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Leandro Vilar

terça-feira, 25 de julho de 2017

Joana d'Arc: de bruxa a santa

Santa Joana d'Arc hoje em dia é uma figura internacionalmente conhecida e até admirada, tendo se tornado a Padroeira da França, em homenagem a sua dedicação e bravura durante os acontecimentos da Guerra dos Cem Anos (1337-1453). A proposta desse texto é contar um pouco a respeito dessa mártir que foi executada pela inquisição episcopal de Ruão, condenada por supostamente ter um pacto diabólico, mas quase cinco séculos depois foi tornada santa pela Igreja Católica Apostólica Romana. Com isso, um dos objetivos desse estudo foi entender pelo que exatamente Joana D'Arc foi acusada no tribunal inquisitorial? Tratava-se de um crime de bruxaria? Ou não passou de uma vingação pessoal ou jogada política?

De camponesa a símbolo de esperança:

Joana d'Arc hoje é lembrada pelas imagens de santa, guerreira, donzela, símbolo nacional da França, mas nem sempre foi assim, além do fato de que por certo tempo, Joana foi mal vista e mal falada, sendo comparada a uma aproveitadora, bruxa, embusteira, mentirosa, ignorante, tola e louca. Por trás de toda a imagem idealizada por pintores e escritores principalmente entre os séculos XVIII e XIX, que concederam muito do imaginário de uma Joana guerreira e donzela, sua história ainda hoje é envolta em algumas lendas e lacunas, as quais para um leitor mais atento podem ser alarmantes, vindo a levá-lo repensar suas ideias que possuía sobre Joana d'Arc. 

Joana (Jeanne no original) nasceu em data incerta, por volta de 1412,  no vilarejo de Domrémy (atualmente Domrémy-la-Pucelle), na província de Lorena. Na época a região não fazia parte da França, mas estava sob domínio do Ducado da Borgonha. Joana era a filha caçula de Jacques Darc e Isabelle Romée Darc, tendo mais quatro irmãos: Jacques, Catherine, Jean e Pierre. Os Darc - posteriormente escrito d'Arc - eram uma família de camponeses com poucas posses. Em geral a população de Domrémy era humilde. (MADDOX, 2012, p. 418). 

Se desconhece muito a respeito da infância de Joana, pois os poucos detalhes que se possuem, provém do seu interrogatório pela inquisição, quando foi indagada a respeito do motivo que a teria levado procurar o delfim (herdeiro do trono) Carlos da França. Na ocasião, Joana contou em alguns de seus depoimentos que por volta de seus 13 anos ela teve sua primeira revelação divina. Joana contou que estava cansada após trabalhar no campo, então sentou-se sob uma árvore, lá ela viu um ser de luz aproximando-se, o qual lhe dirigiu a palavra. Joana disse que se tratava de São Miguel Arcanjo, que vinha lhes dar as boas-vindas e perguntar se ela estava sendo uma boa cristã. Posteriormente, Joana narrou que teve contato com Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida da Antioquia. (BANFIELD, 1988, p. 12). 


Joana d'Arc, a Predestinação. Gaston Bussière, 1909. Na imagem, a jovem Joana encontra São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida. 

Nos interrogatórios Joana informou que continuou a ouvir essas vozes pelos anos seguintes, embora não entrou em detalhes a respeito do tema das conversas, mas em geral repetia que os santos a exortavam a sempre cumprir com os ensinamentos de Deus, e seguir regularmente a liturgia da Igreja. Por volta de seus 16 anos, São Miguel lhe teria dado a missão de ir encontrar o delfim. Para isso Joana deveria buscar o apoio de um nobre, que permitisse ela ter contato com a corte. O nobre mais importante nas redondezas de Domrémy, era Robert de Baudricourt (c. 1400-1454), governante da cidade de Vaucouleurs

Joana segundo conta em seu depoimento, saiu escondida de casa e conseguiu carona até Vaucouleurs, a fim de encontrar Robert de Baudricourt. Nessa parte da história há poucas informações. Não se sabe exatamente quando Joana chegou a cidade e por quanto tempo ali permaneceu. Todavia, Baudricourt se negou a conhecê-la e ouvir o que ela tinha a falar, pois a considerava uma louca ou fanática. Joana era uma camponesa analfabeta, pobre e com apenas 16 anos de idade, que de repente apareceu na porta da casa de Baudricourt, dizendo que Deus lhe deu a missão para que ajudasse o delfim Carlos a assumir o trono francês e combater os ingleses. 

A história de Joana logo se espalhou pela cidadezinha, e Baudricourt decidiu ouvir o que ela dizia, mas ainda assim, não se convenceu e a mandou embora. Joana acabou voltando para a casa. Porém, o ano de 1428 lhe traria uma nova tentativa. O vilarejo de Domrémy foi invadido pelos borgonheses, sendo saqueado. Na ocasião, sua população havia dias antes partido para refúgio, mas os d'Arc ao retornarem para casa, testemunharam a destruição deixada para trás. Joana a contra-gosto de sua família partiu novamente para Vaucouleurs, indo mais uma vez tentar falar com Baudricourt. (BANFIELD, 1988, p. 18).  

Joana retornou a Vaucouleurs em janeiro de 1429. Não se sabe ao certo como ela conseguiu abrigo e emprego para se manter na cidade. É provável que sua família lhe enviasse algum tipo de recurso, pois sabe-se que seus irmãos e um primo foram visitá-la antes da partida. Tendo voltado a morar em Vaucoulerus, Joana continuou a pregar sua missão e a pedir que o senhor Baudricourt lhe desse ouvidos. A história daquela jovem camponesa começou a se espalhar, e Joana dessa vez decidiu usar o caso de Domrémy a seu favor, alegando que se ela conseguisse encontrar o príncipe e o convencesse a entrar na guerra contra os ingleses e os borgonheses, novas atrocidades como a que ocorreu em Domrémy, não iriam se repetir. 

Algumas pessoas começaram a se simpatizar pela causa da jovem donzela, entre os quais Jean de Metz, escudeiro de Robert de Baudricourt, tornou-se um dos defensores da causa de Joana. Passado algum tempo, a história da camponesa de Domrémy que queria conhecer o delfim da França, chegou até a corte em Chinon. Joana havia se tornado uma figura pública, era referida como uma gentil, alegre, recatada e devota jovem. Não se sabe ao certo quem autorizou Joana a viajar para Chinon, mas dada a autorização, Robert de Baudricourt a acatou, oferecendo homens, entre os quais Jean de Metz e um amigo seu, Bernard de Poulegnytransporte e mantimentos para a viagem. 

No dia 30 de fevereiro de 1429, Joana d'Arc encontrou-se com o delfim Carlos, em seu castelo em Chinon. Segundo os relatos da época, ela se ajoelhou diante do príncipe e lhe disse: "Deus lhe dê longa vida, bom rei". Depois dessa apresentação o príncipe e a camponesa conversaram, não se sabe o que foi dito, pois a própria Joana não deu detalhes sobre aquela conversa, limitando-se a dizer que ela mostrou ao rei toda a sua fé e crença de que Deus havia reservado um futuro promissor para o monarca e o povo da França. Por mais que a devoção de Joana fosse admirável como confirmam aqueles que com ela conviveram, ainda assim, sabe-se historicamente que o príncipe Carlos não concordou de imediato com Joana. (BANFIELD, 1988, p. 21).


Miniatura do século XV, representando Joana e o delfim Carlos de França. 

Na ocasião da visita a Chinon, Orleans estava tomada pelos ingleses, Joana sabendo disso, informou que o rei deveria enviar seu exército para recuperar Orleans, porém a cidade estava cercada por sete fortes ingleses. Os franceses haviam tentado anteriormente, mas perderam, porém, Joana alegava que dessa vez seria diferente, mas para isso, ela teria que ir junto com o exército. Ainda assim o delfim não se convenceu, segundo consta, ele teria cobrado de Joana alguma prova ou sinal divino de que ela estivesse dizendo a verdade. Joana teria respondido que lhe poderia lhe conceder apenas a verdade de sua palavra. 

Com isso, Carlos a enviou para Poitiers, para que fosse "examinada" pelos clérigos a fim de que comprovassem a veracidade de sua fé. Joana passou semanas sendo interrogada e observada pelo bispo e os padres, sendo confrontada com várias perguntas e até mesmo sujeitada a um teste de virgindade, pois corriam boatos de que ela teria seduzido alguns homens para poder conseguir ajuda em permanecer em Vaucouleurs e até mesmo para viajar a Chinon. No fim os clérigos atestaram que ela era sã, realmente era uma cristã devota, mas não tinham certeza se de fato ela dizia que ouviu os santos e que Deus havia lhe dado a missão de ajudar o delfim. (BANFIELD, 1988, p. 23).

Sendo liberada pelos clérigos, Joana retornou a Chinon, dessa vez o delfim estava um pouco mais convencido, então decidiu arriscar enviar um exército a Orléans. Mas diferente do que se ver em alguns romances e filmes, Joana d'Arc não comandava as tropas, pois ela além de ser mulher, não dispunha de experiência na arte da guerra. O fato de uma camponesa que não possuía sangue nobre, dispor do título de cavaleiro, inclusive recebendo armadura e o brasão de armas de um, além de acompanhar o exército, foi algo não apenas inusitado, mas que não agradou parte do comando militar. 


Pintura de 1505, retratando Joana d'Arc vestida como cavaleiro. 

Durante as campanhas que participou, Joana de início não era bem vista pelos militares, ela os repreendia pela jogatina, a bebedeira, a grosseria, a luxúria, pois era comum algumas prostitutas se estabelecerem próximas a acampamentos militares. Por outro lado, os comandantes não davam ouvidos a Joana, a consideravam um estorvo. De fato o papel de Joana em Orléans foi mais simbólico do que de comando. Alguns dos seus companheiros de armas, relatam que Joana era deixada fora dos planos de guerra, pois os comandantes não confiavam na falta de experiência dela e tão pouco estavam seguros em sua fé. (BANFIELD, 1988, p. 25).

Todavia, a medida que os franceses tomavam os fortes dos ingleses, a confiança em Joana foi aumentando, pois ela desde o começo da campanha havia dito que os franceses recuperariam Orléans. O forte de Saint-Loup foi tomado em 4 de maio. Na ocasião Joana chegou depois do começo da batalha, mas teria ficado cavalgando na retaguarda, balançando seu estandarte com a imagem de Cristo e dois anjos, e gritando palavras de motivação. No dia 5 foi a vez do forte Saint-Jean-Le-Blanc ser tomado, no dia seguinte o forte de Les Augustins se rendeu. Os franceses em três dias haviam conquistado três fortificações, algo que não haviam feito em meses de cerco. A crença de que Joana realmente pudesse dar boa sorte ou estivesse falando a verdade se espalhou pelo exército. No entanto, o teste derradeiro ainda estava por vir. 


Mapa do cerco de Orléans, abril de 1429. 

Durante a tomada do forte de Les Tourelles, o qual se revelou a batalha mais difícil daquele cerco, muitos homens morreram e Joana foi ferida. Alguns relatos dizem que ela foi flechada no ombro, outros dizem que ela foi atingida por uma lança. Graças a armadura ela não teve um ferimento mais grave, mas isso obrigou-a ser socorrida por seus escudeiros. A frente de ataque francesa recuou, após a frustração da primeira investida. Les Tourelles resguardava o acesso a ponte que os levaria direto a cidade. Joana conta que devido ao ferimento não ser grave, ela retornou ao campo de batalha após os primeiros-socorros e novamente empunhando sua bandeira exortou os homens para um novo ataque. No final do dia 7 de maio de 1429, Les Tourelles se rendeu. 

A tomada de quatro dos sete fortes ingleses, incluindo o resistente Les Tourelles, levou o exército inglês optar pela retirada. Orléans não deveria custar tanto sangue assim para ser mantida. No dia 8 de maio, os sinos da cidade badalavam celebrando a retirada do exército invasor e saudando o exército francês. Joana havia se tornado um símbolo de esperança. As pessoas cantavam hinos e uma procissão foi realizada para dar boas-vindas ao exército, Joana foi recebida como uma heroína. Posteriormente ela foi chamada de a Donzela de Orléans (La Pucelle d'Orleans). (MADDOX, 2012, p. 429). 


Joana d'Arc e o Cerco de Orléans. Jules Eugène Lenepveu, 1890. 

A fama de Joana d'Arc começou a se espalhar após a vitória em Orléans, tanto entre os franceses, quanto entre seus inimigos, os ingleses e borgonheses. Ao retornar a Chinon, Joana recebeu vários presentes do delfim e de outros nobres, em retribuição a sua motivação e determinação em sempre incentivar os homens a acreditarem no esforço e na vitória. 

A primeira missão de Joana d'Arc estava completa, agora ela partia para a segunda: coroar Carlos como rei da França. Tradicionalmente a coroação dos reis franceses era realizada em Reims, pois o rei Clóvis I do Francos (c. 466-511), foi ali coroado em 496, por São Remígio. Pelo fato de ter sido o primeiro soberano franco a unificar a Frância e a se converter ao cristianismo, tornou-se costume que todos os reis cristãos francos fossem coroados em Reims. Porém, a cidade apesar de estar sob domínio francês, a estrada de Chinon até lá, estava ocupada por tropas inglesas. Joana teria que abrir caminho. (MADDOX, 2012, p. 419). 

Três poderosos comandantes ingleses se encontravam no caminho para Reims, o cavaleiro Sir John Fastolf, William de la Pole, o 4o Conde de Suffolk e Lorde John Talbot. Após a vitória em Orléans, a população estava confiante e o exército também, acreditavam que realmente Joana possuía uma aura misteriosa que lhe concedia proteção e sorte na guerra, com isso, Carlos ordenou que suas tropas se preparassem para abrir caminho até Reims, cidade que distava 25 milhas (40 quilômetros). As batalhas se desenrolaram entre 11 a 17 de junho de 1429. Os franceses obtiveram vitórias consecutivas em Jargeau, Meung, Beaugency e Patay. (MADDOX, 2012, p. 432). 

O conde Suffolk e lorde Talbot foram feitos prisioneiros, e durante a batalha de Patay (17 ou 18 de junho), grande parte do exército inglês foi morto e feito prisioneiro. Talbot foi capturado, mas Fastolf conseguiu fugir. Tal feito foi tão grande que lendas surgiram a respeito, pois na época os três comandantes dos franceses, Le Hire, Joana d'Arc e Jean de Xaintralles dispunham de 1.500 homens, mas os ingleses comandados por John Talbot e John Fastolf contavam com 5 mil soldados. Desse total, quase 3 mil foram feitos prisioneiros, enquanto que os franceses tiveram apenas 100 baixas. (BANFIELD, 1988, p. 35). 

Após a vitória em Patay, a coroação de Carlos VII pôde ser realizada na Catedral de Reims. Joana na ocasião trajava vestes militares, uma armadura e ostentava sua bandeira de guerra. Sua segunda missão havia sido cumprida, Carlos havia sido coroado rei da França. Esse era o ponto alto da sua rápida carreira e ascensão. Joana era na época vista como uma heroína. 


Coroação de Carlos VII da França. Jules Eugène Lenepveu, 1890.

Traição e aprisionamento:

Após a coroação do rei, Joana aguardava as ordens para dar continuidade a sua missão, no caso seu terceiro objetivo era reunificar o Reino da França. Para isso ela teria que conquistar uma vitória definitiva sobre os ingleses e os borgonheses que ainda ocupavam o noroeste e norte do país. Mas para a surpresa e insatisfação de Joana, Carlos VII não era dado a guerras, era um líder frágil ainda naquele tempo, e após ser coroado tornou-se acomodado. 

Uma das medidas que o novo monarca decidiu tomar, ocorreu em 3 de agosto de 1429, Carlos VII assinou um armísticio com seu primo, o rei Filipe III de Borgonha. Neste caso, Filipe de Borgonha era um soberano pomposo, extravagante, admirado, firme e mulherengo. Enquanto seu primo Carlos era acomodado, Filipe era mais engajado na guerra e na política, o acordo entre os dois soberanos era vantajoso, ninguém atacava o território oposto, mas as cidades que estavam sob domínio borgonhês ainda permaneciam sob seu controle. Aquilo não agradou Joana, a qual por um mês permaneceu na corte desanimada pelo fato de seu rei não acreditar em sua missão. 

Entretanto, a cidade de Paris, antiga capital francesa, não entrou no acordo do armísticio, com isso, Joana solicitou ao rei que lhe permitisse libertar a cidade. A contragosto, Carlos VII deu a autorização. O ataque a Paris ocorreu entre 7 e 8 de setembro, quando ainda no dia 8, Joana que haviam perdido um de seus pajem, e foi ferida em uma das pernas, recebeu a mensagem que o rei ordenava suspensão do cerco e retorno a Reims. Joana deve ter ficado zangada ou bastante aborrecida, inclusive é também um fato contraditório o por que exatamente o rei decidiu abortar o ataque? Os motivos não são conclusivos, mas talvez tenham ligações políticas. (BANFIELD, 1988, p. 47). 

Ao retornar para a corte, Joana passou os meses seguintes no ócio, tendo saído apenas a campo em novembro, para participar de algumas campanhas para conter pequenas revoltas, mas visivelmente os planos do novo monarca de lutar para restaurar a França, estavam perdidos. Carlos tentou acalmar o descontentamento de Joana, apesar de parecer não querer mais seus serviços, tê-la por perto era manter todo seu simbolismo ainda ativo. Afinal Joana d'Arc havia se tornado de uma mera camponesa de Lorena, na heroína da França. 

