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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Gênese do direito do voto feminino no Brasil: uma análise jurídica, política e educacional

 Gênese do direito do voto feminino no Brasil: uma análise jurídica, política e educacional


Dr. Erivaldo Moreira Barbosa

Dr. Charliton José dos Santos Machado


O artigo em foco, ancorado ao Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” – (HISTEDBR-GT/PB), do Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE, da Universidade Federal da Paraíba, como parte das atividades desenvolvidas no âmbito do Pós-Doutorado, propõe-se analisar a gênese do voto feminino no Brasil, no lapso temporal – final do século XIX ao início dos anos 30, do século XX.4

Não é comum, juristas e sociólogos brasileiros se debruçarem ao mesmo tempo sobre o direito do voto feminino no Brasil, com o intuito de esgarçarem as teorias e argumentações que a temática comporta. Porém, é admissível que o Direito Político cumpra uma das suas atribuições, qual seja, funcionar como direito fundamental da pessoa humana e dar sua contribuição ao saber, esmiuçando o assunto, o direito das mulheres de votar (capacidade eleitoral ativa) e de serem votadas (capacidade eleitoral passiva). As duas espécies de capacidades perfazem o sufrágio.

As fontes de pesquisa se resumem na Carta Constitucional de 1891, Título IV, Secção I, que traz à colação a expressão “Das Qualidades do Cidadão Brasileiro”, e nas obras de pesquisadoras(es) que debatem teorias e conceitos acerca da temática esposada.

O objetivo é partir da hermenêutica jurídico-compreensiva e interpretar o conceito do Direito em seu duplo movimento (positivo e histórico) com o intuito de mostrar sua inserção nas lutas das mulheres sufragistas. Por conseguinte, busca-se deslindar a essência das teorias feministas e jurídicas, mostrando suas relações subjacentes. Daí em diante, fazer uma visita ao binômio educação/imprensa com o escopo de captar as estratégias do movimento feminista na luta pelo direito de votar. Após esse percurso, interpreta-se a Constituição Federal de 1891, a partir do seu preâmbulo que incorpora o conceito de democracia, enveredando progressivamente ao cerne da matéria eleitoral envolvente.

Esgota-se no interpretar a Federação Brasileira para o Progresso Feminino, planejada na seara da vertente “feminista bem comportada”. Atente-se, que o trajeto metodológico desta pesquisa não é linear nem trilha em um único sentido, pois às vezes se distancia das teses feministas e em outros instantes corrobora com as argumentações levantadas por suas seguidoras. Este trabalho adquire um panorama diferenciado porque foi produzido pelas lentes juristas e sociológicas, muito embora se reconheça e seja irradiado por meio dos escritos literários e acadêmicos das feministas no desvendar do tema investigado.

Diante do exposto, há de se perguntar: quais as relações emergentes no discurso do voto feminino no Brasil? Qual o real significado do Direito nesse processo históricoeleitoral? Quais as informações jurídicas subjacentes que impactam e modificam as interpretações sobre o voto feminino?

Esse encadeamento de indagações estimula o Direito Político de cumprir sua função social e ao mesmo tempo de contribuir com a supressão de uma lacuna na construção do saber epistemológico sufragista feminino. Assim, o evolver da pesquisa caminhará neste compasso incomum, complexo e prazeroso.

O direito como elemento contributivo ao voto feminino

É forçoso mostrar que o Direito não deve ser visto apenas por meio da vertente positivista, como um conjunto de normas jurídicas aplicadas no tempo e espaço. O direito pode ser compreendido no bojo de um processo histórico. Conforme retrata Ihering (1991), A Luta pelo Direito, “[...] a paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para o conseguir”. Ainda com o autor, “[...] a vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos”. Assim, arremata que “[...] o direito não é uma pura teoria, mas uma força viva” (IHERING, 1999, p.1).

Reale (1996) apresenta uma Teoria Tridimensional do Direito, conformada por três dimensões: a norma, vista como ordem; o fato, no qual o Direito se realiza na sociedade por meio da história, e o valor, quando o Direito almeja a justiça. Essa tríade permite um dinamismo ao Direito permitindo que os intérpretes possam se descolar do direito visto simplesmente como norma jurídica.

Jungindo o Direito compreendido por Ihering ao Direito teorizado por Reale, torna-se possível migrar de um Direito posto para outro direito pressuposto, conforme lições de Grau (1996).

É bem verdade que o Direito não serviu como um instrumento finalístico imprescindível ao alcance das conquistas políticas feministas, porém, foi um elo fundamental no processo do voto das mulheres. De forma paradoxal, o direito positivo (posto) era um obstáculo às mudanças exigidas pelas mulheres dos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX; por outro lado, ao mesmo tempo o direito histórico (pressuposto) emergia como dimensão contributiva à capacidade eleitoral ativa das mulheres brasileiras.

“Teoria” da Incapacidade da Mulher, Teorias Feministas e Teorias Jurídicas

São inúmeras as teorias que envolvem as múltiplas relações femininas e o sufrágio. Os percursos a serem seguidos, sobre a história e teorias, não são de “[...] biografias, de vida de mulheres específicas, mas das mulheres em seu conjunto” (...) (PERROT, 2008, p. 13). A seguir, serão abordadas as seguintes modalidades: a teoria da incapacidade da mulher, as teorias feministas e as teorias jurídicas.

A teoria da incapacidade da mulher apregoava que as mulheres eram emotivas e instáveis, e sob pressão pública não conseguiam tomar decisões racionais. Esta teoria supunha que a inaptidão feminina na esfera pública era natural e não cultural ou social.

Reforçava, então, que as mulheres eram inferiores aos homens, pois tomava como base princípios formulados no âmbito interpretativo masculino. Montagu, na obra A Superioridade Natural da Mulher, nos mostra como essa teoria se engendrou. Neste compasso, apresenta uma tabela (MONTAGU, 1970, p.31-32) composta por diferenças biológicas entre os sexos, a expressão funcional e as consequências sociais. Os homens, ao listarem os atributos biológicos masculinos como superiores e mais fortes, advogavam a tese da incapacidade cultural das mulheres e lhes inferiorizavam nas esferas públicas e sociais.

Barreto, em seu 2º discurso sobre a Educação da Mulher (apud, RODRIGUES, 1993), tratou da emancipação civil e social. Demonstrou, pois, que as mulheres não eram incapazes e começou a desmontar os argumentos das suas inferioridades fisiológicas e anatômicas. Apesar da sua avançada visão desconstrutiva da teoria da incapacidade biológica da mulher, Barreto não comungava com a emancipação política feminina. A teoria da incapacidade da mulher vigorou até início do século XX, daí em diante foi sofrendo fissuras e perdeu força, devido em grande parte às argumentações oriundas da ciência.

As feministas brasileiras, já de posse do conhecimento científico, ajuntaram outras argumentações do campo social e cultural ao seu modelo teórico de explicação da luta pelo voto. Após decomporem os significados da ciência positivista, agregaram outros caracteres retirados do campo educacional e da imprensa.

As feministas defendiam a tese da emancipação da mulher ou apenas uma emancipação parcial (relativa). As mulheres brasileiras que lutavam por mais espaço no mundo público não formularam uma teoria homogênea com face única, mas sim vertentes teóricas de múltiplos significados. As mulheres mais influentes, que tinham mais prestígio econômico e social, se contentaram com a luta pelo sufrágio feminino, isto é, capacidade de votar (capacidade eleitoral ativa) e capacidade de ser eleita (capacidade eleitoral passiva). Outras características da emancipação não foram objeto de luta, uma vez que somente no plano formal figuravam como reivindicação feminista.

