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Leandro Vilar

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O que é o sufismo?

O Sufismo consiste no segmento místico e esotérico do Islão. Originando-se há vários séculos, tendo sofrido ameaças, perseguições e proibições por ser considerado uma prática herética. Ainda hoje alguns muçulmanos não veem o sufismo com bons olhos, porém, para outros muçulmanos o sufismo é uma doutrina fundamental do Islão, consistindo em outras formas de como desenvolver a espiritualidade e aproximar-se mais de Allah. Neste curto texto apresentei alguns aspectos centrais sobre o Sufismo; saber inclusive mal compreendido tanto por muçulmanos, quanto por não-muçulmanos, a ponto de haver gente que acredite que o sufismo limite-se apenas a prática da dança, do canto e da meditação. 

Problemática do termo: 

Para poder falar sobre sufismo é preciso saber que existe uma problemática de definição, a começar pela condição que a palavra sufismo não é de origem árabe, mas uma invenção europeia. Por sua vez, a palavra sufi usada para designar seu praticante não é o único termo usado para isso e não tem um significado conclusivo. Por fim, os sunitas e os xiitas chamam o sufismo por outros termos. 

A palavra sufismo foi criada para intitular o livro Sufismus: sive, Theosofia persarum pantheistica (em tradução livre: Sufismo: seja a Teosofia panteística persa), publicado em latim, no ano de 1821 em Berlim, pelo teólogo e pastor August Tholuck (1799-1877). Embora fosse pastor, Tholuck como outros teólogos de seu tempo, se interessavam pelo estudo das religiões, mesmo que fosse para criticar e falar mal das outras crenças. E em seu tempo o interesse pelas religiões do Oriente despontava. Assim, Tholuck interessou-se por estudar o Islão, mais especificamente um segmento dele, associado com o misticismo, o qual ele chamou de Sufismo. (SILVA FILHO, 2012, p. 43-44). 

Nota-se pelo título de sua obra que Tholuck pensava o sufismo a partir de uma concepção panteística (a grosso modo diz que Deus e o universo são conjuntos, não divisíveis), algo que como veremos adiante, realmente faz sentido. O problema é que Tholuck interpretou esse panteísmo como sendo uma variação da Teosofia, que consiste num conjunto de doutrinas místicas, ocultistas e filosóficas de origem europeia, apesar que também aglutinou elementos de outros continentes. Nesse sentido, pelo fato do sufismo consistir numa doutrina iniciática, para Tholuck isso o colocaria dentro da percepção da Teosofia. 

De qualquer forma, não foi nosso intuito debater a obra dele. No entanto, fica destacado que o termo sufismo tão habitual para os não-muçulmanos, surgiu com ele. Mas de onde ele teria concebido esse termo? No caso, Tholuck adotou o radical suf e acrescentou o sufixo ismo. Nesse ponto, a palavra suf não foi uma invenção sua, essa já existia na língua árabe desde o século VIII, segundo aponta o estudioso islâmico Murtada Murtahari. Porém, ele comenta que somente no século X é que o termo começou a ser pensado para se designar os praticantes do sufismo, e nesse ponto ele cita o livro Kitab al-Ta' arruf li Madhab ahl al-Tasawwuf (Livro de investigação sobre a escola jurisprudencial do povo do Sufismo), escrito por Abu Bakr al-Kalabadhi, o qual apresentava quatro possíveis origens para o termo: suf, safa, saff e suffah. (SILVA FILHO, 2012, p. 41-42).

Ainda hoje não há um consenso quanto a exatidão etimológica do termo sufi, embora que em geral os autores, como comentado por Scarabel (2007) e Renard (2009) costumem usar o radical suf que significa lã, pois correspondia a condição que os muçulmanos ascéticos se vestiam com uma túnica feita de lã. Entretanto, Silva Filho (2012, p. 41-42) explica de forma melhor o uso desses quatro radicais:
  • Suf (lã): referência ao ascetismo dos primeiros sufis. Tal traje era símbolo de humildade e desapego. Poderia ter sido baseado na ideia de monges visto no cristianismo, zoroastrismo e no budismo. 
  • Safa (pureza): atributo que um sufi deve almejar e cultivar. 
  • Saff (fila): termo controverso, sendo baseado na ideia de posição na dianteira, o que indicaria que os sufis estariam a frente dos demais muçulmanos. 
  • Suffah (banco): referente aos fiéis que se sentavam em um banco na entrada da mesquita fundada por Mohammed. 
Como não há um consenso quanto a origem etimológica da palavra sufi, não irei deter mais tempo nisso. Agora passemos para a observação citada anteriormente quando eu disse que os muçulmanos utilizam outros termos para designar o sufismo. Pelo menos no século X já havia dois termos definidos para se referir ao sufismo. Os sunitas usavam o termo Tasawwuf, já os xiitas faziam uso do termo Irfan. Ambas as palavras já constavam em livros que comentavam a respeito dos ensinamentos sufis. Porém, o emprego dessas palavras apresentam certo diferencial.

