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Leandro Vilar

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Li Ching-Yun: o homem que viveu mais de 250 anos?

"Manter o coração calmo,
sentar como uma tartaruga,
andar alegre como um pombo
e dormir como um cão".
Li Ching-Yun

Introdução:

Os relatos sobre vidas seculares não é algo recente, desde os tempos antigos encontramos relatos que contam-nos a respeito de pessoas (principalmente homens) que viveram mais de duzentos, trezentos, quinhentos, setecentos e oitocentos anos. Se tomarmos o Livro do Gênesis na Bíblia e no Torá, o qual foi escrito por Moisés como atesta a tradição judaica, o profeta já nos contara no Gen. 5:1-32 o nome de vários homens descendentes de Sete, terceiro filho de Adão e Eva até chegar a Noé. Todos estes homens viveram centenas de séculos, o próprio avô de Noé, Matusalém é dito ter sido o homem que viveu mais tempo na história, tendo vivido 969 anos. O próprio Noé teria vivido 950 anos. 

Mas, não é apenas nesses livros sagrados que encontramos essas datas seculares, se retrocedermos no tempo até a Suméria no sul da Mesopotâmia, o Livro Real Sumeriano (escrito por volta do século XXIV a.C) nos traz a datação do reinado de alguns reis antes do dilúvio e após este. Antes do dilúvio, os reinados se estendiam por milênios, após esse catástrofe os reinados desceram para a casa dos séculos e das décadas, mas um ou outro ultrapassava os mil anos. O famoso semilendário rei de Uruk, Gilgamesh é dito que teria governado por 123 anos. O problema destes relatos além de serem considerados lendários, não se sabe ao certo como era feita a datação, será que esses vários séculos seriam de uma única pessoa, ou representaria a soma do reinado de vários reis que governaram com o mesmo nome?

Alguns imperadores chineses temendo a morte, ordenaram que seus alquimistas procurassem fabricar o elixir da longa vida ou imortalidade. O primeiro imperador da China, Qin Shin Huang Di (260-210 a.C) foi um desses soberanos que procuraram pelo segredo da imortalidade. A medida que caminhamos através da História, voltamos a ouvir relatos de anciãos que ultrapassaram os cem anos, vivendo em locais na África, Ásia e Américas.

A Fonte da Juventude, lenda procurada pelos exploradores da Idade Moderna, motivou nobres e plebeus a se aventurar até o Novo Mundo atrás dessas águas milagrosas que garantiriam rejuvenescimento e prolongariam a vida. Na Idade Média e Moderna havia supostos elixires que prolongariam a vida e restaurariam a juventude e a beleza. A alquimia europeia nessa época procurou criar tais elixires e até mesmo fabricar a Pedra Filosofal, embora tal pedra transformaria metais comuns em ouro, mas alguns diziam que poderia fabricar o elixir da imortalidade. 

Quando chegamos na Europa do século XVIII, em plena fase do Iluminismo, um misterioso homem deu o que falar em alguns países. Ele era conhecido como Conde de Saint-Germain. Diziam que era alquimista, ourives,  artista, filantropo, um homem bastante inteligente e sábio e conhecia segredos antigos, aprendidos em viagens feitas a Índia. Dizia-se que o Conde era mais velho que aparentava e supostamente ele envelhecia de forma lenta. Embora alguns relatos atestem que ele teria morrido ainda no século XVIII, há relatos de pessoas que dizem terem visto o Conde no século XIX e XX. Algumas pessoas disseram que o Conde sabia contar histórias com riquezas de detalhes, que parecia que ele havia testemunhado tais acontecimentos ou vivido naquelas épocas.

O longevo Li Ching-Yun

Depois dessa breve introdução mostrando que a busca para prolongar a vida e até mesmo recobrar a juventude, a beleza e se conquistar a imortalidade é algo antigo na História, assim como relatos de pessoas que teriam vivido bastante tempo. Mas no caso desse chinês chamado Li Ching-Yun ou Li Ching-Yuen o que o fez se tornar uma figura curiosa e misteriosa? Na China e no Oriente, o consideram como tendo sido a pessoa que mais tempo viveu segundo provas documentais. 
Foto de Li Ching-Yun (1927?), o homem que teria vivido 256 anos. 
Em 1933 a Revista Time (Time Magazine) publicou um artigo intitulado Tortoise-Pigeon-Dog (Tartaruga-Pombo-Cachorro), onde nesse artigo contava a respeito de um misterioso chinês que teria vivido 256 anos, tendo se casado 23 vezes e tido mais de 180 filhos. A matéria havia sido escrita pelo professor Wu Chung-chieh o qual interessado na vida desse respeitado e velho homem teria descoberto documentos datados de 1827, os quais parabenizavam Li Ching-Yun por seus 150 anos. Na época que Wu realizara essa pesquisa, Li ainda estava vivo, pois ele morreu em 6 de maio de 1933 de causas naturais. No entanto, Wu não conseguiu conhecê-lo, mas ficou sabendo que o velho homem dizia ter nascido em 1736, tendo morrido aos 197 anos. 

Contudo, Wu Chung-chieh continuou a investigar o passado desse velho mestre taoísta e herbalista, e chegou a data que Li teria nascido em 1677 em Qi Jiang Xian na província de Szechuan. Seria que Li teria se esquecido do ano que teria nascido? Sim, isso é possível, todavia não corrobora que ele teria vivido tanto tempo assim, mas seguimos com a explanação. 

No livro Ancient Secrets of Youth escrito por Peter Kelder, o qual contou com o depoimento do mestre de Tai Chi Chuan, Da Liu o qual foi discípulo de Li, revelara alguns detalhes da vida desse velho homem e como ele teria chegado a essa longeva idade bicentenária. Neste livro, Kelder procurou ensinar formas saudáveis para se seguir ao longo da vida, a fim de ter uma boa saúde, disposição e longevidade. 

Os relatos nos conta que a partir dos dez anos de idade Li começou a colher ervas medicinais e a aprender a cultivá-las. Anos depois viajou pela China até se mudar para Kai Hsien onde conhecera mestres taoistas que começaram a lhe ensinar os Tao e alquimia. Foi a partir dessas práticas alquímicas e da Medicina Tradicional Chinesa, que Li começou a doutrinar seu corpo e mente, passou a fazer exercícios físicos com regularidade, passou a praticar meditação, aprender filosofia, medicina, etc., a ter uma alimentação saudável e saber usar plantas medicinais. Dizia-se que ele realizava sua alimentação em horários regulares, dormia cedo e acordava cedo, e não consumia bebidas alcoólicas e nem fumava.

Ele aprendeu a arte do chi kung, a qual se dizia de como manter uma boa saúde e prolongar a vida. Alguns relatos do depoimento de Da Liu dizem que Li teria conhecido um velho mestre de chi kung o qual lhe ensinara o pa-kua, na época Li já estaria com seus 130 anos. 

Os hábitos de vida de Li podem muito bem ter contribuído para prolongar sua vida, contudo não são certeza de terem possibilitado ele chegar a essa idade bicentenária. Os médicos recomendam que tenhamos uma dieta balanceada,  pois comer muito não significa ter boa saúde, pois se comermos apenas determinados tipos de alimentos, mas esquecermos de comer outros que contenham nutrientes essenciais, acabaremos engordando, ficando com anemia ou desenvolvendo alguma doença. Os nutricionistas recomendam que consumamos calorias adequadas aos nossos esforços diários e estilo de vida, logo, um atleta não terá a mesma alimentação de uma pessoa que trabalha num escritório, passando horas sentado; assim como um pedreiro, não poderá ter a mesma alimentação de um motorista de ônibus, que também passa o expediente sentado; o consumo calórico é diferente, mas em ambos os casos as pessoas devem manter uma boa alimentação.

Não sabemos se Li era totalmente vegetariano ou consumia carne de peixe ou de aves, mas é provável que tenha abolido a carne vermelha de sua dieta. Mas, pelos relatos, sabemos que ele consumia muitas plantas e raízes, assim como bebia muito chá, como além de água e provavelmente deveria consumir leite e até mesmo queijo e coalhada, pois os mesmos ajudam na manutenção do cálcio para os ossos. 

Contudo, os relatos nos apontam que Li foi um dos primeiros a dá atenção ao consumo de duas plantas: a fruta goji (Lycium barbarum), chamada na China de gou qi zi e da planta gotu kola (Centella asiatica) conhecida por lá como fo-ti-tieng, a qual se produz chá. Essas duas plantas são ricas em nutrientes, algo que Li chamava a atenção pois consumi-las garantia adquirir as quantias necessárias para determinados nutrientes, os quais em outros alimentos ou se encontravam de forma escassa ou inexistiam.