Indaga-se então: como a educação e a imprensa serviam aos interesses das mulheres brasileiras e foram inseridas nas teorias feministas?

Um recorte do livro de Hahner, Emancipação do Sexo Feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850 – 1940 (2003), responde em parte ao questionamento proposto. As primeiras defensoras dos direitos da mulher no Brasil vislumbraram que a educação era o caminho para a emancipação feminina. Assim, acostada ao pensamento positivista e o seu corolário, o progresso, potencializam as feministas a “pressionarem” os formuladores de leis ao direito à educação. Por intermédio da imprensa, as mulheres reivindicam seus interesses educacionais, mesmo sabendo que teriam uma educação inicial frágil, uma vez que apenas os conhecimentos básicos eram recebidos. Leia-se a seguir um trecho da autora supracitada, in verbis:

“A educação das mulheres concentrava-se na preparação para o seu destino último: esposas e mães. Mesmo os homens brasileiros que se consideravam progressistas e que aprovavam a ‘igualdade universal proclamada pelo Cristianismo’, acreditavam que o objetivo da educação feminina era a preparação para a maternidade. Basicamente, as meninas deveriam aprender a cuidar bem de suas casas, pois lhes cabia a obrigação de garantir a felicidade dos homens. Todavia, alguma educação era bem acolhida, pois se tornariam melhores mães para os filhos e melhores companheiras para os maridos. Embora o homem tradicional e progressista assumissem juntos que as mulheres pertenciam ao lar, o segundo admitia ampliar o papel da mulher na família, enfatizando-lhe o poder de orientar moralmente suas crianças e fornecer bons cidadãos ao país”. (HAHNER, 2003, p. 123-124).

Muito embora em 1879 ter sido criadas instituições de ensino superior para mulheres no Brasil, somente uma pequena parcela conseguiu se graduar, em face do preconceito social e da falta de recursos financeiros para custear o ensino secundário (HAHNER, 2003).

Diante do exposto, percebe-se que a educação era precária e não resolvia, por si só, a participação da mulher no sufrágio brasileiro, mas abria pequenas fendas na teoria da incapacidade da mulher. Frise-se, pois, que as mulheres acostadas ao pensamento positivista/progressista eram conscientes dessa frágil e parcial “vitória” educacional em prol do direito de votar e ser votada (sufrágio feminino).

Nesse ínterim, surgiram teses feministas contrárias a esse caminhar. Entretanto, não desconsideraram a estratégia utilizada por essas mulheres privilegiadas socioeconomicamente de se valerem da educação e da imprensa como meios para alcançar os direitos políticos. Em resumo, os grupos divergentes (mais radicais) no seio feminista adotaram a mesma estratégia manipulando o binômio educação/imprensa como veículo de disseminação e amplitude do seu ideário, para além do sufrágio feminino.

As duas vertentes feministas, as radicais e as bem comportadas, valiam-se dos jornais de grande circulação, bem como de jornais especializados em assuntos femininos, para ampliar suas ideias e seus projetos na busca dos direitos políticos. As feministas escreveram inúmeros artigos em jornais na defesa do sufrágio das mulheres no Brasil. A vertente feminista denominada de feminismo bem comportado, no dizer de Pinto (2003) foi limitada, pois não alcançou a emancipação total da mulher. Eis uma pergunta: quais eram as reais intenções desse grupo de mulheres? Como romper com séculos de opressão masculina? Uma luta desigual não deverá ser vencida por etapas?

Realmente corroboramos com o externar de Pinto (2003), isto porque a expressão emancipar é de magnitude superior à expressão sufrágio feminino. Emancipar é tornar-se livre, libertar-se; enquanto que sufrágio universal é o direito de votar e ser votada. Em síntese, não basta votar e ser eleita para a mulher alcançar a esfera pública em sua plenitude, pois essa conquista é apenas uma das etapas de um fenômeno mais amplo.

Dito de outra forma, emancipar é ser livre em todos os sentidos; é poder se escolarizar e trabalhar nas mesmas condições de igualdade com os homens; é poder trilhar por caminhos próprios, ser plenamente capaz (de fato e de direito); é poder escolher entre ser ou não ser mãe e esposa; é partilhar direitos e deveres com os homens nas mesmas condições, sem o estigma do preconceito.

Por outro lado, o feminismo bem comportado, além de se valer do binômio educação/imprensa, também se utilizou do Direito, em suas duas faces: incorporou em parte o direito positivo (legislado) imposto pelos homens, e o direito histórico determinado por lutas ocorrentes na sociedade.

Este feminismo aceitou o direito positivo, na medida em que essa face do direito, por ser um Direito estatal, exigia ritos e condutas predeterminadas, inclusive valia-se da força quando não respeitado. Atestou-se essa afirmação no momento em que o feminismo bem comportado se utilizou das dependências da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB4 para promover suas reuniões, bem como quando solicitou os serviços advocatícios5 para peticionar e objetar teses masculinas contrárias ao sufrágio feminino. Esta vertente do feminismo se beneficiou do direito histórico (consciente ou inconsciente), quando propugnou pelo sufrágio das mulheres. Os textos veiculados na imprensa jornalística, os inúmeros contatos com parlamentares e/ou chefes do executivo, além da arregimentação de outras mulheres por intermédio de matérias jornalísticas ou informações individuais “bocaboca” e passeatas, ainda que tímidas, foram manifestações de lutas; lutas para atingir objetivos, lutas de mulheres na reivindicação de seus direitos políticos, direitos esses que não estavam assentados, pois careciam inexoravelmente de conflitos para emergirem no seio social. Somente após essas aparições do Direito histórico sobreveio o Direito positivo (escrito pelos homens).

Em resumo, a vertente do feminismo bem comportado cumpriu o seu papel, nos limites estritamente propostos desde o seu nascedouro. Não foi além nem aquém do planejado. Atingiu seu ápice no momento da promulgação do Texto Constitucional de 1934 e, posteriormente, foi totalmente desmantelado.

Constituição Federal de 1891: por uma interpretação democrática do direito feminino de votar

O Documento principal de um país denomina-se de Constituição. Esta se perfaz com elementos normativos, axiológicos (valores) e fáticos (sociais, econômicos, políticos, religiosos) por meio de processos históricos. As componentes anteriormente descritas devem ser captadas pelo legislador constituinte de forma alargada e interpretada pelos julgadores de forma democrática. Dos diversos Textos Pátrios (total de sete) interpreta-se-á o de 1891, na busca de alcançar o sentido da Carta, referente ao sufrágio feminino.

O preâmbulo da Carta Mater (1891) afirma que a Constituinte foi organizada em um regime livre e democrático. Questiona-se então: a Carta de 1891 assevera que a Constituinte (Assembléia dos Deputados e Senadores) fora democrática; contudo, como ser possível, se as mulheres, praticamente metade da população, não votavam? Ora, se houve democracia, ao menos no plano jurídico-formal, emerge um pressuposto elástico de se estender a democracia para a seara dos Direitos Políticos. Não existe meia democracia, pois esta não pode ser decomposta em gênero masculino ou gênero feminino.

A democracia é uma expressão que pode ser historicamente exposta como democracia instável, em processo de mudança da instabilidade à estabilidade ou ainda, denominada de democracia (direta, semidireta, participativa, deliberativa) dentre outras classificações, mas jamais ser fatiada entre pessoas do sexo masculino e feminino. Se em algum momento histórico de um determinado país ocorrer esse descolamento, duas situações surgirão: ou não há democracia, ou então a democracia que existia foi totalmente desintegrada.

