irmão Abu Yafar al-Mansur, o qual de fato deu corpo e cara ao Califado de Bagdá. Em 755, al-Mansur conhecido também como "o vitorioso", derrotou uma revolta liderada pelo governador Abu Muslim o qual apoiava os xiitas no intuito de se vingarem das atrocidades cometidas pelo califa Abu Abas. Al-Mansur conseguiu derrotar o levante xiita e o governador fora morto. 

Em 756, uma péssima notícia chegou aos ouvidos do califa, Abd al-Rahman (731-788), o mesmo que havia sobrevivido a perseguição feita pelo seu irmão havia se proclamado Emir de Córdoba, passando a governar sobre Al-Andalus. O Emirado de Córdoba permaneceria ligado ao Estado Abássida até o século X, quando romperia totalmente com o governo dos abássidas, declarando-se independente. 


Abd al-Rahman I, Emir de Córdoba de 756 a 788.
Nos séculos em que os árabes ocuparam Espanha e Portugal, eles introduziram o conhecimento de civilizações milenares: introduziram o uso do moinho movido a água, algo que hoje nos parece ser simples, mas naquela época os visigodos que ocupavam a Ibéria, desconheciam tal prática; trouxeram consigo o cultivo de várias plantas como: oliveiras, tâmaras, cocos, cana-de-açúcar, laranjeiras, limoeiros, etc. Disseminaram a cultura e a arte árabe, criando escolas para seus fiéis, trazendo sábios do oriente para ensinar matemática, medicina, geografia, história, alquimia, astronomia, literatura, arquitetura, etc. Na época, os árabes se consideravam os portadores da civilização, a qual fora introduzida naquelas terras habitadas por "bárbaros".

Para piorar a situação, em 757, os kharidjitas ibaditas (os ibaditas eram uma das várias seitas do movimento kharidjita na época) tomaram o controle de Trípoli (hoje capital da Líbia) e posteriormente de Kairuan no ano seguinte, formando um emirado, que compreendia os atuais territórios do Líbano, Tunísia, parte da Argélia, e as ilhas da Sardenha e da Sicília. O Emirado Ifriqiya perduraria até 772, quando os abássidas os derrotaram. Em sete anos de califado, os abássidas já haviam perdido a Armênia, parte da França e agora perdiam parte de sua autoridade sobre a Ibéria e a África do Norte.

Em 762, o califa al-Mansur concluiu um do seus grandes feitos, sua nova capital, a cidade de Bagdá, cercada por uma vasta muralha; onde no centro se encontrava o luxuoso palácio do califa, além de outros palácios menores nos arredores, praças, jardins, mesquitas, prédios do governo, quartéis, casas, mercados, etc. Bagdá seria posteriormente uma das maiores cidades do califado, se tornando sua capital, ostentando o luxo e a riqueza do império entre os séculos VIII e IX, quando o império ainda estava em seu auge. A cidade chegou a ficar conhecida pela alcunha de Madinat as-Salâm "Cidade da Salvação". 


Planta da cidade de Bagdá no século IX.
"Baghdad representa, sem dúvida, a instalação do califado no seio de antigas tradições que vão dar ao Estado islâmico aspectos ainda dele desconhecidos. Mas é, antes de mais, uma cidade enorme que outras cidades imitam e prolongam, inumeráveis, por onde passa o influxo do poder, por onde circula, também, a tradição urbana do Oriente". (MIQUEL, 1971, p. 126).

Al-Mansur também fora o primeiro califa a adotar o título de iman ("aquele que guia"), nesse caso o título era utilizado pelos religiosos, porém os califas abássidas passaram a se identificarem com essa tarefa, diferente dos califas omíadas que se proclamavam sucessores do Profeta, os abássidas além de fazerem isso, também se consideravam representantes de Alá na terra, daí adotarem o título de iman, não obstante, muitos dos califas abássidas passaram apenas a cuidar de questões religiosas, deixando ao encargo de seus funcionários as demais obrigações, nesse caso, os abássidas restituíram o cargo de vizir, utilizado pelos persas sassânidas

"Soberano espiritual, lo era también temporal ya que podía nombrar y revocar a los agentes del gobierno. Toda autoridad detentada por éstos lo era en función de una delegación del califa. Este procedimiento era incluso utilizado en el más alto nível de la administración, pues el soberano ponía el cuidado de los asuntos del Estado en manos del visir y, con el tiempo y según las circunstâncias, éste pudo desempeñar un papel de considerable importancia". (MARTRAN, 1973, p. 91-92).

