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Leandro Vilar

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Zé Carioca: um papagaio na periferia do Capitalismo

Zé Carioca: um papagaio na periferia do Capitalismo


Ma. Camila Manduca Ferreira


Obs: as imagens a seguir foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho da autora, o qual originalmente não conta com imagens. 

Era no tempo de Vargas. Em 1943, durante o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, e por meio da chamada política de boa vizinhança, foi criado pelos estúdios Walt Disney o papagaio brasileiro que representaria a América Latina no filme Alô amigos.2 Como esclarece a abertura do filme3, Disney envia uma expedição de desenhistas, artistas, músicos e escritores para a América do Sul em busca de músicas, danças e talvez um novo companheiro para o camundongo Mickey e o Pato Donald. “Saíram e encaminharam-se para o seu destino” (Cf. ALMEIDA, 2010, p.44) rumo à atraente América do Sul.

José "Zé" Carioca
Foram pelo Brasil, Argentina, Bolívia, Peru e Chile. Admiraram “a vida animada, as roupas coloridas e os chapéus esquisitos, são detalhes como estes que sempre interessam ao artista”.4 No caminho, de avião, entre o Chile e a Argentina, os visitantes criam o desenho de um aviãozinho chamado Pedro. Ao cruzar os pampas argentinos, percebem a semelhança entre o gaúcho e o vaqueiro sulino dos EUA, o cowboy do Velho Oeste; por isso, no coração do Texas foram buscar o vaqueiro Pateta e levá-lo para a terra do gaúcho. Malgrado as semelhanças, Pateta não se adaptou muito bem. “Colher material de inspiração foi um verdadeiro prazer”. Depois foram para o Rio de Janeiro, “a cidade maravilhosa, que ultrapassa tudo quanto se tem dito e escrito sobre ela”. Viram Copacabana, o Pão de Açúcar, as calçadas de mosaicos, o Corcovado com a estátua do Cristo. Tudo isso os levou a descobrir um ator de futuro: “o gozadíssimo papagaio das anedotas do Rio”.

“Sem demora nós o trouxemos para Hollywood e lhe demos o nome de Zé Carioca (Joe Carioca). O samba nos fascinou, com seu ritmo admirável, esse ritmo que ilumina o Carnaval. (...) Durante esses dias a cidade canta e dança de alegria, e como eles dizem, todo mundo se desmilingua. Ary Barroso, com sua Aquarela do Brasil (Watercolor of Brazil) descreve bem essa terra tão linda”. (Alô amigos, 1943).

Depois de uma animação tendo como fundo e tema a Aquarela de Ari Barroso, acontece o primeiro encontro entre o recém-nascido Zé Carioca e o Pato Donald. Zé reconhece o famoso pato, este estende a mão, mas Zé o surpreende com um forte abraço, “um mesmo daqueles, um quebra costelas, um bem carioca, um amigo”. Zé promete levá-lo para conhecer vários lugares. Donald não entende o brasileiro; então Zé, papagaio sabido, convida-o: “Or that´s american say: let’s go city! I show you the land of the samba”. Donald diz “Samba? What’s samba?” O nativo responde: “Samba…” (só o batuque explica e, para Zé fazer samba, qualquer coisa, como seu inseparável guarda-chuva, serve, ele toca Tico-tico no fubá).

Pôster original de 1942 do filme Alô, Amigos, o qual apresentou pela primeira vez o personagem Zé Carioca. Na trama, o Pato Donald viaja a América do Sul, e em sua jornada ele passa pelo Rio de Janeiro. Ali, além de encontrar o papagaio verde, eles também encontram a famosa atriz e cantora Carmen Miranda. 
Depois, Zé leva Donald para um bar. O ingênuo pato pergunta, ao ver a garrafa: “Ah, refreshment?” “Não, cachaça”. Donald termina a noite dançando com uma baiana. E o filme se encerra com o mesmo hino com que começou: “Saudamos a todos da América do Sul, a terra onde o céu sempre é azul. Saudamos a todos, amigos de coração, que lá deixamos e de quem lembramos ao cantar essa canção”.