A palavra Tasawwuf embora comumente traduzida hoje em dia como Sufismo, ao longo da História ela apresentou uma variedade de sentidos, tendo sido usada para se referir a "ascéticos", "iniciados", "sábios", "aqueles que renunciaram", "homens pobres" etc. (CHITTICK, 2007, p. 22). Porém, a palavra também é empregada para se referir a misticismo, esoterismo, doutrina espiritual islâmica, caminho espiritual etc. (SILVA FILHO, 2012, p. 45). Percebe-se como é problemático tentar encontrar uma única definição para essa palavra, assim como, traduzi-la simplesmente como misticismo, esoterismo ou espiritualidade seja algo impreciso. Mas vejamos o termo empregado pelos xiitas. 

Já a palavra Irfan também apresenta distintos sentidos, podendo se referir a gnose, esoterismo, consciência reflexiva etc. (SCARABEL, 2007, p. 204). A palavra também é usada pelos xiitas mais atualmente para designar um conjunto de crenças e práticas baseadas numa experiência mística do Islão. Há quem diga que poderia ser interpretada como um tipo de "filosofia da religião islâmica". Não obstante, o termo também é empregado para se referir a práticas iniciáticas voltadas para o desenvolvimento espiritual do seu praticante. (SILVA FILHO, 2012, p. 49). 

Independente do conceito dado as palavras Tasawwuf e Irfan, ambas são utilizadas pelos muçulmanos para designar Sufismo. Pelo fato de eu não ser muçulmano, utilizarei o termo sufismo no restante do texto. Mas antes de prosseguir para o próximo tópico, é necessário comentar brevemente que os xiitas apesar de reconhecerem o Irfan, não o consideram práticas genuínas, muitos até o consideram como sendo heresia. E dentre os sunitas os quais tem maior receptibilidade ao sufismo, há aqueles que também veem com maus olhos o sufismo, também considerando-o uma heresia. Adiante explicarei o motivo disso. 


Pintura apresentando o mestre (sheik) Salim Chisti reunido com membros de sua tariqa. 
Breve conceito de sufismo: 

Como apresentado anteriormente, existem vários conceitos para essa palavra, já que não há um consenso entre os muçulmanos e não-muçulmanos. De acordo com a tradição sufi, o sufismo foi criado pelo próprio profeta Mohammed no século VII. Seus familiares, amigos e discípulos foram os primeiros a aprenderem as práticas e ensinamentos sufis, e depois transmitidas de geração em geração. Porém, de acordo com a História, não se sabe exatamente quando o sufismo surgiu. Data do século X, livros que debatiam o tema e seus praticantes. Mas apesar dessas implicações quanto a origem do sufismo e seu significado, eu tentei esboçar aqui um significado simples. 

Nesse sentido, o sufismo é o termo utilizado para se referir a um conjunto de doutrinas, crenças e práticas pautadas em ideais místicos e espirituais do Islão, os quais visam despertar determinados valores e virtudes em seus praticantes de forma que eles consigam obter um desenvolvimento espiritual que os permita se aproximarem mais de Allah. Em termos genéricos, um dos objetivos do sufismo é o crescimento espiritual e pessoal através do estudo do Corão, da execução de práticas ritualísticas, da vivência das virtudes recomendadas, da meditação e da reflexão. O sufismo implica também na adoção de um estilo de vida baseado em suas normas e recomendações que instruem para um bom comportamento e desprendimento dos vícios e dos apegos materiais. (SILVA FILHO, 2012, p. 44-47; SCARABEL, 2007, p. 11-14). 