Em dezembro de 1429, o rei concedeu a Joana o título de nobre e lhe deu a autorização para portar brasão de armas e o sobrenome de Lys, passando-a a designá-la Joana de Lys. Os irmãos de Joana, Jean e Pierre foram convidados pela irmã a se unir a sua corte, e adotaram o sobrenome de Lys. (MADDOX, 2012, p. 419). Embora que na prática Joana não costumasse a usar o novo sobrenome. Inclusive durante seu interrogatório na prisão, ela se nomeava como Joana d'Arc. 


Brasão de armas de Joana d'Arc

Meses se passaram, e chegando em maio de 1430, Joana decidiu tomar uma medida drástica. Não se sabe ao certo os motivos de ela ter desobedecido o rei Carlos VII, porém, Joana contratou uma tropa de mercenários e convocou alguns de seus amigos. Se o rei não estava disposto a ir à guerra, ela iria por conta própria. A missão era atacar os territórios sob domínio dos borgonheses. A cidade alvo era Compaigne. Segundo uma lenda, Joana e sua tropa, enquanto passavam a Páscoa em Melun, cidade no caminho para Compaigne, lá Joana teria tido uma revelação de um dos santos, que lhe disse que ela seria capturada antes do dia de São João, celebrado na França em 24 de maio. (BANFIELD, 1988, p. 48).

Se Joana teve essa revelação ou não, ainda assim, ela decidiu seguir com sua campanha. No dia 22 de maio eles chegaram a Compagnie, e no dia seguinte ocorreu o conflito contra os borgonheses. A pequena tropa de mercenários de Joana era insuficiente para confrontar o poderio inimigo. Após uma batalha dentro dos muros da cidade, Joana foi derrubada de seu cavalo e feita prisioneira. Era o dia 23 de maio de 1430. Nesse ponto sua história tomou uma reviravolta.

Tradicionalmente os nobres quando eram feitos prisioneiros, isso se devia ao fato de que se pediria um gordo resgate para libertá-lo. Pelo fato de Joana independente de ser um cavaleiro e uma heroína, era antes de tudo uma nobre, logo, ditava a cordialidade cavaleiresca em se acatar o pedido de resgate, porém, o rei Carlos VII negou-se a pagá-lo. Dizem que ele mesmo recebendo críticas de outros nobres e até do povo que admirava Joana, ainda assim, manteve-se insensível ao caso. Os motivos pelos quais o rei negou-se a resgatar Joana, ainda hoje não são totalmente conclusivos. 

Joana d'Arc foi mantida prisioneira dos borgonheses por um ano. Devido a ser uma nobre, foi mantida em prisão domiciliar no castelo de Beaurevoir, sob custódia do duque João de Luxemburgo. Nesse ponto a história da prisão de Joana é mal explicada. Sabe-se que ela foi tratada bem durante o período que permaneceu no castelo de Beaurevoir, porém, o fato de nenhum nobre francês se dispor a pagar o seu resgate é estranho. No fim, o responsável por libertar, mas também por condenar Joana foi Pierre Cauchon, bispo de Beauvais. (MADDOX, 2012, p. 437).

Enquanto a corte francesa não apresentava consenso pela soltura de Joana, pois houve tentativas de pagar o resgate, a corte inglesa decidiu tomar a frente: ofereceram na época 10 mil francos para ter Joana não livre, mas como prisioneira da Inglaterra. A ideia era mandá-la a julgamento, afinal, Joana era inimiga dos ingleses, tendo participado de batalhas que levaram a sua derrota. No caso, o bispo Cauchon também tinha interesse em julgar Joana, pois considerava ela uma farsante e talvez uma bruxa. Joana havia conquistado notoriedade com base na fé, e até mesmo subestimado a autoridade eclesiástica, principalmente durante as semanas que esteve em Poitiers. Com isso, foi acordado que os ingleses receberiam a custódia de Joana, mas ela seria julgada pela inquisição. 

O processo inquisitorial:

Joana foi retirada da custódia do duque de Luxemburgo e enviada para Ruão, capital da Normandia, na época, território francês ocupado pelos ingleses. Ela chegou no começo de dezembro, tendo sido enviada para uma cela suja e escura, sua nova morada pelos meses seguintes. Em 9 de janeiro de 1431 o processo inquisitorial contra Joana foi iniciado. Nessa primeira fase colheu-se provas e testemunhos. Os interrogatórios se iniciaram em 21 de fevereiro. Consistindo em um de sete dias de julgamento, os quais chegavam a levar horas. No caso, um dos inquisidores que a julgaram, foi o próprio bispo Pierre Cauchon, que fez questão de solicitar autorização a inquisição para participar do processo de Joana. Cauchon representava os franceses, do lado dos ingleses estava o cardeal Henrique Beaufort. Apesar de ter havido outros inquisidores, o bispo e o cardeal foram os principais deles. (BANFIELD, 1988, p. 59).

Muito do que se conhece da história de Joana adveio durante estes dias de julgamento, pois os inquisidores lhe indagavam a respeito de sua vida e detalhes sobre as vozes que ouvia, sua viagem a Vaucouleurs, a viagem até Chinon, sua participação nas batalhas, a vida na corte etc. Porém, o que irritava os juízes era o fato de que quando pediram que Joana lhe contasse a respeito das suas conversas que possuía com os santos, ela respondeu que Deus não a havia autorizado revelar a aqueles homens o teor dessas conversas. Joana apenas limitou-se a confirmar suas três missões: libertar Orléans, coroar Carlos VII, unificar a França. 

O fato de Joana negar-se a revelar o teor das conversas que dizia ter com os santos Miguel Arcanjo, Catarina de Alexandria e Margarida de Antioquia irritou os inquisidores, pois consideravam demasia prepotência da ré em desafiar a autoridade eclesiástica e inquisitorial. De fato, uma das acusações feitas a Joana foi o desrespeito a autoridade inquisitorial, algo que na época era considerado uma ofensa que recebia pena. 

Outro fator que pesou contra Joana, que também estava relacionado com as vozes que ela dizia ouvir dos santos, alguns inquisidores acusaram de que na verdade se tratavam de vozes de demônios, pois os santos mortos não se comunicavam com os vivos. No século XV a ideia de que ouvir os mortos, ou ver supostamente anjos ou santos, era considerada ou charlatanice, mentira ou pacto diabólico. 

Desde 1326 a Igreja através da bula Super Illius Specula, associava a feitiçaria com Satanás. Neste caso, boatos advindos inicialmente dos franceses, mas principalmente dos ingleses, sugeriam que as vitórias conquistadas contra eles se deveria ao fato de que supostamente Joana teria usado algum tipo de magia para conseguir tal feito. Apesar de a Caça às Bruxas só ter se iniciado propriamente na segunda metade do século XV, na primeira metade, casos de bruxaria já estavam sendo julgados ocasionalmente. Acreditava-se que uma bruxa era a mulher que renegava a sua fé (apostasia) e fazia um pacto com o Diabo, passando a servi-lo (idolatria), em troca de receber informações, conhecimento e poderes. (VILAR, 2015). 

Nesse sentido, em dados momentos dos interrogatórios de Joana, os inquisidores a indagaram se as vozes que ela ouvia eram mesmo de santos, ou não seriam demônios? Joana em todas as ocasiões negou tal acusação, dizendo que ela era uma cristã e católica devota, que as vozes eram dos santos de Deus. Apenas isso não bastaria para acusa-la de bruxaria, já que ele negava que soubesse magia ou fosse devota de Satã, porém, a condição de ela sempre dizer que conversava diariamente com os santos, intrigava os juízes. Se Deus havia reservado planos para ajudar o povo francês, por que não procurou pelo cardeal, bispos ou algum outro clérigo, mas justo foi escolher uma camponesa analfabeta e pobre, dos cantões da Lorena? 

"De acordo com a teologia da época, os ministros da Igreja recebiam poder e inspiração diretamente de Deus. Assim, para amar e obedecer a Deus era preciso amar e obedecer à Igreja e a seus ministros. A evidência de que Joana colocava sua lealdade a Deus acima da lealdade à Igreja, tornou-se clara desde o primeiro dia do julgamento. Mostrou-se pela primeira vez em sua recusa de prestar juramento para revelar tudo o que suas vozes lhe haviam dito". (BANFIELD, 1988, p. 61).

Joana além de tais acusações, também foi acusada de supostamente ter matado alguns soldados, porém, ela relutou em confirmar isso, dizendo que apesar de usar armadura e ir para o campo de batalha, ela jamais matou alguém. Alguns de seus companheiros de luta confirmaram tal condição. Além disso, até onde se sabe, Joana não recebeu treinamento militar. Outra crítica feita dizia respeito que enquanto esteve presa em Ruão, ela se negou a vestir trajes femininos, usando as vestes masculinas de um pajem, um tipo de serviçal. 

Aqui temos três problemas: um, o fato de ela se recusar a obedecer uma ordem dos juízes; trajar vestes masculinas, que era algo imoral na época, apesar de que ela só usasse armadura no campo de batalha e em alguns festejos, mas normalmente ela trajava vestidos. Joana era conhecida por apreciar o requinte, ela mesmo confirma isso em seu depoimento. O terceiro problema era o fato de que ela era uma nobre, logo, era indecoroso está vestida como uma serviçal, embora Joana nunca rejeitou sua origem humilde, alegando que tal fato não a incomodava. 

Como Joana negava-se a confirmar culpa ou a dar explicações mais satisfatórias, no dia 9 de maio, ela foi ameaçada de ser torturada. No caso, a tortura era utilizada pela inquisição desde o século XIII, embora não fosse aplicada sempre e houvesse normas para seu uso. Mas mesmo sob ameaça de tortura,  Joana negou-se a confessar alguma culpa, pois se declarava inocente. Nas semanas seguintes os inquisidores decidiram torturá-la de outra forma, deixando-a a passar fome e sede na prisão, no intuito de enfraquecê-la. Em alguns casos eles iam até a cela e tentavam tirar-lhe uma confissão. No sistema de julgamento inquisitorial, a sentença de pena somente poderia ser emitida se o réu ou ré confessasse sua culpa. (MADDOX, 2012, p. 438-439). 

Falhado as tentativas de pressioná-la no cárcere, Joana foi levada no dia 24 de maio, até o cemitério de Saint-Ouen, onde foi acusada publicamente diante de várias pessoas, além de ser severamente ofendida. O padre Guillaume Erard proferiu um mordaz sermão contra Joana. Ele se encontrava sobre um palanque usado para enforcar prisioneiros e condenados. De cima do palanque ele acusava Joana e cobrava sua retratação e culpabilidade. Joana resistiu a aquela tortura psicológica por algum tempo, até que acabou cedendo. Ela se retratou, dizendo que abandonava suas vozes e perdia perdão a Deus e a Igreja. Todavia, no dia 28 de maio, Joana voltou atrás e recusou sua retratação. Segundo ela, os santos criticaram sua atitude de ter vacilado naquele momento, em vergonha a estes, ela retirou sua retratação. (MADDOX, 2012, p. 439). 

O fato de Joana ter voltado atrás, era considerado demasiadamente problemático  para ela. Um criminoso que havia confessado a culpa, voltar atrás e dizer que era inocente, era tachado de sem vergonha, canalha, mentiroso etc. Tal fato foi o motivo final para que Joana definitivamente fosse acusada a pena de morte. O bispo Pierre Cauchon leu a sentença final, acusando Joana de heresia grave por mentir sobre a procedência das vozes que dizia ouvir, por ter enganado a muitos, por ter desobedecido e insultado os ministro de Deus e a autoridade da Igreja e da Inquisição; por ter supostamente renunciado a sua fé, e se submeter as tentações demoníacas. (BANFIELD, 1988, p. 74). 

Joana d'Arc foi condenada a pena de morte na fogueira, em 30 de maio de 1431, aos 19 anos de idade. Uma pira foi erguida na velha praça do mercado, no centro de Ruão. Trajada com uma batina branca, veste comum dada aos culpados, e usando uma insígnia na cabeça com a imagem de dois demônios e contendo quatro palavras, que estavam relacionados com os crimes de que era acusada: heresia, relapsa, apóstata e idolatria


Execução de Joana d'Arc. Jules Eugène Lenepveu, 1890. 

Joana foi conduzida até a fogueira, onde foi amarrada ao mastro, teve seu traje embebido em enxofre ou óleo, para queimar mais rápido. Segundo o relato, ela teria solicitado duas cruzes: um crucifixo que foi dado por um dos soldados ingleses que fazia a guarda, e uma cruz que foi segurada por um dos funcionários da inquisição. Sua sentença foi lida e as chamas acesas. Segundo uma lenda, o coração de Joana não teria sido queimado, tendo permanecido intacto, aquilo foi considerado um milagre, uma prova de sua santidade. Outro relato diz que enquanto era queimada viva, ela gritava o nome de Jesus Cristo, pedindo misericórdia para si e para seus algozes. (MADDOX, 2012, p. 440).

Apesar de ter supostamente considerada uma bruxa, a acusação final não lhe sentenciou propriamente pelo crime de bruxaria, inclusive o fato de queimar pessoas vivas era adotado para outros crimes e não apenas o de bruxaria. A própria noção de bruxaria ainda estava em desenvolvimento na década de 1430, apenas na década de 1480 é que ela seria formalizada e oficialmente decretada pela Igreja Católica. (VILAR, 2017). Logo, dizer que Joana d'Arc foi queimada na fogueira por ser uma bruxa, não está correto, já que na sua sentença final não constava tal crime, mas sim o de heresia, como comentado acima. 

Legado: 

A família de Joana passou os anos seguintes tentando provar que o julgamento havia sido arbitrário, que Joana havia sido condenada injustamente. A absolvição dela somente se deu em 1456, quando o papa Calisto III reconheceu que o processo inquisitorial que condenou Joana d'Arc em 1431 havia agido de forma irresponsável e imprudente. Mas embora ela tenha sido inocentada e desculpas tenham sido emitidas aos d'Arc, a má fama de Joana ainda continuou pelos séculos seguintes. No século XIX, motivado pelo Romantismo, Joana volta a ganhar destaque como símbolo nacional francês, fosse através das pinturas ou da literatura, ela volta a encarnar a virgem, a guerreira e a mártir. 

Em 1909 o papa Pio X com base na investigação de três milagres realizados com freiras francesas, Teresa de Santo Agostinho, Julie Guthier e Marie Sagnier, as quais foram curadas de úlceras e cânceres, atribuiu a beatificação a Joana. Em 1920 o papa Bento XV com base em dois outros milagres ocorridos com Thérèse Belin, em Orléans, que foi curada de um grave tipo de tuberculose em 1909, e de Miss Mirandele, que possuía uma ferida profunda no pé, já infeccionada, mas foi curada. Joana d'Arc foi oficialmente feito santa em 16 de maio de 1920, atribuindo-se a data de 30 de maio, dia de sua morte, como seu dia litúrgico. 

Ainda no mesmo ano de 1920, o governo francês celebrou a canonização da santa, atribuindo-lhe o dia 8 de maio como feriado nacional, em memória ao seu valor em lutar pela nação. Posteriormente o feriado também passou a celebrar o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, tornando-se o Dia da Vitória. Joana também passou a vigorar civicamente no panteão dos heróis nacionais da França, inclusive tornando-se padroeira do país. 

NOTA: Margaret Joan Maddox (2012, p. 418) comenta que em documentos medievais e modernos encontram-se diversas variações de grafia e até de pronúncia quanto ao sobrenome da família de Joana. Maddox cita as variações de Dart, Day, Dai, Darx, Dars, Tarc, Tard etc. Assim como, diz que a atual grafia vigente, d'Arc se popularizou no XIX.
NOTA 2: Joana d'Arc ao longo dos séculos foi tema de pinturas, poemas, contos, canções, filmes, livros, jogos, séries etc. Em geral a maioria da produção artística a partir do XIX, exalta seu lado heroico e devoto, porém, antes do XIX, temos poemas, canções e escritos a degradando, acusando-o de farsante, louca, bruxa etc. 
NOTA 3: Foram produzidos alguns filmes sobre a santa, entre os quais se destacam: A paixão de Joana d'Arc (1928), Joana d'Arc (1948), e Joana d'Arc de Luc Besson (1999). Ainda no ano de 1999 também foi lançado um filme para a televisão. 
NOTA 4: Em Age of Empires 2 (1999) existe uma campanha baseada na história de Joana. A santa também é tema de outros jogos como War and Warriors: Joana of Arc (2004) e  Jeanne D'Arc (2007). 
NOTA 5: O famoso escritor brasileiro Érico Veríssimo (1905-1975) escreveu uma biografia romanceada sobre Joana. A obra publicada em 1935 adaptava a história da santa mártir para o público infanto-juvenil. 
NOTA 6: A vida de Joana também foi romanceada pelo famoso escritor americano Mark Twain (1835-1910) em sua novela Personal Recollections of Joan of Arc (1896). 
NOTA 7: O livro Assassin's Creed: Heresia (2016), aborda a história de Joana d'Arc por um viés de romance histórico. 