Atente-se que o preâmbulo de uma Constituição Federal, apesar de funcionar nos limites da política e não do jurídico deve ser visto como uma intenção de princípios de Estado. Se fosse “letra morta” não deveria fazer parte da Constituição, pois uma Carta Mater tecnicamente não deve conter partes que não apresentam funcionalidade ou efetividade jurídica. Assim, reitera-se que a democracia prevista no preâmbulo da Constituição Federal de 1891 deverá ser perseguida pelos intérpretes, julgadores e defensoras(es) das lutas feministas.

Atente-se agora ao que dispõe os Arts. 69 e 70 da Constituição Federal de 1891, ipsis litteris6:

Art. 69. São cidadãos brasileiros:

1º Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação;

2º Os filhos de pai brazileiro e os illegitimos de mãi brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, si estabelecerem domicilio na Republica;

3º Os filhos de pai brazileiro, que estiver noutro paiz ao serviço da Republica, embora nella não venha domiciliar-se;

4º Os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis mezes depois de entrar em vigor a Constituição, o animo de conservar a nacionalidade de origem;

5º Os estrangeiros, que possuirem bens immoveis no Brazil, e forem casados com brazileiras ou tiverem filhos brazileiros, comtanto que residam no Brazil, salvo si manifestarem a intenção de não mudar de nacionalidade;

6º os estrangeiros por outro modo naturalisados.

Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 annos, que se alistarem na fórma da lei.

§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federaes, ou para as dos Estados:

1º Os mendigos;

2º Os analphabetos;

3º Os praças de pret, exceptuados os alumnos das escolas militares de ensino superior;

4º Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou communidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediencia, regra, ou estatuto, que importe e renuncia da liberdade individual.

§ 2º São inelegiveis os cidadãos não alistaveis. (BRASIL apud Constituição Federal,1891, p. 586-587).

Via hermenêutica jurídico-compreensiva, apreende-se que uma constituição é sistêmica, e dispõe de um conjunto de partes que forma o todo. O preâmbulo, por sua vez, funciona como princípio diretor das demais componentes, pois o constituinte o inseriu no contexto da Carta Mater com a finalidade de respeitar seu comando, mesmo não sendo uma dimensão jurídica, e sim política, ideológica e filosófica. O intérprete e/ou julgador da Constituição Federal de 1981 deveria respeitar o pressuposto do preâmbulo, denominado pelo legislador constituinte de democrático. Depois de acolher esse pressuposto, aí se debruçaria no Título IV, “Das Qualidades do Cidadão Brasileiro”.

O procedimento mostrado era imprescindível para que se alcançasse o sentido da Carta Mater. A interpretação constitucional deveria ser extensiva, em face da exigência democrática contida no preâmbulo constitucional.

De plano, uma interpretação extensiva ao se deparar com o caput do Art. 69 que textualmente descreve, “são cidadãos brasileiros (...) os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação”, combinado com o Art. 70 que diz “são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos” (...), exigiria do intérprete-julgador os seguintes questionamentos, no que tange ao direito do voto feminino. Quais mulheres brasileiras se encontravam nestas situações? Afora essas exigências, existiam outras condições impostas pela Constituição Federal de 1981 que aparentemente vedavam a participação feminina ao sufrágio? Como os Parlamentares e a Justiça Eleitoral interpretavam a matéria?

De acordo com as Séries Estatísticas e Séries Históricas do IBGE (1900), somente nove anos após a promulgação da Carta Federal de 1891, tínhamos no Brasil uma população feminina equivalente a 48,96% e no ano anterior ao Texto promulgado, 1890 de 49,50%. Ora, o percentual de mulheres nessa época era praticamente metade da população masculina. Por outro lado, a Constituição de 1891, conforme o Art. 70, § 2º, 2º, não permitia que analfabetos votassem. Atente-se que em 1890 tínhamos no país uma população feminina analfabeta correspondente ao percentual de 89,6%, e em 1920 de 80,1% (BRASIL, Diretoria Geral de Estatística, Recenseamento do Brasil, 1872 e 1920) (apud, HARNER, 2003, p. 75).

Observe-se que esse contingente feminino não votava, uma vez que o Texto em alusão vedava terminantemente os analfabetos de exercerem esse direito fundamental. Do ponto de vista do direito positivo, até se aceita que o percentual feminino analfabeto não votasse, daí estender essa proibição ao contingente de mulheres nascidas no Brasil, maior de 21 anos e alfabetizadas, foi um equívoco de interpretação.

O preâmbulo constitucional exigia postura “democrática”; enquanto que o Art. 69 se expressava por meio do termo “cidadãos brasileiros”; por sua vez, o Art. 70, primeira parte, dizia, são “eleitores brasileiros os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos”(...).

Contudo, a segunda parte do Art. 70 enfatizava que os cidadãos eleitores deveriam se alistar de acordo com a lei, qual seja, uma lei federal. Ora, a objeção ao equívoco da interpretação não deve ser analisada a partir da segunda parte do caput do Art. 70, mas sim desde o preâmbulo da Constituição, que já se exigia uma postura democrática de intérpretes e/ou julgadores. Depois de ultrapassada essa exigência, aí se valendo do processo hermenêutico, analisaria o termo “cidadão”, no contexto da frase da abertura do Título IV, “Das Qualidades do Cidadão Brasileiro”. Neste instante é oportuna a seguinte indagação: Qual deveria ser a interpretação constitucional mais justa?

Acostando-se aos elementos históricos, filológicos, sistêmicos e teleológicos do processo hermenêutico, que funcionam como dimensões que aclaram e pacificam conflitos, pode-se inferir que o termo cidadão deveria ser interpretado de forma extensiva. Primeiro, porque o preâmbulo exigia postura democrática dos intérpretes e julgadores, e segundo, para que o termo cidadão ficasse em sintonia com o comando maior, que advogava pelo princípio da democracia, impunha ao intérprete e/ou julgador a compreensão e o deferimento do voto ao universo das mulheres brasileiras que ao mesmo tempo, atingiram a idade de 21 anos e foram alfabetizadas.

A Constituição de 1891 não dizia textualmente que as mulheres não podiam votar. Afirmava sim, que só podiam votar quem fosse cidadão e adicionava, a esse requisito, ter idade acima de 21 anos e ser alfabetizado. O Texto não permitia, contudo, que as mulheres se alistassem, alegando que para tal intento teria que ser produzido uma lei. Ora, nestes termos a Constituição teria estabelecido um paradoxo, pois, como introduzir a democracia (exigida no preâmbulo) excluindo parte do universo humano do sufrágio brasileiro.

Mesmo assim, Juvenal Lamartine, incentivado por feministas, ao interpretar a Constituição de 1891, no Art. 70, descobre que as mulheres não estavam impedidas da prestação voluntária do serviço militar, e por essa brecha articulou os parlamentares do seu Estado, o Rio Grande do Norte, no sentido de aprovar uma lei estadual que garantisse do direito do voto às mulheres. Telles (apud, SOW, 2009) ao se debruçar sobre o fato, em um trabalho monográfico, assim se externou:

“Percebe-se aqui a exigência da prestação de serviço militar que para as mulheres da época era classificado como voluntário, assim deu uma lacuna na qual não se negava o direito nem o facultava ao público feminino o acesso ao voto. O que realmente exigia-se era um ato normativo que estabelecesse essa condição de voto para as mulheres, o que fez com que o presidente da Província (cargo equivalente ao governador do estado de hoje), Juvenal Lamartine, fizesse passar uma lei que permitia o direito de voto às mulheres. Em 1927 registraram-se as primeiras eleitoras de lá e, em abril de 1928, 15 mulheres votaram no Rio Grande do Norte”. (SOW, 2009, p. 17).