"A ética muçulmana combina no mesmo espírito, para o indivíduo e a colectividade, um conjunto de práticas em que surge, na unidade de uma fé que deve inspirar todas as atitudes, uma dupla preocupação de ascese espiritual e de esforços para a felicidade de todos. Ilustram as primeiras proibições, sobretudo alimentares, seja a carne de porco ou de animais não sangrados, sejam as bebidas fermentadas, de que o Corão condena pelo menos o abuso, se não o uso. Quanto à preocupação do bem da maioria, aparece numa moral ao mesmo tempo optimista e comunitária, cuja ideia geral é que Deus quer, cá em baixo, o bem-estar material do seu povo, implicando este bem-estar a manutenção da felicidade individual aquém do egoísmo e do excesso: princípios, por conseguinte, de justiça, se não de equidade social". (MIQUEL, 1971, p. 59).

Aqui chamo atenção para que a ideia que alguns possuem que o sufismo consista basicamente em práticas de meditação, algo que nos faria lembrar dos budistas, não é exata. Nem todo sufi necessariamente gasta horas praticando meditação. Além da condição que a própria ideia de meditação dos sufis não é a mesma dos budistas. Adiante quando eu comentei a respeito das práticas sufis, veremos como existem distintas práticas e nem sempre todos os sufis as realizam. Essa variação se deve a condição que o sufismo desenvolveu-se de forma diferente ao longo dos séculos, o que permitiu que doutrinas específicas de determinados lugares fossem criadas, mesmo que algumas dessas doutrinas possam ser contraditórias entre outras escolas sufis.

Não obstante, é importante deixar bem claro que o sufismo baseia-se inteiramente na doutrina islâmica, condição essa que um sufi tem que ser necessariamente um muçulmano, pois o sufismo cobra a obediência aos Cinco Pilares do Islão (Arkan al-islam). (ROBINSON, 2007, p. 40-43). 
  • Chahada: aceitar que Allah é o único deus verdadeiro. 
  • Salá: orar cinco vezes ao dia.
  • Çawm: jejuar durante o mês do Ramadã.
  • Zakat: doação aos necessitados e fazer caridade.
  • Hajj: peregrinação à Meca. 
Se uma pessoa disser que você pode ser um sufi sem precisar ser um muçulmano, desconfie. Pois um sufi além de obedecer os cinco pilares, ele também segue a xaria (lei islâmica) e deve ser um fiel de Allah, algo central para o sufismo. De fato, pode-se dizer que o propósito do sufismo é louvar Allah. (SCARABEL, 2007, p. 11). Sendo assim, se você não tem esse propósito, como pode dizer que seja um praticante de sufi? Embora existam grupos esotéricos e até charlatões que dizem ensinar "meditação sufi" para não-muçulmanos, mas isso é uma problemática, pois o sufismo não se restringe a meditação e quando ela é feita, é para se refletir sobre os ensinamentos de Allah, não para outro fim. Fato esse que os sufis também já foram chamados de murdi (aluno em árabe) e salik (viajante em árabe), ambas as palavras foram adotadas para se referir a condição do sufi ser um aluno dos ensinamentos de Allah e do mestre sufi, assim como ser um "viajante" em busca de conhecimento espiritual. (SILVA FILHO, 2012, p. 43). 

Além desses pontos destacados, para alguns estudiosos o sufismo seria parte integrante das Ciências Islâmicas, as quais são formadas por cinco ciências, as quais foram ensinadas por Mohammed e desenvolvidas nos séculos seguintes. (SILVA FILHO, 2012, p. 51).  
  • Fiqh: que consiste na jurisprudência, ou seja, o estudo do Direito islâmico. 
  • Tasfir: que é a exegese (interpretação) do Corão. 
  • Kalam: que seria a teologia islâmica. 
  • Falsafa: o estudo da filosofia da religião islâmica. 
  • Tasawwuf: o estudo e prática da espiritualidade. 
Embora os xiitas em geral sejam avessos ao sufismo, alguns tendem a entender ele como sendo parte das ciências islâmicas, ou pelo menos um elemento encontrado na Falsafa. Por sua vez, alguns sunitas consideram o sufismo como a quinta ciência islâmica, outros já o consideram algo a parte, não vinculado a esse grupo. 

Práticas e princípios do sufismo: 

As práticas e princípios do sufismo mudaram ao longo da História, condição essa que várias práticas existentes nos primeiros séculos do Islão, já não existem mais ou não são mais obrigatórias. O sufismo do século VII ao século XII vivenciou seu período de formalização, referindo-se a constituição de comunidades, grupos, escolas e a própria criação de um corpus doutrinário que serviu de modelo desde então. 