Referências bibliográficas: 
BANFIELD, Susan. Joana d'Arc. São Paulo, Nova Cultural, 1988. (Coleção Grandes Líderes). 
MADDOX, Margaret Joan. Joan of Arc (ca. 1412-1431). In: MATHESON, Lister M. (ed). Icons of the  Middles Ages: rules, writers, rebels, and saints, vol 2. Santa Barbara, CA, Greenwood Icons, 2012. p. 417-450. 2v

Referência da internet:
VILAR, Leandro. A Caça às Bruxas. Disponível em: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2017/05/a-caca-as-bruxas-xv-xviii.html. 2017

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Diogo Álvares, o Caramuru, e a Fundação Mítica do Brasil

Diogo Alvares, o Caramuru, e a Fundação Mítica do Brasil

Janaína Amado


Obs: os grifos e as imagens aqui colocadas foram escolhidas por mim, para complementar a obra da autora. 

Um tema recorrente da historiografia, da literatura e do imaginário, brasileiros é a história de Diogo Alvares, o Caramuru, um dos primeiros habitantes brancos do Brasil, aqui, chegado, provavelmente como náufrago, no início da colonização portuguesa. E certo que Diogo, talvez um minhoto de Viana do Castelo,2 residiu na Bahia durante muitos anos (entre três e seis décadas, não se sabe), parte dos quais sem contato, ou com contato esporádico, com os portugueses. E possível que nessa época se tenha relacionado com corsários franceses que então rondavam as costas brasileiras.

Retrato hipotético de Diogo Álvares, o Caramuru (1475?-1557?). 
Diogo Alvares aprendeu línguas e costumes dos índios, parece que se envolveu em guerras tribais, segundo algumas fontes chegou a ser respeitado pelos chefes indígenas, e comprovadamente deixou descendência, seja das "muitas mulheres" indígenas que lhe atribuem certos cronistas, seja da índia Paraguaçu, filha de um grande guerreiro e chefe tupinambá da Bahia. Teve filhos, que também se casaram e lhe deram netos.

Segundo a tradição, conseguiu impor-se definitivamente perante os indígenas desde que disparou para o ar uma arma de fogo, desconhecida dos índios, os quais, muito assustados, se prostraram a seus pés, chamando-o desde então, ou pouco mais tarde, "Caramuru", nome para o qual foram atribuídos muitos significados segundo a narrativa que se consulta: filho do fogo, filho do trovão, homem do fogo, dragão do mar, dragão que o mar vomita, peixe dos rios brasileiros semelhante à moréia, grande moréia, rio grande, europeu residente no Brasil, aquele que sabe falar a língua dos índios3

Sem concordar quanto à data, algumas fontes relatam uma viagem de Caramuru e Paraguaçu à França, em navio francês que aportara às costas brasileiras, durante o reinado de Henrique II e Catarina de Médicis: ali Paraguaçu teria sido batizada como "Catarina", em homenagem, segundo alguns, à rainha dos franceses, segundo outros, a Catarina de Portugal.4 Quando chegaram à Bahia as primeiras autoridades civis portuguesas como o donatário Francisco Pereira Coutinho e o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, este em 1549 -, e os primeiros jesuítas, como o padre Manuel da Nóbrega, Diogo Alvares comprovadamente os auxiliou, prestando-lhes informações preciosas sobre a terra e a gente do lugar, além de repetidos serviços como lingoa (intérprete) e mediador junto aos índios.

Seu nome, os serviços que prestou à Coroa e à Igreja e sua descendência foram aplaudidos na correspondência civil e religiosa enviada à época da Bahia; Tomé de Souza recompensou-o com mercês e recomendações sobre sua pessoa ao rei, e o padre Manuel da Nóbrega, que com ele conviveu, o elogiou em mais de uma carta; ao morrer, Diogo deixou metade de sua terça à Companhia de Jesus. E provável que, após o início da colonização sistemática, o Caramuru tenha vivido tanto nos núcleos urbanos quanto entre os indígenas. Tudo indica que faleceu na Bahia, havendo dúvidas quanto à data: teria sido no ano de 1557.5

Poucos personagens da história do Brasil têm merecido tantas, tão antigas e duradouras referências, de tão variadas procedências. Desde o século, XVI a história de Diogo Álvares, o Caramuru, vem sendo contada e recontada por cronistas e autoridades civis e religiosas; desde o XVII, também por historiadores, militares, poetas populares e curiosos; desde o XVIII, juntaram-se os poetas eruditos; no XIX, o tema conheceu rigorosa revisão histórica, além de ter ficado conhecido como "Caramuru" o Partido Restaurador, o qual, após a abdicação de dom Pedro I, defendeu o retorno deste ao trono brasileiro; desde pelo menos o início do século XX, o assunto tem servido a poetas populares, teatrólogos, autores de livros didáticos, romancistas, jornalistas6.

Embora não tenha mais sido objeto de livros inteiros, o tema continua atual, pois vem sendo referido em publicações contemporâneas do Brasil e de Portugal, algumas bastante diferentes entre si? Os autores das narrativas sobre o Caramuru foram brasileiros e portugueses, além de franceses e ingleses, tendo sido sua produção original editada tanto no Brasil quanto em Portugal, França, Inglaterra e outros países.8

Não apenas a linguagem escrita se ocupou do personagem: a iconografia sobre o Caramuru é muito vasta e rica em detalhes desde o século XVI, constando de gravuras, desenhos, óleos, aquarelas, afrescos, esculturas etc., relacionados aos textos escritos ou - o que é muito interessante - deles independentes. São objetos favoritos dessa iconografia (um belo tema de estudo, ainda inexplorado) as cenas, de Diogo Alvares disparando a arma perante os índios, de seu casamento em França com Paraguaçu, e de uma índia, Moema, atirando-se no mar atrás de seu amado Caramuru, que partia para a França. No Brasil, especificamente na Bahia, há ainda outra importante fonte de referência sobre Diogo Alvares: trata-se da tradição oral, atestada desde pelo menos a primeira metade do século passado.

Moema. Victor Meirelles, 1866. Quadro inspirado nas histórias do Caramuru. 
São poesias e prosas populares, encontradas na região do Recôncavo Baiano e em Cruz das Almas, anotadas ou referidas por estudiosos. Não por acaso, em 1999, durante as comemorações dos 450 anos de fundação da cidade de Salvador, os órgãos públicos encarregados de festejar a data escolheram representar, com atores vestidos em trajes de época, a chegada à terra do governador Martim Afonso de Souza e comitiva, recebidos pelos índios e por ninguém menos que, Diogo Alvares, o Caramuru.

Finalmente, o personagem tornou-se tão popular no Brasil no presente século que, além de constar de obras de historiadores, romancistas, poetas, jornalistas, dos livros escolares, da tradição oral etc., foi também, durante a década de 1950, tema de uma popular marchinha de carnaval, cujo refrão repetia: "Caramuru/ Uhuh/ Caramuru/ Uhuh/ Filho do fogo/ Neto do trovão...".

O Caramuru foi ainda cantado, representado e retratado em alas, destaques e carros alegóricos de escolas de samba cujos enredos versavam sobre "assuntos históricos" correlatos, tais como o Brasil nas cortes de França, o descobrimento do Brasil, o povoamento brasileiro, as três raças que formaram o Brasil... Por fim, quando brilham nos céus do Brasil estrelas coloridas, mandalas e lindas figuras, nosso personagem também é, de certa forma, lembrado, pois a mais conhecida fábrica brasileira de fogos de artifício chama-se, justamente, "Caramuru".

Portanto, a história do Caramuru tem-se constituído, desde o século XVI, em uma das narrativas preferidas de brasileiros, portugueses e pessoas de outras nacionalidades quando querem falar a respeito do Brasil e estabelecer uma, origem para esse país. E uma antiga história arraigada na cultura brasileira, importante para a formação de uma certa idéia de nação, que tem transitado com facilidade do erudito ao popular e à comunicação de massas, da academia às ruas, da prosa à poesia, do oral ao escrito e ao pictórico, da tradição à inovação, fortemente disputada pela história, pela literatura e pela tradição popular.

Surpreender momentos dessa fascinante trajetória de construção da memória coletiva sobre o Caramuru, por meio da análise de algumas das muitas narrativas compostas sobre ele, será nosso objetivo, daqui em diante. No presente texto trabalharemos apenas com narrativas escritas, eruditas, publicadas em forma de livro ou artigo, que se mostraram importantes para a construção da memória coletiva. Na conclusão, analisaremos as relações entre história e literatura nas narrativas e a questão do Caramuru como mito.

O Caramuru dos primeiros cronistas e do poeta popular

Excetuando-se os poucos documentos de época, escritos por autoridades, portuguesas, civis e religiosas, que conviveram diretamente com Diogo Álvares, a primeira narrativa conhecida a tratar da história do Caramuru foi Notícia do Brasil, de Gabriel Soares de Souza, cujas cópias manuscritas circularam na Europa a partir de 1587.10 Relato minucioso, fruto da observação direta do autor, que viveu muitos anos no Brasil, contém descrições pormenorizadas do território, recursos, fauna, flora e gente brasileira, bem como de acontecimentos do início da colonização lusa. Nessa fonte preciosa da história do Brasil que, dependendo da edição, tem cerca de 260 páginas impressas, o Caramuru é personagem secundaríssimo, referido apenas em duas passagens que, somadas, não chegam a preencher uma página.

Frontispício da edição de 1831 do Tratado Descritivo do Brasil ou Notícia do Brasil, obra publicada em 1587, pelo padre Gabriel Soares de Souza. Este consiste no mais antigo relato conhecido a mencionar o Caramuru.
A primeira referência surge em um enredo cujo protagonista é o donatário inaugural da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, que, após várias derrotas frente aos índios, se refugiara em Ilhéus; chamado de volta pelos indígenas, Pereira decidira retornar à povoação que fundara na Bahia, Vila Velha, levando , num dos navios "Diogo Alvares, de alcunha o Caramuru, grande língua do gentio". A armada, entretanto, naufragou, tendo todos (inclusive Coutinho), perecido, no mar ou devorados pelos índios; o único a escapar foi "Diogo Alvares, com sua boa linguagem".11

A segunda referência é um pouco mais extensa: quando Tomé de Souza chegou à Vila Velha, aí encontrou o intérprete Diogo Álvares, que, após a morte de Coutinho, se recompusera com os índios, vivendo com "cinco genros e outros homens [...], com os quais, ora com armas, ora com boas razões, se foram defendendo e sustentando até a chegada de Tomé de Souza, por cujo mandado Diogo Correia aquietou o gentio e fez dar a obediência ao governador [...] o qual gentio viveu muito quieto e recolhido [...] trabalhando na fortificação da cidade, a troco do resgate que lhe por isso davam".12 Gabriel Soares, portanto, nada revela sobre a história pregressa de Diogo, nem como chegou ao Brasil, limitando-se, em sua prosa contida, a registrar a presença do eficiente intérprete que vivia entre índios e colonizadores, o fato de ter sido salvo da morte por conhecer a língua indígena, o apoio que deu às autoridades portuguesas na pacificação dos índios e a descendência que deixou.13

Em 1663 foi publicada em Lisboa a Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, do padre jesuíta Simão de Vasconcellos, o primeiro livro a estender-se sobre a "breve história notável do celebrado Diogo Álvares".14 Em quatro páginas, inseridas na história do primeiro donatário da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, o jesuíta diz em resumo o seguinte:

Diogo Alvares (não grafa o sobrenome "Correia") nasceu em Viana, de "gente nobre"; embarcou após 1530, para o Brasil ou para a Índia, sofrendo naufrágio no litoral da Bahia; feito cativo com outros que escaparam ao mar e à antropofagia, dedicou-se com constância a retirar os despojos do navio (entre os quais pólvora e arcabuzes), e os índios "contentaram-se dele e assentaram entre si que aquele ficasse com vida"; consertado o arcabuz, disparou um tiro para cima, matando provavelmente uma fera ou uma ave, o que ocasionou grande medo aos índios, "dizendo a vozes que era um homem de fogo que queria matá-los"; lutou do lado daqueles índios contra outros, ganhando, com seu arcabuz, fama "por todos os sertões, e foi tido por homem portentoso [...] e aqui lhe acrescentaram o nome, chamando-lhe o grande Caramuru [...]";

assentou casa em Vila Velha e "teve aqui grande família e muitas mulheres [...] houve muitos filhos e filhas, que pelo tempo foram cabeças de nobres gerações"; embarcou para a França numa nau carregada de pau-brasil, levando consigo "a mais querida das suas mulheres, dotada de formosura e Princesa daquela gente [...] não sem grande inveja das que ficaram"; o casal foi recebido pelos reis de França, a mulher foi batizada, recebendo "por nome, Catarina Alvares, sendo o do Brasil Paraguaçu", e ambos foram casados;

os reis franceses não consentiram que Diogo voltasse a Portugal, mas este conseguiu enviar a dom João III notícias sobre o Brasil e sobre a necessidade de povoar este país; ele e Catarina retornaram à América com duas naus carregadas e com artilharia, após se comprometerem a encher as naus francesas de pau-brasil, o que fizeram; Diogo prosperou, tornando-se "senhor de muitos escravos"; ajudou uma nau castelhana que naufragara, recebendo mais tarde uma carta de agradecimento do imperador Carlos V; durante o episódio deste naufrágio, Catarina pediu a Diogo "que tornasse a buscar-lhe uma mulher, que viera na nau, e estava entre os índios, porque lhe aparecia em visão, e lhe dizia que a mandasse vir para junto a si, e lhe fizesse uma casa";

após muitas tentativas, encontrou-se "uma imagem de Nossa Senhora que um índio recolhera na praia e tinha lançado ao canto de uma casa"; Catarina identificou esta imagem com a da visão; a imagem recebeu uma casa e foi "honrada com o título de Nossa Senhora da Graça, enriquecida de muitas relíquias e indulgências, que então mandou o Sumo Pontífice", passando à guarda dos beneditinos; os filhos e filhas "destes dois devotos da Senhora" foram batizados por religiosos, casando-se várias filhas com fidalgos (constam seus nomes) e "deste tronco procederam muitas das melhores e mais nobres famílias da Bahia";

"donde dizemos que Francisco Pereira Coutinho [donatário da Bahia] foi o primeiro povoador por data d'EI-Rei, e , direito. Real; porém Diogo Alvares foi o primeiro por data dos senhores da terra naturais, o direito das gentes".15

Frontispício da primeira edição do tomo I da Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, escrita pelo padre Simão Vasconcelos, e publicada em 1663.
Todos os principais elementos, portanto, que mais tarde caracterizariam as diversas versões da história do Caramuru estão já contidos nessa narrativa de Simão de Vasconcellos: a viagem a partir de Viana, o naufrágio, o tiro para o ar, o respeito dos índios, o nome Caramuru, o amor de Paraguaçu, a ida à França, a inveja das mulheres que ficaram no Brasil, o batismo e o casamento, o retorno ao Brasil, o naufrágio do navio espanhol, a visão de Paraguaçu, a descendência de Caramuru, o apoio deste às autoridades portuguesas no trato com os índios.16

Pode-se dizer que a narrativa do Padre Vasconcellos constitui O "núcleo duro", a matriz, o centro do enredo do Caramuru.17 Daí em diante muito pouco se criou a respeito do assunto, quase tudo se transformou. Nenhum elemento ou evento realmente novo foi acrescentado ao tema, ocorrendo apenas transformações. Essas transformações - verdadeiras alquimias - foram geradas por diversos, e muitas vezes simultâneos, mecanismos sociais ou especificamente narrativos, tais como: rearranjos de partes da história, ressignificações de seus elementos, atualizações de estilo, ênfases em diferentes passagens, diversidade de audiências a serem alcançadas, diferenças de pontos de vista sobre o tema, múltiplos usos sociais para a história, variedade de meios por que foi divulgada
etc.

E interessante notar que, no mesmo século XVII que fixou o duradouro núcleo duro da história do Caramuru, surgiu também, pela primeira vez, uma versão dissidente, satírica, da história. Seu autor foi ninguém menos que o poeta Gregório de Matos, o "Boca do Inferno", que, com o talento e a ironia habituais, utilizou-se do Caramuru para explorar um dos seus temas favoritos: a sátira às pretensões de fidalguia da elite baiana, uma elite mestiça que gostava de autoproclamar-se branca.

Em seu poema, Gregório de Matos registra a acepção que a palavra "caramuru" assumira já no século XVII: a de sinônimo de "europeu residente no Brasil".18 Esta acepção revelou-se tão disseminada e duradoura que, duzentos anos depois, no século XIX, foi atribuída ao Partido Restaurador, o qual, após a abdicação de dom Pedro I, defendia o retorno deste ao trono brasileiro. O Partido Restaurador tinha entre seus membros muitos europeus residentes no Brasil, ou seja, muitos caramurus, e por isso foi apelidado, pelo povo e pela imprensa, de "Caramuru".

Gregório de Matos ridiculariza impiedosamente a pretensão dos "principais" da terra à brancura de pele (com todas as conseqüências sociais favoráveis que disso lhes adviria), demonstrando que os pretensos "caramurus" descendiam tanto de negros - com seus vinhos de caju, seus pilões, suas muquecas e carurus - quanto de índios. Em vez de ser, portanto, "caramurus", os principais do Brasil eram em verdade "paiaiás", isto é, pajés, ainda por cima misturados com sangue negro.