O vizir ("ajudante") equivaleria em alguns aspectos de hoje, a um primeiro-ministro, detendo o poder Executivo, embora tivesse também a função de conselheiro e porta-voz do califa. Porém ao vizir era atribuído a função da administração civil do império, cuidando de assuntos governamentais, nesse caso, os vizires eram a segunda pessoa com maior autoridade no califado. Tal cargo era tão prestigiado  e cobiçado, que até o ano de 803, todos os vizires haviam pertencido a família persa Barmecida, constituindo um cargo hereditário. 

Os vizires não possuíam autoridade sobre o exército propriamente, mas dependendo da ocasião, o califa poderia lhe conceder autoridade sobre este, já que nessa época, o exército abássida, consistia num exército menor e de defesa, não um exército conquistador como na época dos omíadas. Já o poder judiciário ficava ao encargo dos juízes (qadis), os quais cuidavam das justiça religiosa, civil e estatal, sendo ajudados pelos adil (homem justo) e os velhos sábios (ulamá).

Tendo estabilizado o Estado abássida, até o final de sua vida, al-Mansur ainda continuaria a ter problemas com os kharidjitas ibaditas. Veio a falecer em 775, sendo sucedido por seu filho Al-Madhi (745-785) o qual enfrentou várias revoltas contra os xiitas, kharidjitas e uma rebelião de militares em Bagdá, mas o ponto mas marcante dessas revoltas fora a tentativa de Al-Muqqana "o Profeta Velado", ocorrida na província de Jurassão em 758, onde esse homem, dizia ser o novo profeta de Alá e califa por direito. Ainda no mesmo ano a revolta fora sufocada e o "Profeta Velado" fora morto.

Seu sucessor Al-Hadi acabou sendo morto em uma nova rebelião ocorrida em Bagdá entre 785-786, sendo sucedido por seu irmão Harun al-Rashid (766-809), chamado de "o Justo" e também conhecido como o "califa das Mil e Uma Noites". Dentre os califas abássidas, Harun al-Rashid é o mais conhecido principalmente pelo fato de ter se tornado uma personagem das Mil e Uma Noites, histórias que introduziram o "exótico" Oriente Médio na Europa, já que o livro mistura histórias árabes, persas e indianas. Nas histórias que aparece, conta-se uma versão caricaturesca e exagerada sua, engrandecendo ainda mais sua pessoa. 

De qualquer forma, al-Rashid realizou em seu governo alguns feitos importantes: ele investiu no desenvolvimento da educação e das artes, transformando Bagdá em um centro não apenas comercial e político, mas cultural; firmou acordos com a basilissa (imperatriz) bizantina Irene, pondo fim a hostilidades entre os dois impérios; também recebeu a embaixada do rei franco Carlos Magno (742-814), comprometendo-se a não voltar a tentar invadir a França ou continuar com as lutas ali travadas; reconheceu em 799 o Emirado dos Aglábidas, dinastia que passou a governar grande parte dos domínios na África, tendo perdurado de 800 a 909, ao mesmo tempo, no Marrocos, encontrava-se o Emirado de Tahert


O califa Harun al-Rashid recebendo a embaixada de Carlos Magno.
Em 803, al-Rashid pôs fim ao domínio da família Barmecida, os quais assumiam o cargo de vizir hereditariamente desde 746, passando tal família a deter grande poder no califado. Entretanto, não se sabe ao certo o motivo pelo qual o califa, decidiu acabar com os Barmecida.

Embora, tenha procurado manter a paz no império, várias revoltas dos kharidjitas, xiitas e de outros povos, especialmente ocorridas na Pérsia, levaram a várias lutas ao longo de seu reinado, até que em 809, o próprio califa acabou sendo ferido enquanto comandava as tropas contra uma revolta em Jurassão. 