Apesar de Lamartine aprovar a lei que garantiu o voto feminino, a interpretação restritiva dos parlamentares do Senado Federal desconsiderou o processo eleitoral realizado no Rio Grande do Norte e anulou as eleições, sob a alegação de que não poderia permitir o sufrágio por meio de lei estadual, mas, via lei federal.

Mais uma vez se percebe a manobra dissimulada por parlamentares congressuais e chancelada por membros da Justiça Eleitoral da época, com o intuito de impedir o direito do sufrágio às mulheres. Observe-se que os parlamentares e/ou julgadores de antemão já desrespeitavam o preâmbulo constitucional que comungava com a democracia; agora, ao invés de interpretar o Texto extensivamente, o restringe, desfigurando princípios basilares do Direito, sob a ótica de um moralismo insustentável. A Constituição deveria neste caso ser auto-aplicável sem a necessidade de se exigir o alistamento feminino, pelo simples fato das mulheres estarem inclusas no amplo conceito de “cidadãos” e reforçarem o processo da afirmação da democracia no Brasil.

Direito e Federação Brasileira para o Progresso Feminino

Após a exposição do processo hermenêutico, por intermédio da interpretação extensiva, mostrar-se-á como o Direito desloca-se no tempo e no espaço, interagindo com a vertente do feminismo bem comportado, e como ambos, de forma sinérgica, contribuem para a aceitação do sufrágio das mulheres.

Eis o momento de perguntar: como foi criada a Federação Brasileira para o Progresso Feminino? Quais os caracteres mais significativos do seu aparecimento? Quais as relações ocorrentes entre o Direito e a Federação?

De plano, levanta-se aqui uma preliminar: o que quer dizer federação? “Do latim foederatio, de foederare (unir, legar por aliança), é empregado na técnica do Direito Público” (...). (SILVA, 2006, p. 606). A federação permitia que as feministas, quer dizer, a vertente bem comportada do feminismo, se fortalecesse como organização e acelerasse sua escalada rumo ao sufrágio.

O processo federativo dessas mulheres ancorava-se em dois pressupostos: o positivismo e o progresso.

O positivismo caracteriza-se como corrente filosófico-político-social e em seu percurso sofre influencia do cientificismo. Segue fielmente os ditames do conhecimento científico e o método de observação.

“O progresso, conforme redação, pode ser compreendido: Como idéia de que o curso das coisas, especialmente da civilização, conta desde o início com um gradual crescimento de bem-estar ou da felicidade, com uma melhora do indivíduo e da humanidade, constituindo um movimento em direção a um objeto desejável. A idéia de um universo em perpétuo fluxo na basta, pois, para formar a idéia de Progresso; é necessária também uma finalidade, um objetivo último do movimento. É na concretização deste objetivo último que se acha a medida do Progresso. É por isso que se fala de ‘fé no Progresso”. (BOBBIO, 1999, p. 1009-1010).

Antes da Federação Brasileira para o Progresso Feminino – FBPF – ser criada já existia uma Liga para Emancipação Intelectual da Mulher, fundada em 1920, por Bertha Lutz7 e Maria Lacerda de Moura8. Outras feministas também contribuíram, direta ou indiretamente, para a criação da FBPF, fora do eixo Sudeste (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). Exemplos marcantes dessas lutas se encontram registrados nos jornais da época, no Nordeste em Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia, além de lutas no Sul (em especial no Rio Grande do Sul).

A FBPF, tomando como base o positivismo-progressista e orientada por seus estatutos, apresenta no Art. 3º os seguintes objetivos: 1. Promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina. 2. Proteger as mães e a infância. 3. Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino. 4. Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha da profissão. 5. Estimular o espírito de sociabilidade e de cooperação entre as mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público. 6. Assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e prepará-la para o exercício inteligente desses direitos. 7. Estreitar os laços de amizade com os demais países americanos, a fim de garantir a manutenção perpétua da Paz e da Justiça no Hemisfério Ocidental.

Pergunta-se: qual o significado da palavra Objetivo?

“Diz-se do que é válido para todos, e não apenas para um indivíduo. Diz-se de fenômeno natural que se determina conforme os critérios científicos vigentes. (...) No método interativo, o valor final para o qual convergem progressivamente os resultados das sucessões de interações” (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, 1999, p. 1427).

Nem todos os objetivos propostos pela FBPF foram alcançados, todavia, serviram como marco de lutas femininas futuras, sobretudo no campo do direito do voto das mulheres.

Eis o momento de esclarecer a participação do Direito na FBPF. Ao formular seus estatutos e traçarem objetivos, as feministas diretamente atrelam-se ao campo jurídico, tanto pelo prisma legal quanto da legitimidade. Mas qual é o sentido do termo Estatuto?

Derivado do latim statutum, de statuere (estabelecer, construir, fundar), em sentido amplo, entende-se a lei ou regulamento, em que se fixam os princípios institucionais ou orgânicos de uma coletividade ou corporação, pública ou particular (privada). Em qualquer aspecto ou sentido, pois, o estatuto geralmente dito no plural estatutos, exibe o complexo de normas ou regras (...) (SILVA, 2006, p. 559-560).

Diante do conceito alargado do termo estatuto, percebe-se que os aspectos normativos vão se configurando com mais vigor na proposta planejada pela vertente feminista bem comportada. É interessante comentar que o Direito, especialmente o positivado, se apresenta no cenário social, mais das vezes por intermédio de estatutos e objetivos.

A FBPF, talvez percebendo que apenas se valendo do Direito histórico não alcançaria seu desiderato, lançou mão da outra face do Direito, qual seja, o Direito positivo. A FBPF não apreendeu o Direito positivo de forma dissimulada, ao contrário, concebia-o como meio de alcance ao sufrágio feminino. Em resumo, qual era o real intento da FBPF? Lógico que era o direito do voto feminino e não a emancipação plena da mulher.

Assim, bastaria se valer das suas lutas, estratégias e do direito em seu duplo movimento (histórico e positivo) que galgaria sua finalidade máxima: o sufrágio para todas as mulheres que se encontravam nas condições descritas no Texto Constitucional: ser brasileira, ter 21 anos e ser alfabetizadas, sem mais nenhuma exigência legal-condicional.

Observe-se que de antemão, no preceito número 1 dos objetivos, se exigiu ampliar a educação feminina, pois era condição sine qua non para o êxito da Federação. Outro preceito que merece destaque, o de número 6, que visava assegurar à mulher os direitos políticos que a Constituição de 1891 lhe conferia. Mais uma vez se percebe os laços de união entre a FBPF e o Direito. Observa-se ainda a nitidez que essa vertente feminista tinha acerca dos seus direitos constitucionais, pois nos seus objetivos não adentrara no tema do alistamento feminino. Deduz-se, então, que a interpretação dessa vertente não era diminuta acerca da emancipação da mulher, contudo, não fazia parte do seu planejamento ir além da luta pelo sufrágio feminino, para não correr o risco de se desviar por demais da sua luta específica, parcial, porém não insignificante naquele momento histórico.

A FBPF se reduziu apenas a um marco cronológico nas lutas feministas? Em um país marcado por colonização, escravidão e preconceitos, bem como apenas utilizando as dimensões da educação e da imprensa, a FBPF teria fôlego para galgar a emancipação feminina em sua totalidade?