Do século VII ao X o sufismo ainda estava em processo de formação como consideram alguns historiadores. Nesse período ele sofreu influência de práticas místicas de origem persa, hebraica, cristã e de outros povos do Oriente Médio. Além dessa influência mística, destacou-se também a influência do monasticismo cristão, o qual vinha sendo desenvolvido desde o século IV com Santo Antão no Egito. Esse dado é importante, pois alguns dos sufis nos primeiros séculos adotaram uma vida ascética como os monges, passando a viver em comunidades isoladas ou em templos, alguns faziam votos de pobreza, celibato, servidão etc. outros começaram a trajar hábitos de lã, daí o uso do termo suf como salientado anteriormente. E nestes casos houve sufis que viviam como mendicantes, como forma de expressar seu desapego a materialidade. Ainda hoje um dos princípios sufis é cultivar o desapego aos bens materiais e aos vícios. (ROBINSON, 2007, p. 30). 


Pintura retratando um sufi medicante. A prática de uma vida de mendicância durou vários anos dentro do sufi, embora hoje em dia não seja tão habitual. 
Nessa vida ascética os sufis naquele tempo praticavam jejuns regulares e não apenas o jejum obrigatório durante o Ramadã, outros também faziam práticas de isolamento, meditação, passavam longas horas orando, dormiam pouco, limitavam-se a comer determinados alimentos, etc. Destaca-se também que naquele tempo houvesse sufis que adotavam tais hábitos como uma forma de protesto contra o desviamento dos muçulmanos, os quais segundos eles, foram seduzidos pelas "coisas mundanas". Logo, os hábitos adotados pelos sufis eram um contraponto a ostentação, a luxúria, a ambição, a fama, a cobiça e o poder. Inclusive tais críticas ainda hoje são mantidas pelos sufis. (FILORAMO, 2005, p. 154-155). 

Essa condição dos primeiros sufis adotarem uma vida de simplicidade é visível no uso de termos usados para se referir a eles, como al-faqir (pobre em árabe) e dervixe (pobre em turco e persa). Inclusive a palavra dervixe se tornou bastante popular em certa época na Europa, devido a influência da dança dervixe praticada pelos sufis turcos. (SILVA FILHO, 2012, p. 43). 

Mas além dessas atitudes ascéticas, alguns sufis também adotaram uma vida monástica, criando comunidades isoladas, principalmente em outros países, onde eles não teriam problemas de serem repreendidos pelos governantes que eram contrários ao sufismo, pois já neste tempo houve sufis que foram perseguidos e até executados por serem hereges. Um dos fatores para essa intolerância devia-se a condição que os sufis eram um incômodo para o domínio dos ulemás, os quais são os teólogos e eruditos na xaria e outras ciências. A condição dos sufis alegarem que através de suas práticas eles poderiam alcançar uma melhor compreensão de Allah, sua vontade e criação, incomodou os ulemás que detinham o direito de interpretação da xaria e das ciências, consideradas essenciais para a formação do muçulmano. (ROBINSON, 2007, p. 31). 

Nesse ponto adentramos a outras características antigas do sufismo, como o intuito de romper com esse exclusivismo do doutores da fé, a percepção de que somente estudar o Corão, a xaria e as ciências islâmicas não seriam suficientes para o crescimento espiritual, sendo necessário a adoção de outras práticas. E tais práticas geraram e ainda geram desentendimentos entre os sufis e nos não-sufis. No século X foram escritos livros para tentar organizar a doutrina do sufismo, que até então não era homogênea. Apesar do intento, ele não alcançou o objeto desejado. Os livros foram escritos, mas essa tentativa de formalização e uniformização não emplacou. Por sua vez, isso abriu espaço para o surgimento de várias práticas associadas com cânticos, danças, transes, meditações etc. os quais foram desenvolvidos segundo a pretensão de que auxiliariam o muçulmano a conseguir expressar sua devoção, pois como dito anteriormente, o objetivo do sufismo é a aproximação com Allah, adorando-o e tendo comunhão com ele. 

Porém, essa difusão de práticas, em dados momentos levou ao surgimento de crenças incompatíveis com a ortodoxia islâmica, como a condição de alguns mestres sufis apresentarem dons espirituais e até a adoção da ideia de "santidade". Esse conceito de santidade levou ao surgimento de ritos de veneração aos "santos sufis" (wali), com direito a se construir santuários para se preservar os corpos desses homens "santos". Em alguns casos, os membros da tradição daquele mestre santificado, realizam peregrinações até o seu túmulo. Entretanto, ressalva-se que a prática de ir aos santuários e venerar os "santos" (wali) que geralmente são os mestres (sheik) não é homogênea, ou seja, nem toda ordem adota isso. 