A carreira cinematográfica de Zé Carioca teve ainda mais um episódio, ao estrelar a parte brasileira – “Você já foi à Bahia?” – na produção Os três cavaleiros (1945), que contou também com a participação de Aurora Miranda. Donald está desembrulhando os presentes de aniversário enviados por seus amigos da América Latina. Assiste a um filme sobre um pingüim que migra para os trópicos, outro sobre aves raras (os parentes de Donald do outro hemisfério). Há ainda uma história sobre um gauchinho que fica amigo de um burrinho voador.

Pôster original de 1944 do filme Os Três Cavaleiros, o qual mostrava uma nova viagem do Pato Donald e do Zé Carioca pela América Latina, dessa vez acompanhados do galo mexicano Panchito Pistoles. 
Contudo, o presente que nos interessa é um livro em que Donald encontra Zé Carioca, desta vez disposto a levá-lo para um passeio à Bahia. “Você já foi à Bahia?”5 Donald responde que não. E Zé propagandeia: “Ah, a Bahia! Como eu me lembro da Bahia! É uma canção de amor no meu coração. Uma canção de amor e belas lembranças”. Carioca pergunta novamente: “Perdão, Donald, você já foi à Bahia? Não? Então vá. Quem vai à Bahia, meu nego, nunca mais quer voltar”. Donald fica irritadiço com as recorrentes perguntas de Zé: “E você, já foi à Bahia?” O papagaio, encabulado, responde: “Eu? Não.” E Donald resolve: “Então vamos!”.

Chegados à Bahia, pato e papagaio encontram a baiana Iaiá (Aurora Miranda) a vender doces e cantar, chamando a atenção dos malandros de plantão. Encantado com Iaiá, Donald fica enciumado ao ver um homem se aproximar: “Quem é esse cara?” Seu guia responde: “Ele é um malandro, Donald”. A excitação do pato é tamanha que Zé tem de refreá-lo: “Não afoba, Donald”. Muito faceira, Iaiá dá atenção a todos e a nenhum. No entanto, quando chegam outras Iaiás, ela fica sozinha e nota Donald, que lhe oferece um buquê de flores, sendo recompensado com um grande beijo. É mais uma das aventuras amorosas de Donald nos trópicos. “O que você achou da Bahia? Diga a verdade”. “Maravilhosa, demais: romance, luar, lindas mulheres”. Donald faz muitas trapalhadas e Zé diz: “Eu fico louco, you very funny!”.

Cena do filme Os Três Cavaleiros, no caso, trata-se de um momento no qual Donald e Zé visitam Salvador, capital da Bahia, no Brasil. A atriz dançando e cantando era Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda. 
O outro presente é uma caixa de música do México cujo anfitrião é Panchito Pistoles, um papagaio vermelho que não só empunha, como dispara para todos os lados com suas inseparáveis duas pistolas. Panchito presenteia-os com sombreiros e, junto com Donald e Zé, eles formam a tríade que dá nome ao filme. Os três cavaleiros, três mosqueteiros, só tem uma coisa em comum (as penas). Somos amigos, e nosso lema é um por todos e todos por um. Vivemos unidos e bem protegidos, debaixo dos nossos sombreiros. Mas bravos seremos, dinheiro teremos. Os três cavaleiros. Cantamos o samba, gritamos ai caramba! (Zé pergunta: “Porque ai caramba? Não sei”). Na chuva ou tempestade, a nossa amizade irá resistir. E se uma morena quebrar nosso lema, é cada um por si. (Os três cavaleiros, 1945).

O que se segue é uma viagem ao México, conhecendo costumes e danças e visitando os badalados pontos turísticos, entre eles Acapulco (sobretudo as banhistas de Acapulco). Donald invariavelmente se encanta pelas dançarinas e tem que ser controlado pelos companheiros calientes. Ao encontrar na noite mexicana uma senhorita que canta em inglês especialmente para ele, Donald mergulha num delírio luxurioso e só consegue repetir: “Que garotas! Que garotas!”. Os penados encerram juntos o filme, cantando: “Os três cavalheiros para sempre seremos”. É a “despedida às travessuras” latinas de Donald. (Cf. ALMEIDA, 2010, p.08).