É difícil responder aos questionamentos propostos. Que fique bem claro, não alcançar o total do processo de emancipação da mulher não significa obrigatoriamente abdicar das lutas, lutas que muitas vezes acontecem em etapas, ladeando com ondular da política e da história. Uma guerra (as lutas feministas) é vencida por batalhas, às vezes nas trincheiras (as estratégias), às vezes se valendo das armas dos adversários (o Direito positivo da época).

Isso tudo representa o caminhar árduo da FBPF, que muitas vezes é vilipendiada tanto por homens quanto por algumas mulheres. As diatribes sofridas talvez sirvam de combustível para a “história da educação” lançar um olhar mais aprofundado sobre a organização que não foi além do previamente planejado e como teleologia alcançou resultados se não excelentes ao processo de emancipação feminina, ao menos obteve resultados ao longo dos anos, no campo dos Direitos Políticos, especificamente no sufrágio feminino (capacidade eleitoral ativa – direito de votar e capacidade eleitoral passiva – direito de ser votada, no futuro).

A FBPF atingiu seu apogeu não com o Código Eleitoral Provisório e o Decreto nº. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, uma vez que o direito de votar era restrito, pois as mulheres casadas só votariam com a permissão do esposo, e as viúvas e solteiras se possuíssem renda própria. Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1934 e sua antecessora e produtora, a Constituinte, se consolidou o direito do voto feminino no Brasil. Após alcançar o ponto máximo da luta a FBPF começa, a partir de então, se arrefecer e vai perdendo força no cenário nacional. Longe da redundância, lembre-se que a FBPF não foi apenas um marco ao longo do processo de lutas feministas, ao contrário, conseguiu o seu objetivo maior, permitir que as mulheres brasileiras pudessem votar e serem votadas.

Conclusão

A História é uma expressão ampla que comporta tensões, estratégias e articulações em torno de dimensões conflitantes. A política, o Direito, a educação e a imprensa são dimensões que atuam em arenas movimentando-se no fluxo e refluxo de suas teorias e argumentações. As feministas da vertente bem comportada absorveram elementos dessas dimensões e descartaram estrategicamente parte de informações que eram entraves ao seu intento.

Sem embargo do exposto, a FBPF despiu-se de preconceitos e assumiu sua real identidade, captando com muita ênfase em suas lutas os seguintes tópicos: 1. Como pressupostos filosóficos, políticos e sociais – o positivismo e o progresso. 2. Como estratégias de lutas – a educação e a imprensa. 3. Como meio de alcance do sufrágio feminino – o Direito em seu duplo movimento (histórico e positivo).

À guisa de conclusão, a História permitiu mostrar que a vertente do movimento feminista bem comportado se agarrou a várias dimensões sem se preocupar com suas inevitáveis colisões. Quando necessário e/ou imprescindível se articulou e, por meio de sutileza e perspicácia, engendrou quase um sistema que se perfez por intermédio interativo da Política, do Direito, da Educação e da Imprensa rumo ao sufrágio feminino.

NOTAS:

4 Ver obra de TABAK, Fanny; TOSCANO, Moema. Mulher e Política, p. 90.

5 Mulheres como Mirtes Campos (primeira mulher admitida na advocacia brasileira), já pressionavam pelo voto feminino por intermédio da imprensa e da Associação de Advogados (mais tarde, Ordem dos Advogados do Brasil. In: HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil 1850-1940.

6 Nesta citação optou-se por manter a grafia da Constituição Federal de 1891 na forma original em que fora redigida.

7 Oriunda da elite brasileira, formada em Biologia na Universidade Sorbonne, tempo depois se formou em Direito. Representou o Brasil na I Conferência Pan-Americana da Mulher nos Estados Unidos da América e no Conselho Feminino da Organização Internacional do Trabalho. Defensora da luta pelo direito do voto feminino, no molde norte-americano.

8 Escritora, professora, que colocava suas estratégias no poder da imprensa para arregimentar seguidoras ao alcance da emancipação da mulher.

Referências

BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. (Trad.) Carmen C. Varriali et al. 12 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

BRASIL. Constituições do Brasil (1969;1967;1946;1937;1934;1891;1824). 6 ed. São Paulo: Atlas, 1983.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.

HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). (Trad.) Maria Thereza P. de Almeida e Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil,

1850-1940. (Trad.) Eliane Tejera Lisboa. Florianópolis: Ed. Mulheres/EDUNISC, 2003. IBGE. SÉRIES ESTATÍSTICAS E SÉRIES HISTÓRICAS. Disponível em: <www.ibge.gov.br/seiries_estatisticas>. Acesso em: Acesso em: 11 de set. 2010.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. (Trad.) João de Vasconcelos. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

MONTAGU, Ashley. A superioridade natural da mulher. (Trad.) Lygia Junqueira Caiuby. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. (Trad.) Ângela M. S. Corrêa. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. 3 ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1993.

SILVA, De Plácido e. Dicionário Jurídico. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

SOW, Marilene Mendes. A participação feminina na construção de um parlamento democrático. Brasília: Biblioteca da Câmara dos Deputados, 2009.

TABAK, Fanny; TOSCANO, Moema. Mulher e política. Editora Paz e Terra, 1982.


Fonte: BARBOSA, Erivaldo Moreira; MACHADO, Charliton José dos Santos.  Gênese do direito do voto feminino no Brasil: uma análise jurídica, política e educacionalRevista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 45, p. 89-100, 2012. 

 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Clio, a Musa da História

Na mitologia grega as musas são nove irmãs, filhas de ZeusMnemósine (a deusa da memória), as quais personificam algumas artes e ciências. As nove irmãs são: Calíope (poesia épica), Clio (história), Erato (poesia romântica), Euterpe (música), Melpômene (tragédia), Polímnia (hinos), Terpsicore (dança), Tália (comédia), Urânia (astronomia). (HESÍODO, 2007, p. 107). 

As Musas eram invocadas pelos artistas, escritores e até mesmo historiadores como fonte de inspiração para abençoá-los com a arte de escrever bem. Na Teogonia, o poeta Hesíodo, inicia seu livro dedicando um hino as Musas, exaltando as virtudes dessas belas mulheres que cantavam, declamavam e dançavam os feitos dos deuses e heróis. Tal prática foi adotada por outros poetas, mesmo séculos posteriores, como Luís de Camões, o qual em Os Lusíadas, também inicia sua obra evocando as musas gregas e portuguesas. No entanto, nesse breve texto, falarei mais especificamente de Clio. 

As informações sobre as musas são escassas. Apenas se conhecem compilações de autores como Pseudo-Apolodoro, não havendo narrativas propriamente sobre essas deusas. Inclusive esses fragmentos podem ter sido reunidos por tais autores para criar uma noção melhor sobre essas divindades. 

A musa Clio. Pintura de autoria desconhecida, datada do século XVII, exposta no Museu Narbona, França. 

O nome Clio, em grego Κλειώ, está ligado ao verbo kléios, que significa "celebrar", "dar a conhecer". No caso, o nome Clio também pode ser traduzido como "glória", devido a analogia de "glorificar". (ZUFFERLI, 2013, p. 64). Na Teogonia, o nome dela assume esse sentido, pois no Hino as Musas, elas não apenas são exaltadas, mas também são utilizadas para exaltar os deuses e aquela história que Hesíodo estava para contar. Logo, nota-se o caráter de glorificar, de celebrar. Embora que alguns tradutores as vezes traduzam o nome dela como "proclamar". 