Com a sua morte, várias revoltas tomaram o império, algumas regiões queriam se proclamar em emirados independentes do domínio abássida. Os califas que os sucederam tiveram que agir com rapidez, astúcia e força para evitar a fragmentação do império. Durante o governo do califa Al-Ma'mum (813-833) este criou o exército dos Mamelucos (escravos), assim, foram recrutados escravos árabes, turcos, africanos e europeus para formarem esse exército do califa, a fim de dissipar os focos de revolta que tomavam o califado. 

Em seu governo, o califa também priorizou o desenvolvimento cultural, artístico e letrado, em 830 ele criou a Bait al-Hikma "Casa do Saber", a qual consistia numa espécie de escritório de tradução, biblioteca, academia e observatório. Nessa "escola" o califa incentivou a tradução de vários textos antigos, de origem persa, síria, grega, judaica e indiana. Traduzindo textos que falavam sobre literatura, poesia, medicina, matemática, astronomia, astrologia, geografia, farmacêutica, história, alquimia, etc. Os árabes adaptaram o sistema numérico dos indianos e criaram o sistema arábico, amplamente utilizado nos dias de hoje. A criação do Bait al-Hikma simbolizou o auge do conhecimento islâmico no século IX. A "Casa do Saber" ainda continuaria a existir até o século XIII, quando os mongóis a destruiriam junto com a cidade. No entanto sua criação inspirou outros califas a fazerem o mesmo. Assim foram criadas no Egito, Marrocos, Espanha e Síria, "universidades" similares. 

Após a morte de Al-Ma'mum, seu irmão Al-Mu'tasim (833-847), o sucedeu continuando a ampliar o exército dos Mamelucos e a combater as revoltas internas que ameaçavam o império. Al-Mu'tasim chegou ao ponto de ter que deixar Bagdá em 836 e se mudou para Samarra ao norte, acerca de 100 km de Bagdá, a fim de fugir das ondas de rebeldia que tomavam a capital. 

Seu ato complicou ainda mais sua relação como seu povo, o qual o via como um covarde que abandonou a capital, indo se refugiar entre seu exército de escravos estrangeiros, os qual era formando em grande parte por turcos, os quais de fato foram quem conseguiram garantir a sobrevivência da dinastia pelo anos seguintes.

Em 850, o Império Abássida ainda estava relativamente em seu auge. Nessa época, a cultura, a arte e conhecimento estavam sendo desenvolvidos em várias escolas nas principais cidades do império; não obstante, navegadores árabes já haviam percorrido a costa leste africana chegando a ilha de Madagáscar, e até mesmo já tinham contornado a Índia, o sudeste asiático, chegando a China, e posteriormente provavelmente a Coréia, Japão e Filipinas. O islamismo ainda iria demorar mais alguns séculos para se estabilizar em algumas dessas regiões, mas o século IX marcou o fim das grandes expedições islâmicas, sendo que nos séculos seguintes, a religião se propagou mais lentamente, através principalmente do comércio do que propriamente da conquista ou de missões.


Os domínios islâmicos na época do Califado Abássida em 850.
Quando o califa Al-Mutawakkil (847-861) subiu ao poder, o conseguiu graças ao apoio dos chefes turcos que formavam seu exército de mamelucos, embora que fora um desses chefes que o assassinou em 861. Após o governo de al-Mutawakkil as revoltas ainda se mantiveram, e foram proclamados novos emirados pelo império: Emirado dos Samânidas (874-999), Emirado dos Tahiridas (821-873), o único ainda derrotado no século IX; Emirado dos Safáridas (873-908) e Emirado dos Zaydies (897-1018). Os três primeiros emirados se encontravam na porção oriental do império, compreendendo hoje, territórios como Irã, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Quirguistão. Quanto ao quarto emirado, esse se estabeleceu no que hoje compreende o Iêmen.

Ainda no governo de al-Rashid, o império embora com seus problemas internos, era vasto e próspero, sendo um dos impérios mais ricos do mundo na época. Porém, no final do século IX, era visível a decadência dos abássidas. No século X rupturas ainda maiores surgiriam, fragmentando ainda mais o califado.

