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Leandro Vilar

domingo, 23 de setembro de 2018

A Casa do Imperador. Do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional


Dando segmento a textos que versem sobre o papel do patrimônio histórico e dos museus para um país, hoje, como último texto desse segmento dedicado a tragédia ocorrida no Museu Nacional, trago esse breve artigo de Regina Dantas, sobre o histórico de como o Paço de São Cristóvão de uma casa de fazenda no século XVIII, tornou-se o palácio sede da monarquia luso-brasileira, o lar de três monarcas, depois sediou brevemente o Congresso Nacional Republicano até finalmente se tornar um museu nacional. As imagens adotadas nesse texto, foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho da autora. 

A CASA DO IMPERADOR. 
DO PAÇO DE SÃO CRISTÓVÃO AO MUSEU NACIONAL

Regina Dantas


O presente trabalho é retrato de um capítulo da dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Memória Social da UNIRIO, que desenvolveu pesquisa sobre D. Pedro II e sua residência – o Paço de São Cristóvão – tendo sido transformada em um palco do poder após a maioridade. Nesse momento, o objetivo é iluminar a passagem do Paço de São Cristóvão para a transformação do prédio em Museu Nacional/UFRJ. Partindo da análise de Maurice Halbwachs de que a memória não revive o passado, mas o reconstrói (HALBWACHS, 1925), iniciaremos a nossa breve contribuição para ahistória do Paço de São Cristóvão como motivação para que o prédio do Museu Nacional seja também visualizado como a ex-residência dos imperadores.

Durante o século XVI, dentre as primeiras sesmarias1 doadas aos jesuítas pelo fundador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Estácio de Sá (1489-1567), em 1565, identificamos a de Iguaçu, que se estendia até Inhaúma, posteriormente dividida em três fazendas: a do Engenho Velho, a do Engenho Novo e a de São Cristóvão (SILVA, 1965, pp.29-30). Ao longo do século XVII, os jesuítas representaram os maiores proprietários de engenhos que iam da região de São Cristóvão até a de Santa Cruz. Em meados do século XVIII, o cenário mudou devido à ação do marquês de Pombal – primeiro-ministro do Rei D. José I de Portugal – contra a Companhia de Jesus, gerando um desentendimento que culminou na expulsão dos jesuítas.

O poder sociopolítico e econômico dos jesuítas rivalizava com o poder real. A Fazenda de São Cristóvão, com o novo loteamento, deu origem ao bairro de mesmo nome e, ao término do período setecentista, o comerciante luso-libanês Elie Antun Lubbus adquiriu uma grande residência no local mais alto da antiga Fazenda, mas não chegou a residir no local. A grande casa, em 1803, estava passando por uma reforma, e a edificação posteriormente passaria a ser uma residência real com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil. No início do século XIX, Portugal encontrava-se em situação delicada, pois, desde o término da União Ibérica (1640), sentira-se ameaçado pelas pretensões expansionistas da Espanha.


Na conjuntura da expansão francesa, a Coroa portuguesa ficou sem saída: optar por apoiar a França significaria perder a Colônia brasileira para a Inglaterra, que futuramente apoiaria o seu movimento de independência, e apoiar a Inglaterra representaria ativar a invasão francesa em Portugal. Foi difícil manter por muito tempo a situação de neutralidade (MAESTRI, 1997, p. 18). Com o bloqueio continental (1806), D. João seguiu a orientação dos franceses e fechou os portos para a Inglaterra. Após a assinatura do Tratado de Fontainebleau (1807), entre Espanha e FrançaNapoleão colocou em prática a sua estratégia de conquista da Península Ibérica, indo também em direção a LisboaD. João, convencido de que a Coroa só estaria assegurada se conseguisse preservar as possessões do Novo Mundo, cujos recursos naturais suplantavam os de Portugal,2 partiu de Lisboa em novembro de 1807, com uma comitiva com cerca de 20 mil pessoas, “sendo que a cidade do Rio possuía apenas 60 milalmas” (SCHWARCZ, 1998, p. 36).