Além disso, o tão falado Caramuru, o personagem histórico resgatado pela elite para confirmar sua pretensão à brancura de pele, para Gregório de Matos não teria passado de um "marau", isto é, de um bajulador esperto. Diz o poema, significativamente intitulado "Aos principais da Bahia chamados de Caramurus":

Há causa como ver um Paiaiá
Mui prezado de ser Caramuru!
Descendente de sangue de Tatu!
Cujo torpe idioma é cobé pá!
A linha feminina é carimá
Moqueca, pititinga e caruru!
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisando num pilão de Piraguá!
A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé um branco Pai
Dormiu no promontório de Passé
O Branco era um marau, que veio aqui!
Ela era uma Índia de Maré
Cobé pá, Cobé Paí.19

Pela pena de Gregório de Matos o Caramuru entrou pela primeira vez para a literatura, que, conforme se verá, será terreno fértil para a fixação, ampliação e divulgação da história. Contudo, a original vertente inaugurada por Gregório de Matos - a da sátira impiedosa, que lembra o tom de alguns modernistas, especialmente o de Macunaíma -, não predominará na construção da história do Caramuru. Ao contrário, nesse caso, assim como aconteceu com outras partes de sua obra, Gregório de Matos permaneceria voz isolada, solitário grito da consciência social do poeta.

Caramuru como objeto da história

Nova narrativa acerca do Caramuru, publicada em 1730, foi inserida em um livro de grande prestígio no século XVIII e início do XIX: História da América Portugueza, de Sebastião da Rocha Pitta.20 Escrita em estilo barroco, a obra descreve com pormenores os "mais expressivos feitos" da colonização portuguesa, a geografia e os recursos do país; seguindo o costume em alguns livros do gênero, não apresenta fontes, bibliografia ou notas de rodapé nem se preocupa em comprovar a veracidade do que afirma. A obra de Rocha Pitta tornou-se paradigma do conhecimento da história do Brasil e modelo de narrativa histórica no país, mantendo vivo o Caramuru ao atualizar estilo e enredo segundo o gosto e as preocupações do público erudito de então.

Frontispício da História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, 1730. 
Rocha Pitta antecipa a história do Caramuru em cerca de quinze anos, desvinculando-a da saga do primeiro donatário da Bahia e relacionando-a à expedição exploradora de Cristóvão Jacques.21 A grande novidade dessa narrativa é o protagonista, não mais Caramuru, mas Paraguaçu. Essa "notável matrona", "filha do principal da província da Bahia", tem desde logo esclarecido seu importante papel para a história: "foi instrumento de que mais facilmente se dominasse a Bahia"; "e seria desatenção", explica o autor, "excluir deste teatro tão essencial figura".22

Paraguaçu vivia entre os seus até chegar de Viana o nobre náufrago Diogo Álvares, cujas primeiras aventuras são as mesmas narradas pelo Padre Simão de Vasconcellos. Dada por seu pai, como esposa, a "Caramuru-assu [...] o mesmo que Dragão que sai do mar" - enquanto outras índias foram dadas a ele como concubinas -, Paraguaçu "nesta bárbara união viveu algum tempo", até receber em França, "em soleníssimo ato, com assistência de muitos prín- , cipes", o batismo, e ser, depois, casada.

De volta ao Brasil "Catarina Álvares [...] corno senhora destes gentios fez que com menor repugnância se sujeitassem ao jugo português". Durante o naufrágio do navio espanhol, ela teve a visão conhecida, com as conseqüências já sabidas. Catarina e Diogo deixaram descendentes que "fizeram nobilíssimas famílias". Rocha Pitta a seguir passa a narrar "a vinda do glorioso Apóstolo S. Thomé anunciando a doutrina católica, não só no Brasil, mas em toda a América".23

Rocha Pitta repetiu, com nova roupagem, todos os eventos do enredo tecido pelo padre Simão de Vasconcellos, cuja obra, à época, já se tornara rara.24 Ao fazê-lo, contribuiu para a divulgação deste enredo, num momento em que ele, concorrendo já com muitas outras poderosas memórias, talvez corresse o risco de diluir-se no esquecimento. O prestígio da obra de Rocha Pitta e a deferência com que foi tratada pelos eruditos conferiram à história de Paraguaçu e Caramuru a autoridade do historiador, legitimando-a frente às audiências. A par disso, ao promover a rotação de protagonistas, trazendo Paraguaçu-Catarina para o centro do seu teatro, Rocha Pitta inaugurou uma nova maneira de celebrar a colonização portuguesa e os laços de continuidade Portugal-Brasil: valorizar o papel que nela tiveram os brasileiros, começando por aqueles que, como Paraguaçu, eram autoctones.25

Três décadas depois em 1761 foi editado o Orbe serafico novo brasilico, de frei Antônio de Santa Maria Jaboatão.26 O autor esclareceu ser seu objetivo escrever a história dos franciscanos no Brasil, tarefa já encomendada, sem sucesso, a dois outros padres. Ao contrário de Rocha Pitta, Jaboatão revela suas fontes: as anotações deixadas pelos dois antecessores e "papéis espalhados pelos arquivos dos conventos de toda a Província e seus Cartórios", aos quais teve acesso na qualidade de "companheiro e Secretário do P. Provincial".

Frontispício de uma edição de 1859 do Novo Orbe Serafico Brasileiro do frei Antônio Jaboatão. 
Curiosamente, afirma que tais fontes, por conterem "tão pouco que registrar [...] mais nos serviam de embaraço ao discurso do que de norte e luz para a história", acrescentando "outro inconveniente grave" à história que escrevia, na qual pretendia "compreender não só o passado, mas também o presente, o moderno e o antigo": "no antigo, por falta de notícias, é perigoso o exame, e no moderno, pelos respeitos, mui arriscada a expressão". Explica ainda que não cita bibliografia ("citação de autores") ao tratar da história dos franciscanos no Brasil porque é o primeiro a escrevê-la, mas o faz, ao abordar a história das capitanias; quando discorda dos autores ou "da tradição", sempre aponta "os princípios e os motivos para o fazermos assim".27

Frei Jaboatão afirma ser a história do Caramuru já conhecida "pelo vulgo" e por "todos os escritores destas conquistas". Mas ele também dela se, ocupará, por ter sido Diogo Álvares Correia o "primeiro povoador" da terra (ali chegado, portanto, antes do primeiro donatário da Bahia) e porque descobriu a respeito "um antigo Manuscrito [...] no Arquivo do Convento da mesma Bahia, e que [...] mostra ser escrita por pessoa que existia, senão no mesmo, muito propínqua àquele tempo ".28

No Orbe serafico, o episódio do Caramuru é antecipado (como já o fizera Rocha Pitta) para cerca de 1516, embora não apareça relacionado à expedição de  Cristóvão Jacques, pois o nobre de Viana se dirigia para a India quando naufragou junto ao Rio Vermelho, na Bahia. Os fatos, contados com pormenores por Jaboatão, são mais ou menos os mesmos das narrativas anteriores, com duas exceções.

A primeira refere-se à alcunha de Diogo, para a qual é oferecida uma explicação bastante sofisticada: "lhe foi posto o nome de Caramuru-Gaçu [...] por ser achado entre as concavidades daquelas pederneiras do seu naufrágio [...] como uma grande Moréia, e à imitação de muitas que nela habitavam; [...] o segundo lhe foi apropriado pelo gentio, quando ele, como um cruel dragão que saiu do mar, atirou a muitos; e assim, significando o nome Caramuru-Guaçu um, só indivíduo, [...] ficou Diogo Alvares com este grande nome, um só Caramuru-Guaçu com dois significados; com o primeiro, de Moréia grande, pela naturalidade daquele caso; com o segundo, de Dragão do mar, por apropriação do seu valor".29

A segunda novidade da narrativa de Jaboatão diz respeito à data da viagem de Diogo à França que, segundo o autor, não poderia ter ocorrido no reinado de Henrique II e Catarina de Médicis, pois este se iniciara em 1547, época em que tanto Martim Afonso de Souza quanto Francisco Pereira já haviam estado no Brasil e encontrado Diogo retornado da França; a proposta de Jaboatão - baseada em minucioso confronto de datas - é a viagem ter-se realizado em 1524, durante o reinado de Francisco I, havendo Paraguaçu recebido o nome de Catarina em homenagem não à rainha de França, mas à esposa de dom João III de Portugal.

A concepção de história de frei Jaboatão, muito diversa da de Rocha Pitta, mostra-se curiosamente próxima daquela que predominará no Brasil na segunda metade do século XIX, de certa forma a anunciando. Frei Jaboatão antecipou, portanto, em um livro surpreendente, um modo de perceber e narrar o Caramuru que só se cristalizaria no país duzentos anos após a publicação de sua obra.

Caramuru como epopeia

Caramuru e sua história ganharam novo estatuto e popularidade no final do século XVIII, quando o frade agostiniano José de Santa Rita Durão, brasileiro educado e residente em Portugal, publicou sobre o tema um longo poema épico.30 Editado em Lisboa em 1781, Caramuru mereceu por parte da crítica, à época de seu lançamento, acolhida respeitosa mas morna. Com o tempo, ganhou público e admiradores, embora boa parte dos críticos posteriores tenha reconhecido no autor um versejador apenas correto, desprovido de maiores recursos literários; foi destacado sobretudo seu pioneirismo em descrever uma ação passada no Brasil, inspirada na história brasileira, em grande parte protagonizada por, indígenas, transformando-a em epopéia: "E o poema mais brasileiro que possuímos [...] o mais brasileiro de todos os nossos livros", escreveram a respeito, no final do XIX, Sílvio Romero e João Ribeiro; "O Caramuru resiste ao tempo pela sua importância histórica", completou mais tarde o crítico Afrânio Coutinho.31

Caramuru acabou conhecendo várias edições e adaptações. Santa Rita Durão esclareceu a razão da escrita do livro; após afirmar, numa clara alusão a Os Lusíadas, serem os "sucessos do Brasil" tão merecedores de um poema quanto "os da Índia", completou: "incitou-me a escrever este [poema] o amor à Pátria". As fontes em que se baseou para construir a epopeia foram as narrativas históricas: "Leia-se [Simão de] Vasconcellos na História do Brasil, Francisco de Britto Freire e Sebastião da Rocha Pitta".32

O poema é inteiramente construído em torno da epopéia do Caramuru, o "dragão dos mares" (Diogo também seria chamado de "filho do trovão" pelos índios).33 Dividido em dez cantos, cada qual com cerca de oitenta estrofes, segue a estrutura de enredo cristalizada por Simão de Vasconcellos e retomada por Rocha Pitta, respeitando-lhe a ordem, desde a partida de Viana do Castelo até a descendência de Caramuru. O episódio do disparo da arma de fogo é muito valorizado: Diogo veste-se com colete e elmo de ferro, tendo à mão uma espada (recolhida na nau), quando dispara pela primeira vez, sendo o episódio várias vezes repetido ao longo do poema, perante diferentes índios.34

Frontispício do poema Caramuru. Do frei José de Santa Rita Durão.  
Caramuru faz uma excelente amizade interétnica com o "bom e justo" índio Gupeva, e o ajuda a combater o temível cacique35 Jararaca. Boa parte do poema é dedicada às guerras entre as tribos, das quais Caramuru participa. Santa Rita Durão mostra-se ardoroso defensor da monogamia: desde o início Caramuru possui apenas uma esposa, Paraguaçu. As outras são apenas apaixonadas por ele, havendo entre elas "a infeliz Moema", afogada ao atirar-se jun to com as outras ao mar, atrás de Diogo, que parte para a França com Paraguaçu.36

A visão que Paraguaçu tem de Nossa Senhora é antecedida de um sonho, no qual ela vê, e depois descreve para os outros, vários momentos da história futura do Brasil. Muitos outros acontecimentos históricos ocupam o poema. Mas, sendo uma ficção, a narrativa de Santa Rita Durão cria, sobretudo, personagens. E a primeira vez, desde que a narrativa começou a ser contada, que Caramuru e Paraguaçu deixam de ser referências ou descrições para tornarem-se seres humanos, com direito a características físicas próprias, sentimentos, vida interior etc.

Diogo Álvares reúne infinitas qualidades, muitas identificadas à época, no plano ideal, com as de um nobre - é aristocrata, justo, piedoso, corajoso, patriota, belo (objeto do amor de quase todas as "donzelas brasilianas") e civilizado, além de tolerante, paciente e amoroso, estes últimos atributos essenciais para relacionar-se adequadamente com o mundo diferente e cobiçado por outras potências onde naufragara.

A mudança de nomes do personagem simboliza sua constante transição entre as identidades (a antiga, preexistente à experiência, e a nova, que se afirma à medida que a experiência prossegue, até configurar uma verdadeira transmutação cultural): referido no início do poema apenas pelo nome cristão, o personagem passa a ser, após o episódio do disparo da arma de fogo, nomeado também como "Caramuru" - aquele que "indicava o Brasil no sobrenome" (Canto I.LXLVI) -, epíteto que vai se tornando mais freqüente à medida que o protagonista se envolve com os índios; volta a ser Diogo no episódio da viagem à França, para, ao escolher retornar ao Brasil, virar definitivamente "Caramuru".

Apenas na última linha do poema torna a ter declinado o nome cristão, bem como o local de nascimento, para marcar a continuidade entre a aventura brasileira e a origem portuguesa: "Manda honrar na colônia lusitana! Diogo Alvares Correia, de Viana". No poema, ser Caramuru, para Diogo, significava ser índio? Não. Significava possuir um conjunto de atributos conferidos pelos índios, ser um ente que, embora profundamente transformado pela experiência com os indígenas, possuía características distintas destes, algumas reconhecidas como francamente superiores, como o poder de fogo.

Caramuru é, assim, o herói capaz de levar até a América o povoamento branco, a civilização, a religião, o idioma e a cultura, por via do amor, da tolerância, do respeito e do conhecimento, qualidades reforçadas ou adquiridas pelo contato com a outra civilização, e, quando necessário, também por via da guerra. O contato com a alteridade, sofrido e traumático em muitos momentos, transforma profundamente Diogo: o náufrago quase devorado pelos índios precisou sofrer, amar uma nativa, aprender com dificuldade uma língua estrangeira, adaptar-se a costumes estranhos, viver longas décadas longe da pátria, sair do e retornar ao Brasil para transformar-se no Caramuru, o herói híbrido, culturalmente mestiço e fundador de uma descendência biologicamente mestiça, redimido e engrandecido pela experiência com o outro.37

Ser Caramuru é não apenas sobreviver ao perigo da antropofagia - assunto recorrente no poema -, mas também mostrar-se capaz de conduzir os índios ao abandono de tal "prática hedionda" (curiosamente identificada, por Santa Rita Durão, com a gula). Ser Caramuru, para Diogo, é saber administrar as duas identidades em benefício (conclui o autor) das culturas que representam, unindo-as: é completar e reafirmar a colonização portuguesa (numa época, o final do século XVIII, em que eclodiam no Brasil os movimentos pró-independência) e, ao mesmo tempo, saber, sem violência ("à sombra das leis"), conhecer os índios e ensiná-los a alcançar a cultura e a salvação das próprias almas.38

Paraguaçu, filha de um cacique, desde o início é retratada com atributos ideais de uma européia: essa "dama gentil brasiliana", "de cor tão alva como a branca nevei e onde não é neve, era de rosa", de "nariz natural, boca mui breve", encobre a nudez "com manto espesso" e sabe falar "boa parte da língua lusitana" (aprendida com um "português escravo" que antes por ali aparecera), é donzela boa, recatada, delicada, submissa e fiel a seu amor, qualidades às quais ainda se somam, talvez herdadas de seu povo, a coragem e a altivez, demonstradas em episódios como a guerra contra Jararaca, onde "Mil amazonas [...]/ Paraguaçu gentil todas comanda".39

Estátua de Caramuru e Paraguaçu em Viana do Castelo, Portugal. 
Desde o início, por conhecer o idioma português, é a intérprete de Diogo junto aos índios, ao mesmo tempo que lhe transmite os costumes e idéias destes. Ela também sofre mudança de nomes ao longo do poema: enquanto representa uma ponte entre os dois mundos, é Paraguaçu. A convivência com o europeu, entretanto, a faz compreender e aceitar seus costumes, inclusive o catolicismo, processo completado em França - no espaço europeu -, onde convive com a corte e é batizada: a partir de então é chamada também pelo nome cristão, dado em homenagem à rainha de França.

Ao voltar ao Brasil, quando, em plena passagem pelo equador, tem a visão de Nossa Senhora - atestando, portanto, ser não apenas uma católica, mas uma depositária da graça divina -, é nomeada apenas "Catarina" ou "Catarina Álvares".40 É como Catarina que, já de volta ao Brasil, oferece a Diogo o império indígena que herdara dos avós.41 Simboliza, como personagem, a possibilidade de "redenção" integral do indígena brasileiro ao projeto civilizador e catequético português.

No poema, os indígenas são divididos em "bons e justos" (como o cacique Gupeva, o grande amigo de Caramuru, e Sergipe, que aparece no início do poema, um cacique mais "brando") e "maus e cruéis" (como Jararaca, o grande opositor, ainda por cima enamorado de Paraguaçu, ou Taparica). Os primeiros podem ser também inocentes, corajosos e capazes de raciocínios surpreendentes - como a "singular filosofia" demonstrada por Gupeva ("tão alto pensar numa alma rude", espanta-se Diogo)42 -, enquanto os segundos em geral são também antropófagos renitentes.