Em 909, Abu Abdallah o qual havia se proclamado descendente de Fátima e Ali, tomou a cidade de Rakkada, capital do Emirado dos Aglábidas na África, assim ele pôs fim ao domínio da Dinastia Aglábida e proclamou o Califado Fatímida, o qual nos anos seguintes se espalhou pela África do Norte, indo do Magreb ao Egito, o qual fora conquistado em 969. Abu Abdallha também desenvolveu o culto a Ismael, suposto descendente do Profeta. Seus seguidores passaram a serem chamados de ismaelitas, e se espalharam por algumas partes do império. Entretanto, o culto era considerado herético, já que apenas Alá deveria ser adorado e mais ninguém.

O general Djawar ordenou a construção de uma nova cidade no Egito, a qual se tornaria a nova capital do califado, tal cidade fora batizada de al-Qarihah "a vitoriosa", fundada próxima a antiga Fustat dos Omíadas. Posteriormente, al-Qarihah e Fustat se fundiriam e formariam a atual CairoO poder dos Fatímidas cresceria nos anos seguinte, chegando até mesmo a governar a Síria e parte da Arábia.


O Califado Fatímida (909-1176) em sua máxima extensão.
Ao mesmo tempo, enquanto os fatímidas tomavam o controle da África, na Ibéria, o emir Abd al-Rahman III em 929 proclamou-se califa de Al-Andalus, instituindo o Califado de Córdoba, o qual perdurou até 1031


O Califado de Córdoba no ano 1000.
Assim, ao longo do século X, os abássidas testemunharam sua decadência avançar cada vez mais; perderam a África para os fatímidas e a Ibéria para os omíadas, e para completar, as revoltas e as tentativas do emirados de se emanciparem ainda continuavam, e ao mesmo tempo, pelo fato de os fatímidas serem xiitas entraram várias vezes em conflito contra os abássidas que eram sunitas.
A grande Mesquita de Córdoba, Espanha. Representou o auge do Califado de Córdoba (929-1031). Hoje a mesquita é a Catedral de Córdoba.
Ainda no século X, várias pequenas dinastias se formaram pelos domínios abássidas, chegando ao mesmo tempo a dividir o domínio da região com esses. A ruptura, fora mas marcante em 934, quando Ali ibn Buya (891-949) de origem perso-turca, mas já ingressado no Estado abássida, se uniu com dois irmãos seus, para derrotar a revolta de um general turco. Com a derrota desse, Buya formalizou um pacto com o califa al-Radi, o qual este se manteria com seu título e suas propriedades, mas passaria a ter um papel figurativo no poder, al-Radi, sabendo que o general Buya possuía grande prestígio entre o exército e os governadores, aceitou o pacto, assim surgiu a Confederação Buyida, também chamada as vezes de Império Buyida

"Entrementes, os desafortunados califas abácidas tinham, em 945, passado a ficar sob o domínio dos Buwayhids, rústicos montanheses do norte da Pérsia, que eram xiitas moderados". (KIRK, 1967, p. 52).


Domínios da Dinastia Buyida em 970, quando alcançou sua máxima extensão.
Para alguns historiadores, a submissão do califa abássida al-Radi ao general turco Buya, marcou o fim do império abássida, resumindo-o a um pequeno califado nominal, já que os califas que o sucederão eram submissos a autoridade dos sultões buyidas, assim como passaram a se proclamarem. Curiosamente, originalmente a palavra sultão significava "autoridade", "força", logo dá para se ter uma noção do porque os mesmos assim se chamarem. Em 936, o califa al-Radi, pôs fim ao cargo de vizir e criou o cargo de grande emir, o qual era na realidade bem semelhante ao primeiro, a diferença, era que o grande emir detinha autoridade e controle sobre o exército. Os grandes emires em muitos casos foram os verdadeiros senhores abássidas, detendo o poder, do que os califas em si. 