A decisão de D. João favoreceria a sua aliada – a Inglaterra –, que se achava encurralada pelo bloqueio imposto pela França. Estando Portugal tomado pelos franceses, a conseqüência inevitável foi a decisão do príncipe regente, logo após à chegada ao Brasil, de decretar a “abertura dos portos às nações amigas”, em 28 de janeiro de 1810 (NEVES, 1999, p. 29).O Rio de Janeiro representava o principal porto da colônia. A transferência para o Brasil da estrutura estatal lusitana representou o fim do regime colonial (NEVES, 1999, pp.28-29).

Essa cidade passou a exercer o papel de capital do Império Luso-Brasileiro, recebendo brasileiros de todas as províncias, desejosos de comunicação com a Corte (CARDOSO, 1995,p. 334), e, sobretudo, constituiu-se em um pólo de atração de viajantes estrangeiros, que assumiram papel relevante, quer como comerciantes, embaixadores, quer como estudiosos, naturalistas ou artistas ansiosos por conhecerem os hábitos do país e disputarem as apregoadas riquezas naturais da terra brasílica. Seria, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, “um novo descobrimento do Brasil”.

Os transmigrados da Corte portuguesa foram beneficiados pela aposentadoria ativa, costume do Antigo Regime, que lhes garantia o direito de escolher a residência de sua preferência (mesmo já ocupada), quando estivessem longe de sua moradia efetiva. Com isso, o juiz fazia as intimações, ficando inscritas a giz na porta da escolhida residência as letras P.R. (Propriedade Real ou Príncipe Regente), que popularmente o povo traduzia como “ponha-se na rua”, e o prejudicado cumpria a determinação sem nenhum questionamento (BARDY, 1965, pp. 102-104).

Elie Antun Lubbus3 (nome aportuguesado: Elias Antonio Lopes), comerciante luso-libanês, e pela ambição de ser generosamente recompensado, realizou uma grande reforma em sua residência construída em “estilo oriental”4 e presenteou, em 1o de janeiro de 1809, sua casa-grande à D. João que, imediatamente, aceitou-a para ser sua moradia. O “turco”5 Elias, como era conhecido, recebeu de D. João “a quantia de 21:929$000 – vinte e um contos, novecentos e vinte e nove mil réis – referentes ao pagamento das obras já realizadas e uma mensalidade para a conservação do edifício” (KHATLAB, 2002, p. 19), além de ter recebido alguns títulos da Casa Real (NEVES, 1999, p. 42).


A Chácara tinha uma vista privilegiada do alto do terreno: de um lado, via-se o mar, e, do outro, a floresta da Tijuca e o Corcovado. Assim, devido à sua beleza, ficou conhecida como Quinta da Boa Vista e a partir de 1810, a residência real começou a sofrer alterações por ocasião do casamento de D. Maria Tereza de Bragança (1793-1812), filha mais velha de D. João, com o infante da Espanha D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança (?-1812). Passou a ser necessário ampliar a residência para abrigar a família crescente e transformá-la em uma residência real, usando como modelo o Palácio Real da Ajuda – atual Palácio Nacional da Ajuda.

A casa-grande da Fazenda São Cristóvão em 1817, já de posse da Família Real Portuguesa. 
Enquanto isso, o príncipe regente realizava os atos que iriam dar os alicerces para a autonomia brasileira, o que diferenciava das atuações nas demais colônias americanas. No Brasil, a metrópole se transferiu para o Novo Mundo e resolveu criar as condições administrativas para organizar seu território rumo ao desenvolvimento político do país. Desse modo, a característica do regime colonial logo desapareceu.

Outra nova fase de expansão da residência do regente aconteceu, nos fundos do palácio, pelo arquiteto inglês John Johnson, em 1816 (SANTOS, 1981, p. 46), por ocasião dos preparativos para o casamento de D. Pedro I (1798-1834) com D. Carolina Josepha Leopoldina (1797-1826), austríaca apaixonada pelas ciências naturais. A imperatriz teve papel de destaque na criação do Museu Real6 em 1818 – atual Museu Nacional. Torna-se necessário destacar a atuação da princesa Leopoldina, no processo de idealização do Museu Real.