Pato Donald se exibindo para as mexicanas em Acapulco, em cena do filme Os Três Cavaleiros (1944). 
Cumprida sua missão em Hollywood, o papagaio ainda tem approach para engatar uma carreira nas histórias em quadrinhos. Sua primeira aparição nesse veículo data de 1950, pela editora Abril, junto com a revista do Pato Donald. Em meados de 1960, as histórias de Zé Carioca consistiam, por escassez de material, em adaptações dos quadrinhos norte-americanos. Assim, Zé Carioca aparecia em aventuras ao lado de Tio Patinhas e Professor Pardal, por exemplo, sem diferenciações entre a cidade em que nosso papagaio morava e Patópolis.

Posteriormente, conforme o papagaio é situado claramente no Brasil, é que se evidencia sua condição malandra: avesso ao trabalho e apreciador do samba, das mulheres, da praia e do futebol. O seu layout, entretanto, não acompanhou o abrasileiramento dos quadrinhos – Zé Carioca continuava a ter como referência, desde seu nascimento nos "filmes, a alta sociedade norte-americana: paletó, gravata borboleta, chapéu panamá, charuto e guarda-chuva. Esse "no trato faz Zé Carioca destoar de seus maltrapilhos companheiros de aventuras (Nestor e Pedrão): Zé era como os meirinhos daquele tempo do rei, “não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos”. (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 01).

Algumas evidências – os olhos azuis, a fácil aceitação de sua presença na high society, o namoro com uma penada branca e rica – nos levam a suspeitar da cor de Zé Carioca, isto é: ele é inegavelmente verde mas, em correspondência humana, seria branco. Afinal, os "filmes podem até falar dos índios do Chile, mas em toda a América Latina não há um negro (sendo destacada a pele alva das dançarinas baianas e mexicanas). Quando ganha um núcleo brasileiro de interlocutores, a questão da cor do papagaio verde se impõe: é possível discriminar entre ele, Nestor (um urubu preto) e Pedrão (um mulato). Partindo da premissa da existência de uma teoria crítica brasileira, com intérpretes que descobriram a originalidade estrutural do Brasil, caberia perguntar o quanto um personagem de desenho animado criado por estrangeiros como emblema do Brasil fala de nós, brasileiros. O atributo fundamental de Zé Carioca é a malandragem.

Acontece que o atributo malandro é amplo o bastante para constituir-se em uma linha interpretativa do Brasil – “O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum:

a todos os folclores” (CANDIDO, 1993, p. 23): “uma "figura historicamente original, que sintetiza (a) uma dimensão folclórica e pré-moderna – o trickster; (b) um clima cômico datado – a produção satírica do período regencial; e (c) uma intuição profunda do movimento da sociedade brasileira” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 02). É este último elemento apontado por Schwarz, o que nos interessa particularmente.

Vale a pena (as penas verdes do papagaio em questão), portanto, cotejar esse malandro tipo exportação com o primeiro grande malandro da novelística brasileira, revelado por Candido no “primeiro estudo literário brasileiro propriamente dialético” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 01), rara exceção no pensamento brasileiro a conseguir alcançar a dialética entre forma literária e processo social, o que lhe permitiu “identificar, batizar e colocar em análise uma linha de força inédita até então para a teoria, a linha da malandragem” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 01).

Cena da revista Zé Carioca: A maior corrida do século (1971). Na cena em questão vemos o tom irônico do protagonista, ao falar sobre seus credores. 
Em “Dialética da malandragem”, Antonio Candido analisa o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Seria Leonardinho herdeiro dos pícaros espanhóis? Candido investiga o problema da "filiação das Memórias, ligando-o, não à tradição picaresca espanhola, mas a “uma tradição quase folclórica” (CANDIDO, 1993, p.25): o protagonista seria antes um herói popular (um herói sem nenhum caráter, ancestral de Macunaíma) do que um anti-herói. Candido compara as características de Leonardo Filho e do típico herói picaresco: Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias. (CANDIDO, 1993, p. 22).