Todos os índios têm como traços comuns o gosto pela guerra (o que os torna extremamente perigosos) e, com a notável exceção de Paraguaçu, também o desconhecimento da língua portuguesa e da religião cristã, uma profunda ignorância e uma falta tão completa de civilidade e sofisticação que se assemelham muitas vezes a animais: "gentio ferocíssimo", "nação feríssima", "feras", "gente crua", "infausta gente", "ignorância rude" e "gula infame" (= antropofagia) são expressões com freqüência a eles relacionadas.43 Serem assim os indígenas é o que permite a Caramuru e, por extensão, a todo o povo português, exercer a missão evangelizadora e civilizadora a ele(s) reservada pela história.

Caramuru estabelece uma linha de continuidade entre o período em que Diogo Álvares viveu no Brasil e a história desse país, tanto nos anos anteriores à chegada do herói quanto nos posteriores. Esta linha é construída em três momentos: durante a viagem à França, quando Diogo conta a Du Plessis, comandante do navio, a história da formação do império português, do Tratado de Tordesilhas, do descobrimento de Cabral e das primeiras expedições exploradoras - isto é, do período anterior à sua chegada ao país -, além de descrever-lhe, à moda dos cronistas e de Rocha Pitta, as principais características das capitanias.

O segundo momento, que corresponde ao tempo presente do poema, é uma narrativa de Diogo ao rei Henrique II de França, em que descreve, com pormenores, o relevo, a hidrografia, a fauna, a flora, os produtos naturais, as riquezas etc., do Brasil. Finalmente, o terceiro momento é preenchido pelo sonho de Paraguaçu, quando "vê" o futuro do Brasil e o relata aos outros: lá aparecem as guerras contra os holandeses - com detalhes de batalhas e, numa evidente tentativa de valorizá-los, os nomes dos heróis brasileiros que lutaram contra o "batavo inglório", inclusive o do negro Henrique Dias -, as "áureas cidades" brasileiras, os "vice-reis e ilustres gentes", enfim um futuro, antevisto por uma brasileira, de "Tantos sucessos, tantas variedades/ Que somente pintado, como em sonho/ Confunde o pensamento, a vista assombra".44

Caramuru foi assumidamente uma obra de ficção, e nisso residiu a maior novidade da sua narrativa, já que o poema pioneiro e satírico de Gregório de Matos estava então esquecido. Entretanto, Caramuru estabeleceu transições tão sutis e naturais entre ficção e história que o leitor não sabe direito onde termina uma e começa a outra. Como seu subtítulo informa, trata-se de um poema épico sobre "o descobrimento da Bahia"; para escrever o poema, o autor baseou-se em textos de historiadores; nos versos, Moema, Gupeva, Taparica e outros personagens convivem tranqüilamente com Francisco Pereira Coutinho, Martim Afonso de Souza, dom João III, Catarina de Médicis e outros; episódios criados pelo frei mesclam-se a todo momento com acontecimentos históricos, os quais, entretanto, não respeitam cronologias, transitando do futuro ao passado e ao presente...

Ao se assumir como ficção mas de fato embaralhar, definitivamente, ficção e história, Caramuru põe a nu, ao mesmo tempo que reforça, aquela que talvez seja a mais marcante característica do conjunto de narrativas até então escritas sobre o tema: a permanente transição da ficção à história, e vice-versa. O poema de Santa Rita Durão apresentava grande poder de sedução, em parte por apoiar-se em ações vivas, coloridas, de grande apelo dramático, em parte por repetir episódios conhecidos (como os do naufrágio, da arma de fogo, da visão de Paraguaçu etc.), muitas e muitas vezes já contados e fixados no imaginário luso-brasileiro, os quais, à força da repetição, ganhavam uma magia semelhante à dos contos de fada. Cento e vinte e oito anos após a Crônica... do jesuíta Simão de Vasconcellos, o agostiniano Santa Rita Durão, utilizando-se dos mesmos elementos, estabeleceu, com base na ficção, um novo e poderoso padrão narrativo para a história do Caramuru, o qual, apesar das fortes críticas que recebeu depois e das tentativas de implantação de outros modelos, continua até hoje poderoso.

Caramuru de novo objeto da história

As grandes transformações no modo de construir a história operadas ao longo do século XIX, iniciadas na Europa com repercussões por todo o mundo ocidental - tais como a concepção da história como uma ciência, a busca da "imparcialidade" do historiador, o apoio nos documentos como caminho para a descoberta "da verdade", os cânones estritos de narração a fim de "depurar" a narrativa histórica de adjetivos e suposições, o emprego de métodos racionalistas etc. -, acabaram por se fazer presentes também nas narrativas históricas escritas a respeito do Caramuru.

O texto sobre nosso tema mais representativo dessas novas tendências historiográficas foi a densa monografia O Caramuru perante a História, do historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro.45 Trabalho vencedor de um concurso promovido pelo recém-criado e já muito prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,46 a monografia estabeleceu intenso diálogo sobre o Caramuru com antecessores e contemporâneos, reivindicando, com muita firmeza, o assunto para a área da história, nos moldes então apregoados. Para isso realmente ocorrer, segundo Varnhagen, seria preciso proceder a uma busca de novos documentos sobre o Caramuru e a uma rigorosa crítica, tanto das fontes primárias quanto das obras editadas sobre o tema, inclusive as de autoria de historiadores. Foi isso o que Varnhagen se propôs fazer.

O texto começa com uma longa preleção sobre os "contos maravilhosos" de que "quase todas as nações oferecem exemplos".47 Classificando tais contos como próprios dos "primeiros tempos da história" de uma civilização, quando "os povos [ ... ] não tinham de si muito a dizer", afirma que há nesse tipo de narrativa "quase sempre um fundo verdadeiro". A medida, porém, que tais contos eram divulgados às novas gerações, seu "fundo verdadeiro" desfigurava-se no "caos" e na "Babel de línguas díspares", por efeito principalmente da poesia e da imaginação,48 ambas ao gosto sobretudo das mulheres, o "sexo que recolhe mais íntimas essas sensações e que depois no-las transmite com o leite".

Devido exatamente a seu aspecto cada vez mais fantasioso, as histórias deteriam o enorme poder de emocionar ("tocar os corações") e "ferir a imaginação". Ora, como os historiadores, segundo Varnhagen, só apareceriam muito mais tarde ("quando o povo se tem constituído e adiantado em civilização"), encontrariam já essas primeiras histórias compostas "num arquivo muito mais popular, e não menos duradouro que os documentos escritos em pergaminho".

Ao conjunto dessas histórias e crenças, o visconde de Porto Seguro deu o nome de "tradição". Esta permaneceria mesmo após o surgimento da história, devido a duas ordens de razões: seus defensores são como "sectários" de uma "religião", que não aceitam idéias contrárias às suas; suas histórias possuem um poder de sedução (semelhante ao da mitologia, compara Varnhagen) tão grande que mesmo quando "aprendemos nas escolas" a distinguir a "parte histórica" da "parte imaginativa", "quando lemos um poeta clássico acreditamos com igual fé assim as entidades que tiveram uma existência histórica, como as propriamente, fabulosas". E qual a fonte do poder da tradição? "E a magia do poeta" – responde Varnhagen -, "que melhor sabe tocar-nos, vibrando-nos as cordas do sentimento."

O autor conclui assim a primeira parte da monografia: "E esta convicção em que estamos de que nenhum mal pode já a crítica desapaixonada produzir para arrefecer o entusiasmo pela nossa epopéia brasileira" - refere-se ao poema de Santa Rita Durão, sobre o qual já publicara inclusive elogioso ensaio 4 - "e o muito desejo de tratar um assumo em que o Instituto mostrou empenho [...] que nos dá força para entrar nele; o que faremos expondo primeiro o que de documentos autênticos constar, deixando à natural e singela expressão deles e à luz da crítica guiar o resto. [...] Desembaracemo-nos pois de quaisquer prejuízos que nos tenham deixado as leituras de nossos historiadores a tal respeito [...] e ponhamos também de parte, ainda com mais razão, as imagens e invenções do poema, e vamos desprevenidos perscrutar documentos."

Em sua longa e sofisticada introdução, Varnhagen estabelece premissas fundamentais para o futuro desenvolvimento do trabalho. Apoiando-se em um modelo de análise já claramente influenciado pelo positivismo,50 classifica a história em etapas sucessivas, cumulativas (no início os povos não "tinham muito a dizer de si") e evolutivas (progride-se da barbárie à civilização, da mitologia à ciência, da tradição à história etc.), situando o trabalho do historiador numa etapa já "adiantada em civilização". A construção dessa hierarquia é que permite a Varnhagen estabelecer um original paralelismo entre etapas históricas e modelos narrativos. Circunscrevendo os "contos maravilhosos" a uma primeira e remota etapa da evolução dos povos - no caso do Brasil, portanto, a um período já encerrado -, os contrapõe às narrativas históricas, próprias das "civilizações adiantadas", tais como, é evidente, aquela em que o autor vive e escreve.

Aos atributos dos "contos maravilhosos" - fantasia, imaginação, poesia, sintomaticamente identificadas com a figura feminina, que os transmitiria aos homens "pelo leite" -, contrapõem-se, portanto, os atributos referidos das narrativas históricas e do trabalho do historiador, como o uso de documentos "autênticos", a prática da "crítica rigorosa", a citação das fontes e da bibliografia utilizada e o emprego de métodos racionais e profissionais de pesquisa. Esse conjunto de atributos, quando bem utilizado, é que permitiria à história restabelecer "a verdade dos fatos", ampliando o "fundo verdadeiro" primordialmente existente nos contos, porém deformado pela ação da tradição.

Até aqui, portanto, Varnhagen estabeleceu, via hierarquia e delegação de atributos, uma nítida fronteira entre mito e ciência e entre história e tradição, deixando claro de que lado está e o que fará. Mais: esclareceu também os limites entre a "boa" história e a "má" história, a primeira assentada na "busca da verdade", com o aparato metodológico e técnico que a acompanhava. Um problema, entretanto, o raciocínio de Varnhagen não conseguia contornar: o enorme poder da fabulação, da tradição e do mito, que reconhecia muito superior ao da ciência e ao da história, a ponto de seduzir até homens como ele próprio. A solução encontrada por Varnhagen para o problema foi identificar naturezas completamente distintas para as duas ordens de fatores (uma natureza para tradição, mito etc. e outra para ciência, história etc.).

Sendo tão diversas, originando-se uma da fantasia e da fabulação e a outra do rigor e da razão, ambas nunca se encontrariam, não havendo comparação possível entre elas. Em decorrência, um trabalho de história como o que ele, Varnhagen, empreendia, não poderia ter qualquer interferência, nem causar qualquer dano, a uma obra de ficção sobre o mesmo tema - como o poema de Santa Rita Durão, de que ele, Varnhagen, tanto gostava -, e vice-versa. Um buscava a verdade, por meio da razão e da comprovação; o outro, o mito, por meio da imaginação e da fantasia. Separados (como impunha sua natureza), ambos eram legítimos; juntos, eram condenáveis. Varnhagen a seguir apresenta os frutos de sua pesquisa: os numerosos documentos históricos que recolheu sobre o Caramuru, muitos deles inéditos.51

Um minucioso exame comparativo desses documentos (de cujos pormenores pouparemos o leitor), especialmente das datas em que foram compostos ou das datas a que se referem, e um exercício de raciocínio dedutivo permitiram a Varnhagen chegar às seguintes conclusões principais acerca do tema:

a) existiu um Diogo Alvares (recusa-lhe o sobrenome "Correia", atribuindo-o - injustamente, aliás - a uma criação de Rocha Pitta), português provavelmente sem tradição de nobreza, natural não se sabe com certeza de onde, que naufragou na Bahia por volta ou antes de 1510 e deixou descendentes;52

b) com certeza este Diogo viveu na Bahia entre 1510 e 1535, lá estando também em 1538 (data da chegada do donatário da Bahia), em 1546 (quando foi mensageiro de Pero de Campos) e em 1549 (quando ajudou Martim Afonso de Souza) e, a partir desse ano até o da sua morte - que Varnhagen, citando Aires de Casal, data provavelmente de 1557 -, também morou na Bahia. Por dedução, Caramuru só poderia ter ido à França entre 1535 e 1538 - pois nos intervalos dos outros anos estava ajudando as autoridades, e "repugna à razão que [nesses intervalos] desamparasse os seus patrícios". Mesmo essa viagem, porém, foi pouco provável, pela "falta total de alguma noticia ou informação", no Brasil e na França, sobre o fato; assim, é muito mais provável "que a tal viagem à França nunca tenha existido.

c) vários pequenos fatos e circunstâncias foram esclarecidos, tais como: o nome "Caramuru" significa um peixe brasileiro, semelhante à moréia, conforme explicara desde o século XVII Claude d' Abbeville; dificilmente a índia verdadeira se chamava "Paraguaçu", palavra que em tupi quer dizer "rio grande", e que não costumava ser nome de mulher entre os tupinambás; a carta de Carlos V a Diogo provavelmente não existiu, pois "repugna à razão" que um imperador perdesse seu tempo escrevendo a um reles náufrago. Varnhagen elogia largamente a Notícia do Brasil, de Gabriel Soares de Souza - este autor, um contemporâneo dos acontecimentos, teria apenas testemunhado corretamente o que viu -, estabelecendo claramente uma linha de continuidade, uma filiação, entre a Notícia e a monografia da própria autoria, ambas escritas em estilo direto e comprometidas com "o rigor da verdade".

Em seguida investe impiedosamente, durante várias páginas, sempre contrapondo fatos, contra aqueles que elegem seus contendores e antagonistas principais: Simão de Vasconcellos - narrando "um século depois" dos acontecimentos, sem "consciência do que escrevia", teria registrado apenas "a ardente imaginação" de "um povo tropical", numa "narração novelesca" - e Sebastião da Rocha Pitta, pretenso historiador que não citava suas fontes, autor somente de "um belo episódio próprio para o romance e a poesia", recheado de "fragmentos do colorido próprio dos gongorísticos do século passado". Pitta e Vasconcellos "não escapariam a ser chamados ao rígido tribunal da crítica, para nele se verem argumentados" – pelo próprio Varnhagen, naturalmente, no papel de juiz.54

Um historiador do final do século XX, apoiado em maior número de documentos (que vieram à luz depois de Varnhagen) e em cânones históricos diferentes, poderia argumentar que o visconde de Porto Seguro, sem ter consciência disso, deixou várias brechas no aparentemente inexpugnável rigor da sua lógica;55 poderia ainda argumentar que ele, também sem disso se aperceber, empregou em sua monografia recursos ficcionais.56

Tal diálogo, entretanto, não caberia aqui. Importa-nos é lembrar que Francisco Adolfo de Varnhagen, ao propugnar, de forma tão competente, a drástica cisão entre ciência e ficção, e, portanto uma outra forma de produzir história, inaugurou novo ponto de vista, uma maneira completamente diferente de compreender o Caramuru e de contar sua história, mais duradoura do que talvez o próprio Varnhagen tivesse jamais suposto.

Sua monografia foi um divisor de águas: nos cem anos seguintes, os rumos da historiografia levaram a maioria dos historiadores a escrever sobre o Caramuru à maneira de Varnhagen.57 Daí em diante, postas de lado e desautorizadas nos meios acadêmicos, a ficção e a invenção sobre o Caramuru no Brasil escorregaram definitivamente para um meio onde já eram férteis: o da cultura popular. Aí, impulsionadas pelos novos meios de comunicação, floresceram de modo extraordinário, conforme assinalado no início deste artigo.

Caramuru como romance histórico

Em 1900 foi lançado em Lisboa, Os Caramurus, de Arthur Lobo D' Avila, com o curioso subtítulo de Romance histórico da descoberta e independência do Brasil.58 O próprio D'Ávila esclarece título e objetivo do livro: "Causará talvez uma certa estranheza que nesta obra conjugássemos o descobrimento do Brasil com a sua emancipação: porque aquele fato histórico é, pela grande maioria, considerado como uma glória, e este, como um revés, na história portuguesa.

Fizemo-lo, porém, muito propositadamente, e precisamente porque entendemos ser conveniente destruir no espírito popular essa errada teoria, e pareceu-me ser momento azado, para o fazer, esta celebração festiva do quarto centenário da gloriosa descoberta da Terra de Santa Cruz por Pedro Álvares Cabral".59 D' Á vila, após afirmar que a independência do Brasil foi resultado de uma falta de visão ocasional dos constituintes portugueses de 1820 - os quais queriam obrigar o Brasil, após ter sido "elevado a todas as regalias de metrópole", a retornar à condição de colônia -, conclui: "Portugal, que descobrira, civilizara e desenvolvera o Brasil, teve pois também a glória de lhe transmitir o fogo sagrado da liberdade. [...] o fato histórico da independência do Brasil é uma glória humana e social para o país que o descobriu e desenvolveu. [...] Eis porquê, na nossa humilde opinião, a independência do Brasil pode e deve ser invocada como título de glória para Portugal, a par da sua descoberta."