Inicialmente, devido ao seu consórcio com D. Pedro I (1817),7 trouxe, em sua comitiva nupcial, uma legião de naturalistas: Rochus Schüch, Johann Natterer, Johann Emanuel Pohl, Giuseppe Raddi e Johann Christian Mikan (LISBOA, 1997, p. 21). Tratava-se do primeiro enlace da nova Corte americana com um país do Velho Mundo, fato que, conseqüentemente, aumentou a curiosidade pelas riquezas naturais do Novo Mundo. A partir de então, os viajantes estrangeiros não se limitaram a desenvolver a pesquisa científica apenas nos países europeus. A curiosidade renascentista que imperava na exploração do Novo Mundo e no Oriente fortaleceu os atos de coletagem e de preservação da cultura realizados em alta escala pelos viajantes estrangeiros, até meados do século XIX (SCHWARCZ, 1993, pp. 68-69).

O arquiteto inglês John Johnson havia sido enviado ao Brasil pelo quarto duque de Northumberland8 e embaixador da Inglaterra, o Lord Percy (1792-1865), para providenciar a colocação de um imponente portão – presente do duque para D. João – alguns metros à frente da residência imperial. Restava elevar a edificação à altura da suntuosidade do portão. A escolha do estilo arquitetônico da construção foi aprovada em um contexto político. Com a Abertura dos Portos às Nações Amigas em 1810, a “maior amiga” – a Inglaterra – teve como privilégio apresentar um projeto de dignificação, por meio do trabalho do arquiteto John Johnson, para o novo palácio do príncipe regente. Devidamente aprovado o projeto, o inglês projetou quatro pavilhões em inspiração neogótica,9 mas só realizou um – o torreão norte (em dois andares) e em 1817, o Paço de São Cristóvão se tornou propriedade da Coroa com a ampliação do terreno referente aos arredores, pagos pelo Tesouro Real.

Enquanto o governo do país passava de pai para filho,10 o palácio continuou a passar por ampliações na área dos fundos junto com a construção do torreão sul, visando a expandir seu território residencial, que muito faltava para assemelhar-se ao Palácio Real da Ajuda. Contudo, mesmo após a Proclamação da Independência do Brasil, a residência continuou a sofrer intervenções para fortalecer a imagem do Paço de São Cristóvão – a residência do soberano –, em que a arquitetura deveria servir aos imperadores de maneira funcional e civilizatória (PEIXOTO, 2000, p. 301), além disso, a representação dos imponentes palácios e sua correlação com a própria imagem do imperador eram uma constante na lógica simbólica da monarquia (SCHWARCZ, 2001, p. 17).

No final do período de D. Pedro I, identificamos alterações no Paço, principalmente em sua fachada, na construção do segundo torreão (ao sul em três andares), concretizada, agora, pelo francês Pierre Joseph Pézerat (1826-1831). A obra foi executada em estilo neoclássico, que predominou na conclusão de todo o palácio (SANTOS, 1981, p. 46). O retorno ao modelo clássico daria a imponência necessária ao palácio imperial, fortalecendo sua representação como espaço de quem emana o poder. Com isso, nos registros oficiais – em forma de desenhos ou litografias –, a residência imperial vinha tomando forma de um suntuoso palácio. Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga, conhecido como D. Pedro II, nasceu no Paço de São Cristóvão em 2 de dezembro de 1825.

Órfão de mãe antes de completar um ano de idade, aos cinco anos foi aclamado Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, tendo sido decretada a sua maioridade quando ele tinha 14 anos de idade, em 1840, por ocasião de um golpe parlamentar palaciano. Nesse momento, 10 anos após o golpe, o imperador chamou para si a responsabilidade de iniciar as obras da moradia. Foi dada continuidade ao estilo neoclássico, e dentre as principais modificações destacamos: o nivelamento da fachada do prédio em três pavimentos; a colocação de 30 estátuas de deuses gregos em toda a extensão do telhado.