A goji é conhecida por ser uma fruta rica em aminoácidos contendo pelo menos 18 deles, além de possuir 21 minerais dentre eles, ferro, zinco, cálcio, germânio, selênio, fósforo, etc. Ela também é rica em beta-caroteno (possuindo tal substância em maior quantidade do que as cenouras), possui grande quantidade de vitaminas C, B1, B2, B3 e E, além de possuir 8 tipos de polissacarídeos que beneficiariam no fortalecimento do sistema imunológico. Na Medicina Tradicional Chinesa tal planta é amplamente recomendada para o consumo, principalmente na velhice. Hoje tais plantas são exportadas para outros cantos do mundo, e pesquisas médicas realizadas nas últimas décadas atestam os benefícios do consumo dessa planta que há séculos é consumida na China. 
Goji (Lycium barbarum) recém colhidas. 
Acerca da segunda planta o gotu kola ainda está sendo pesquisada, embora que no Ocidente tenha aumentado seu consumo, principalmente através de medicamentos com base natural. Em algumas farmácias especializadas, pode-se encontrar frascos com extrato de gotu kola. Na Ásia tal planta é conhecida e cultivada é vários países, de forma que é utilizada na culinária e na medicina. No campo da medicina tal planta foi utilizada para se tratar diversas doenças e males, embora que hoje não se tem certeza da sua total eficácia contra alguns destes males, mas sabe-se que o gotu kola possui propriedades cicatrizantes e de fortalecimento imunológico. Tal planta pode ser consumida crua, ou misturada em sucos, saladas, fazer-se chá, etc.


Vaso com gotu kola (Centella asiatica).
No Ocidente usa-se tal planta para se tratar problemas de varizes, insuficiência venosa, tratamento de ferimentos leves, tratamento de problemas de ansiedade, insônia, esclerodermia, etc. No entanto a Universty of Maryland Medical Center aconselha que o gotu kola não deverá ser consumido em caso da pessoa ter problemas de fígado, problemas de pele ou estar com câncer, pois alegou-se que tal planta poderia "curar" câncer, mas as pesquisas ainda não comprovaram tal veracidade. O gotu kola pode ser consumido em chá, sucos, misturado a saladas, raspado até virar um pó e acrescido em molhos, temperos, sopas, leite ou ingerido em cápsulas. 

Somando-se essa boa alimentação que Li Ching-Yun teria, havia o fato do mesmo praticar exercícios físicos regularmente além de praticar meditação, para manter o cérebro saudável. O sedentarismo e a falta de exercícios nos dias de hoje é um problema que a sociedade contemporânea enfrenta. A vida agitada nas cidades nos retira tempo para dedicarmos a cuidar de nossa saúde e de nossos assuntos privados. Além disso, soma-se a questão da preguiça para se exercitar ou praticar esportes. E por fim um terceiro elemento que entra nessa equação é que no Ocidente em geral pratica-se atividades físicas mais por uma questão estética do que uma questão de saúde, é claro que nem todo mundo pensa assim, mas muitos o pensam. 

Na China, a prática de exercícios é uma tradição secular, fosse estando relacionada ao treinamento militar ou para a saúde. Para os chineses praticar exercícios é adquirir força, resistência, disposição, bem-estar, disciplina, concentração e alegria. Em algumas cidades chinesas, vemos adultos e idosos se exercitando nas praças, muitos se divertindo em fazer aquilo. Os gregos antigos também foram um povo que valorizava o esporte e as atividades físicas. Exercitar-se com regularidade era algo que fazia parte do currículo escolar e da cultura grega, embora os gregos dessem também atenção ao lado estético da boa forma corporal. 

No caso da meditação esse é outro ponto a ser avaliado. Os relatos nos falam que era dessa forma que Li mantinha suas faculdades cerebrais saudáveis. No passado pensávamos que quando chegássemos a velhice, deveríamos descansar, nada de fazer exercícios físicos e ficar pensando muito. Hoje a medicina nos aponta o contrário, é na velhice que devemos nos preocupar mais com atividades físicas e mentais, pois o corpo estar em estado de deterioração, e isso nos leva a redobrar os cuidados com o mesmo. Além da meditação, outras formas de manter a atividade cerebral é: ler, escrever, conversar, viajar, contar, estudar, ver televisão, navegar pela internet, jogar, ouvir música, cantar, tocar, praticar esportes, etc. Tais hábitos contribuem para diminuir a perda da velocidade de raciocínio e aprendizado, e podem manter ativa a memória e a lucidez. 

Além de se exercitar e meditar, o mestre também realizava exercícios de respiração. Em algumas artes marciais ensina-se algumas técnicas de respiração para ajudar no bom funcionamento do sistema respiratório. O monge Lobsang Rampa (1910-1981) em alguns de seus livros recomendava uma série de exercícios respiratórios que não apenas ajudariam no sistema respiratório  mas circulatório, na parte muscular do ventre, etc. 

No âmbito de se alimentar em horário regulares e dormir cedo para acordar cedo, pesquisas apontam que isso contribui para o bem-estar. Não ter um horário definido para fazer as refeições, leva o organismo a sentir mais fome, e consequentemente acabar se comendo mais ou optar por lanches. No caso do Ocidente, é comum acabarmos optando por comer fast-food ou consumir comidas congeladas, que colocamos no microondas. O problema desses alimentos é que em geral os fast-food são bastante calóricos, gordurosos e pouco nutritivos (há exceções) e acerca das comidas congeladas, diz respeito aos produtos químicos usados para conservá-la.

No caso de dormir, esse é outro problema. Nossas vidas agitadas nos leva ir dormir tarde por causa de ter que cuidar de afazeres domésticos ou de trabalho e estudo, e no dia seguinte levantarmos cedo para ir trabalhar, estudar, etc. O recomendado é dormir-se oito horas diárias. O mestre Li deitava-se cedo para acordar cedo, isso é algo necessário, pois quanto mais tarde for dormir, mais tarde terá que se levantar, mas se quebramos essa delimitação de oito horas, isso gera problemas de saúde: insônia, sonolência, impaciência, preguiça, falta de apetite, dores musculares, raciocínio lento, etc. Os meus avós maternos tem o hábito de dormirem cedo e se levantarem cedo. Meu avô fará 84 anos em breve, e no caso da minha avó paterna ela tem 86 anos.

Por fim, outro fato a ser considerado a partir dos relatos conhecidos, era que o mestre não consumia bebidas alcoólicas e nem fumava. Estes dois produtos geram sérios problemas de saúde. O grande problema não é consumir bebidas alcoólicas, mas é a embriaguez, a qual poderá levar a pessoa a desenvolver o alcoolismo, e o alcoolismo é uma doença. 

A embriaguez atesta o estado que o organismo está saturado de álcool, e a constância disso levará a problemas no fígado, estômago, pâncreas, rins, sistema circulatório, coração, além de afetar o cérebro, retardando as capacidades motoras, os reflexos e o raciocínio; como também gera problemas sociais. Se as pessoas bebessem sem se embriagar não teríamos alcoólatras, acidentes automobilísticos, crimes, etc. Infelizmente a sociedade ainda está atrasada nessa questão.

Quanto ao fumo, esse pode desenvolver o tabagismo, ou seja a dependência do consumo de tais substâncias. No caso do cigarro, charutos, etc., a grande quantidade de elementos químicos que o compõem, geram não apenas danos ao sistema respiratório, mas afetam o sistema circulatório, cardiovascular, digestivo, imunológico, neurológico, etc. Meu avô materno por algumas décadas fumou, até que ele teve um problema pulmonar e o médico foi bem claro para ele: "ou o senhor para de fumar, ou não irá viver mais tempo". Meu avô paterno morreu por decorrência de problemas cardiovasculares devido ao grande consumo de cigarros. 

Já adulto, Li passou a comercializar plantas medicinais até que aos 71 anos de idade foi convocado para servir no Exército Provincial de Yeuh Jong Chyi, onde passou a atuar como mestre de artes marciais e conselheiro tático. Posteriormente não se sabe quanto tempo ele ficou no cargo ou para onde foi depois. Além disso, não temos certeza se realmente ele serviu no exército de Yeuh Jong Chyi devido a falta de documentos que corroborem sua presença lá e as datas.

Mas no século XX o general Wu Pei-Fu um dos "senhores da guerra" que governou algumas províncias entre 1916 a 1927 numa fase turbulenta da história republicana chinesa, onde tais senhores queriam retomar a monarquia ou depor a então república, Pei-Fu escreveu sobre o velho mestre Li de quem ouvira falar, admirando suas qualidades e sua longa vida. 