O tema do Caramuru, portanto, serve para D'Avila (que se diz descendente de Diogo Álvares) celebrar, em um momento histórico que lhe pareceu particularmente propício - o do IV centenário do descobrimento -, a descoberta e a independência do Brasil como obras de Portugal. Como? Dividindo o romance histórico em duas partes: na primeira, relata o enredo tradicional do Caramuru, enquanto, na segunda, um descendente do primeiro Caramuru auxilia José Bonifácio (seu colega da Universidade de Coimbra) e dom Pedro a proclamar a independência brasileira! Relacionam-se de novo, em uma narrativa em torno do Caramuru, história e ficção: de novo, a maneira de construir essa relação é nova.

Frontispício de Os Caramurus, romance escrito por Arhtur Lobo D'Ávila. 1900. 
A primeira parte do romance histórico - que ocupa cerca de 60% das suas 278 páginas - acrescenta ao enredo tradicional uma alentada seção passada em, Portugal, na qual Diogo Álvares, nobre minhoto, vive movimentadas aventuras com insignes personagens da história lusa, como dom João Telles, a rainha dona Leonor, Vasco da Gama e outros, até embarcar na armada de Gonçalo Coelho, naufragando em costas brasileiras. O enredo do "homem de fogo" segue todos os passos já conhecidos, com muita ação e diálogos - Paraguaçu, dada pelo pai como favorita a Diogo, brada, assim que vê este: "Sou cristã!" -, até à morte, em conseqüência de lutas tribais, de Paraguaçu, seguida da de Diogo, não sem que este antes consiga que o filho dos dois, uma criança, seja transportado por ninguém menos que Hans Staden para a Europa onde terá descendentes, "que se honravam em serem chamados Caramurus".60

Na segunda parte do romance, o herói, "também chamado Diogo Alvares, como o seu antepassado, mas por toda a gente conhecido por o Caramuru", um liberal apaixonado pela jovem brasileira Margarida (amor proibido), acompanha a família real portuguesa para o Brasil. Ali, em meio a várias peripécias, "torna-se um entusiasta do príncipe D. Pedro", casa-se com Margarida, vai para Portugal e volta para o Brasil, sempre partidário da independência. Quando dom João VI regressa a Portugal, Diogo Álvares também para ali retorna, a pedido de dom Pedro, para continuar a alimentar a causa da separação e informar o amigo dos acontecimentos. A independência brasileira é iminente. Após o grito do Ipiranga, Diogo, que constatara ter sido o "solar dos Caramurus", em Viana do Castelo, destruído durante a invasão francesa, viaja com a mulher para o Brasil, para Vila Velha, onde, nas terras que ainda pertencem à sua família, criará os filhos e formará "um Minho brasileiro".

Nenhuma narrativa evidencia tão bem quanto esta um traço essencial em todos os textos sobre o Caramuru: a forte ligação entre Portugal e Brasil, ligação indissolúvel, posto que nada - história, destino, vontade dos homens etc. - a poderá jamais alterar. Ao atar para sempre as duas nações em um só enredo, o tema do Caramuru potencializa as ligações históricas existentes entre Portugal e Brasil, fazendo com que uma nação se espelhe na outra. Ajuda, assim, a fomentar a ideologia (nem sempre diretamente vinculada à experiência histórica), até hoje expressa, que concebe Portugal e Brasil como "países irmãos", "nações do mesmo sangue", "almas gêmeas" etc. Muitos podem ser os usos políticos de uma narrativa.

O Caramuru dos divulgadores

Em 1935 foi lançado em Portugal O Caramuru - Aventuras prodigiosas de um português colonizador do Brasil, de autoria de João de Barros, adaptação em prosa do poema épico de Santa Rita Durão.61 O Caramuru - Aventuras prodigiosas livro bem-sucedido - alcançou a sétima edição em 1993 -, segue rigorosamente o original que se propõe adaptar: mantém-lhe os mesmos personagens e estrutura, a mesma trama, salientando os episódios e aspectos a que Durão também deu ênfase.

São diferentes apenas os subtítulos - Barros acentua o caráter aventureiro e prodigioso do enredo, chamando a atenção para o protagonista ser um colonizador português -, a origem de Diogo (nobre, segundo Durão, e "homem pobre e necessitado", segundo Barros), uma certa mediação, inexistente em Santa Rita Durão, que Barros constrói, ao referir-se aos índios do Brasil ("Isto passava-se há mais de quatro séculos, quando o Brasil, hoje tão glorioso e civilizado, era ainda habitado por índios selvagens, muitos dos quais ferozes,62) e um "Epílogo", onde Barros explica o sentido que o poema original tem para ele.

Uma edição do romance O Caramuru de João de Barros. 
A diferença fundamental entre as duas obras, entretanto, reside em outro ponto: na linguagem, que a adaptação em prosa, definindo com clareza a audiência a alcançar, buscou "correntia e fácil, que à gente moça e ao leitor mais ou menos culto prenda e ative [...] trazer ao conhecimento de todos uma obra digna de atenção e respeito".

O episódio original do naufrágio de Diogo, por exemplo, que ocupa dezesseis estrofes do Canto I de Santa Rita Durão, aí começando com um "De um varão em mil casos agitado/ Que as praias discorrendo do ocidente...", transforma-se em algumas linhas no livro de Barros, iniciadas com um "Vinha de Portugal o barco perdido nas ondas, açoutado pela fúria da tempestade...", e assim vai.63

Barros esclarece as razões do seu trabalho de divulgação: além da qualidade literária do poema,64 o fato de este constituir-se no "cântico anunciador da alvorada duma Pátria", e não de uma pátria qualquer, mas daquela que "é agora um dos fatores primordiais de novas modalidades de civilização e cultura", resultante do "prodigioso e inteligente esforço dos colonizadores lusitanos nas terras de além-mar".65 Em suma, Barros deseja contribuir para o "melhor carinho" entre Portugal e Brasil, nações unidas pela história, uma mãe, e a outra, filha. E o melhor meio que encontrou para isso foi lembrar e divulgar o Caramuru, que considera um símbolo da união Brasil-Portugal: "Português de nascimento e fé [...] prendeu-se tanto à formosa e hospitaleira terra do Brasil que, realmente, não sabemos hoje se o nome de Português lhe pertence mais que o de Brasileiro, se o nome de Brasileiro lhe compete mais que o de Português".66

Acentuando, no "Prefácio", no "Epílogo" e na "Vida do autor de Caramuru", algumas características do poema de Santa Rita Durão, Barros, ao unir num só volume o seu texto ao do poeta mineiro, prolongou o fio histórico que o poema já possuía, projetando-o sobre a primeira metade do século XX, quando seu livro foi publicado. Essa nova apropriação do Caramuru, com a audiência alargada devido à modernização linguística, reiterou o tema da unidade luso-brasileira em um momento particularmente difícil para Portugal: à pátria de passado glorioso, então empobrecida, dona de uma sombra tênue do antigo império, Barros apontava o caminho da união com o filho promissor, o Brasil; e a este, o rebelde adolescente, indicava o retorno à tradição, à solidez e à maturidade de quem "tão bem lhe desenhara a alvorada".

Conclusão

Dois aspectos relacionados ao tema do Caramuru foram escolhidos para serem desenvolvidos nesta conclusão: as relações entre história e ficção e o Caramuru como mito.

História e ficção

As narrativas aqui analisadas sobre o Caramuru são exemplos do potencial de múltiplas combinações entre história e ficção. Algumas delas, como as de autoria de Gregório de Matos e de Santa Rita Durão, assumem-se como ficção; outras apresentam-se como história, como as de Jaboatão e Varnhagen; outras, , como o romance histórico de Arthur D' A vila, se dizem história ficcionalizada; algumas afirmam-se como crônica (Simão de Vasconcellos), outras ainda (Gabriel Soares de Souza) valorizam o testemunho do autor.

O conjunto das narrativas não aponta para uma linha de continuidade, um caminhar na mesma direção, seja de gêneros, seja de complexidade, seja do literário ao histórico (ou vice-versa) etc. Ao contrário, as trajetórias das narrativas, ao longo do tempo, evidenciam um constante ir-e-vir entre gêneros, modelos narrativos e níveis de complexidade.

Depois do poema épico de Santa Rita Durão, quando tudo parecia indicar uma crescente ficcionalização do tema, surgiram a história de Jaboatão e, mais tarde, a prosa seca e científica do historiador Varnhagen. Após Varnhagen, terminou a fabulação, triunfou a ciência? Não: brotou a carnavalização do Caramuru. Nenhuma linha reta, nenhuma evolução detectadas. Antes círculos que vagueiam, abrem-se, fecham-se, interpenetram-se em constantes movimentos, compondo novas e surpreendente figuras, múltiplas direções.

As vezes, há mais diferenças entre textos do mesmo gênero do que entre os de gêneros diferentes. Embora Varnhagen e Rocha Pitta se declarem ambos historiadores, e ambos realmente escrevam história, apresentam tamanhas diferenças entre si que Varnhagen, para legitimar-se perante uma audiência de letrados do século XIX, elegeu o texto de Pitta como um de seus principais antagonistas, ao mesmo tempo que poupou da crítica - exatamente por pertencer a outro gênero, não se apresentando como concorrente - um texto ficcional como o Caramuru de Santa Rita Durão. Deixou, contudo, na obscuridade a obra que mais se aproximava da sua, no campo da história, e que ele decerto conhecia: o Orbe seráfico, de frei Jaboatão.

As narrativas mesclam elementos tradicionalmente pertencentes à história com aqueles que a tradição convencionou literários. Historiadores, cronista, romancista e poeta, indistintamente, enveredam por enredos onde visões celestiais, antropofagias, colóquios imaginários em cortes estrangeiras e profecias fundem-se tranqüilamente com fatos e personagens da história do Brasil e de Portugal.67 Os ficcionistas Santa Rita Durão e Arthur D'Ávila mesclam seus personagens com a história, mas embaralham presente, passado e futuro, um recurso da ficção ... Gregório de Matos, em um poema, foi responsável pela mais contundente crítica social à elite da Bahia.

Algumas narrativas, embora façam ficção, "saltam" do texto para o mundo concreto dos autores, construindo referências explícitas à história e às preocupações do tempo em que escreveram seus criadores. E o caso do Caramuru, de João de Barros e do romance histórico de Arthur D'Avila, duas ficções que nos prefácios e prólogos explicam claramente a que vieram: celebrar "o inteligente esforço dos colonizadores lusitanos nas terras de além-mar", a "bravura brasileira" e, no caso do segundo livro, a independência do Brasil como "uma glória humana e social" de Portugal, tentando assim contribuir para o "melhor carinho", o melhor entendimento entre Portugal e Brasil, que os autores julgavam ameaçado à época em que escreveram.68 Interessante como autores tais que Varnhagen e Rocha Pitta, assumidamente historiadores, não criaram entretanto qualquer relação explícita com a história extra-textual, a qual aparece clara, contudo, no poeta Gregório de Matos.

Tratamentos opostos do mesmo fato histórico às vezes resultam de perspectivas e intenções semelhantes. Escrevendo quando já haviam explodido no Brasil as duas principais revoltas separatistas (as Conjuras Baiana e Mineira), Santa Rita Durão sequer se refere à possibilidade da independência, pois sua intenção é justamente a oposta: reforçar os laços entre Brasil e Portugal. Já Arthur D' Avila, em seu romance histórico, dá voltas mirabolantes ao enredo exatamente para tratar da independência. Qual o objetivo de D'Avila? Justamente o mesmo de frei Durão: fortalecer a união Brasil-Portugal.

No caso de D'Avila, este objetivo é atingido pela construção de uma continuidade entre os primeiros anos da história da colonização e o episódio da independência, ainda mal digerido por Portugal, à época em que o autor escreveu; no caso de Durão, o fim é alcançado omitindo-se a iminente separação. Mudanças sutis de recursos estilísticos ou de composição de enredo e personagens, por outro lado, às vezes representam profundas diferenças entre perspectivas históricas. Com uma aparentemente simples rotação de protagonistas - Paraguaçu, em vez de Caramuru -, Sebastião da Rocha Pitta promove uma até então inédita valorização do papel dos indígenas no processo histórico da colonização portuguesa.

Por vezes, mudanças nas narrativas correspondem a transformações ocorridas nas diversas épocas em que viveram os autores. Simão de Vasconcellos, jesuíta que no início da colonização conviveu longamente com indígenas e colonizadores, conhecendo muito bem os costumes de ambos, concede a Caramuru várias mulheres, entre as quais Paraguaçu, que acaba se tornando a predileta. Rocha Pitta, escrevendo no XVII, mantém a poligamia de Caramuru, mas reserva a Paraguaçu o lugar de esposa e às demais, o de concubinas.

Cabe ao frei agostiniano Santa Rita Durão, no final do século XVIII, época em que a sociedade brasileira branca já se apresentava basicamente configurada segundo moldes europeus, encerrar o período de "relações pecaminosas" do protagonista, criando, desde o início da narrativa, um Caramuru monogâmico, modelo que prevaleceu nas narrativas posteriores.

As múltiplas combinações entre história e ficção no Caramuru poderiam ser exploradas quase indefinidamente. Como em um caleidoscópio, é suficiente agitar de leve os elementos para descobrir um conjunto de relações inteiramente novo, outras perspectivas. História e ficção são ambas essenciais na construção da grande narrativa do Caramuru. Esta representa um caso-limite, mas não uma exceção: em geral as narrativas que contamos estão mais impregnadas de história e de ficção do que costuma admitir a nossa tradição iluminista.

Mito

Todas as narrativas analisadas, independentemente de como entrelaçam história e ficção, dos recursos estilísticos e da perspectiva que adotam, têm um ponto em comum: ao contar as aventuras e desventuras de Diogo Alvares e vParaguaçu, estão a referir-se, o tempo inteiro, e obsessivamente, a algo mais: ao Brasil e a Portugal. As duas nações projetam suas grandes sombras sobre os textos, que, talvez por isso, apresentem uma relação tão íntima com a história.

Os exemplos da constante referência a Portugal e ao Brasil são muitos, vários deles apresentados no item anterior, e seria cansativo relacioná-los de novo aqui. Lembremos apenas que todas as narrativas, sem exceção, situam o episódio do Caramuru dentro da história da colonização portuguesa do Brasil (o que varia - e isso não tem importância para o ponto em discussão - é o tempo dessa inserção: se na época do donatário Francisco Pereira, se na da expedição de Gonçalo Coelho ou na de Cristóvão Jacques). Não por acaso os livros têm títulos e subtítulos como "Notícia do Brasil", "Poema épico do descobrimento da Bahia", "Romance histórico da descoberta e independência do Brasil", "Aventuras prodigiosas de um português colonizador no Brasil" etc.

Tudo isso aponta para a idéia que queremos discutir: o conjunto de narrativas sobre o Caramuru, pensamos, pode ser considerado um mito de origem do Brasil, um conjunto discursivo que, ao narrar as peripécias do casal Paraguaçu-Caramuru, metaforiza os fundamentos de um certo país Brasil. Para facilitar a exposição, apresentaremos a seguir, brevemente, as principais características dos mitos, em especial dos de origem, retornando depois à história do Caramuru, para investigarmos até que ponto ela se imbui de tais características.

Os mitos (expressão que, em grego, significa "história" ou "palavra") "dramatizam a visão de mundo e a experiência em uma constelação de poderosas metáforas", expressando vivências fundamentais para um determinado grupo humano.69 Representam uma das formas possíveis para uma comunidade revelar e compartilhar emoções, esperanças, medos e sonhos coletivos, expor e resolver conflitos, fixar, transmitir e reelaborar experiências e, por isso, geralmente apresentam uma íntima relação com o sagrado.70 Os mitos agrupam elementos fundamentais - que Karl Jung chamou "arquétipos,71 - com os quais a maioria de um grupo se identifica.

Representam, assim, visões de mundo, lidando sempre com questões essenciais, relacionadas à origem, ao fim e à natureza das pessoas e coisas. Explicam o universo a um determinado grupo, nos seus próprios termos, oferecendo aos que nele acreditam uma identidade, um lugar no mundo. Mitos têm estrutura peculiar, como os sonhos; não seguem a razão, por isso são capazes de simbolizar grande número de acontecimentos e emoções em uma única cena, podendo também abrigar contradições.

São dotados de um pensamento subliminar, uma hypnoia e, por isso, geralmente são expressos por metáforas.72 São coletivos e flexíveis, comportando em geral várias versões, responsáveis pelas atualizações da história original e pelas diferentes apropriações que a sociedade faz deles; às vezes determinada versão de um mito se torna predominante, mas é comum ocorrer uma vigorosa disputa entre diversas versões. Um mesmo mito pode ser repetido durante milênios.

Os mitos transformam-se mais lentamente do que as sociedades, por três razões principais: giram em torno de poucos elementos, cristalizados; operam em nível simbólico, difuso, mais protegido contra mudanças do que o nível material; e são capazes de rearranjar internamente seus elementos, adaptando-os a novas situações, sem contudo perder os atributos essenciais. Ninguém - pessoa, grupo ou nação - é capaz de criar um mito baseado apenas em seu desejo de fazê-lo. Para existir, um mito deve corresponder a necessidades sociais profundas, expressando símbolos poderosos; a criação e permanência de um mito é socialmente determinada, não uma ação isolada.