Litografia de Jean-Baptiste Debret do Paço Imperial de São Cristóvão, em meados do século XIX, durante o governo de D. Pedro II. 
A partir de 1857, com Theodore Marx, as Salas do Trono e do Corpo Diplomático11 foram transferidas do térreo para o segundo pavimento do torreão norte, com pinturas do italiano Mario Bragaldi.12 Em cima do telhado do mesmo torreão, em 1862, foi construído por Francisco Joaquim Bettencourt da Silva o Observatório Astronômico do imperador, todo envidraçado para a realização de suas observações celestes; e ao lado direito do prédio foi edificada uma torre contendo um grande relógio. Manuel de Araújo Porto Alegre representou a primeira geração de arquitetos formados pela Academia de Belas Artes; logo, foi discípulo dos membros da Missão Francesa.13


Fotografia de 1862, do Paço Imperial de São Cristóvão, já com estilo neoclássico e o pátio dianteiro. Observa-se na fotografia, na parte direita, a torre do relógio. 
D. Pedro II não estava alheio aos estilos arquitetônicos dos países “civilizados”; assim, não houve conflito na escolha do estilo a ser utilizado no Paço, sendo seguido o estilo oficial dos palácios daquela época caracterizados pela volta do clássico. É curioso constatar que o espaço privado do imperador era bem menor do que o de um salão de recepção (espaço público). O local privativo de maior preferência do imperador – seu gabinete de estudos – mede 27 m2, e o espaço público, como, por exemplo, o palco do poder – a Sala do Trono –, mede 96 m2. Isso se deve ao fato de D. Pedro II necessitar de um grande espaço nobre para o relacionamento com a sua corte e, conseqüentemente, o fortalecimento de seu poder.


Gabinete de estudos de D. Pedro II, em foto recente, antes do incêndio que o destruiu, em 2018. 
Ao pensarmos na sociedade do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, podemos nos remeter aos estudos da sociedade de Corte de Norbert Elias, que incentiva apensar na Corte como figuração social central do Estado, cenário esse identificado não somente nos grandes reinos da Antigüidade e na Europa (ELIAS, 2001, p. 28). A característica principal da Corte era o poder centralizado nas mãos do soberano, envolvido com uma elite poderosa e com prestígio.

O que aqui nos interessa é esse exercício de articular o Palácio e seu soberano para entender a comunicação e a importância dos espaços imperiais para a ritualização monárquica do poder no viés da Memória Social, partindo da reflexão de que a memória é sempre uma construção desenvolvida no presente, levando em consideração as vivências e experiências do passado que se pretende entender, e que também está sujeita às questões ligadas às eletividade, subjetividade e relações de poder.

Pormenorizando os amplos espaços, o grande jardim do Paço de São Cristóvão,14 após o embelezamento paisagístico de Auguste François Marie Glaziou (1833-1906),15 inaugurado em 1876, foi transformado em um bonito parque admirado por todos que o visitavam. O Palácio estava agora mais próximo de um “Versalhes Tropical”.16 A edificação repleta de ornatos imperiais, com símbolos da Antigüidade e ditando as normas de etiqueta, fez da residência um lugar de sociabilidade na Corte do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. 

O Paço de São Cristóvão foi bruscamente alterado após o banimento da família imperial, em 1889, quando D. Pedro II teve seus pertences reunidos em um grande leilão.17 Realizado em 1890 (SANTOS, 1940), o evento foi agilizado pelos representantes do Governo Provisório, preocupados em se desfazer dos objetos que pertenceram ao antigo Paço de São Cristóvão, promovendo, assim, um processo de apagamento da memória. “Apagar tem a ver com ocultar, esconder, despistar, confundir os traços, afastar-se da verdade, destruir a verdade” (ROSSI, 1991, pp. 14-15).

A realização do leilão dos pertences da família imperial acabaria com a existência de uma “coleção do imperador” e, conseqüentemente, com o culto à monarquia. Entretanto, não foi uma tarefa fácil, pois suscitou um período de longo conflito entre os Ministérios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos,18 d’Estado dos Negócios do Interior19 e o procurador do “ex-imperador”.20 Após alguns dias do término do leilão do Paço21 e um ano da Proclamação da República, o palácio abrigou os trabalhos do Congresso Nacional Constituinte. As obras para adaptação do antigo Paço de São Cristóvão, visando a sediar o Congresso, deveriam ser analisadas como um marco para garantir, na ocupação do antigo espaço monárquico, a consolidação das idéias do novo regime.