Nesse ponto, talvez Zé Carioca se distancie do protagonista de Memórias. Sem padrinho que o amparasse, o papagaio, nascido pobre, só viu piorar seu destino ao perder-se da mãe no centro da cidade. Colocando em linha de conta que se trata do Brasil, “sua história tem pouca coisa de notável” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 02): depois de sobreviver durante anos às intempéries próprias de, para empregar a retórica em voga, uma criança em situação de risco social, Zé, ao empregar seus dotes espoliadores, conquista definitivamente a amizade dos dois animais que a partir de então serão fator crucial para sua reprodução: Nestor e Pedrão. Foi o “arranjei-me” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 20) de Zé Carioca.

Nestor e Pedrão, os dois melhores amigos de Zé Carioca. 
Por outro lado, talvez a malandragem de Zé trace uma qualidade essencial e mesmo hereditária (prova disso é que ele narra aos sobrinhos crônicas de seus ancestrais que já eram malandros, como o Zé do Tejo, verdadeiro descobridor do Brasil). É certo que a infância infausta pode ser evocada como catalisadora de sua malandragem, mas não podemos afirmar que, amparado como foi Leonardo pelo Padrinho, Zé Carioca fugisse à “malsinação” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 77) malandra.

Leonardo Filho, “semelhante aos pícaros, é amável e risonho, espontâneo nos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolando pela vida” (CANDIDO, 1993, p. 23). Zé é risonho e, embora esse lado amável e encantador seja mais diluído no gibi (nos filmes a lhaneza dele para com Donald é adorável), não deixa de existir. Se assim não fosse, o que mais justificaria a afeição que Nestor, Pedrão e Rosinha lhe devotam?

Zé Carioca e sua namorada Rosinha. 
Sempre levado pelas circunstâncias – as histórias do gibi começam expondo sua ociosidade descarada até que algo o leva a agir, mesmo volens nolens – Zé, como Leonardo, tem vocação para títere6. Enquanto Leonardo pratica a “astúcia pela astúcia, manifestando um amor pelo jogoem- si”, Zé é levado pelo “pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto” (CANDIDO, 1993, p. 26). Assim é quando, procurado para realizar um trabalho de investigação (e daí sua condição de títere: nunca é ele quem procura, a vida é que o leva) na “Agência Moleza de Detetives – Resolvemos o caso sem criar caso”, se declara detetive aposentado. O aceno de um bom pagamento por uma tarefa aparentemente fácil, contudo, faz com que Zé Carioca recue e aceite trabalhar, sobretudo se a proposta de emprego vier acompanhada da possibilidade de onerar um de seus amigos.

O pícaro “traindo os amigos, enganando os patrões, não tem linha de conduta, não ama e, se vier a casar, casará por interesse” (CANDIDO, 1993, p. 24). Para Zé Carioca, trair os amigos é uma constante, embora se aproxime mais do malandro que dos pícaros ao demonstrar, embora superficialmente, amor por Rosinha, ainda que, convenientemente, a amada seja a herdeira do rico Rocha Vaz (o que seria um “remédio aos males”). (Cf. ALMEIDA, p. 68).

Se “pai e filho [nas Memórias] materializam as duas faces do trickster: a tolice, que afinal se revela salvadora, e a esperteza, que muitas vezes redunda em desastre, ao menos provisório” (CANDIDO, 1993, p. 27), Zé, como não teve pai, funde essas duas faces. Ora é ingênuo, porém sempre no afã de esperteza; ora sua esperteza (sempre maior em intenção que em efetividade) o embaraça. Muitas vezes também a ingenuidade o embaraça. “Para ele não havia fortuna que não se transformasse em desdita, e desdita que não lhe resultasse fortuna” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 94).

No fim das contas, ele sempre se enrola. Tome-se como exemplo o episódio em que, enquanto o papagaio pensava burlar o serviço para o qual havia sido remunerado, descobre-se que o cliente era na verdade um ladrão internacional que o estava usando. Ao prender Zé e Nestor, o policial diz: “Vocês vão entrar em cana, malandros!”. Porém, desfeita a confusão, o policial conclui: “Quanto a esses dois, não passam de dois otários”. Talvez essa seja a moral dos quadrinhos de um personagem por natureza sem caráter: não importa o que ele faça, por suas segundas intenções, sempre se dá mal. Zé Carioca não tem, como Leonardinho, fadas boas que lhe entreteçam uma “conclusão feliz”. (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 109).