Pseudo-Apolodoro (2013, p. 44) informa que Clio devido a ter criticado o romance de Afrodite com Adônis, foi repreendida pela deusa do amor, tendo se apaixonado por Piero. O mito não explica claramente porque dessa escolha, além de não informar se isso teria sido bom ou ruim. Piero era filho de Magnes e Melibeia, e ele amou Clio, a engravidando. O casal teve um filho chamado Jacinto (ou Hiacinto). (GRIMAL, 2005, p. 373). 

Em seguida, Pseudo-Apolodoro (2013, p. 44) informa que Jacinto, o filho de Clio, era descrito como um belo jovem, o qual despertou a paixão do poeta Tamíris, também referido por sua beleza, bela voz e arrogância de se dizer melhor cantor do que as musas. Entretanto, não se sabe se Jacinto e Tamíris chegaram a ter uma relação. Porém, além do poeta, o deus Apolo também teria se apaixonado por Jacinto, e acidentalmente o teria matado, enquanto participava de um jogo de arremesso de disco. Cujo disco acertou a cabeça de Jacinto. Apolo ficou tão desconsolado, que transformou o sangue de seu amado numa flor. 

A morte de Jacinto. Alexander Kiselyov, c. 1850-1900. 

Apesar desse relato trágico em que o filho de Clio e Piero faleceu, Pierre Grimal (2013, p. 257) informa que possa ter havido uma mistura de narrativas. Ele salienta que na mitologia grega houve outro personagem chamado Jacinto, o qual foi espartano, descendendo de Lacedômonio, o rei que fundou Esparta. Nesse ponto, Grimal sugere que a história de ambos pode ter sido misturada, pois é dito que esse Jacinto também era belo e teria despertado o amor em Apolo e de Zéfiro, o deus do vento oeste. Inclusive, Grimal diz que Pseudo-Apolodoro não comenta esse triângulo amoroso entre Jacinto-Zéfiro-Apolo. 

Clio viveria com suas irmãs numa montanha, porém, a localização dessa altera-se dependendo do mito. Recordando que os mitos eram de tradição oral, logo, possuíam várias versões, e mesmo os mitos escritos poderiam conter mais de uma versão. Uma das moradas das musas é o Monte Parnaso (2.457 m), situado próximo a Delfos, conhecido pelo seu famoso oráculo. Inclusive Parnaso também era creditado não apenas como lar das musas, mas também uma das residências de Apolo. Entretanto, a associação do Parnaso com as musas parece ter sido mais tardia, pois Junito Brandão aponta que desde a época de Hesíodo, pelo menos, algo entre os séculos VIII a.C e VII a.C, o Monte Hélicon (1.749 m), situado na Beócia, seria o lar das musas e de Apolo, e onde ficaria a mítica Hipocrene, a fonte criada por Pégaso, cujas águas concederia o dom da poesia, do canto e da oratória. (BRANDÃO, 1986, p. 203). 

Outro mito credita a Clio como tendo tido outro filho, sendo esse, o deus Himeneu. Na mitologia grega Himeneu era o deus do casamento, aquele que presidia o cortejo nupcial e acompanhava a celebração dos casamentos. Suas origens não são unânimes, havendo vários mitos que atribuem diferentes pais e mães para ele. Um dos mitos diz que Himeneu seria filho de Clio e Apolo ou de Clio e Piero. Ou poderia ser filho de Apolo com Calíope ou Urânia, ou até mesmo de Dionísio e Afrodite. (GRIMAL, 2005, p. 229). 

A associação de Himeneu com Clio é interessante, pois o deus personificava o cortejo nupcial, que em determinadas épocas da Grécia Antiga era celebrado com hinos religiosos. Ainda hoje alguns casamentos, sobretudo, os realizados em igrejas ou templos, fazem uso da marcha nupcial. E se recordarmos que Clio é a musa que proclama, faz conhecer e homenageia os feitos, logo, Himeneu ao cantar os hinos nupciais estaria homenageando, proclamando e fazendo conhecer os recém-casados. Apesar dessa interpretação, ainda assim, dos supostos filhos de Clio, Jacinto é o mais conhecido. 

No Renascimento (XIV-XVI) as Musas ganharam atributos que passaram as identificá-las nas pinturas. Alguns dos atributos já tinham sido desenvolvidos por artistas na Roma Antiga. As Musas, todas elas costumam aparecer usando coroas de louro, mas no caso de Clio, ela tem dois atributos específicos: um tipo de corneta, usado para saudações e proclamações, e na outra mão ela carrega um pergaminho, manuscrito ou livro, o qual simboliza a História escrita. 

Detalhe de A arte da pintura, onde a modelo está vestida como Clio, usando coroa de louros, e carregando uma corneta e um livro. Jan Vermeer, 1666-1668. 

NOTA: Brandão comenta que Himeneu possuía alguns mitos curtos, os quais apontam que originalmente ele não seria imortal, tampouco, um deus. Mas um homem comum. Que somente depois ganhou status divino. Além disso, em algumas dessas narrativas, Himeneu era descrito como tendo uma aparência andrógina. Em outras ele era retratado tendo uma aparência de criança ou adolescente, estando acompanhado de Eros, o deus do amor. 

NOTA 2: Outros mitos apontam que Clio teria sido também mãe de Ôiagro, um deus fluvial, que em algumas versões teria sido pai de Orfeu. Outro mito também aponta Clio como tendo sido a mãe de Reso, guerreiro trácio, criador de cavalos, o qual aliou-se aos troianos na Guerra de Troia. Todavia, nesses dois casos, Clio é uma das possíveis mães, já que outras das musas também disputam a maternidade. (KURY, 2003). 

NOTA 3: Um dos livros que compõe As Histórias de Heródoto, é intitulado de Clio. Os demais livros recebem cada um, o nome das Musas. 

NOTA: O carro Renault Clio tem seu nome inspirado na musa. 

Fontes: 

CABRAL, Luiz Alberto Machado. A Biblioteca do Pseudo Apolodoro e o estatuto da mitografia. Tese de Doutorado em Linguística, Universidade de Campinas, 2013. 

HESÍODO. Teogonia. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo, Iluminuras, 2007. 

Referências bibliográficas: 

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 1. Petrópolis, Vozes, 1986. 3v

GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 5a ed. Tradução de Victor Jabouille. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005. 

KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 8a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 

ZUFFERLI, Carla (org.). Dicionário etimológico de Mitologia Grega. 2013. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/409973/mod_resource/content/2/demgol_pt.pdf

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Espártaco e a Terceira Guerra dos Escravos (73-71 a.C)

Espártaco provavelmente seja o mais famoso gladiador conhecido, e sua fama em parte deve-se a ele ter liderado uma revolta de escravos em 73 a.C, a qual ganhou proporções gigantescas, se tornando uma guerra civil que durou quase dois anos. Tornando Espártaco uma lenda viva. Por outro lado, sua fama também advém das artes, através de poemas, romances, pinturas e filmes que enalteceram sua figura como escravo rebelde que ousou confrontar a poderosa República Romana. 

Passado desconhecido

Os historiadores da época como Plutarco, Apiano de Alexandria, Florus, Diodoro Sículo, Paulo Orósio e Caio Salustio, concordam entre si que Espártaco seria de origem trácia, embora não se saiba exatamente em que lugar do vasto território chamado de Trácia pelos romanos, ele teria nascido. A Trácia compreendia um território que hoje abrangeria o nordeste da Grécia, sul da Bulgária e o norte da Turquia na porção europeia. Os trácios eram conhecidos como um "povo bárbaro", mas com costumes helenizados, ou seja, alguns sabiam falar grego, adotavam alguns costumes deles. De acordo com Plutarco, Espártaco seria um homem culto e com costumes helênicos, embora que Florus e Apiano o descrevessem como sendo um bárbaro como qualquer outro trácio. (SHAW, 2001). 