A questão central da República era organizar um outro pacto de poder que viesse a substituir o modelo imperial (CARVALHO, 1987, p. 31), além da necessidade de criar um novo herói nacional (CARVALHO, 1990, pp. 55-73). O antigo Paço de São Cristóvão ficou repleto de restos do leilão22 e vestígios do Congresso Constituinte em um espaço modificado e posteriormente abandonado. A partir de 1892, o palácio deixou de ser reconhecido como Paço de São Cristóvão, passando a ser identificado como prédio do Museu Nacional ou Palácio da Quinta da Boa Vista.


O Museu Nacional em fotografia de 1900. 
Após muita insistência do diretor Ladislau Neto,23 o Museu Nacional (localizado no Campo de Santana desde sua criação) foi transferido para as instalações do palácio, com a liberação de vagões da Companhia Ferroviária de São Cristóvão, responsável pela mudança de todo o acervo do Campo de Santana para a Quinta da Boa Vista. Posteriormente, a instituição passou por uma longa fase de apropriação dos objetos ali abandonados. A direção do Museu Nacional herdou mobiliário e alguns objetos de decoração (recém-identificados), além dos artefatos do “Museu do Imperador”, um conjunto de objetos que poderiam representar as ciências naturais e antropológicas. O processo urbanístico do Rio de Janeiro do início do século XX, promovido pelo prefeito Pereira Passos, chegou à Quinta da Boa Vista em 1910, contemplando, também, o Museu Nacional com algumas obras. Destacando-se o Museu Nacional, era necessária a realização de obras de adaptação para a adequação de um instituto de pesquisas em um ex-palácio residencial.

O antigo Paço de São Cristóvão, em 1910, sofreu alterações nas estruturas e nos seus arredores. As armas imperiais que existiam em portões e demais ornatos das paredes foram arrancadas; alguns arcos no interior das salas sofreram alterações, e janelas foram fechadas para serem transformadas em paredes, além de salas do segundo piso terem sido ampliadas para serem salões das exposições. Alguns locais do palácio foram destruídos, como por exemplo, o Observatório Astronômico do imperador.

O portão doado pelo duque de Northumberland foi transferido para a entrada do Zoológico na Quinta da Boa Vista (BIENE & SEVERO, 2005, p. 95). Atualmente, através da presente pesquisa algumas mobílias foram identificadas com o auxílio do inventário dos objetos que existiam no Paço de São Cristóvão, encontrado na obra de Francisco Marques dos Santos, O leilão do Paço Imperial. Com o passar dos anos, e após o fortalecimento do Museu Nacional como uma instituição de pesquisa científica e de ensino superior,24 a identidade do Paço de São Cristóvão foi perdendo o seu significado de espaço monárquico sobreposto à nova imagem da instituição científica. Acreditamos que várias mobílias, ao terem sido pulverizadas pelos departamentos da instituição, tenham perdido seu significado de objetos que pertenceram ao palácio da época da residência imperial.


O portão do Duque de Nortumberland, originalmente na entrada do paço imperial, foi translado para o zoológico, e permanece lá, até hoje.
Entretanto, duas salas continuaram a ecoar os tempos imperiais: a Sala do Trono e a do Corpo Diplomático. A sala considerada a mais nobre do palácio, a Sala do Trono, continuou a representar o espaço do poder, pois passou a ser utilizada para a realização do fórum de maior deliberação da instituição: a Congregação do Museu Nacional.25 No entanto, a partir da década de 1980, a sala passou a ser utilizada como mais um espaço para as exposições temporárias. As chamadas Salas Históricas26 passaram a ser utilizadas como ambiente administrativo e, posteriormente, como local para as exposições temporárias. Apesar de terem passado por dois períodos de restauração,27 foram perdendo as suas representações originais, deixando de evocar o período monárquico guardado em suas paredes e passando a apresentar exposições das áreas de atuação do Museu.