Com a queda dos buyidas do poder, uma nova dinastia os substituiu, a Dinastia dos Gaznávidas, estabelecida na cidade de Ghazni, hoje no Afeganistão. Fundada por Sebuk Tingin em 963, a dinastia tomou o poder em 975, chegando ao seu apogeu sob o governo de Mahmud de Ghazin (971-1030), o qual governou de 997 até a sua morte. A dinastia ainda se manteria no poder até 1187, controlando os califas abássidas. Nessa época, Ghazin seria a cidade mais rica do império e muito mais próspera do que a decadente Bagdá dos abássidas.

Domínios do Império Gaznávida (975-1187).
No lugar dos Gaznávidas uma dinastia de origem turca estabelecida em Bucara, cresceu rapidamente no início do século XI, tal dinastia era chamada de Seljúcida, em referência a um líder chamado Seljuque que estabeleceu sua tribo em Bucara. A dinastia turca Seljúcida se tornara o novo senhor dos abássidas e das outras pequenas dinastias que iam da Síria ao Paquistão. Em 1071, os turcos seljúcidas conquistaram Jerusalém, e já haviam conquistado grande parte da Ásia Menor (hoje Turquia). Em 1187, puseram fim definitivamente aos gaznávidas, embora que o império turco sobreviveria por mais alguns poucos anos, antes de ser derrotado também. Com a queda dos turcos, os abássidas recuperaram certa autoridade e influência especialmente no Iraque e outras pequena dinastias surgiram, antes de serem sublevadas pela onda mongol que chegaria no século seguinte. 

"Mas quando uma civilização começa a ruir, a deterioração não se processa de maneira uniforme em todos os setores de suas atividades; e, tal como no corpo humano doente, a deterioração pode, realmente, ser disfarçada por algum tempo, mediante o estímulo ativo de certas funções". (KIRK, 1967, p. 52). 

O século XII fora marcado pelo fim dessas dinastias e a ascensão de outras; pelas Cruzadas que disputavam o controle da Terra Santa, da Síria e do Egito; pela expansão islâmica na África e na Ásia, já que embora o mundo islâmico estivesse fragmentado em vários Estados, esses Estados deram continuidade a pregação do Islão.

No século XIII, uma poderosa força assolaria os domínios muçulmanos, estes eram os mongóis. Em 1258, Hulagu Khan conquistou e destruiu Bagdá, pondo fim ao califado abássida e outros governos islâmicos na região, embora que alguns mongóis houvessem já se convertido ao islamismo nessa época, Hulagu apoiava os cristãos. Embora com a destruição da cidade, os abássidas ainda continuaram a existir como dinastia e a se manterem em certos cargos no novo Estado mongol até o ano de 1299.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fim da expansão e a fragmentação do mundo islâmico

Definir uma data exata para o fim da expansão ainda não é unanime, dependendo dos historiadores e dos motivos que eles apoiam e argumentam, o que se chama de expansão islâmica, ou seja a pregação do Islão, teria para alguns sido realizada no século VII e VIII, com Mohammed e os califas que o sucederam, nos califados de Rashdun e Omíada. 

Porém, outros historiadores como Robert Mantran, argumenta que a expansão se processou até o século XI, quando visivelmente o Califado Abássida se tornou um Estado vassalo, e os demais Estados e governantes estavam mais interessados em conquistar seus vizinhos do que levar a palavra de Alá para terras distantes. Sob essa óptica, Mantran defende também a fragmentação do mundo islâmico como um dos fatores para o fim dessa expansão, já que os califas e sultões passaram a se interessarem mais por política, riqueza e poder do que pela fé. Tal fato é evidente na Ibéria, onde após a queda dos omíadas, vários pequenos Estados muçulmanos passaram a se digladiarem pelo poder, ao mesmo tempo que os cristãos tentavam expulsá-los da península. Tal período ficou conhecido como Reconquista

O mesmo fora visto na África do Norte com o Magrebe, Líbia e Egito, posteriormente na Síria, Arábia, e no restante dos domínios islâmicos. Mantran aponta que durante o governo dos Omíadas, seus califas souberam manter a unificação de seu império, habitado por vários povos e culturas antigas, porém os Abássidas não conseguiram manter essa ordem, e as diferenças religiosas entre sunitas, xiitas e kharidjitas se tornaram mais marcantes; as diferenças culturais e ideológicas também pesaram para que os persas se revoltassem contra os iraquianos, os árabes contra os sírios, e os cristãos e judeus contra os muçulmanos. 