Um santuário sufi no Paquistão. Algumas ordens sufis cultivam práticas de peregrinação e outras cerimônias associadas aos santuários.
Por outro lado, embora eu tenha feito uso do termo "santo sufi", ele não é apropriado, apenas o usei, pois nos livros escritos por não muçulmanos, aparece assim. A palavra wali que é um dos termos usados para designá-los, significa "próximo". Nesse sentido, quando um sufi se torna um wali, ele é referido como um "amigo de Allah". Não obstante, a ideia de "santidade" dos sufis é diferente da vista entre outras religiões como no cristianismo católico, ortodoxo e copta. Enquanto nessas tradições os santos e santas fizeram votos de não se casar, renunciaram suas famílias, heranças, levaram uma vida em alguns casos de austeridade, outros foram missionários e doutores, alguns foram mártires ou realizaram milagres, os wali necessariamente não seguem essa lógica, pois eles eram casados, necessariamente não foram missionários, ou martirizados, ou realizaram milagres, mas foram homens profundamente sábios e devotos, alcançando um estado espiritual elevado, que os conduziu a serem mais próximos de Allah. (RENARD, 2009, p. 90-91). 

Mas se no sufismo existem tantas práticas, haveria uma sistematização dessas no intuito de definir quais seriam as principais? De acordo com Mário Silva Filho (2012, p. 58-65), foi entre os séculos X e XIII que o sufismo se formalizou em termos doutrinários e organizacionais com a criação da tariqa. Ao mesmo tempo, também se institui normas para se aderir as taruq (plural de tariqa), a nomeação dos mestres que comandariam estes locais, o surgimento de escolas e tradições. Esse período foi central para a formalização do sufismo como uma doutrina organizada possuindo uma tradição, uma sede, um mestre, um conjunto de normas e regras, além de estabelecer de vez a prática da iniciação. 

O surgimento das taruq no século XII foi central para a estruturação da doutrina sufi. No caso, a palavra tariqa pode ser traduzida como caminho ou direção, mas hoje em dia também a usa-se no sentido de referir-se a  ordem, comunidade, local de reunião dos sufis, grupo sufi etc. As taruq surgiram como meio de organizar a comunidade sufi sob as diretrizes de um mestre e a tradição por ele representada. O mestre (sheik) de uma tariqa representa uma longa cadeia de sucessão que remonta o profeta Mohammed e seus companheiros (sahaba). Sendo assim, ao visitar uma tariqa não é incomum ver algumas informações sobre o mestre atual e quem foram seus antecessores, poi essa tradição é essencial para legitimar a autoridade tanto no sufismo, quanto no Islão. Não obstante, as taruq tendem a serem dirigidas apenas por homens, mas as mulheres podem participar, mas estando afastadas dos homens, como ocorre nas mesquitas. (RENARD, 2009, p. 177-178). 

Apesar que no mundo existam centenas de taruq, a maioria segue as seguintes práticas que se tornaram básicas para o sufi. (SILVA FILHO, 2012, p. 71-78). 
  • Dhikr: repetições dos nomes de Allah, de frases de agradecimento ou súplica, ou de versículos do Alcorão. As repetições podem ser feitas individualmente ou em grupo. A quantidade de repetições pode ir desde uma pequena dezena ou até mais de cem vezes, dependendo das normas adotadas pelo sufi ou sua tariqa. Tal prática tem como função enfatizar a lembrança de Allah, mostrando que ele sempre está presente. A prática do dhikr também é comparada a recitação de mantras, inclusive pode levar ao transe. 
  • Sama: consiste no uso de música, cânticos, recitações de poemas e a realização de danças no intuito de se adorar Allah. Os cânticos e poemas possuem tema religiosos, geralmente exortando as virtudes de Allah. As danças variam da forma como são praticadas, podendo ser individuais ou em grupo. Geralmente as danças são feitas em formato de círculo. A mais famosa delas é a dança dos dervixes. Dependendo do grau de harmonia dessas práticas, os sufis podem entrar em estado de transe
  • Fikr: o ato de reflexão ou meditação. Necessariamente não é feito de olhos fechados ou em silêncio, pode ser feito ao som de música ou canto, ou até mesmo realizando alguns tipos de movimentos. A ideia é levar a reflexão interna e a abertura da mente para o transcendental, no intuito de buscar a Allah. O fikr também pode conduzir o sufi ao estado de êxtase (tawajud), fazendo ele alcançar uma contemplação (tahajju), que permite revelar certos saberes ocultos. O fikr também é complementado com comentários sobre o Alcorão e os princípios do sufismo. 
  • Muraqaba: prática de manter-se em vigilância para evitar cometer haram ("pecado"). Se a ideia do sufi é desenvolver seu corpo, mente e caráter para não cometer o mesmo erro dos não-sufis, ele deve se manter vigilante para evitar isso. 