Nessa perspectiva, ao longo dos anos, o Paço de São Cristóvão passou a ser identificado como o prédio do Museu Nacional. Na década de 1990, um incidente28 deu início a uma campanha para conseguir verbas para a restauração do prédio. Os recursos governamentais fizeram com que a direção da instituição criasse um projeto para realizar as pesquisas necessárias para subsidiar as obras de restauração do prédio do Museu Nacional. Nesse momento, foi criado o projeto Memória do Paço de São Cristóvão e do Museu Nacional, com o intuito de pesquisar separadamente as duas histórias (a do Museu e a do Paço). Com a principal finalidade de orientar a restauração do palácio, foi percebido que a maior parte da comunidade do Museu Nacional, composta de professores e funcionários, não tinha interesse em conhecer a história do Paço, pois a história do Museu Nacional havia “abafado” o Paço de São Cristóvão. O público visitante, entretanto, tinha.


O Museu Nacional antes do incêndio de 2018. 
Ao entrarmos no site do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para levantarmos informações sobre o tombamento do Paço de São Cristóvão, encontramos os dados referentes ao tombamento do prédio do Museu Nacional, o que nos causou mais estranheza. O que fazer para dar visibilidade ao Paço de São Cristóvão? Nossa resposta é: divulgar sua memória por meio da análise de seus objetos e de outros sinais da monarquia existentes na edificação. É preciso visitar o interior do palácio e estudar o espaço no viés da Memória Social, referindo-se ao período correspondente à atuação do imperador D. Pedro II, monarca que mais tempo permaneceu no Paço de São Cristóvão, na tentativa de identificar os costumes do soberano e sua relação com a residência por meio da leitura de seus objetos recém-descobertos no Museu Nacional, e sua interação social na Corte do Rio de Janeiro do século XIX- referimos-nos à dissertação que está em fase final de elaboração. Conseqüentemente, poderemos despertar o Paço que ficou “adormecido”, aproximadamente, por 114 anos (desde que o Museu Nacional foi transferido para o palácio).


O Museu Nacional, após o incêndio de 2 de setembro de 2018. 
NOTAS
1 - Sesmarias ampliadas e confirmadas em 1567, pelo governador-geral Mem de Sá (1500-1572), após a morte de Estácio de Sá.
2 - Sobre transmigração da Corte portuguesa, ver NEVES, 1995, pp. 27-28, 75-102.
3 - Judeu convertido ao catolicismo, teve seu nome aportuguesado. O Brasil colonial recebeu um número considerável de emigrantes portugueses, e, dentre eles, vieram os cristãos-novos.
4 - Estilo utilizado no Oriente característico pelo formato de um quadrado com um pátio interno e varandas ou galeria de vinte colunas, encimado de um primeiro andar (KHATLAB, 2002, p. 19).
5 - Apelido dado aos portadores de passaporte otomano. Independentemente da procedência (da Síria ou do Líbano), todos eram chamados de “turcos”.
6 - O decreto de criação do Museu Real está guardado na Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional. BRMN. AO, pasta 1, doc. 2, 6.6.1818.
7 - Devido ao consórcio em que foi necessário D. João hipotecar as rendas da Casa de Bragança, estava assim garantido o apoio dos austríacos (ALENCASTRO,1997, p. 13).
8 - Título criado por Carlos II, rei da Inglaterra em 1674.
9 - Arquitetura gótica (1050-1530) – proveniente da Europa Ocidental na Alta Idade Média, emergente das formas românticas e bizantinas. O estilo era caracterizado pela altura e claridade utilizando abóbadas e arcos pontiagudos (BURDEN, 2002, p. 46).
10 - D. João VI partiu para Portugal em 24 de abril de 1821, deixando D. Pedro como príncipe regente, sendo este coroado no ano seguinte.
11 - No palácio do tempo de D. João VI, as salas do Trono e do Corpo Diplomático ficavam no térreo (primeiro piso atual).
12 - Pintor que embelezou as chamadas Salas Históricas do Paço de São Cristóvão: Salas do Trono e dos Embaixadores, ainda identificadas no Museu Nacional como espaços que preservam as imagens da monarquia.
13 - Grupo de artistas que chegou ao Brasil em 1816, chefiados por Joachim Lebreton para a implantação da sartes no país.
14 - Conhecido como a Quinta da Boa Vista.
15 - Glaziou veio ao Brasil a convite do monarca em 1858, para coordenar a Diretoria de Parques e Jardins da Casa Imperial. Após o banimento, continuou no país até 1897, quando foi aposentado do cargo.
16 - Expressão utilizada por alguns historiadores, referindo-se à monumentalidade da residência e do parque da Quinta da Boa Vista, semelhante ao gigantismo do palácio e dos jardins de Versalhes, residência do rei francês Luís XIV, que analisaremos adiante neste mesmo capítulo.
17 - Sobre o assunto, ver O leilão do Paço, composto das sessões do leilão narradas detalhadamente e contendo o inventário dos pertences dos Paços do imperador (SANTOS, 1940).
18 - AN. M, Códice IE1 145.
19 - AN. M, Códice IJJ1 565.
20 - MI.G-P.SC, 20.8.1890.
21 - O último leilão foi realizado na fazenda de Santa Cruz e data de 13 de novembro de 1890 (SANTOS, 1940, p. 315).
22 - Na publicação O leilão do Paço é possível identificar muitas mobílias e objetos que não foram arrematados no leilão e ficaram abandonados no Paço, mesmo durante a realização do Congresso Constituinte. A assembleia utilizou apenas algumas poucas salas do palácio.
23 - Conforme relatos existentes nos documentos da Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional, sendo o mais emblemático o Ofício no 20, de 1892, de Ladislau para Dr. Fernando Lobo Leite Pereira, ministro e secretário do Estado Interino dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, clamando pela autorização para utilizar o prédio.
24 - Período em que foi inserido na UFRJ e passou por algumas adequações em seus objetivos, com a criação de novos cargos e funções.
25 - Estrutura acadêmico-administrativa composta por representantes da comunidade da instituição, com reuniões de caráter deliberativo realizadas mensalmente e presididas pelo diretor.
26 - Salas que ainda continuam com as marcas do período monárquico, carregadas de pinturas e símbolos da residência de D. Pedro II – a Sala do Trono e a dos Embaixadores ou do Corpo Diplomático, que serão apresentadas detalhadamente no terceiro capítulo do presente trabalho.
27 - O primeiro em 1923, na diretoria de Bruno Lobo, com o artista Eugênio Latour, e depois em 1957, com o ex-diretor José Cândido de Mello Carvalho, com os artistas Edson Motta, F. Pacheco da Rocha e Luis Carlos Almeida, contando com a colaboração do IPHAN.
28 - Em 19 de agosto de 1995, após chuvas tempestuosas, foi identificado o encharcamento da múmia do sacerdote Hori, proveniente do péssimo estado do telhado do Museu. Foi realizada uma mobilização internacional para o salvamento da múmia e, posteriormente, o desenvolvimento de uma política de captação de recursos para a restauração do prédio.