Embora o Islão e a língua árabe ligassem esses povos, não havia um reconhecimento mútuo acerca do governante, daí o surgimento de emirados, califados e sultanatos. O mesmo também defende tal data, pelo fato de que nesse período os árabes haviam perdido a hegemonia sobre o império islâmico, o qual se encontrava nas mãos do sírios, turcos, iraquianos, persas, berberes, egípcios, etc. 

Mas, se por um lado Mantran defende que a expansão se findou no século XI, outros dois historiadores, Miquel e Kirk, defendem que a expansão continuou mesmo com tais problemas e fatos já mencionados, continuando mesmo que de formas e velocidades diferentes pela África e Ásia até o século XVI, propriamente quando a Dinastia Otomana chegou ao poder, no caso de Miquel esse aponta o ano de 1591, quando os otomanos se encontravam no auge do império, possuindo domínios no que hoje é o sul da Rússia e ocupando territórios na Europa Oriental, embora que após a perda desses territórios, o islamismo não conseguiu se manter propriamente, sendo substituído pelo catolicismo ortodoxo.

Se tomarmos por esse lado, os Mamelucos fundaram dois califados no século XIII, um no Egito, onde o mesmo existiu até o ano de 1517, e outro na Índia, onde perdurou até 1290. Ainda na Índia, surgiu o Sultanato de Deli (1206-1526) e outros sultanatos menores na costa oeste da península até o século XVI. No lugar de ambos, surgiu o Império Mogol, o qual tinha como religião oficial, o Islão e carregavam como herança histórica o legado do Império Mongol

O islamismo também marcou presença na Malásia, onde ainda hoje alguns de seus governantes se chamam de sultões; se instaurou no sul da China, na província de Cantão (Guangzhou), embora assim como o cristianismo lá, ambos não possuem tanta influência como o Taoismo e o Budismo. Estabeleceu raízes nas ilhas de Sumatra e Java, hoje pertencentes a Indonésia, o qual por sinal é o país com o maior número de muçulmanos no mundo. 

Se formos para a África ainda entre os séculos XI e XVI, o islão atravessou as rotas caravaneiras do Saara, chegando aos impérios de Gana, Mali, Songhai entre outros; cruzou a Núbia, chegando a Abissínia (Etiópia) e posteriormente a Somália, embora que em ambos os países, ele tenha dividido espaço com uma grande população cristã copta. Na costa leste africana, várias das grandes cidades-Estados já possuíam no século XIII mesquitas, e a nobreza se vestia a moda árabe e alguns de seus líderes se chamavam de sultões. 


Distribuição de muçulmanos por país em 2008
Em minha opinião, divido a expansão islâmica em cinco momentos: A primeira, tendo ocorrido durante a pregação de Mohammed, mas especialmente começando a partir da Hégira e indo até o final da sua vida. Nesse caso, a primeira fase transcorreu entre 622 a 632.

A segunda fase, vai do início do Califado Rashidun até o final do Califado Omíada, período que compreende 632 a 750, data que para alguns historiadores marca a era dourada do islã. 

A terceira fase, compreende o início do Califado Abássida até o século XII, quando o califado Abássida já se encontra como Estado vassalo, e outros califados, emirados e sultanatos compõem o fragmentado mundo islâmico.

A quarta fase vai dos séculos XIII ao XVII, compreendendo as expansões islâmicas pelo interior da África, Índia, Indonésia e parte da Europa Oriental. Porém com a decadência do Império Otomano, a expansão fica estagnada por vários anos, não apenas nos domínios otomanos mas em outros locais do mundo.

A quinta fase, é a atual, que vai propriamente do século XX até os dias de hoje. 

Não obstante, escolhi realizar esse trabalho baseando meu foco no recorte temporal entre os séculos VII ao XII, no que refere-se as duas primeiras fases como havia me referido.