Os mitos podem ser, e muitas vezes são, socialmente manipulados, pois representam uma fonte potencial de poder. Muitos mitos são conscientemente reforçados, atenuados, divulgados, "envelhecidos" ou embelezados porque beneficiam um determinado segmento social, um governo ou uma nação. Um grupo que se identifica ou é identificado com um mito positivo transfere a autoridade simbólica conferida pelo mito - que é imensa - para si próprio. A partir de então poderá decidir quem irá, ou não, compartilhar dessa identidade, quem pertencerá - ou não ao grupo.

Um mito, às vezes, metaforiza o nascimento de um grupo ou nação: "Os mitos de origem da natio, no sentido original do termo, são o resultado de uma aplicação à coletividade, por uma extensão analógica, do processo biológico de nascimento do indivíduo [..]. O nascimento de uma criança supõe biologicamente a existência de uma mãe, a ação de um pai (mas nem sempre o seu reconhecimento) e geralmente a união de um casal parental. [...] O terceiro caso de figura concerne a história de um casal parental simbólico, que engendra um povo; este povo cria para si um duplo espaço habitável, sob uma forma concreta (um território) e sob uma forma simbólica (uma cultura).

Esse conjunto constituído pelas terras de um lado e, de outro lado, pelas tradições, chama-se a 'herança dos pais', pátria, a pátria.73 Baseado, como se viu, em metáforas, o mito do Caramuru dramatiza algumas das mais fundamentais experiências históricas e simbólicas do Brasil e de Portugal. Experiências tão importantes que sobre elas se assenta grande parte da construção das duas identidades nacionais: no caso brasileiro, a sociedade multiétnica e multicultural, tema que tem rondado as artes, a ensaística e a imaginação brasileira há séculos; no caso português, a construção do império colonial, um dos fulcros da identidade lusitana.

O mito aponta também para a continuidade luso-brasileira - tema recorrente em todas as narrativas, conforme assinalado - e, ao fazê-lo, encerra ambas as experiências em um único e poderoso simbolismo. Mais: situando-se nos primórdios da colonização portuguesa, o mito constrói uma origem, um fundamento, um nascimento para o Brasil. No mito de origem, Paraguaçu e Caramuru representam o casal parental simbólico: não por acaso todas as narrativas - que são discursos fundadores -, sem exceção, referem-se
à vasta e nobre descendência que deixaram.

Mas o mito estabelece a origem de qual Brasil? Diferenças à parte (no momento lidamos com as semelhanças entre as narrativas), todos os textos referem-se a um país que se encontra numa encruzilhada entre, de um lado, um longo e influente passado, que é indígena e que se projeta, poderoso, sobre o presente ( = sobre o tempo da narrativa); e, de outro lado, um presente (dependendo da narrativa, também um passado recente), que é marcado pela influência física e cultural dos brancos, europeus e católicos, consubstanciados nos portugueses (que trarão consigo os africanos). O futuro desse país referem as narrativas, depende fundamentalmente de como tais elementos serão relacionados entre si e equacionados. Esse é o enredo dos vários textos. E esse Brasil surpreendido na encruzilhada da história que a narrativa do Caramuru metaforiza.

Assim o indígena, apresentado como bruto, feroz, antropófago, ateu, ignorante, desprovido de cultura e civilização, mas também guerreiro, intrépido, sem malícia e corajoso - uma força da natureza - deve ser domesticado e catequizado, para permitir ao Brasil o desenvolvimento e a feliz integração ao rol das nações civilizadas. Essa oportunidade aparece com a chegada dos personagens históricos portugueses (referidos em todos os textos): os donatários, sacerdotes, capitães, pilotos, funcionários reais etc.

O presente do Brasil - diz o mito do Caramuru é difícil, os embates são duríssimos: um donatário morre devorado pelos índios, logo morrerá um bispo (a sempre presente antropofagia lembra o constante risco de o Brasil indígena "devorar" o Brasil português), os demais colonizadores enfrentam naufrágios, animais ferozes, bestas humanas, matas virgens... onde moram o pecado, a ruína e a sedução.

Situados bem no meio da encruzilhada, Diogo e Paraguaçu vivenciam todos esses perigos mas a tudo resistem, redimidos, pois o casal mestiço representa exatamente a possibilidade de superação, de solução do impasse brasileiro. "Herdeira do império tupinambá", ela torna-se não apenas uma cristã, mas uma eleita de Deus, ao ter visões de Nossa Senhora - e aqui se estabelece o elo com o sagrado, essencial em um mito. Ele é o herói engrandecido pela convivência com os indígenas, o homem-ponte, o intérprete entre duas culturas, que traz em suas alcunhas o peixe, o dragão, o mar e o fogo, Caramuru de tantos nomes quantas forem as apropriações e versões que se fizerem do seu mito, homem múltiplo, pois representa muitos outros homens.

Do casal interétnico e intercultural emerge o futuro promissor e positivo do Brasil, expresso nas "cidades douradas" e nos "vice-reis" da visão de Paraguaçu. Surge um país que conseguiu resolver satisfatoriamente seus impasses e se integrou, "sobranceiro", ao império do qual fazia parte. E onde, é claro, deve continuar: todas as narrativas, já se viu, apontam para a continuidade entre Portugal e Brasil, para este como parte daquele.

Os textos, contudo, não tratam apenas do Brasil. Ao surpreender esse país no início do século XVI, eles se referem também, é claro, a Portugal, aos portugueses, ao projeto de consolidação do império português. Lá estão dom Manuel, dom João III, Martim Afonso de Souza, Gonçalo Coelho, as relações com a França, os donatários, os sacerdotes, os colonos, as caravelas e naus, as vilas, os fortes, as guerras nas conquistas... Não por acaso o enredo do Caramuru foi criado por autores portugueses e, durante muito tempo, divulgado por e para portugueses; não por acaso, também, quando o Brasil já havia muito estava , independente, foram dois portugueses, João de Barros e Arthur D' A vila, que retomaram o tema.

As narrativas sobre o Caramuru, portanto, são metáforas também de Portugal. De qual Portugal? Os textos referem-se a uma nação católica, civilizada, unida em torno de um rei - sua maior autoridade e símbolo -, cujos vassalos saem pelo mundo com a gloriosa, porém dificílima, missão de conquistar, civilizar e catequizar bárbaros de toda espécie. Para isso, eles (como o fez Diogo Alvares) abandonam lar e pátria, expõem-se aos perigos do mar (há dois naufrágios na história), lutam desesperadamente para sobreviver em meio aos rudes bárbaros (alguns perecem), mas nunca desistem da alta missão, atribuída por Deus e pelo rei, de evangelizar e educar, estendendo a fé, a cultura e as armas do império português ao mundo inteiro.

O mito do Caramuru, tecido ao longo de séculos, constituído por um núcleo básico - repetido ad infinitum, após fixado pelo Padre Simão de Vasconcellos -, adaptado, como se viu, às sempre novas audiências e demandas, foi várias vezes politicamente apropriado (basta lembrar as intenções explícitas dos dois últimos autores portugueses), mas, como a fênix, ressurgiu sempre, renovado e despolitizado, pronto para ser novamente apropriado. E um mito que toca em alguns dos mais importantes, queridos e afagados componentes da construção das memórias coletivas de brasileiros e portugueses. No caso do Brasil, metaforizando o belo país abençoado por Deus, que soube sempre resolver com amor, sem violência, com alegria (com samba, cachaça, carnaval e futebol), com negociação e congraçamento (por artes do "jeitinho" e da malandragem, da mestiçagem e da democracia racial) os imensos desafios da sua sociedade plural.

No caso português, o da nação gloriosa de Afonso Henriques e dos grandes navegadores, do pequenino país descobridor e povoador de mundos, civilizador e salvador de almas, que jamais se curvou ante os enormes perigos do destino imposto por Deus e pela História. Caramuru, mito de origem do Brasil e do entrelaçamento de duas nações, confluência de narrativas plenas de eventos, imaginação e desejos.