REFERÊNCIAS
BARDY, Claudio. O século XVIII. In: SILVA, Fernando Nascimento (Org.). Rio de Janeiro e seus quatrocentos anos: formação e desenvolvimento da cidade. Rio de Janeiro: Record, 1965.
BIENE, Maria Paula van; SEVERO, Carmem Solange Schieber. O Paço de São Cristóvão como espaço de exceção: o caso do Museu Nacional/UFRJ. In: SEMINÁRIOINTERNACIONAL MUSEOGRAFIA E ARQUITETURA DE MUSEUS, 2005, Rio de Janeiro. Anais do. Rio de Janeiro: UFRJ, FAU, ProArq, 2005.
CARDOSO, Fernando Henrique, et al. O Brasil monárquico: dispersão e unidade. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. (História geral da civilização brasileira, t. 2, v.2).
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
KHATLAB, Roberto. Mahjar: saga libanesa no Brasil. Líbano: Mokhtarat Zalka, 2002.
LISBOA, K. M. A nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.
MAESTRI, Mario. Uma história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
PEIXOTO, Gustavo Rocha. Reflexo das luzes na terra do sol: sobre a teoria da arquitetura no Brasil da Independência: 1808 1831. São Paulo: Pro Editores, 2000.
ROSSI, Paolo. Ricordare e dimenticare. Tradução Icléia Thiesen Magalhães Costa e Alejandra Saladino. In: ______. Il passato, la memória, I’oblio: sei saggi di storia dellaidee. Bologna: Il Mulino, 1991.
SANTOS, Francisco Marques. O leilão do Paço Imperial. Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, v. 1, 1940.
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