Nesse ponto, esbarramos na pedra de tropeço da interpretação disneyniana do Brasil. Candido analisou brilhantemente uma obra de arte que conseguiu realizar a redução estrutural “de um dado social externo à literatura e pertencente à história” Longe de ser obra de arte, a interpretação do Brasil encarnada em Zé Carioca não apanha a “figuração de uma dinâmica histórica profunda”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 03).

A suspensão do juízo moral é a principal característica atribuída por Antonio Candido a Memórias, decorre daí a dialética entre ordem e desordem: “O seu caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existência”. (CANDIDO, 1993, p. 36).

Ordem e desordem existem em qualquer lugar, o que Manuel Antonio de Almeida intui – e Antonio Candido desnuda – é a originalidade estrutural brasileira da dialética entre ordem e desordem. A dialética da malandragem seria, então, além de categoria – modo de ser – interpretativa, categoria ontológica7. O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal [...] [os momentos de ordem e desordem] acabam igualmente nivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isto [...] Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis. (CANDIDO, 1993, p. 39 e 41).

Candido traça com Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, uma linha equatorial: acima deles estão aqueles que vivem segundo as normas estabelecidas e abaixo os que:

“vivem em oposição ou pelo menos integração duvidosa em relação a elas. Poderíamos dizer que há, deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um negativo da desordem, funcionando como dois imãs que atraem Leonardo depois de ter atraído seus pais”. (CANDIDO, 1993, p. 37).

Em Zé Carioca, esses hemisférios se apresentam de modo bem mais claro na tradicional divisão entre acima e abaixo do equador. No filme essa linha não é apenas imaginária, ela é palpável: cruzar a linha do equador dá a possibilidade a um pingüim friorento de esbaldar-se na praia, enquanto solícitas tartarugas lhe servem margueritas, e permite ao fiel e puritano Donald perseguir as belas banhistas da praia de Acapulco. Em suma, não existe pecado do lado de baixo do equador, onde tanto turistas quanto nativos podem se embevecer num “mundo sem culpa” (Cf. CANDIDO, 1993, p. 37). E, por isso, somente aqui Donald realiza aqueles desejos reprimidos pela venal Margarida.

Nesse ponto, é preciso diferenciar em Zé Carioca a perspectiva dos filmes produzidos por estrangeiros e a dos gibis produzidos por brasileiros. No primeiro caso, ordem e desordem correspondem aos hemisférios Norte e Sul respectivamente. O pato tem uma posição confortável: como pertence ao mundo da ordem – geográfica e monetariamente ele pode baixar eventualmente ao mundo agradável da desordem” (CANDIDO, 1993, p. 43) na condição de turista. E Donald vai tão fundo na desordem que precisa ser cerceado pelos amigos latinos.

Nos gibis brasileiros, contudo, esses pólos se mostram nos estereótipos regionais e na ótica de classe que veiculam. Candido evidencia que Manuel Antonio de Almeida logra a suspensão do juízo moral por aderir ao ponto de vista do setor intermédio da sociedade joanina, a massa de trabalhadores livres de que fala Caio Prado Jr. As histórias de Zé Carioca, por outro lado, cumprem um papel ideológico: a massa de pobres chafurda na desordem, enquanto os ricos desfilam no painel da ordem. Apenas Zé Carioca, por sua condição malandra, consegue circular entre os dois pólos, o que não o isenta, todavia, de julgamento moral – não de sua parte: afinal, o remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita segundo sua eficácia [...] a repressão moral só pode existir, como ficou dito, fora das consciências (CANDIDO, 1993, p. 48 e 49).8

Em suma, não existe “balanceio caprichoso entre ordem e desordem” (CANDIDO, 1993, p. 44). Em Zé, ordem e desordem são nítidas e definidas. Sem a suspensão do juízo moral, suas malandragens são tidas como reprováveis, ao contrário das Memórias, que criam um universo que parece liberto do erro e do pecado “[...] o sentimento do homem aparece nele como uma espécie de curiosidade superficial, que põe em movimento o interesse dos personagens uns pelos outros e do autor pelos personagens, formando a trama das relações vividas e descritas. A esta curiosidade corresponde uma visão muito tolerante, quase amena. As pessoas fazem coisas que poderiam ser classificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura”. (CANDIDO, 1993, p. 47).