Outro dado interessante, é que Espártaco não era o nome seu nome verdadeiro. Inclusive não se sabe como ele realmente se chamava. Pelo que se atesta, quando ele chegou a Cápua, alguém lhe deu o nome de Espártaco devido a sua origem trácia, pois tal nome era referência ao rei Espártoco I, que fundou em 438 a.C o Reino do Bósforo (compreendendo atualmente território grego e turco). A Dinastia dos Espartocidas governou aquela região por quase trezentos anos, vindo a ser subjugada pelos romanos. 

Se desconhece se Espártaco teria esposa e filhos, seu local de nascimento e até o ano em que nasceu. Embora os historiadores da época apontem que ele teria mais de trinta anos, quando foi levado para Cápua. Nesse ponto, os historiadores da época concordam que Espártaco teria servido as legiões orientais romanas, embora Floro escreveu que ele teria sido um mercenário, não um soldado efetivo. No entanto, não se sabe exatamente porque ele foi vendido como escravo ou porque foi feito escravo, mas devido a ser um guerreiro, isso interessou o vendedor de escravos a vendê-lo para se tornar um gladiador. (SHAW, 2001). 

Detalhe da estátua de Espártaco, esculpida por Denis Foyater, 1830. Atualmente situada no Museu do Louvre, em Paris. 

O ludo de Batiato e a revolta dos gladiadores

Naquele tempo os jogos de gladiadores eram um grande espetáculo pela República Romana. As arenas ficavam lotadas. Homens e até mesmo mulheres, se exibiam naqueles jogos mortais. Alguns gostavam da adrenalina, do risco e da fama ganhados, outros eram simplesmente forçados a lutarem por suas vidas. A maioria dos gladiadores eram escravos e prisioneiros de guerra, mas havia casos de homens livres que se ofereciam para pagar dívidas ou tentar a sorte como gladiadores. 

Em Cápua, no sul da Itália, ficava situada o ludo (escola de gladiadores) de Lêntulo Batiato. Um conhecido lanista (treinador de gladiadores) da região, o qual era conhecido por fornecer bons guerreiros para as arenas locais. Batiato no ano de 73 a.C. comprou uma leva de escravos, o que incluiu Espártaco. Porém, diferente do que se pensa, Espártaco não foi um gladiador ao longo de anos, na verdade não se sabe exatamente em que mês ele chegou à Cápua, o que indica que ele teria sido um gladiador por poucos meses ou apenas por semanas até eclodir uma revolta.

Não se sabe ao certo como a revolta se iniciou, se Espártaco teria a planejado ou não. Quem melhor comenta isso é Plutarco, mas ele pouco informa, dizendo que pelo menos 200 gladiadores iniciaram uma revolta no ludo contra os maus-tratos e outros problemas. Houve conflito entre eles e os guardas, vários ficaram feridos e alguns morreram, porém, Plutarco informa que 75 deles, já Floro falou em 30 fugitivos. Mas entre os fugitivos estava Espártaco. Esses gladiadores que conseguiram escapar, saquearam armas e comida pelo caminho, enquanto seguiam sem um rumo certo. A guarnição de Cápua foi informada sobre a fuga deles, ainda assim, os gladiadores foragidos conseguiram escapar dela. 

O início de uma grande rebelião

Os gladiadores se refugiaram no Monte Vesúvio, famoso vulcão italiano, lembrado por ter destruído Pompeia e Herculano, algo que ocorreria anos depois. Mas naquele momento, o Vesúvio estava adormecido. Ali, os fugitivos montaram acampamento e permaneceram tempo indefinido. Plutarco informa que Espártaco já estaria no comando daquele bando de foragidos, mas ele teria outros "chefes" para ajudá-lo, sendo esses gladiadores também, chamados de Crixus, Oenomaus, Castus e Gannicus. Floro, Orósio e Apiano citam apenas Crixus e Oenomaus, dizendo que os outros "chefes" eram gladiadores de origem gaulesa. (FIELDS, 2009, p. 12). 

Rota da fuga dos gladiadores, saindo de Cápua e indo se refugiar no Vesúvio. 

Entretanto, após alguns dias da fuga, o pretor Caio Cláudio Glabro, foi ordenado pelo governo para caçar, capturar ou executar os gladiadores que escaparam do ludo de Batiato. Plutarco e os demais historiadores, relataram que a tropa de Glabro teve dificuldades para alcançar o acampamento dos rebeldes, devido a localidade íngreme e bem posicionada, instalada no vulcão. Todavia, os gladiadores fugitivos conseguiram contra-atacar a tropa de Glabro, forçando ele bater em retirada. Tal condição é interessante, pois atesta que aqueles homens não apenas sabiam lutar, mas sabiam organizar estratégias e executá-las, pois eles estariam em menor número, apesar de que em questão de terreno, a vantagem fosse eles. (SHAW, 2001, p. 132). 

Aqueles gladiadores eram uma ameaça, pois poderiam motivar revoltas, levando a nova fuga de gladiadores e até de outros escravos. A tropa de Glabro tentou cercar o acampamento dos fugitivos, mas falharam quanto a isso, sendo atacados pela retaguarda, levando Glabro a declarar retirada. Nesse momento, salienta-se que os rebeldes se apossaram de equipamentos, armamentos e suprimentos do acampamento romano. Além de terem conseguido ajuda local, provavelmente de escravos que trabalhavam em fazendas. 

Com a derrota do pretor Glabro, o governo enviou o pretor Públio Varínio para capturar e executar os rebeldes. Dessa vez foi enviado uma tropa maior. Segundo Plutarco, Varínio comandava dois mil soldados. Provavelmente um número bem exagerado, pois Espártaco e seus homens também conseguiram derrotar a tropa de Varínio. Se realmente ele estivesse no comando de dois mil soldados durante a batalha, dificilmente algumas dezenas de gladiadores, talvez até cem ou duzentos deles (considerando reforços que tenham recebido), conseguiriam bater de frente o contingente de meia-legião. Entretanto, a história relatada informa que estando os rebeldes em desvantagem, Espártaco ordenou que Lúcio Cossino, que era o comandante de Varínio, fosse capturado e usado como refém. Cossino foi capturado em Salinas, enquanto ia a um banho público. Entretanto, Cossino conseguiu escapar, frustrando os planos dos rebeldes. Embora eles tenham conseguido vencer Varínio em algumas pequenas batalhas, o grupo teria deliberado seguir para o norte, rumo aos Alpes, na tentativa de fugir para a Gália. (SHAW, 2001, p. 133). Entretanto, o governo republicano decidiu tomar medidas mais enérgicas.

A Terceira Guerra dos Escravos (73-71 a.C)

A Primeira Guerra dos Escravos ou Guerra Servil, ocorreu entre 135-132 a.C. tendo ocorrido a partir da revolta de escravos na ilha da Sicília. O conflito durou três anos, até finalmente ser sufocado. Já a Segunda Guerra dos Escravos (104-100 a.C.) ocorreu também na Sicília, na época o "celeiro de Roma", concentrado milhares de escravos que trabalhavam nas plantações de trigo, oliveiras e na criação de cabras. Por tal condição, a ilha foi palco de duas revoltas de escravos que levou a se tornarem guerras civis, a ponto da República enviar tropas legionárias para conter essa guerra, antes que ela se alastrasse para o continente. (FIELDS, 2009). 