Yang Sen
Em 1927 o general Yang Sen (1884-1977) o qual foi um dos "senhores da guerra", interessado em conhecer esse homem que diziam ter mais de 200 anos, o convocou a sua casa em Wann Hsien na província de Szechuan, terra natal do velho mestre. Na ocasião da visita de Li, tiraram sua foto, a qual pode ser vista mais acima neste texto. O general ficou surpreso ao conhecer esse homem, segundo seu relato e pela foto, dizia-se que Li não aparentava ter nem 70 anos de idade e do que dizer mais de 200 anos. Além disso o general relatara que esse homem bicentenário tinha uma boa visão, passadas rápidas, tez corada e uma disposição e vigor surpreendentes para uma pessoa da idade que se dizia ter. Outro aspecto eram suas longas unhas, como se pode ver na foto. Tais características foram escritas pelo general Yang Sen num relato que ele chamou de: Um relato factual sobre o "homem de boa sorte" de 250 anos

O general nos conta também que o velho mestre dizia que um dos segredos para sua longa vida era: manter o coração calmo, ou seja evitar se enraivecer e no caso dos dias de hoje, evitar o estresse; sentar como uma tartaruga, andar alegre como um pombo e dormir como um cão. Esses três últimos aspectos são complicados de se compreender, pois os mestres chineses sempre gostaram de falar em metáforas.

Tartarugas não se sentam, pelo menos nunca vi nenhuma fazer isso. A forma física das tartarugas não as permitem fazê-lo, mas como eu havia dito. Contudo, acredito que o mestre quis dizer que "sentar como uma tartaruga" seria sentar com a postura correta. A carapaça das tartarugas não as permitem dobrar o corpo, logo não deveríamos nos sentar curvados, mas retos. Dores de coluna e nas costas são males que afligem grande parte da população mundial, e muitos ocorrem devido a má postura ao se sentar e até em se deitar. 

No caso dos pombos, eu já vi tais aves andando, eles andam com passadas regulares e bem pisadas. Além disso andam com as cabeças sempre eretas, sem olhar para o chão, e se movimentam com os peitos estufados. Aqui podemos entender que deve-se manter uma boa postura, e andar com confiança, pois acredito que o mestre achasse o andar dessas aves algo peculiar e engraçado, daí ele dizer "andar alegre como um pombo". Também podemos entender essa metáfora como forma de se dizer que devemos levar uma vida com bom-humor, andarmos alegremente e de forma suave, mas constante. Sorrir e gargalhar fazem bem a saúde, algo que o médico americano Patch Adams alega em seu trabalho. Sorrir faz bem ao organismo, desde que não seja de forma forçada. 

A respeito do cachorro, eu já vi vários cães dormindo, eles dormem de diferentes posições, mas sempre procuram ficar numa posição confortável, para manter um sono tranquilo, contudo, em qualquer sinal de barulho estranho, eles rapidamente despertam. Entretanto não sei explicar a metáfora do mestre, pois os cães geralmente não dormem na mesma forma. Seria que ele referiria-se a dormir tranquilamente, mas manter-se em alerta? Ou diria respeito que os cães conseguem dormir facilmente?

Em 2002 Stuart Alve Olsen escreveu o livro Ensinamentos de Qigong de um Imortal Taoista: Os oito Exercícios Essenciais do Mestre Li Ching-Yun. Nessa obra Olsen ensina algumas práticas de chi kung como os Oito Panos de Seda, o qual teria sido ensinada por Li ao general Yang Sen, e esse por sua vez a transmitiu ao mestre de Tai Chi Chuan, Liang Tsung Tsai (1900-2002), o qual a partir de seus relatos, Olsen escreveu parte de seu livro. 

O mestre taoista e de Tai Chi Chuan, Liu Pai Lin (1907-2000) o qual dissera que conheceu Li Ching-Yun e com ele aprendeu algumas de suas artes, mudou-se para o Brasil, e morando em São Paulo foi responsável por introduzir a medicinal tradicional chinesa no país e a difundir o taoismo e o Tai Chi Chuan. Sua academia ainda existe e ainda se ensina algumas das artes do velho mestre Li. 
Mestre Liu Pai Lin foi um dos discípulos de Li Ching-Yun. 
Considerações finais:

Devido a falta de fontes para aprofundar o estudo sobre este caso, isso me causou problemas na hora de poder arguir sobre o assunto, mas irei criticar essas informações até onde pude fazer devido a disponibilidade de material e conhecimento sobre o mesmo.

Primeiramente, se Li Ching-Yun casou-se 23 vezes e teve pelo menos 180 filhos, onde estão seus netos, bisnetos e trinetos? Ele morreu em 1933, é bem provável devido a essa suposta prole, que seus descendentes ainda estejam vivos, mas porque nenhum se manifestou desde a morte do mesmo? Simplesmente esqueceram de seu antepassado que viveu 256 anos? Ou existe algo a mais por trás disso. Onde estão seus parentes para comentar acerca desse assunto?

Segundo, não sabemos ao certo quais os documentos que Wu Chei-Ching procurou e utilizou para chegar as suas conclusões. Embora ele diga que tenha encontrado um "documento" que parabenizava Li pelos seus 150 anos, onde está esse documento hoje? Seguindo ainda essa questão documental, Wu disse que chegou a conclusão que Li nasceu em 1677, embora Li teria dito que nascera em 1736, mas porque dessas discrepâncias de datas? Eu havia comentado que será que o velho mestre bicentenário teria esquecido a própria data que nasceu?

E mesmo que Wu tenha encontrado esse "documento" que provaria o nascimento em 1677, onde exatamente ele encontrou isso? Documentos imperiais são muitos, o império chinês durou por mais de dois mil anos, e o grande problema é que até antes do século XX as nações não tinham costume de realizar censos populacionais e nem armazenar certidões de nascimento, casamento, óbito, batismo, adoção, herança, etc., nem todos os países possuíam cartórios e arquivos, e além disso, num país das dimensões da China e sua vasta população, ainda hoje há pessoas sem documentos civis, do que dizer no século XVII, ainda se considerarmos que quanto mais distante a vila ou aldeia das cidades, isso impossibilitava funcionários do governo para lá viajarem para realizar o levantamento populacional. 

Oficialmente o ser humano que viveu mais tempo, tendo se como base comprovação documental e testemunhas, foi a francesa Jeanne Louis Calment (1875-1997) a qual faleceu aos 122 anos. Jeanne se encontra no Guines Book como a mulher e a pessoa mais velha conhecida. No caso de Li Ching-Yun não temos acesso aos documentos usados por Wu para apoiar seus argumentos, embora sabemos que por testemunhas, Li realmente foi uma pessoa real, embora seu passado e vida seja misterioso ainda. 


Jeanne Calment em seu aniversário de 121 anos em 1996. Até o momento, Jeanne é o ser humano que mais tempo viveu, oficialmente conhecido.
Um problema que envolve a pesquisa documental é que não conhecemos nenhum parente de Li, seja parente morto ou vivo, além disso, os documentos que Wu encontrou poderiam se referir a outra pessoa com o mesmo nome, algo que não é impossível de ter acontecido.

Se tomarmos o âmbito argumentativo da medicina, a medicina ocidental não nos comprova de nenhuma forma a possibilidade de se viver tanto tempo, pois biologicamente o corpo humano não possui condições de viver tanto tempo assim, embora hoje saibamos que a barreira dos cem anos já é possível de ser transposta. Países como Japão, China, Itália e Grécia possuem vários centenários. A alimentação e os hábitos de vida são questões preponderantes para se chegar a tal idade e com saúde. No entanto não nego que o estilo de vida do mestre Li não possa ter contribuído para sua vasta idade, de fato seus hábitos muito bem podem ter contribuído para ele viver bastante tempo, mas dizer que chegou aos 197 anos ou 256 anos, acho algo difícil de ter acontecido. 

Contudo, se algum historiador chinês ou de qualquer outro país, vim ler tal texto, peço que ele ou ela se se interessar por esse assunto vá atrás de descobrir a verdade, investigue, procure os documentos, fontes, relatos, testemunhas, parentes, etc. O próprio Conde de Saint-Germain embora tenha sido citado por várias pessoas e até por jornais, ainda hoje há dúvidas se ele foi um homem ou vários homens que se passaram por ele, ao ponto de se construir uma lenda urbana sobre seu aspecto, saberes e feitos. Teria o mesmo acontecido como o velho mestre Li Ching-Yun, ele teria se tornado uma "lenda" ou seus feitos foram distorcidos ao longo da sua vida? Isso é algo que não temos resposta. 

NOTA: Atualmente o boliviano Carmelo Flores Laura alega ter 123 anos. O governo boliviano está analisando o caso.
NOTA 2: O estilo marcial Jiulong Baguazhang supostamente foi desenvolvido a pelo mestre Li. Isso pode ser até mesmo possível, pois Li era conhecido por ser um mestre em artes marciais além de um mestre em herbologia. 