Quanto aos estereótipos regionais, Zé Carioca tem um primo em cada região do país, que a sintetiza e da qual é representante. Ao se abrasileirar, o malandro Zé continua sendo, de acordo com essa interpretação, o típico brasileiro, contudo, agora os gibis abrem espaço para as peculiaridades – estereotipadas – regionais. Se antes, porque os destinatários dos filmes eram estrangeiros, as exoticidades eram buscadas em nível internacional, nos gibis essas são encontradas no contexto intranacional. Nosso papagaio faz várias incursões para conhecer os primos, mostrando o que há de pitoresco em cada canto: Zé paulista que, por demasiado trabalhador, é seu oposto; Zé Jandaia, o cearense irascível; Zé Pampeiro, o gaúcho de facão dos pampas; Zé Queijinho, o caipira mineiro que come de tudo; e Zé Baiano, exageradamente preguiçoso. Cada região apresenta afinidades maiores ou menores com a ordem.

Alguns dos principais parentes de Zé Carioca. Na época eles foram criados nas décadas de 1960 e 1970, expressando estereotrópios regionais do brasileiro. 
A “certa ausência de juízo moral” (CANDIDO, 1993, p. 39) de Memórias, proporciona relativa equivalência entre ordem e desordem, a tonalidade do relato não se torna mais ou menos aprovativa conforme os personagens circulam no âmbito da ordem ou da desordem, pois há “confusões de hemisférios e esta subversão final de valores (CANDIDO, 1993, p. 43): “Tutto nel mondo é burla’, parece dizer o narrador das Memórias de um sargento de milícias”. (CANDIDO, 1993, p. 41).

A mediação proporcionada pela dialética da ordem e da desordem impede que se estabeleçam os pares antitéticos que podem “fazer da hipocrisia um pilar da civilização”. (CANDIDO, 1993, p. 48) Tais princípios mediadores estão, segundo Candido, geralmente ocultos, daí a necessidade de uma análise profunda, do “subsolo do discurso”, (CANDIDO, 1993, p. 14) que só é possível porque o “referente não é o país-projeto, mas o país verdadeiro (o das classes sociais)”, (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 07) cuja pauta é a “realidade em sentido forte”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 10).

Não há expressão de equivalência entre ordem e desordem em Zé Carioca. Sem apreender que “fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco” (CANDIDO, 1993, p. 48), seus criadores estacam na polarização superficial e não podem expressar a “formalização estética de um ritmo geral da sociedade brasileira” (Cf. SCHWARZ, p. 3). Trata-se do mais central dos países capitalistas procurando oferecer uma visada “amigável” à periferia do capitalismo. É o Brasil de Ari Barroso, da nívea baiana Iaiá que vende quindim, das aves raras, da cachaça, do samba (tanto que nos filmes os termos exótico, esquisito e afins são mais que recorrentes). É o Brasil pela via da exoticidade e não da originalidade estrutural: “os detalhes pitorescos oferecem ao leitor a identificação brasileira fácil e simpática, a qual nesta perspectiva é um m em si mesmo. A função é mais ideológica do que artística (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 06).

A escolha da Disney pelo pitoresco nos faz “parecer inferiores ante uma visão estupidamente nutrida de valores puritanos, como a das sociedades capitalistas” (CANDIDO, 1993, p. 53) embora seja a labilidade, em verdade, “uma das dimensões fecundas do nosso universo cultural” (CANDIDO, 1993, p. 53), que pode, inclusive, facilitar “a nossa inserção num mundo eventualmente mais aberto”. (CANDIDO, 1993, p. 53). Por um lado, Candido reabilita a malandragem, “a generaliza para o país, sublinha os inconvenientes [...] de que ela nos poupou, e especula sobre as suas afinidades com uma ordem mundial mais favorável, que pelo contexto seria pós-burguesa”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 18).

Por outro, como “exprime a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime” (CANDIDO, 1993, p. 51), a dialética da malandragem – além de sementeira do socialismo – pode plantear, como insinua Schwarz, também a barbárie capitalista9. Em outras palavras, a malandragem brasileira pode tanto conspirar para a derrota da barbárie quanto para seu contrário.