A dança dos dervixes é uma das formas mais conhecidas de sama, apesar que muitos sufis não pratiquem esse tipo de dança, sendo algo exclusivo de algumas taruq turcas ou de influência turca. 
Sendo assim, nota-se que o dhikr, o sama, o fikr e o muraqaba são atualmente as práticas mais comuns que os sufis praticam, embora existam algumas outras, mas esse conjunto de quatro já é o suficiente, pois nele está inserido a ideia central do sufismo que é a busca pelo conhecimento e a amizade de Allah, a adoração a ele, e a reflexão sobre a vida. Mas além desses quatro práticas centrais, os sufis também são geralmente guiados ao estudo para se completar os "quatro estágios da realização sufi". (SILVA FILHO, 2012, p. 77). 
  • Ash-shari'ah (A Lei): o estudo da xaria. Seria a compreensão do exotérico.
  • At-tariqa (O Caminho): estudo dos ensinamentos da tariqa. Seria o início da compreensão do saber esotérico. 
  • Al-Ma'rifah (O Conhecimento): aprofundamento nas práticas sufis. Também se relaciona com os objetivos da tariqa que se pertence. 
  • A-Haqiqah (A Verdade Verdadeira): seria a reta final no caminho sufi, onde ele alcançaria um estado de iluminação, passando a compreender melhor o próprio Allah, estando mais próximo dele, sendo chamado de "amigo de Allah" (wali). 
Além dessas condições supracitadas, os sufis também almejam e cultivam outras virtudes as quais variam de acordo com sua tariqa ou tradição que seguem. Mas essencialmente tanto o homem quanto a mulher, devem obedecer os pilares do Islão e seguir as práticas básicas anteriormente mencionadas. Nesse sentido é válido também salientar que para se tornar um sufi primeiro você deve se converter ao Islão, posteriormente deve procurar uma tariqa e tentar ingressar nesta, tornando-se um membro dela. Em alguns países não existem taruq, o que leva os muçulmanos a viajarem a outras nações atrás delas. 

Por fim, como sublinhado ao longo do texto, o sufismo consiste em práticas e doutrinas que complementam a vida religiosa do muçulmano, apesar que nem todo muçulmano adote tais práticas, algo similar ao visto no catolicismo com as ordens monásticas, ou no budismo com o monasticismo também. Nesse sentido, poderíamos considerar que o sufismo segue algo similar no intuito de que seus adeptos passam a adotar um novo estilo de vida dedicado a fé, mas diferente do monasticismo cristão e budista, não há necessidade de se fazer votos ou de se isolar da sociedade. Mas no fim, o objetivo segue sendo procurar uma maior intimidade religiosa com Allah, pois dele parte o princípio e o fim de tudo como dita a doutrina islâmica. 

Referências bibliográficas:
CHITTICK, William C. Sufism. Oxford, Oneworld, 2008. 
MIQUEL, André. O Islame e a sua civilização: séculos VII-XX. Tradução de Francisco Nunes Guerreiro. Lisboa/Rio de Janeiro, Edições Cosmos, 1971. 
RENARD, John. The A to Z of Sufism. Lanham, The Scarecrow Press, Inc. 2009. 
ROBINSON, Francis. O mundo islâmico: o esplendor de uma fé. Barcelona, Ediciones Folio S.A, 2007. 
SCARABEL, Angelo. Il Sufismo: storia e dottrina. Roma, Carocci Editore, 2007. 
SILVA FILHO, Mário Alves da. A Mística Islâmica em Terrae Brasilis: o Sufismo e as Ordens Sufis em São Paulo. Mestrado em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012. 

2 comentários:

Mario Filho disse...

Boa noite.
Muito obrigado pelas citações à minha dissertação de mestrado.
Mário

Leandro Vilar disse...

De nada, Mário. Inclusive um colega muçulmano a indicou para mim. Gostei de seu trabalho. Sufismo no Brasil é algo que ainda deve ser mais estudado. Além disso, fico contente que o autor em pessoa veio falar comigo.