Referências:

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

50 anos do discurso "Eu tenho um sonho"

Em 28 de agosto de 1963, a exatos 50 anos em Washington D.C, a capital americana, reuniam-se 250 mil pessoas entre o Monumento a Washington e o Monumento de Abraham Lincoln, o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América, o qual pôs fim a Guerra Civil Americana (1861-1865) e decretou a abolição da escravidão no país. Naquele dia ensolarado de verão, o pastor e ativista Martin Luther King Jr (1929-1968), discursava sobre emprego, direitos civis, igualdade, justiça, liberdade, etc. Seu discurso cativou todos na ocasião, e mesmo passado-se cinco décadas, suas palavras ainda são tocantes e marcantes, mostrando que embora progressos tenham ocorrido, a luta ainda continua, não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os locais do mundo, onde os males que King procurou combater ainda continuam. 

Foto a partir do Monumento de Lincoln mostrando a extensão da multidão que foi assistir o discurso de Martin Luther King Jr.
***

"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Cem anos atrás, um grande estadunidense, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade estadunidense e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.

De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo estadunidense seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".

Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.

Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranquilizante do gradualismo. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre.

Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.

E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"

Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.

Eu não esqueci que alguns de vocês vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de vocês vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Vocês são os veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.

Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.

Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.

Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.
"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.

Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,

De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"

E se os Estados Unidos é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.

E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.

Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.

Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.

Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.

Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.

Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.

Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.

Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.

Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.

E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho espiritual negro: 

"Livre afinal, livre afinal.

Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."


Vídeo do discurso Eu tenho um sonho, 28 de agosto de 1963.

NOTA: Em 1964 Martin Luther King Jr ganhou o Prêmio Nobel da Paz, sendo a pessoa mais jovem a recebê-la. 
NOTA 2: Em 1968 no Lorraine Motel na cidade de Memphis no estado do Tennessee, enquanto aguardava para seguir para o local de uma marcha que iria participar, Martin Luther King Jr foi assassinado por James Earl Ray
NOTA 3: Em 1983, o presidente Ronald Reagan oficializou a criação do feriado nacional Dia de Martim Luther King, celebrado na terceira segunda-feira do mês de janeiro.

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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Vida após a morte na mitologia escandinava

Mitologia escandinava, também chamada de mitologia nórdica, consistiu no conjunto de narrativas e crenças compartilhados pelos chamados povos escandinavos ou nórdicos, e em parte pelos povos germânicos. A Escandinávia é o nome dado para a região norte da Europa, o que engloba atualmente os países da Dinamarca, Suécia, Noruega, Islândia e em alguns casos a Finlândia, embora que a mitologia finlandesa, seja diferente dos demais países mencionados, e não é considerada parte da mitologia escandinava. 

No entanto, devo esclarecer que os mitos não são mentiras e nem religião. Os mitos são narrativas as quais em seu tempo, procuravam explicar os fenômenos do mundo (fenômenos naturais, surgimento da humanidade, surgimento do mal, das doenças, dos sentimentos, das classes sociais, origem dos deuses, dos animais, etc.) Para os antigos, os mitos em muitos casos explicavam tais perguntas, embora que alguns mitos fossem apenas histórias ilustrativas sobre os feitos de algum personagem, ou em outros casos o mito poderia ter um papel moral. Alguns mitos também se ligavam a preceitos religiosos, como os mitos cosmogônicos (criação do mundo), antropogônicos (criação dos seres humanos) e escatológicos (fim dos tempos). 

Mas, embora alguns mitos apresentassem a história sobre deuses e deusas, não significa que tais mitos fossem parte da religião, mas uma forma de explicar certas características daquelas divindades que eram cultuadas. Sendo assim, a partir de alguns destes mitos procurei nesse texto retratar a visão que os escandinavos possuíam sobre a vida após a morte, algo que eu havia feito com os gregos antigos em outro trabalho, já publicado neste blog, mas o interessante é que as perspectivas entre estes dois povos são bem diferentes em vários aspectos. Não obstante, alguns destes mitos sobre os mundos da morte possuíam relação com a religião dos escandinavos medievais, a qual é chamada de religião nórdica antiga ou religião escandinava pré-cristã. O termo religião viking não é apropriado. 

Os nove mundos:

Para entendermos para onde as almas iriam após morrerem, devemos primeiro conhecer como era a divisão do mundo imaginada pelos escandinavos. Na Grécia Antiga, vimos que o Monte Olimpo era o lar dos deuses, o Hades era o reino do deus homônimo, como também o "Inferno". E o mundo em si, era o local habitado pela humanidade, animais, plantas e demais criaturas. Mas, no caso dos nórdicos, eles concebiam a ideia de mundo dividido em nove partes, embora que nem sempre estes "nove mundos" ou "nove reinos" são comumente mencionados nos mitos e nas tradições, assim como, possuem seus limites e características bem definidas.
  • Asgard: A terra dos Aesir, a principal família de deuses. 
  • Vanaheim: A terra dos Vanir, a segunda família de deuses.
  • Midgard: Conhecida como "Terra Média" ou "Terra do Meio", era o lar da humanidade. 
  • Jotunheim: Era o lar dos gigantes (jotuns). 
  • Alfheim: Era o lar dos elfos (alfar). 
  • Helheim: O reino do mortos no submundo, regido pela deusa Hel. 
  • Nidavelir: O lar dos anões. Também ficava localizado no subterrâneo. 
  • Musphelhein: Era a terra do fogo, onde viveriam gigantes do fogo. 
  • Niflheim: A terra das neblinas. Era o lar dos gigantes de gelo.
Destes nove mundos, os mais mencionados são Asgard, Midgard, Jotunheim, Musphelhein e Niflheim. Tais lugares são mencionados na Edda poética (c. 1270-1300), um manuscrito islandês de autoria anônima, que compila vários poemas de diferentes épocas; e a Edda em prosa (c. 1225), atribuída a autoria do poeta islandês, Snorri Sturluson (1178-1241), consiste numa sistematização dos mitos, sendo escritos em prosa numa narrativa mais ou menos linear. Além disso, seu livro também dava instruções para os poetas de como compor versos. 

Nesses livros, que consistem nas principais fontes sobre os mitos nórdicos, diz-se que as raízes e os galhos da gigantesca Yggdrasil, se espalhavam por estes mundos (os relatos não diz que as raízes iam aos nove mundos, apenas alguns deles). Todavia, existe uma problemática em se definir a geografia mitológica nórdica. Como dito, a localização dos nove mundos não é definitiva, não existe um trecho específico das Eddas que os nomeiem ou tampouco, diga onde exatamente eles se situavam. Jonas Wellendorf (2006, p. 53-54) diz que podemos conceber dois modelos geográficos para a mitologia escandinava: um modelo horizontal e um modelo vertical.

No modelo horizontal, mundos como Asgard e Vanaheim não estariam no céu, mas em terra. Ao mesmo tempo em que mundos como Niflheim, Hel e Nidavellir não estariam no subterrâneo, mas na superfície. Por sua vez, o modelo vertical, situa Asgard e Vanaheim (talvez Alfheim) no céu, os localizando nas copas da Yggdrasil, e situa Niflheim, Hel, Nidavellir, Svartalfheim (terra dos elfos escuros) e Muspelhiem no subterrâneo, os associando as suas raízes. As duas possibilidades como apontadas por Wellendorf são válidas, pois há referências nas Eddas, e neste caso, na Edda em prosa, escrita por Snorri Sturluson, o autor adota o modelo vertical.  

Ilustração mostrando a árvore Yggdrasil e os nove mundos. Aqui o autor da ilustração adotou o referencial vertical, o qual nas artes é o mais usado. 

Os deuses desciam de Asgard para Midgard através da ponte arco-íris chamada Bifrost. Comumente os deuses iam até a base da árvore para realizar reuniões, consultar as Nornas, as deusas do destino, no Poço de Urd. Odin costumava ir a Fonte de Mimir, para tomar conselhos com o velho deus. Na Edda em Prosa e no poema Grimnismál, na Edda poética, também nos conta que as raízes da Yggdrasil eram roídas constantemente pelo dragão Nidhogg, além de haver várias serpentes e até cadáveres naquela região, pois o dragão habitaria em Niflheim. Alguns mitos nos falam sobre outros dragões que também roeriam as raízes, assim como cervos que comeriam as folhas nos galhos.

No topo da árvore, no galho mais alto ficava a gigantesca águia chamada Hræsvelgr. Dizia-se que Hraesvelgr era o responsável pelos ventos, pois quando abanava suas asas, gerava os ventos. A águia era inimiga do dragão Nidhogg, não se sabe ao certo o porque dessa rivalidade, possivelmente deveria ser pelo fato de que Nidhogg ameaçava derrubar a árvore, e Hraesvelgr seria seu guardião? Os dois constantemente trocavam insultos, os quais eram entregues pelo esquilo Ratatosk, o qual ficava subindo e descendo pela árvore, levando as mensagens entre os dois. 

Mas, se até aqui se deu para ter noção sobre a divisão do mundo para estes povos, partamos para conhecer mais alguns aspectos sobre a vida e a cultura desses povos, para finalmente entendermos os locais para onde as almas iriam após a morte.