A respeito do Islão hoje, sua expansão como já fora dito ainda continua, embora tenha reduzido de 2006 para cá, onde no ano de 2006, o número de muçulmanos ultrapassou o de cristãos no mundo. Entretanto especialistas, apontam que daqui a uns vinte anos, a população de muçulmanos no planeta poderá passar dos 2 bilhões de indivíduos, já que embora tenha caído a proporção do número de novos adeptos, a religião se espalha rapidamente pela África e Ásia, e curiosamente, os países com o maior número de muçulmanos, não são países de origem árabe propriamente.

NOTA: Abu Becre era pai de Aisha (616-678), a qual fora a terceira esposa de Mohammed, considerada a preferida dele depois de Khadidja. Com ela, o profeta tivera um filho, mas este morreu ainda na infância.
NOTA 2: Algumas histórias falam que quando Mohammed se encontrava morando com seu avô Mutalib, num certo dia, enquanto estavam na rua, um monge cristão teria chegado para o seu avô e perguntado sobre Mohammed, o avô achou aquilo estranho, mas o monge lhe dissera para manter o menino sã e salvo, por que esse viria a ser um profeta de Deus. 
NOTA 3: A sexta-feira é o dia santo dos muçulmanos, assim como sábado (sabá) dos judeus e o domingo para os cristãos. 
NOTA 4: Entre os muçulmanos, mostrar a sola dos calçados é falta de educação, nesse caso, não se deve cruzar as pernas de forma que o pé fique na horizontal o a sola a mostra. Dependendo, recomenda-se que nem ao menos cruze as pernas.
NOTA 5: O jejum (çawm) praticado durante o mês do Ramadã, possui algumas exceções: crianças estão isentas do jejum até alcançarem a adolescência, no caso das mulheres quando menstruar a primeira vez; gestantes, lactantes e/ou pessoas que estejam muito doentes ou com a saúde frágil, estão isentas do jejum.
NOTA 6: Os muçulmanos são convocados para orarem através do Adhan, uma convocação cantada, proferida dos minaretes (as torres das mesquitas) ou de algum local alto da mesquita. 
NOTA 7: O Calendário Islâmico, é um calendário lunar, logo ele possui menos dias, sendo num total de 354 dias o ano nesse calendário. 
NOTA 8: Alguns grupos mais radicais de hoje, dizem que estão realizando uma nova jihad, no entanto, tal preceito que estes grupos defendem se baseiam e uma tendência bélica e violenta, algo diferente do que fora concebido originalmente por Mohammed. 
NOTA 9: Além dos sunitas, xiitas e kharidjitas, os três grandes grupos do Islã, existe um quarto, o Sunismo, o qual segue uma vertente mais contemplativa e filosófica do que os demais. 
NOTA 10: No século IX e X o Emirado de Córdoba chegou a ser atacado pelos vikings, os quais saquearam algumas cidades, como fora o caso de Sevilha
NOTA 11: Historiadores árabes do século X e XI, falam a respeito do comércio feito com os vikings no Mar Cáspio e que uma expedição teria chegado a cidade de Bagdá. 

Referências Bibliográficas:
MANTRAN, Robert. La expansión musulmana (siglos VII al XI). Barcelona, Editorial Labor, S. A, 1973. (Coleção: Nueva Clio: la historia y sus problemas). 
MIQUEL, André. O Islame e a sua civilização: séculos VII-XX. Tradução de Francisco Nunes Guerreiro. Lisboa/Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1971. 
KIRK, George E. História do Médio Oriente: Desde a Ascensão do Islã até a Época contemporânea. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967. (Capítulo II: Ascensão e Declínio da Civilização Muçulmana (610-1517). 
WELLS, H. G. História Universal - vol. 3, Tradução de Anísio Teixeira. São Paulo,  Editora Egéria S. A, 1966. (Capítulo XXX: Maomé e o islamismo). 

Links relacionados:
Os Mongóis
Os Bizantinos
Cristianismo Copta
África Dourada: Tomboctu, Zanzibar e o Grande Zimbábue

LINKS:
Adhan - chamado para a oração (vídeo)
Centro Islâmico no Brasil (CIB)
Alcorão online em português
Islamismo - matéria pela BBC (em inglês)
http://www.islamismo.org/