NOTAS:
1. Não há qualquer segurança a respeito da data de chegada à Bahia de Diogo Alvares. Os documentos de época são vagos a respeito, alguns contraditórios, o que leva os historiadores a adotar opiniões diferentes, segundo a fonte em que se baseiam. A maioria das fontes conduz para os anos imediatamente posteriores a 1500; algumas, entretanto, apontam para a década de 1530. Embora não se costume levantar dúvidas a respeito da condição de náufrago de Diogo Alvares - de tão repetida, parece hoje "incorporada" ao personagem -, o fato é que ela não é comprovada. Gabriel Soares de Souza refere-se a um naufrágio, porém ocorrido nas costas da Bahia, durante uma viagem entre Ilhéus e Vila Velha, em companhia do donatário Francisco Coutinho. A narrativa do Padre Simão de Vasconcellos, que dá Diogo como náufrago numa viagem com origem em Portugal, omite suas fontes, mas documentos posteriores repetiram a informação, também sem indicar a origem. No século XVII, o poema épico de Santa Rita Durão, ao dedicar ao episódio do naufrágio um movimentado, heróico e trágico canto, ligou definitivamente Caramuru à condição de náufrago; isto foi reforçado pela iconografia, que reproduziu fartamente o episódio. Permanecem, contudo, outras possibilidades, também sem confirmação documental: a de Diogo Alvares ter sido um entre vários degredados então abandonados no litoral brasileiro, com o objetivo de aí aprender língua e costumes locais, para depois os transmitir aos portugueses; a de ter sido tripulante de uma das primeiras expedições enviadas ao Brasil e ter decidido, por vontade propagada em permanecer em terra, como o fizeram outros portugueses; e a de ter sido um dos diversos judeus que, expulsos do Reino em 1496, buscaram a América.
2. Embora ela seja provável, não há segurança acerca dessa naturalidade. Há certeza apenas quanto à nacionalidade, portuguesa de Diogo Alvares, atestada por testemunhos de época. Alguns autores registraram o nome completo, como Diogo Alvares Correia.
3. O episódio da arma de fogo - que, até onde sabemos, foi referido por escrito, pela primeira vez, pelo Padre Simão de Vasconcellos -, aparece em quase todas as narrativas sobre o Caramuru até meados do século XIX; Varnhagen foi o primeiro a duvidar do episódio e a ironizá-lo. Vários historiadores posteriores, porém, continuaram a referir-se ao fato.
4. Algumas fontes (p. ex., Gabriel Soares de Souza) omitem tal viagem; Varnhagen, escrevendo em meados do século XIX, nega sua existência. Desde a obra de Simão de Vasconcellos, porém, a referência à viagem é uma constante dos textos.
5. Os fatos históricos referidos até aqui constam dos documentos citados na nota número 49 e também dos seguintes: Cartas do Pe. Manuel da Nóbrega ao Pe. Miguel de Torres, Lisboa, 3/4/1557, 8/5/1558 e 14/8/1558, in Leite (1955: 197, 289 e 302); Carta do Pe. Manuel de Paiva ao Pe. Manuel da Nóbrega, 18/8/1551, in Leite (1965 : 56); Carta do Governador Geral Tomé de Souza ao Rei de Portugal, 13/8/1549, in Marques (1988, vol. 4: 112). Há ainda documentos inseridos nas narrativas analisadas neste artigo.
6. Exemplos dos vários tipos de narrativa que o tema do Caramuru conheceu no século XX (para evitar repetições, as referências bibliográficas dos outros séculos estão em outras notas do presente texto): poesia popular (literatura de cordel) - João Gonçalo, Do naufrágio, das , lutas e vitórias de Diogo Alvares Correia, dito 'O Caramuru, nas sagradas terras da Bahia (Feira de Santana, s. ed., 1931); jornalismo - José Hildebrando, "O Caramuru", A Tarde, Salvador, 26/6/1972; peça de teatro - Aidil Linhares, ''A espingarda do Caramuru ou o pique dos índios" (Salvador, mimeo); livro didático - quase todos os que se referem aos primeiros anos da colonização portuguesa no Brasil contêm referências, mais ou menos pormenorizadas, à história do Caramuru; romance - Arthur Lobo D' A vila, Os Caramurus – Romance histórico da descoberta e independência do Brasil (cf. A vila, 1900).
7. Apenas como exemplos, citem-se dois livros paradidáticos recentes, escritos para públicos diversos (universitário e primário, respectivamente), um editado em Portugal, outro no Brasil, que contêm referências ao Caramuru: Couto (1995) e Sousa (1995).
8. Autores não luso-brasileiros que se referiram ao Caramuru foram em geral cronistas, ativos participantes da história, como Claude d'Abbeville (1614), ou historiadores, como Southey (1981). Sua produção, extremamente importante, porém pouco significativa para o entendimento da construção da memória do Caramuru (pois, em geral, eles apenas fazem referências muito breves ao tema ou repetem os autores luso-brasileiros), não será objeto de análise neste texto.
9. Alguns livros que atestam a existência de uma tradição oral na Bahia sobre o Caramuru: Carneiro (1955) e Pierson (1958). Ferdinand Denis, intelectual francês que escreveu sobre o Brasil na primeira metade do século XIX, testemunhou a existência da tradição na Bahia desde essa época: "Há uma quinzena de anos, mostraram-me ainda, na extremidade do Corredor da Vitória, uma árvore quase desprovida de sua, Diogo Alvares, o Caramuru folhagem, que era designada pelo nome , de 'Arvore da Descoberta'. Foi atrás dela, dizia-se, que Diogo Alvares se havia escondido quando, após o naufrágio, viu os selvagens se apossarem de seus companheiros" (Denis, 1837). Pelas razões expostas na nota anterior, a narrativa de Denis não será objeto de análise.
10. Gabriel Soares de Souza nasceu em Portugal, provavelmente em 1545. Aportou por volta de 1569 à Bahia, onde permaneceu durante quase duas décadas, como senhor de engenho e ocupante de cargos públicos. Aí constituiu família. Durante a União Ibérica, esteve em Lisboa e Madri tentando obter licença e apoio para, junto com o irmão, explorar riquezas minerais de que tivera notícias, nas cabeceiras do rio São Francisco. Nessa época levou consigo para Portugal o manuscrito de Notícia do Brasil, oferecendo-o a Cristóvão de Moura. Em 1591, com mais de 360 colonos, retornou à Bahia, mas perdeu grande parte dos passageiros em um naufrágio. Chefiou uma bandeira em direção ao São Francisco, morrendo no caminho. Notícia do Brasil (nomeado em algumas edições Tratado descritivo do Brasil), por haver circulado em cópias manuscritas e anônimas a partir de 1587, durante muito tempo teve sua autoria atribuída a diversas pessoas; contudo, uma carta de Gabriel Soares a Cristóvão de Moura, encontrada mais tarde, esclareceu definitivamente a questão da autoria. Citarei aqui a edição de 1989.
11. Souza (1989: 32).
12. Souza (1989: 76). Nesta página, uma única vez, o autor confere dois sobrenomes a Diogo: Alvares e Correia.
13. Uma outra obra, de autoria de Frei Vicente do Salvador, História do Brasil - 1500-1627, a primeira história geral do Brasil escrita por um brasileiro, repete brevemente a versão de Gabriel Soares de Souza. Acrescenta-lhe a informação de que os índios chamavam Diogo de "Caramuru" porque "lhe sabia falar a língua", afirmando que o conhecimento do idioma talvez não tivesse bastado para salvá-lo da antropofagia, "se dele não se namorava a filha de um índio principal que tomou a seu cargo defendê-lo"; nascia assim, ainda timidamente, a futura Paraguaçu. No entanto, a importante obra de Frei Vicente do Salvador não faz parte da história da construção da memória do Caramuru: escrita no século XVII foi publicada pela primeira vez apenas em 1889, mais de 250 anos depois, quando a memória sobre o personagem já se encontrava enriquecida por muitos outros relatos eruditos e populares.
14. Simão de Vasconcellos, nascido no Porto em 1596, foi jovem para o Brasil, onde ingressou na Companhia de Jesus, professando em 1636. Com exceção do ano de 1641-42, quando esteve em Lisboa, viveu até 1658 em terras brasileiras, onde foi professor, reitor dos colégios da Bahia e do Rio de Janeiro e provincial. Após um ano (1662-63) em Roma, como procurador da província do Brasil, retornou ao Rio, dedicando-se até à morte (1671) a estudar e a escrever sobre a atuação dos jesuítas no Brasil. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, publicado em 1663, é seu livro mais importante; narra a atuação dos primeiros jesuítas e colonizadores portugueses com detalhes inexistentes em outras obras da época, pois o autor, dada a sua formação e posição, teve acesso a importantes informações reservadas. Citarei aqui a edição de 1865.
15. Vasconcellos (1865: 25-28).
16. Uma das muitas versões a repetirem Vasconcellos foi Francisco de Britto Freyre (1675). Freyre, almirante da armada portuguesa que lutou no Brasil contra os holandeses, modificou apenas os seguintes pormenores: o nome Caramuru significa "homem do fogo"; as mulheres, inconformadas com a viagem de Caramuru à França, atiraram-se à água, e "dizem que se afogou uma" (Freyre, 1675: 73). A narrativa de Freyre, assim como a maioria das outras publicadas nos séculos XVII e XVIII sobre o Caramuru, não cita o livro de Simão de Vasconcellos. O costume de escrever notas e referenciar fontes generalizou-se mais tarde.
17. A noção de "núcleo duro" como "elemento central do enredo, que aparece repetido quantas vezes forem necessárias em outros textos", está em Kermode (1983).
18. Cf. Cunha (1998: 103).
19. Matos (1969, vol. 4: 840).
20. Sebastião da Rocha Pitta nasceu na Bahia, em 1660, e formou-se em cânones na Universidade de Coimbra. Após breve passagem pela Infantaria de Ordenança da Bahia, como coronel, recolheu-se à fazenda de sua propriedade em Cachoeira e aí se dedicou à pesquisa e à produção escrita. Após compor sem sucesso obras de ficção, decidiu-se a escrever uma história do Brasil. Para tanto, pesquisou durante anos em arquivos e bibliotecas do Brasil e também de Lisboa; a fim de ler documentos no original, aprendeu idiomas estrangeiros. Sua História da América Portugueza foi à época elogiada por intelectuais importantes e aprovada com louvor pela Academia de História Portuguesa, que tornou o autor seu membro supranumerário; o prestígio da obra ajudou Rocha Pitta a tornar-se fidalgo da Casa Real e cavaleiro da Ordem de Cristo. Citarei aqui a edição de 1880.
21. Rocha Pitta não data a expedição de Cristóvão Jacques. Esta expedição exploradora, muito pouco mencionada em livros anteriores, teve sua existência (hoje comprovada) discutida pelos historiadores até meados do século XX. Atualmente se admite que Cristóvão Jacques chefiou duas expedições ao Brasil, uma entre 1 5 16 e 1 5 1 9, e outra entre 1526 e 1 528 (cf. Vianna, 1974); pelas informações que dá, o relato de Pitta parece referir-se a uma data próxima a 1 5 1 5. Cristóvão Jacques, segundo relataram Pina e outros, chegou até o rio Paraguaçu ("rio grande", em tupi), na Bahia.
22. Pitta (1880: 29).
23. Pina (1880: 31). Ao longo do século XVIII escreveu-se bastante acerca das pregações de São Tomé no Brasil. A esse respeito existe no Arquivo Nacional da Torre do Tombo curioso manuscrito do século XVIII, em que o autor, talvez baseado na obra de Pina, entre vários outros episódios da história brasileira, descreve a ida de São Tomé ao Brasil (cf. ANTT Papéis do Brasil. Códice 13, p. 1-26).
24. A segunda edição da obra do Pe. Simão de Vasconcellos, originalmente publicada em 1663, data de 1865, quando os exemplares existentes da Chronica já eram de "extrema raridade", segundo o editor (cf. ''Advertência Preliminar", in Vasconcellos, 1 865, s. p).
25. Não por acaso são estas as primeiras palavras do livro de Pitta: ''As grandezas e excelências, ó leitor discreto, da região do Brasil" ...
26. Frei Antonio de Santa Maria Jaboatão nasceu em 1695 em Pernambuco, na freguesia de Santo Amaro (rega da pelo rio Jaboatão) e morreu em cerca de 1765. Professou em 1717 na Ordem de S. Francisco, onde exerceu vários cargos. Autor de numerosas obras - crônicas, histórias e sermões -, muitas dedicadas à história de sua ordem, seu principal livro é Orbe serafico novo brasilico, de 1761.
27. ''Antilóquio'', in Jaboatão ( 1761, s. p.).
28. Jaboatão (1761: 22).
29. Jaboatão (1761: 25-26).
30. Frei José de Santa Rita Durão, ao que tudo indica filho de portugueses, nasceu em Cata Preta, aldeia da diocese de Mariana, Minas Gerais (1722?), e faleceu em Lisboa em 1784. Levado para Portugal ainda criança, ingressou na Ordem de Santo Agostinho e doutorou-se em teologia na Universidade de Coimbra, onde posteriormente foi professor. Ocupou algum alto posto nesta universidade (algumas fontes dão-no como reitor) durante o período do Marquês de Pombal; há indícios de que teria caído em desgraça perante Pombal, por discordar da política em relação aos jesuítas aplicada pelo bispo dom João da Cunha. Compôs o poema épico nos últimos anos de vida, quando, impossibilitado de escrever devido a uma doença grave, teria ditado uma parte da obra pela qual é lembrado: Caramuru Poema épico do descobrimento da Bahia. Citarei aqui a edição de 1845.
31. Romero e Ribeiro (1906), Coutinho (1968). Freqüentemente a obra de Durão é comparada ao Uruguai, de Basílio da Gama, poema épico sobre as guerras entre índios, portugueses e espanhóis em Sete Povos das Missões, então Uruguai, publicado em 1769; ambos são considerados expressões do arcadismo setecentista no Brasil. Análises literárias sobre o poema de Durão podem ser encontradas, entre outros, em: Cândido (1981); Cidade (1957); Martins (1977). Houve uma tradução francesa do Caramuru, ainda no século XIX: Monglave (1829).
32. "Reflexões prévias e argumento", in Durão (1845, respectivamente p. XIII e XVI). Muitos críticos chamaram a atenção para a influência do modelo de Os Lusíadas sobre Caramuru.
33. Canto ILXLVI, in Durão (1845).
34. A primeira referência ao episódio está no Canto LXXVII e seguintes. As outras, em Canto ILVIII-XII, XLIII e L, Canto III. XC e seguintes, Canto NLXVI e Canto V.XLII, LI, LXVIII e LXX.
35. O termo "cacique", de origem taina (Arawak, das Antilhas, depois
espanholizado na instituição cacicazzo), não sendo vocabulário tupi, não é o mais indicado para referir-se aos grandes guerreiros indígenas tupinambás (para usar o etnôrnio mais freqüente da bibliografia especializada). Entretanto, como o termo se popularizou e é efetivamente utilizado no poema de Durão, será mantido aqui nas referências a este texto específico. Agradeço ao parecerista anônimo deste artigo as explicações acima, referentes ao termo "cacique".
36. E famosa (e, segundo alguns críticos, literariamente bem-sucedida) a descrição da morte de Moema, personagem cuja existência, conforme se viu, já vinha sendo delineada antes (cf. Canto VI.V e seguintes e Canto VI.XXXVI e seguintes). A cena é também muito representada em desenhos, pinturas e gravuras.
37. A criação de heróis redimidos pelo sofrimento em meios remotos tem sido comum no imaginário de vários povos. A chegada dos europeus à América forneceu numerosas narrativas sobre o tema (como as de Cabeza de Vaca ou de Hans Staden), muitas das quais continham elementos presentes também na história do Caramuru: é o caso do medo que o herói sente ao chegar, o medo que inspira devido a algum conhecimento que tem (como o uso da arma de fogo), muitas vezes identificado pelos nativos com alguma qualidade divina, o abandono do herói náufrago ou prisioneiro, que nessa condição começa a viver realmente uma experiência transcultural etc. Cf. a respeito, entre outros: Cabeza de Vaca (1987); Lery (1960); Staden (1974). Para uma boa análise do tema, cf. O'Gorman (1992) e Todorov (1983). Para uma comparação do tema em outro contexto histórico, é interessante conhecer as representações sobre o pioneer, o conquistador branco do Oeste norte-americano. A esse respeito, cf., entre outros, Nash (1967) e Slotkin (1973 e 1 985).
38. "Na generosa empresa não descansar/De instruir a rudeza do selvagem [...] Que às expensas do rei seja educado/O neófito, que abraça a santa Igreja." Cantos VIU.II. e X. LXXVI in Durão (1845).
39. As citações estão respectivamente em Canto I.LXXVIII e LXXVII, Canto NII e III e Canto NXLV e seguintes. Representações de homens e mulheres de outros continentes com características européias eram comuns na literatura e na iconografia da Europa Ocidental desde o século XVI.
40. "Quando Paraguaçu! Já Catarina..." escreve Durão no Canto VIII. XIII. Na visão que "Catarina" teve de N. Sra. - "mais bela que esse sol que o mundo gira/" (Canto IX.!) -, esta pedia que lhe fosse restituída uma imagem sua roubada. O mistério da imagem desconhecida permanece durante vários cantos, até ser descoberta, em terra, uma imagem que um carijó havia furtado. "Esta é (disse) é esta a grã senhora / Que vi no doce sonho arrebatada" (Canto X.XLIII), exclama Paraguaçu (cf. também Canto VIII.XVII e seguintes). Santa Rita Durão a seguir estabelece, como outros já haviam feito, a mesma ponte entre esse episódio miraculoso e a história do Brasil, pois a santa é escolhida padroeira da Bahia.
41. Cf. Canto X.L e seguintes. Os indígenas prestam "vassalagem" a
Caramuru, que repassa tal vassalagem ao rei de Portugal (Canto X.LXIX). Escusado lembrar que os conceitos de "herança" e "v assai agem", tal como expressos por Rocha Pitta e Durão, eram desconhecidos dos índios.
42. Canto III.XI. Ao narrar para Caramuru os "costumes indígenas" tais como Frei de Santa Rita Durão os idealizou - a importância das tabas, o respeito pelos velhos, o eficiente sistema de justiça, a punição do incesto e do adultério (!) etc. -, Gupeva em verdade descreve uma utopia européia. Na segunda metade do século XVIII muitas dessas utopias foram situadas pelos europeus em regiões e entre povos "remotos".
43. Canto L XXIV, LXXXVII, LXXXIXIV, Canto Iv. notas 1 e 2, Canto V.LXXIlI e Canto X.xVIII.
44. Canto IX. XIII e LXXVIII.
45. Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em São João de Ipanema, SP, em 1816, e faleceu em Viena, Austria, em 1878. Filho de um militar austríaco e provavelmente de uma portuguesa, estudava no Colégio Militar, em Lisboa, quando decidiu alistar-se nas tropas de dom Pedro I, em defesa da restauração constitucional do Reino. De volta ao Brasil, conseguiu comprovar a nacionalidade brasileira e ingressou na diplomacia; serviu em vários países, inclusive Portugal e Espanha. Barão e Visconde de Porto Seguro, foi membro de prestigiosas instituições (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Academia Brasileira de Letras, Academia Real de Ciências de Lisboa e Academia Real de História de Madri) e se tornou um dos mais prestigiados historiadores brasileiros do seu tempo. Sua obra, composta de mais de cem escritos e caracterizada pelo uso de grande número de documentos inéditos e pelo rigor metodológico, ajudou a erigir o influente padrão historiográfico que marcou a produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro à época. Note-se que, em 1859, Varnhagen publicou um romance histórico: Caramuru. Seu trabalho aqui analisado é "O Caramuru perante a História" publicado na Revista Semestral de História e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1848.
46. O concurso aberto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tinha como tema central a viagem de Diogo Alvares à França, reproduzindo a respeito do assunto dois parágrafos retirados da obra de Sebastião da Rocha Pitta. Como se verá, o premiado trabalho de Varnhagen não só criticou duramente a obra de Rocha Pitta, como concluiu nunca ter existido a viagem de Caramuru à França.
47. Varnhagen (1848: 130). As citações seguintes estão, respectivamente, nas p. 129, 130 e 131.
48. "Quem conta um conto / Acrescenta um ponto", lembra Varnhagen em nota (nota 1 , p. 1 30).
49. Parte deste ensaio (originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1847) foi depois reproduzida na segunda edição do poema de Santa Rita Durão. Cf. Durão (1845: VII-XIII).
50. Grande parte da concepção de Augusto Comte sobre a história baseou-se em idéias correntes à época em que escreveu. Tais idéias - como a classificação da história em etapas sucessivas e evolutivas, a progressão desde a mitologia até a ciência, a identificação entre história e civilização e a atribuição de um caráter científico ao trabalho do historiador – influenciaram grandemente Varnhagen, sempre muito bem informado sobre a produção européia nas áreas de história, filosofia e literatura.
51. Alguns documentos citados ou reproduzidos na monografia: relação de Francisco de A vila sobre a nau São Gabriel (1526), relação do capitão Diogo de Garcia (1526), carta de Pero Lopes a Martim Afonso de Souza (1531), testemunho de Herrera (1535), carta de Pero de Campo Tourinho a dom João III (1546) e carta de Manuel da Nóbrega (1555).
52. "Demos existência formal ao que antes não fora talvez mais do que conjecturas enfeitadas por uma imaginação criadora". Cf. Varnhagen (1848: 151).
53. Varnhagen (1848: 140 e 147).
54. Varnhagen não duvida de que Pitta tenha consultado manuscritos, mas o acusa de não os haver citado. Cf. Varnhagen (1848: 144 e 146-149).
55. Dois exemplos de brechas no rigor da lógica: 1°) para dar "Caramuru" apenas como sinônimo de um peixe brasileiro, Varnhagen apóia-se no capuchinho seiscentista Claude d' Abbevile, que atuou no Maranhão e descreveu o peixe; nega assim outra fonte igualmente válida, e mais próxima dos acontecimentos, o também seiscentista jesuíta Simão de Vasconcellos, que morava na Bahia (isso sem argumentar com a possibilidade da existência de dois significados para o termo, um relativo ao peixe e outro dado , como alcunha a Diogo Alvares). 2°) Varnhagen afasta várias possibilidades de o Caramuru ter estado na França apenas baseado numa suposição de racionalidade do comportamento de Diogo Alvares: se este, argumenta, estava auxiliando os portugueses, como iria se bandear para o lado dos franceses? Além de tal comportamento racional ser apenas urna suposição do historiador, hoje em dia está comprovado que, durante os primeiros anos da colonização, muitos colonos transitaram entre portugueses e franceses, tirando partido da presença de ambos no Brasil.
56. Três exemplos do emprego de recursos de ficção no texto: o uso da ironia, para referir-se aos autores e fatos dos quais discorda; o emprego de numerosas metáforas; e a eleição, ao longo do texto, de protagonistas (os autores com os quais concorda) e antagonistas (os dos quais discorda), que travam caloroso embate entre si.
57. E o caso de praticamente todas as histórias gerais do Brasil publicadas neste século. Os historiadores que seguiram outros cânones históricos, como o marxismo, abandonaram o tema.
58. Não se conseguiram dados sobre o autor.
59. D'Ávila (1900: 9). As citações seguintes deste parágrafo estão nas p. 10 e 11.
60. D'Avila (1900: 179). A citação anterior é da p. 111, e as posteriores, das p. 180, 250 e 268.
61. João de Barros nasceu na Figueira da Foz em 1881. Formado em direito em Coimbra, dedicou-se no entanto à educação, como professor, diretor do Ensino Secundário e secretário do Ministério da Inspeção; em 1925, ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros. Autor de várias obras, que inclui poesia, ficção em prosa, adaptações de outros textos e ensaios, a maioria sobre educação, foi um entusiasta da aproximação luso-brasileira e escreveu sobre o assunto várias obras, as quais agrupou sob o título de "Campanha Luso-Brasileira". Esteve três vezes no Brasil. Seu Caramuru – Aventuras prodigiosas... é antecedido por um "Prefácio" do autor e concluído com um "Epílogo" e uma "Vida do autor de Caramuru".
62. Barros (1935: 1 5). A citação seguinte está nas p. 9-10, e o "Epílogo" referido, nas p. 157 e 158.
63. Canto I.1 in Durão (1845) e Barros
(1935: 1 3).
64. "Sem que se possa nem deva comparar-se aos Lusíadas ou à Odisséia", Caramuru é "celebrado no rol dos Grandes Livros da Humanidade" afirma Barros (1935: 9 e 10). Na biografia de Durão, apresentada ao final do volume, Barros transcreve opiniões elogiosas de críticos literários sobre o poema.
65. As citações estão em Barros (1935: 10-11). Interessante é Barros afirmar, entre as qualidades do Caramuru, que aí estão presentes "os três elementos étnicos formadores" da população brasileira. O único negro que aparece no poema e Henrique Dias, herói brasileiro da guerra contra os holandeses.
66. Barros (1935: 157-158).
67. As exceções são as narrativas de Gabriel Soares de Souza e de Varnhagen, que não incorporam elementos literários em seus enredos. Ambas, entretanto, tomaram emprestado do ficcional outros
recursos; sobre Varnhagen, a esse respeito, cf. nota 55.
68. Cf. Barros (1935: 1 0); D'Avila (1900: 10); e Barros (1935: 11).
69. Embora existam definições mais sofisticadas, esta, de autoria de Richard Slotkin é clara e atende a nossos objetivos. Cf. Slotkin (1973: 5). Sobre teorias do século XX acerca dos mitos.
70. Sobre mitos, cf., entre muitos outros, estes textos, que guardam diferentes perspectivas teóricas entre si: Barthes (1957); Detienne (1986); Eliade (1981); Levi-Strauss (1978); Samuel e Thompson ed. (1990).
71. De acordo com Jung, os arquétipos fazem parte do inconsciente coletivo. Cf. Jung (1984). Para uma reinterpretação da teoria junguiana, sustentando que os arquétipos são socialmente construídos, cf., entre outros, Trevi (1987).
72. Para diferentes perspectivas teóricas a respeito do significado das metáforas e suas relações com a memória e a história, cf. Barthes, ed. (1987); Brooke-Rose, ed. (1991); White (1985); Ricoeur (1994); Riedel, ed. (1988); Sahlins (1981); Veyne (1992).
73. Dubois (1991: 34 e 36), tradução nossa. A respeito do mesmo tema, cf. também Eliade (1981: 178 e segs.).

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FONTE: AMADO, Janaína. Diogo Álvares, o Caramuru, e a Fundação Mítica do Brasil. Revista Estudos Históricos, n. 25, 2000, p. 3-39.