Concepções de alma, espírito e destino:


Entre os escandinavos e os germânicos havia a noção de alma (hamr) e de espírito acompanhante (fylgja). Os fylgja lembram os daemons dos gregos antigos, em ambos os casos eram espíritos que acompanhavam os seres humanos,  mas também habitavam lugares, não sendo necessariamente espíritos em forma humana. Era dito que estes fylgja podiam assumir até mesmo a forma de animais. 


O hamr poderia durante o sono, a catalepsia, hipnose e meditação deixar o corpo, e poder viajar pelo espaço e tempo, e até mesmo assumir outras formas. Daí, alguns mitos falarem que pessoas se transformaram em lobos (lobisomens), ursos, águias, etc. Ou relatos de que a pessoa foi vista em dois lugares ao mesmo tempo. Essa condição é importante, pois justifica que o corpo era apenas um repositório, e quando este morria, o hamr o abandonava de vez. 


"A flygja é uma entidade sobrenatural (espírito tutelar), geralmente feminina, que está ligada a um indivíduo e que lhe acompanha pela vida toda, sendo visível quando a morte aproxima-se, sendo espíritos tutelares com as funções semelhantes as das valquírias, dises e hamingja". (LANGER, 2005, p. 64 apud BOYER, 1995, p. 104, 108). 


Os nórdicos e germânicos também acreditavam que as famílias possuíssem espíritos protetores, guardiães, tutelares. Eram chamados de hamingja e aettarfylgia. Em algumas sagas como a Viga-Glúmr, relata que o protagonista em seu leito de morte encontrara o hamingja de sua família, figurado como uma giganta. 


Um terceiro aspecto era o do hugr ("alma externa"), essa "alma do mundo" conectava-se com as pessoas de diferentes formas, podendo serem aspectos positivos ou negativos. Dizia-se que os sonhos, aparições, visões, pesadelos, eram ações do hugr sobre a pessoa. O ato de espirrar, bocejar, coçar-se, tossir, etc., embora seja reações biológicas, para estes povos era uma reação ao hugr


Para estes povos, a alma era imortal. A morte não era o fim, mas o início de outra jornada, como veremos ao longo do texto. Além disso, eles acreditavam em fantasmas, que os espíritos podiam voltar ao mundo dos vivos e se comunicar e aparecer para estes. Eles também acreditavam em reencarnação e metempsicose (transmigração da alma humana para corpos de animais). O poema Helgakvida Hjörvardzsonar (um dos poemas da Edda poética), conta que o casal Helgi e Svava os quais morrem na história, voltariam a reencarnar. 


A ideia de destino era interessante. Havia dois tipos de destino: o particular e o familiar (herança). O particular dizia respeito a vida de cada pessoa, mas no caso do destino familiar, este estava ligado a toda a família (clã) e poderia ser bom ou ruim. O destino familiar era uma espécie de herança, onde os membros da família o carregariam por tempo indeterminado. Poderia se dizer que a família estaria fadada a glória, honra, poder, conquistas, fama, etc., por outro lado, poderiam ser amaldiçoados  e estarem destinados ao sofrimento, traição, lutas internas, vinganças, desespero e outros infortúnios. 


Por fim, um último fato a mencionar brevemente é a relação com a magia e a adivinhação. Vários mitos falam sobre magia, adivinhação e bruxas. O primeiro poema da Edda poética chama-se Völuspá que significa "A visão da advinha". De fato, nesse poema o qual é narrado por uma advinha ela conta sobre a origem do mundo e o seu fim, o Ragnarok. Os deuses Vanir e o deus Odin estavam associados as práticas mágicas, Odin descobriu os mistérios por trás das runas, pedras essas escritas com o alfabeto rúnico, os quais estavam associados a magia. Dizia-se que tais palavras possuíam encantamentos. 


"A magia era de caráter muito mais divinatório do que conjuratório ou propiciatório (Boyer, 2004a: 340). Em vários aspectos, a religião nórdica era de características xamânicas, sendo assim, a magia escandinava foi a arte de fornecer o poder que assombra e interfere em nosso mundo e, portanto, nada espanta ver os Vanes praticando a arte mágica na mitologia". (LANGER, 2005, p. 66). 


Mas, embora a magia fosse algo comum para a religião e cultura destes povos, seus praticantes geralmente não eram vistos com bom olhos na sociedade. As bruxas, feiticeiros, guerreiro berseker, metamorfo, etc., eram vistos como marginais, como pessoas de má intenção, pois geralmente associava-se a magia como algo pertencente aos deuses. 

Morra com glória ou morra com desonra:

"A fé nórdica não possuía nenhum livro sagrado, nenhum dogma principal, nenhuma estrutura centralizadora de pensamento e coesão filosófica, a exemplo de outras religiões não-reveladas e politeístas da Europa. Pelo contrário, cada região e período da Escandinávia conheceu crenças diferentes, com variações também a nível social. Não existiam conceitos absolutos de bem e mal. Desse modo, a religiosidade era muito mais baseada no culto do que no dogmático e metafísico; estruturada em atos, gestos e ritos significativos, girando em torno do sacrifício. O paganismo nórdico era de natureza tolerante, sem fanatismos nem adoração extremada e, ao contrário do que se imagina com frequência, manteve contato com a Europa cristã. Foi fruto de uma sociedade profundamente rural, realista e pragmática e que concedia privilégio a uma magia fatídica". (LANGER, 2009, p. 132). 

Usarei os nórdicos da Era Viking (VIII-XI), como exemplo, pois dos povos escandinavos eles são os mais conhecidos do grande público. Os nórdicos foram um povo que habitou a Escandinávia entre os séculos VIII ao XI, após o século XI, os pequenos reinos começaram a se unificarem em reinos maiores, e passou-se a surgir uma identidade de noruegueses, suecos, dinamarqueses, islandeses, normandos, além do fato que alguns escandinavos já estavam vivendo entre os ingleses, escoceses, irlandeses, russos, germanos, etc. 


Daí muitos historiadores preferirem falar que o termo viking seja aplicável ao contexto que sua cultura estava em alta. De qualquer forma independente de serem os nórdicos ou não, até o século XII, antes do Cristianismo se firmar de vez, o culto aos deuses antigos ainda era praticado em algumas regiões, embora grande parte da população já tivesse aderido ao cristianismo ou mantivesse um sincretismo entre as duas religiões. 

A cultura e a sociedade viking foi bélica e expansionista, principalmente entre os séculos IX e X, vários clãs nórdicos migraram para outras terras a fim de saquear, comercializar, explorar e até mesmo colonizar. A vida no norte da Europa era algo difícil, os invernos eram longos, e o solo era pouco fértil, isso levava a escassez de comida e surtos de fome, o que levava grupos atacarem uns aos outros para conseguirem comida, roupas, armas, ferramentas, terras e até mesmo mulheres, pois o rapto de mulheres era algo comum. Além disso, os nórdicos praticavam a escravidão, algo que desmente a noção que na Idade Média, a escravidão havia acabado e sido substituída pela servidão feudal, na verdade, o feudalismo apenas imperou em alguns lugares do continente, a escravidão ainda se mantivera no norte e no leste.

Devido a esse cenário de difícil sobrevivência e perigo, por causa de invasões, ataques, raptos, etc., a sociedade se organizava ao redor de homens de poder, geralmente guerreiros que após grandes feitos, conquistaram terras, tesouros e respeito, tornando-se senhores e até mesmo reis. A nobreza era chamada de Jarl, os homens livres eram chamados de Karl, e, por fim, os escravos eram os Thralls. Esse aspecto é importante a ser mencionado, pois tal divisão social em certa parte influenciava o local para onde se iria após a morte. 

Muitos destes homens, por mais que não fossem guerreiros, mas desde cedo aprendiam a lutar, pois a necessidade de se proteger ou guerrear para pilhar e conquistar, era algo comum daquela sociedade, embora alguns escandinavos fossem pacíficos e preferissem se dedicar ao comércio, pesca, pecuária e agricultura. Todavia, os principais deuses do panteão nórdico, os deuses Aesir, eram deuses bélicos: Odin, Thor, Heimdall, Tyr, etc., eram deuses associados a guerra, a coragem e a bravura. Tyr era o deus da guerra, mas era Thor o principal guerreiro desse panteão, onde constantemente confrontava os inimigos mortais dos deuses, os gigantes. No caso de Odin, ele encarnava o "Senhor da Guerra", incentivando os jarl e os guerreiros ao combate. Em termos religiosos, Odin possuía a função de um deus da guerra, pois o culto a Tyr pouco se difundiu na Era Viking. 

Para estes povos, o mundo vivia em uma constante guerra divina, onde os deuses diariamente confrontavam os gigantes e outros monstros, era uma espécie de prenúncio para os fim dos tempo, chamado de Ragnarök. O poema Völuspá na Edda poética e a primeira parte da Edda em prosa, nos conta essa visão de criação e fim do mundo, mostrando que a guerra era constante, e tal fato é importante para entendermos algumas particularidades das crenças destes povos. 