Se Leonardinho se sentiria muito à vontade num mundo mais aberto, Zé Carioca seria um papagaio fora do lugar. O que significa que as potencialidades criativas do genuíno malandro brasileiro, que Candido perspectiva, fica castrada na criação da Disney, uma vez que o simpático papagaio propende para a segunda possibilidade, “era, com efeito, ele” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 92).

Passados mais de trinta anos da publicação de “Dialética da malandragem” e vinte de “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’”, a dupla potencialidade da dialética da malandragem, tal como elucidada por Schwarz, se torna cabal instrumento interpretativo quando o Brasil ensina o mundo a ser bárbaro. Talvez essa tenha sido a perspicaz intuição dos estúdios Walt Disney ao empreenderem, em 1943, essa incursão pela América Latina: as formas de espontaneidade social da periferia do capitalismo revelam a verdade atual do capitalismo inclusive no centro10. E nossa malandragem dá que falar ao mundo inteiro!

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 2010.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas cidades, 1993.
MENEGAT, Marildo. Notas de aula – curso Teoria Crítica no Brasil. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Serviço Social, UFRJ, 2008.
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem” (disponível em www.pacc.ufrj.br/literaria/schwarz). Acessado em 2010.
SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.

NOTAS:
2. Convém lembrar a tradição de dispersão e distanciamento entre o Brasil e os países latino-americanos de origem espanhola desde os tempos coloniais: “tratados separadamente cada um deles pelas metrópoles políticas ou econômicas e por aquela que mais influiria em seus destinos, desde os fins do século XIX, os Estados Unidos. Os referidos países jamais alcançaram o nível mínimo de política comum, face àquelas metrópoles. O que se convencionou conhecer como pan-americanismo, no século XX, não passou jamais de fórmula diplomática de tutela de Washington sobre uma espécie de quintal” (SODRÉ, 1997, p.118). Ademais, não é acidental ser um brasileiro a guiar Donald em sua aventura nos trópicos, é histórico o “papel exercido pelo Brasil como procurador dos interesses comerciais” metropolitanos, “tornando-o instrumento de intervenção nos países vizinhos de origem espanhola” (SODRÉ, 1997, p.118).
3. Alô, amigos (Hello friends), 42’, Walt Disney, 1943; Os três cavaleiros (The Three Caballeros), Walt Disney, 1945.
4. As citações sem referências são falas do filme Alô, amigos.
5. A partir deste trecho todas as citações sem referência são falas do filme Os três cavaleiros.
6. Não se confunda, todavia, títere com bajulador. Pois Zé afasta-se do malandro espanhol ao não realizar sua meta suprema: “não procurar e não agradar os ‘superiores’”. (CANDIDO, 1993, p. 24).
7. Tal originalidade estrutural é condicionada historicamente, “a oposição de ordem e desordem não faz parte de um quadro universalista, pelo contrário, ela é esclarecida à luz do movimento e do momento sociais, onde os termos encontram a sua dialética” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 16). Esse autor esclarece ainda que em “Dialética da malandragem” Antonio Candido ora mostra a dialética da ordem e da desordem “enquanto experiência e perspectiva de um setor social, num quadro de antagonismo de classes historicamente determinado. Ao passo que noutro momento ela é o modo de ser brasileiro, isto é, um traço cultural através do qual nos comparamos a outros países e que em circunstâncias históricas favoráveis pode nos ajudar” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 18).
8. Schwarz de.ne a dialética da malandragem como “a suspensão de conflitos históricos precisos através de uma sabedoria genérica da sobrevivência, que não os interioriza e não conhece convicções nem remorsos”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 04).
9. O argumento de Schwarz é o seguinte: “a repressão desencadeada a partir de 1969 – com seus interesses clandestinos em faixa própria, sem definição de responsabilidades, e sempre a bem daquela mesma modernização – não participava ela também da dialética de ordem e desordem?” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 21). Isso indicaria, portanto, que “só no plano dos traços culturais malandragem e capitalismo se opõem”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 21).
10. Cf. MENEGAT (2008).

Fonte: FERREIRA, Camila Manduca. Zé Carioca: um papagaio na periferia do capitalismo. Novos Rumos, Marília, v. 49, n. 1, 2012, jan/jun, p. 159-168. 

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