"Basicamente as concepções de vida após a morte são divididas em torno de dois grandes espaços: os que morrem em batalhas, indo para o salão do Valholl juntar-se às valquírias e ao deus Odin; e de outro lado, os que morrem de doenças, velhice ou acidentes e vão para os subterrâneos do reino de Hel. Também existem algumas variações: algumas fontes relatam que as mulheres virgens iriam para o salão de Gefyon, outras, que elas dirigiam-se para o de Freyja. Escravos e fazendeiros seriam destinados ao reino de Thor". (LANGER, 2009, p. 134). 

Sendo assim, irei apresentar na seguinte divisão, as cinco principais concepções sobre a vida após a morte. Algo que eu chamei de cinco caminhos: O caminho do guerreiro; o caminho dos de pouca glória; o caminho do enfermo e do velho, o caminho das mulheres, o caminho dos afogados e o caminho dos criminosos. 

1) O Caminho do Guerreiro:

Pelo fato dos Aesir serem divindades relacionadas a guerra, a força, ao governo, ao poder, a coragem, etc., além de serem os principais deuses cultuados, a ideia era que se os deuses eram guerreiros, logo, teria-se que ter honra para poder se unir a eles. Numa sociedade guerreira como a viking, os feitos no campo de batalha conotavam seu respeito e mérito perante seus pares. A religião era um reflexo dessa cultura, pois durante os banquetes realizados nos hall (salão), onde se colocavam longas mesas e bancos, onde os homens se sentavam para comer, beber, conversar e cantar; quanto mais próximo você estivesse do líder, mais respeito você tinha. Os lugares mais distantes, eram para os guerreiros de menor respeito. Tal condição se reflete na vida após a morte. 

Desenho retratando o deus Odin e seus corvos (Hugin e Munin) e lobos (Geri e Freki) de estimação. 

Dos 13 salão dos deuses que havia em Asgard, o mais importante era o Salão Valhala, o qual pertencia a Odin, o rei dos deuses. O imenso salão é descrito possuindo centenas de portas, e sendo habitado por centenas de pessoas (Snorri fala que Valhala tinha 540 portas e moravam 800 pessoas). Pois, era o local para onde os mais valorosos e honrados guerreiros iam quando morressem. O salão era adornado com bastante riqueza. Haviam salas com tetos de ouro ou prata, joias, peles, tapeçarias, estátuas, armas adornadas, escudos, cotas de malha, etc. Dizia-se que também havia muitas águias e lobos. Ambos animais possuíam um simbolismo sagrado para estes povos e estavam relacionados ao campo de batalha. 

Walhala. Max Brückner, 1896. 

Quando os bravos e honrados guerreiros morriam no campo de batalha, as Valquírias eram enviadas para irem buscar as almas destes valorosos homens. A palavra valquíria significava algo como "as que escolhem aqueles que vão morrer". As valquírias que eram várias irmãs, sendo estas filhas de Odin, cavalgavam até Midgard, para escolherem os guerreiros que seriam levados para Asgard. 

"Parece que, originalmente, as Valquírias eram ferozes espíritos femininos servidores do deus da guerra, que se deliciavam com o sangue e a carnificina e devoravam os cadáveres no campo de batalha. Mais tarde, na era viking, tornaram-se figuras mais ou menos dignas, ocupando o lugar de princesas, envergando armaduras e montando cavalos que escoltavam para o Valhala os guerreiros mortos, e aí os acolhiam com chifres cheios de hidromel, como se observa frequentemente nas cenas gravadas nas pedras da Gotlândia". (DAVIDSON, 1987, p. 41). 

A vigília da valquíria. Edward Robert Hughes, c. 1915. 

Antes de prosseguir no assunto, devo fazer duas ressalvas: primeiro, as valquírias não apenas levavam os mortos para Valhala, elas também encaminhavam a metade destes para o Salão Folkvang, o qual pertencia a deusa Freya (escreve-se também Freia, Freja, Freyja, etc.), considerada a mais bela das deusas nórdicas. Freya era uma Vanir, era filha do deus do mar, Njord. Era irmã de Freyr

Era uma das deusas mais importantes do panteão, associada a fertilidade, sexualidade, beleza, amor, prosperidade, a natureza, a magia e a morte. Embora fosse casada, deuses, gigantes, humanos, anões e elfos a cobiçavam. Freya fizera um pacto com Odin, onde metade dos guerreiros mortos seriam conduzidos ao seus salão. Além disso, alguns mitos contam que ela era sua amante. Contudo, os relatos sobre o Folkvang são escassos, logo, focarei em Valhala. 


Freya e o colar. J. Doyle Penrose, c. 1913. 

Retomando a Valhala, quando os mortos ali chegavam, como foi dito, algumas gravuras retratavam outras valquírias lhes dando boas-vindas, oferecendo um chifre com hidromel. O uso de chifres para beber era algo comum para estes povos, embora foi associado pelo Cristianismo como um costume diabólico. 

Alguns mitos falam que além das valquírias conduzirem as almas dos mortos e os receberem em Valhala e Folkvang, estas também se casavam com estes homens, ou se tornavam suas amantes. Outros mitos narram que algumas valquírias desciam a Midgard e de certa forma se tornavam mulheres comuns, passando a viver entre as pessoas. Na Saga dos Volsungos, se conta a história do lendário herói Sigurd (Siegfried em alemão) o qual se relacionou com uma valquíria chamada Brynhild

"Acreditava-se que Odin acolhia nos seus domínios os guerreiros que morressem heroicamente no campo de batalha. Todas as noites se banqueteavam com as articulações de um javali cuja carne nunca acabava, e bebiam copiosamente hidromel. O dia passava-se a lutar, mas, à noite, os que tinham caído erguiam-se de novo para tomar parte no festim". (DAVIDSON, 1987, p. 31).

A vida dos guerreiros no Valhala e no Folkvang é um tanto peculiar. Como foi mencionado na frase acima, durante o dia, os homens treinavam e competiam em jogos de força. Como já estavam mortos, não poderiam morrer novamente. Passavam os dias assim, e durante à noite, um pomposo banquete era servido na presença do próprio Odin e de sua esposa a deusa Frigga. Homens se banqueteavam com carne de javali e hidromel. Tais homens eram chamados de einherjar. Acreditava-se que os einherjar lutassem diariamente como uma forma de aperfeiçoar suas habilidades, se preparando para o dia que se iniciaria o Ragnarök, onde os deuses, gigantes, homens e demais seres, entrariam numa terrível guerra final. 

Até aqui vimos, que a ideia de "paraíso" para estes povos, não era um local de paz e descanso, mas um local de lutas, banquetes, glória e honra. 


Desenho representando Valhala. As almas dos guerreiros que receberam o direito de ir para Valhala, todas as noites se reuniam em banquetes na presença de Odin. 

2) O Caminho dos de pouca glória?

Geralmente esse meio termo não é mencionado, na verdade possuímos menções escassas sobre esse segundo caminho. Possivelmente tenha sido uma tradição posterior, como forma de responder a pergunta: quem não fosse um guerreiro honroso e nem um covarde, e não morre-se de doença, velhice ou acidente, para onde iria?

Em geral, as crenças antigas diziam que a maioria da população a qual não era guerreira, e embora fosse, nem todos eram honrados, corajosos e bravos, iam todos para a Casa de Hel, chamada de Helheim, ou iriam para as montanhas sagradas (helgafell), um local comum da morte. Tal fato será comentado mais adiante, mas por hora me deterei a explicar esse meio termo.


Se Odin e Freya eram os deuses responsáveis por acolher os valorosos guerreiros em sua estada em Asgard (embora Freya fosse uma Vanir, seu salão não ficava em Vanaheim, ela havia se mudado para Asgard), o deus responsável por acolher o restante da população, era o grande campeão dos deuses, o poderoso Thor. 


"De todo os deuses, Tor é o herói mais característico do tempestuoso mundo dos vikings. Barbudo, franco, indomável, cheio de vigor e energia, ele põe toda a sua confiança em seu braço forte e suas armas simples. Ele caminha a passos largos pelo reino norte dos deuses, um símbolo apropriado para o homem de ação". (DAVIDSON, 1987, p. 61).


Thor lutando contra gigantes. M. E. Winge, 1872. 

Como foi dito, praticamente não há menções que o salão de Thor, chamado Bilskirnir ("Relâmpago"), o qual abrigasse a população que não era digna de ir para Valhala e Folkvang. Logo, a menção a tal local consista numa hipótese ainda não confirmada. 

No poema Hárbardzljod, na estrofe 24, o barqueiro Hárbard (na realidade era Odin disfarçado) fala que Odin recebia em seu salão os jarl, enquanto a Thor estava legado a plebe (karl) e os escravos (thrall). De fato o culto a Odin era aristocrático como nos atestara Davidson na seguinte passagem:

"Entre os adoradores de Odin encontramos os reis e os principais guerreiros do período das migrações e da Idade Viking. Muitas famílias reais, entre os Anglo-Saxões, proclamavam-se descendentes do deus e tinham orgulho nisso. Aos chefes que prometessem dedicar-lhe aqueles que matassem, Odin doava armas como a esplêndida espada Gram, dada a Sigmundo, o Volsung". (DAVIDSON, 1987, p. 31). 


As pessoas comuns (os Karl) também faziam rituais e orações para Odin, no entanto, Thor era o deus que eles mais cultuavam e para quem mais rezavam. Pelo fato de Thor ser filho de Odin e Jörd (deusa da terra) a qual era vista como a guardiã de Midgard, Thor era considerado como o protetor dos deuses e dos homens; quando os gigantes ameaçavam invadir Asgard ele partia para combatê-los, e quando os mesmos geravam problemas para a humanidade, ele também descia para enfrentá-los. 


Além disso, as pessoas oravam para Thor, pedindo proteção nas viagens, nas nevascas, tempestades; pediam proteção para o lar e a família, chegavam a usar amuletos de proteção em formato de martelo. Rezavam para o deus pedindo chuvas para uma boa colheita, e até mesmo convocavam seu nome para realizar consagrações, juramentos e outras cerimônias. 

Logo, tomando-se por este lado, Thor era o deus "do povo", das "massas", estando mais familiarizado ao homem do campo, ao homem do mar e aos viajantes. E se a menção no poema Hárbardzljod estiver certa, e não passar de um deboche, os Karl e os Thrall poderiam após a morte irem morar no salão do deus Thor? Bom, isso é uma pergunta que ainda não temos resposta definitiva, pois as fontes são escassas para poder confirmar se tal hipótese é concreta. Em caso de não ser, o que sobra para estas pessoas é o Hel ou as montanhas sagradas (helgafell).


3) O caminho dos enfermos, velhos, acidentados, etc: 


A deusa dos mortos era Hel, a qual era filha de Loki e da giganta Angrboda. Hel era irmã do lobo gigante Fenrir e da gigantesca serpente Jormungand. Ambos os monstros também eram filhos de Loki com Angrboda. Hel era descrita segundo Snorri, como tendo metade do corpo de aparência normal, mas a outra metade tinha a aparência cadavérica. Em outras fontes mitológicas não encontramos menções a aparência da deusa. 


"[Allfödr] lançou Hel ao Niflheim, e a ela concedeu autoridade sobre os nove mundos e responsabilidade por aqueles que lhe fossem enviados, vitimados por doença ou por velhice. Lá ela possui uma grandiosa morada, com altas muralhas e poderosos portais. Seu salão chama-se Éljúdnir; seu prato, Hungr; sua faca, Sultr; seu servo, Ganglati; sua serva, Ganglöt; Fallanda se encontra ao portal [de Éljúdnir]; Kör é sua cama e Bilkjanda é o cortinado de seu leito". (STURLUSON, 1993, p. 84). 



Hel. Johannes Gehrts. 1889. Nessa representação da deusa Hel, o pintor não adotou o referencial de Snorri, o qual conduzia um visual mais grotesco a deusa. Além disso, podemos ver Garm, seu cão de guarda. 

O salão que Hel habitava, ficava na região chamada Helheim ou Helgardh, o qual ficava localizado em Niflheim, segundo Snorri. Nos poemas da Edda poética, Hel ficaria em algum local do subterrâneo próximo a Niflhel ou dentro de Niflhel. Embora que como comentado por John Lindow (2001, p. 240), os mundos Hel e Niflhel se confundem na Edda poética, podendo terem sido o mesmo lugar. Por sua vez, Lindow comenta que Niflheim seja uma palavra criada por Snorri com base na palavra Niflhel. Só que em sua obra, Niflheim não é apenas um local escuro, mas frio, algo que não é mencionado em relação a Niflhel. 

Não obstante, a ideia de que alguns tem que Hel seria um local quente como o Inferno, está errada. Nas Eddas, você encontra Hel sendo mencionada como um local sombrio e/ou frio. Não há nenhuma referência a fogo, calor e enxofre. Sendo assim, Hel seria na realidade um "inferno congelante". Contudo o nome da deusa Hel originou a palavra hell que em língua inglesa significa inferno. 

Embora os cristãos tenham adotado Hel como tradução de infernus, no entanto, é preciso esclarecer que ambos os locais são bem diferentes. Primeiro, Hel era uma terra sombria e fria, e não quente e fumacenta como o Inferno. Segundo, o mais importante: é que Hel não seria um local de tormentos como alguns imaginam. Alguns poemas escaldicos como o Sonatorrek (Meus filhos mortos) e nos poemas da Edda poética como o Völuspá (Visões da advinha), Baldrs draumar (Os Sonhos de Balder), Gromnismál (Os ditos de Grímnir), Vaftrúdnismal (Os ditos de Vaftrúdnir) Alvísmal (Os ditos de Alvis) e o Skírnismal (Os ditos de Skírnir) fazem menção a Hel, entretanto, não se diz por quais motivos as pessoas iriam para aquele local. 

Na Edda em prosa, Snorri Sturluson nos fornece uma pista para compreender por qual motivo as almas iriam para Hel. Segundo sua versão, que não sabemos se ele inventou ou copilou de alguma tradição hoje desconhecida, informa que as pessoas que morriam de doença e velhice, iriam para Hel. Na óptica desses motivos dados por Snorri, morrer de doença, significaria fraqueza; já morrer de velhice, no caso de um guerreiro, significaria covardia, pois um guerreiro independente da idade, deveria morrer com glória no campo de batalha. 

Por outro lado, Snorri também informa em seu livro que quando o deus Balder foi assassinado por Hodr, devido a um plano diabólico de Loki, a alma do deus foi enviada para Hel. A esposa de Balder, Nanna, em pranto pela morte do marido, se jogou na pira fúnebre dele, para segui-lo a Hel. A morte do deus é mencionada no Völuspá, poema que antecede a Edda em prosa em mais de duzentos anos, mas em seu versos não informa para onde a alma de Balder foi, logo, resta-nos duas hipóteses: Snorri inventou essa parte da história ou tomou conhecimento de algum relato hoje desconhecido, pois os mitos eram transmitidos oralmente.


Mas de qualquer forma, o fato de Balder e Nanna terem ido para Hel, mas sem ser pelos motivos de doença e velhice, mas sim de assassinato e suicídio, põe em dúvida a explicação dada pelo autor. Christopher Abram (2003, p. 10) e Hilda Davidson (1968, p. 84) assinalaram que a ideia de velhice e doença provavelmente seja uma invenção de Snorri, como forma de conceder uma resposta a pergunta de qual seria o motivo para ir-se a Hel, assim como, seja também parte da reelaboração do autor para criar uma dualidade que respaldasse sua visão de Valhala (como o “paraíso”), como sugeriu a própria Davidson (1968, p. 84).

Pelo fato de se desconhecer outras fontes que mencionam os motivos pelos quais as almas iriam para Hel, pode se pensar que Hel teria sido um local comum para a morte? Ou seja, independente de ser homem ou mulher, bom ou mal (a ideia de pecado não existia entre os nórdicos antes da conversão ao cristianismo), novo ou velho, as almas iriam para Hel? Ideia essa encontrada na crença que os mortos iriam para salões dentro das montanhas? Neste caso Hilda Davidson (1968, p. 86) cogitou se Hel não poderia ser uma concepção advinda da crença da vida após a morte em montanhas sagradas (helgafell)? 

No entanto, surge um outro ponto a ser mencionado. Nos relatos que falam sobre Hel, não lemos nada a respeito de sofrimento, castigos, torturas, etc., algo que estamos familiarizados com a visão das religiões abraâmicas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) sobre o Inferno. No entanto, Snorri disse que Hel seria um local de "repouso ingrato" para os mortos, mas não um tormento eterno como em outras visões de Inferno. 

De certa forma, poderíamos comparar Hel com o Érebo, no Hades dos gregos; o Érebo era a região infernal onde a maioria dos mortos iam, e lá não era flagelados por castigos e torturas, mas padeciam de lamento e remorso. 
Mas ainda segundo Snorri no Gylfaginning 3 e 52, e nos versos 38 e 39 do Völuspá, o verdadeiro local de tormentos não ficaria em Hel, mas em Náströnd. E sobre este mundo da morte, falaremos mais adiante. 

4) O caminho das mulheres:


Pelo fato da sociedade viking ser puramente masculina e machista, como várias outras sociedades ao longo da História, pouco sabemos do futuro das mulheres acerca da vida após a morte. 


Os relatos falam que haviam mulheres em Valhala e Folkvang, mas essas mulheres não eram valquírias ou deusas, mas sim humanas. Em tais relatos encontram-se mulheres dizendo que iriam acompanhar seus maridos ou senhores nesses salões. Há menções sutis que sugerem que algumas mulheres achavam que iriam morar com Freya. Há também o caso do sacrifício voluntário, onde as mulheres acreditavam que naquela forma acompanhariam seu marido ou senhor. Porém, não se sabe se mulheres guerreiras acreditariam que deteriam o mesmo direito de serem escolhidas pelas valquírias, pois não há evidências que embasem essa crença explicando como teria sido a visão dessas guerreiras, algo que não era comum também, pois a guerra era algo dominado pelos homens. 


Porém, existe uma outra hipótese que sugere que mulheres virgens, quando morriam, seguiam para Folkvang ou para o salão da deusa Gefjon (Gefjun ou Gefion), a qual estava associada a agricultura. Segundo alguns relatos ela teria sido a esposa do rei Gylfi ou do rei Skjöldr. Snorri conta que essa deusa era virgem e virgens a serviam em seu salão. A deusa também estava associada a ilha Zelândia no lago Mälaren, na Suécia. A Edda em prosa e o Heimskringla contam que a deusa desapareceu nesse lago, e no local surgiu uma ilha. Parece que sacríficos de mulheres virgens eram feitos no local. 


Gefjon arando a Zelândia com seus bois. Karl Ehrenberg, 1882. 
Porém, sublinho que a ilha de Gefjon como lar das almas das mulheres que morreram virgens, é apenas uma hipótese, não sendo nada concreto. Pois as fontes não apontam melhores evidências para sustentar isso. Além desses locais mencionados, não podemos esquecer que as mulheres também seguiam para Hel e as montanhas sagradas. 

5) O caminho dos afogados:

De acordo com o poema Sonatorrek, atribuído a Égil Skallagrimson, o qual teria o escrito por volta de 961, em tal obra o autor desabafava sua tristeza pela perda de seus filhos mais velhos, dizendo que um foi para Valhala, mas outro de nome Bódvar, o qual morreu em um naufrágio, não iria para Valhala e nem para Hel, mas iria para os Salões de Ran, a deusa do mar.


Ran. M. E. Winge, 1908. 
Embora Njord fosse o deus do mar, havia outras divindades associadas aos mares, algo também visto em outras religiões e mitologias. De acordo com o poema, os que morriam afogados, suas almas passariam a morar na casa da deusa Ran. Mas não seria um local ruim, pois os mortos viveriam com conforto nas profundezas do mar. Por fim, Égil diz no final do poema que ele aguardava ir para Hel, embora não mencione por quais motivos ele estava destinado a isso. 

6) O caminho dos criminosos:

O último mundo da morte escandinavo do qual falarei talvez tenha sido o que mais de fato chega próximo a concepção judaico-cristã de Inferno, que possuímos. Ele se chamava Náströnd ("costa dos cadáveres"). Tal local é apenas mencionado nas Eddas. Na Edda poética ele é citado no poema Völuspá, mas estrofes 38 e 39. Na Edda em prosa, ele é mencionado no Gylfaginning 52. Basicamente ambas as descrições são quase idênticas, o que sugira que Snorri não tenha alterado esse relato, mas o colhido diretamente do Völuspá (assim como fez em outras ocasiões), embora não se saiba que versão do poema ele tenha exatamente consultado. 

De qualquer forma, o que as Eddas falam sobre Náströnd é o seguinte: Náströnd seria um local situado longe do sol, cujas portas ficaram voltadas em direção ao Norte. Suas paredes e teto (aqui Náströnd é também o nome de um salão) eram formados por escamas e ossos de serpentes. Do teto, onde haveriam vários buracos (talvez chaminés), encontrariam-se cobras vivas, as quais gotejariam veneno dentro do salão. Seria tanto veneno ali derramado, que os mortos andariam em salas inundadas. Algo como rios de veneno. Completando o relato era dito que as almas que para lá seguissem, seriam devoradas pelo dragão Nidhogg e um lobo, cujo nome é desconhecido. 

Náströnd. Lorenz Frolich. 1895. 

Percebe-se que pela descrição de Náströnd, este consistia num local realmente assombroso e terrível. No entanto, nos vem a pergunta? Por qual motivo ou motivos os mortos iriam para Náströnd? De acordo com o Völuspá os motivos eram três: assassinato, perjúrio e assédio sexual contra mulheres comprometidas. Já Snorri mencionou apenas os crimes de assassinato e perjúrio. 

Não se sabe exatamente porque tais crimes seriam punidos em Náströnd. Mas é preciso comentar um pouco a respeito deles. O crime de assassinato mencionado, não se tratava de qualquer caso de homicídio, mas apenas dos assassinatos "desleais" ou "injustos". Aquele homem ou mulher que matou alguém por um motivo banal, ou de forma covarde (a vítima estava desarmada, dormindo, indefesa de alguma forma) ou injustamente, estaria apto a ser condenado a Náströnd. Tais pessoas que cometiam estes tipos de assassinato se tornavam proscritos (os nórdicos usavam as palavra vargr, que significa lobo, como sendo sinônimo de proscrito). (BÓYER, 2000, p. 53). Todavia, conhece-se casos reais de que proscritos não foram executados, mas banidos, como foi o caso de Erik, o Vermelho, o descobridor da Groenlândia. O qual por duas vezes matou dois homens por motivos injustos, mas em nenhuma vez ele foi executado. E isso também ocorreu com outros proscritos. (GRAHAM-CAMPBELL, 2006, p. 220). 

No que diz respeito ao crime de perjúrio esse advinha daquelas pessoas que não eram de palavra. Pessoas sem caráter, traiçoeiras, hipócritas, mentirosas, as quais romperam juramentos, promessas, acordos, etc. Os chamados perjuros seriam também condenados a Náströnd. Aqui há outro problema. Existem vários mitos, sagas, poemas e até mesmo histórias reais falando sobre distintos casos de traição e perjúrio. De fato isso não é algo incomum em várias sociedades e nem hoje em dia, mas por qual motivo esse crime exatamente punido em Náströnd? Isso não se sabe. 

O terceiro crime, o assédio sexua ou adultério, é outro problema não resolvido. Raymond Page (2001, p. 208) menciona que não se conhece nenhuma referência nas "leis vikings" de crimes envolvendo adultério ou questões passionais. Enquanto o assassinato e a traição eram causas punidas pelas leis dos nórdicos, o adultério e o assédio não o eram. Para Page e outros estudiosos, esse crime possa ter advindo de um referencial cristão, pois na Bíblia encontramos em distintos momentos recomendações contra a fornicação, a promiscuidade e o adultério. Neste caso é preciso salientar que a Escandinávia começou a ser cristianizada no século X, logo, os nórdicos conviveram com cristãos e até mesmo se tornaram cristãos. 

Assim, tal referencial possa ter advindo de alguma crença cristã no geral, mas o mais provável é que tenha advindo da opinião do copilador do poema Völuspá, pois na versão de Snorri, o qual também era cristão, ele não faz menção ao crime de assédio sexual ou adultério. Isso sugere que Snorri possa ter consultado uma versão do mito que não houvesse tal crime ou ele por motivo pessoal ou retirou? 

Por fim, é na Edda de Snorri que Náströnd possui a ideia de ser um mundo da morte terrível. Enquanto no Völuspá não se diz com clareza se Náströnd ficaria em Hel ou Niflhel, ou seria um local próprio, Snorri sugere que Náströnd ficaria situado em Niflheim, o mundo frio e escuro, habitado pelos gigantes de gelo e governado pela deusa Hel. Na concepção de Snorri, Náströnd seria considerado como sendo um inferno, e não Hel. 

Considerações finais:

Após esse breve texto, podemos ter ciência de que para os nórdicos da Era Viking, haveriam distintas concepções sobre a vida após a morte, reflexo do fato de sua religião não possuir um dogma, livros sagrados, uma instituição religiosa, hierarquias clericais, mas ser mais centrada em tradições locais e regionais, cultos naturais, sacrifícios, oferendas e na magia. Dependendo da região, da época e da pessoa a ideia de onde ela iria após morrer poderia variar. Os guerreiros e a aristocracia concebiam que Valhala e Folkvang seria seus locais de repouso no além. 


Para aqueles que morriam afogados, o lar de Ran, os aguardaria. As mulheres virgens talvez fossem para o salão de Freyja ou de Gefjion. A plebe e os escravos talvez tivessem a crença de que iriam para o salão de Thor. Quanto a Hel, excetuando-se o relato de Snorri, nas outras fontes não há menções aos motivos pelos quais os mortos iriam para lá. Como dito, talvez Hel fosse um local geral da morte como no caso das montanhas sagradas (helgafell). Não obstante, também vimos que a ideia de que Hel fosse o inferno nórdico é equivocada. Hel em momento algum é descrito como um local terrível, no entanto, Náströnd o era. 

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Links relacionados:
A Saga Viking