Se por um lado essas duas guerras servis acabaram ficando restritas a Sicília, embora tenha motivado pequenas revoltas na península, a Terceira Guerra foi diferente, pois mobilizou revoltas pela parte central e sul da Itália, mobilizando milhares de pessoas. 

Espártaco e seus homens teriam partido em direção ao norte, com a expectativa de alcançar os Alpes. No começo do ano de 72 a.C. os dois cônsules da época, Lúcio Gélio Publícola e Gneu Cornélio Lêntulo, enviaram tropas para atacar as forças rebeldes, resultando na derrota delas, o que forçou Espártaco e seus líderes a desistirem de marchar para o norte e recuarem para o sul, indo em direção a Lucânia. Nessa ocasião, Crixus separou-se do contingente principal, a fim de realizar outra missão na Apúlia. Semanas depois, Crixus e seus homens foram derrotados, e ele foi morto em combate. (SHAW, 2001, p. 134). 

Apesar da vitória dos cônsules Publícola e Lêntulo, o exército de escravos continuava a percorrer o interior da península, atacando fazendas, vilas e reunindo esforços. O comandante Cássio, que foi enviado para atacar Espártaco e a parte central do exército rebelde, foi derrotado, o que levou Espártaco a avançar novamente para o norte, através da Apúlia, na tentativa de encontrar uma passagem até os Alpes. Nesse momento, Marco Licínio Crasso (114-53 a.C), chamado de o "homem mais rico de Roma", começou a pleitear energicamente no Senado, que medidas mais drásticas fossem tomadas. Com a derrota do comandante Cássio, era visível que o exército rebelde ainda era poderoso e informações diziam que ele estava marchando para o norte. Crasso apresentou ao Senado, a possibilidade de um ataque dos rebeldes à Roma. (FIELDS, 2009, p. 13).

Busto de Marco Licínio Crasso

O Senado convencido de que poderia haver um risco à Roma, além de serem motivados por outros fatores não totalmente conhecidos, decidiram encarregar Crasso para combater Espártaco e sua revolta de escravos. Na época ele teria sido eleito propretor, o que permitiu receber uma legião ao seu dispor, com a qual ele usou para interceptar os rebeldes, forçando-o a recuar de volta para o sul. Tendo vencido esse primeiro confronto, Crasso reorganizou seu exército e marchou pela península atrás de Espártaco e seu exército de escravos. Na época cogitou-se que eles tentariam migrar para a Sicília, a fim de montar base lá e encintar nova revolta por ali. (SHAW, 2001, p. 135). 

Em azul a rota do exército de escravos de Thurii até ser interceptada pelo exército de Crasso. Depois os rebeldes recuaram para o sul da península, sendo seguidos por Crasso e suas tropas. 

Com a fuga do exército de escravos, agora desmoralizados pela derrota sofrida para o exército de Crasso, o prepretor decidiu que seria o momento de pressionar ainda mais para derrotá-los de uma vez, antes que eles se refugiassem na Sicília. 

Era o ano de 71 a.C, quando as forças rebeldes chegaram ao sul da península, a travessia pelo estreito de Messina somente era possível por barco, no entanto, o porto de Reggio havia sido alertado sobre a aproximação do exército rebelde. Sem poder ter acesso a embarcações, os rebeldes não tinham meios para atravessar o estreito, com isso eles acabaram desistindo de sitiar Reggio, e optaram em retomar até a região da Lucânia. Enquanto isso ocorria, Crasso ordenou que suas legiões montassem acampamentos e postos de vigia no caminho, a fim de monitorar o avanço das tropas inimigas e se possível, realizar pequenos ataques no intuito de desmoralizá-la e enfraquecê-la. Todavia, o exército rebelde conseguiu resistir a essas tentativas. Plutarco informou que Cassus e Gannicus se separaram do exército principal, levando consigo 6 mil guerreiros no intuito de manter as legiões de Crasso ocupadas, enquanto o restante das forças rebeldes, comandadas por Espártaco, conseguiam avançar para o norte. Apesar dessa tentativa, Cassus e Gannicus acabaram fracassando por não conseguirem segurar as legiões romanas. (FIELDS, 2009). 

Além disso, para a infelicidade dos rebeldes, o general Cneu Pompeu Magno (106-48 a.C), havia retornado de suas campanhas na Hispânia e marchava com suas legiões para apoiar a campanha de Crasso. Todavia, o confronto final ocorreu próximo aos montes da Petélia, onde Espártaco e seu exército foram cercados pelas tropas de Lúcio Quinto e Cneu Tremelio Scrofa, ambos comandantes a serviço de Crasso. Durante o conflito ali ocorrido, Espártaco foi morto, parte de seu exército foi rendido, e outros fugiram, sendo capturados ou executados pelas legiões de Pompeu ou por outros comandantes que continuaram a persegui-los nas semanas seguintes. Segundo Plutarco, Crasso participou dessa batalha e Espártaco tentou matá-lo, chegando perto de fazer isso, mas Floro e Osório, escreveram que Espártaco não teria se aproximado de Crasso. (SHAW, 2001, p. 136). 

A morte de Espártaco. Hermann Vogel, 1882. 

Considerações finais

Espártaco e outros de seus aliados caíram mortos nessa batalha. O corpo dele jamais foi achado. Provavelmente jogado em alguma vala coletiva ou abandonado ao relento, pois os historiadores romanos relataram que nessas últimas batalhas, milhares teriam perecido. Além disso, Crasso para inibir novas revoltas, ordenou que parte dos prisioneiros fossem executados, sendo crucificados ao longo da Via Ápia, a principal estrada que seguia do sul da península até Roma. Segundo Apiano, seis mil prisioneiros foram crucificados. (SHAW, 2001, p. 136). 

Mas embora Crasso tenha comandado as tropas e ações que levaram a pôr um fim a Terceira Guerra dos Escravos, Pompeu reclamou para si esse feito, tendo escrito ao Senado, dizendo que graças a sua intervenção a "guerra foi vencida", creditando a Crasso, a vitória em "algumas batalhas" e a captura de escravos. Isso gerou atrito entre os dois, apesar que eles voltariam a trabalhar juntos anos depois, quando se uniriam a um proeminente general chamado Júlio César (100-44 a.C). 

A fama de Espártaco e seu exército de escravos não findou-se após sua morte. Historiadores e escritores da época escreveram sobre essa guerra, além disso, surgiram pichações em homenagem ao líder rebelde. Mas apesar disso, nenhuma outra grande revolta como aquela ocorreu novamente. E com o tempo a fama de Espártaco caiu no esquecimento, vindo a ser resgatada no século XIX pelos pintores e escritores, que creditaram aquele escravo trácio, o ideal de um líder rebelde. 

NOTA: Vários filmes foram produzidos sobre Espártaco, mas o mais famoso é Spartacus (1960), estrelando Kirk Douglas no papel do gladiador. 
NOTA 2: O seriado Spartacus (2010-2013) possui quatro temporadas, sendo uma delas uma prequel focada em Crixus e Gannicus. Nesse seriado, acompanhamos a história de Spartacus, desde sua captura para ser vendido como escravo até sua morte. 
NOTA 3: O escritor Ben Kane, conhecido por seus livros sobre a Roma Antiga, escreveu uma duologia sobre Espártaco. 
NOTA 4: No leste europeu existem vários times esportivos chamados Spartacus. 
NOTA 5: Não se sabe exatamente quantos escravos aderiram a guerra, os historiadores da época apontam valores que vão de 10 a 60 mil pessoas. Entretanto, das três guerras de escravos, a terceira foi que reuniu mais gente, embora tenha sido a mais curta em duração. 

Referências bibliográficas: 
FIELDS, Nic. Spartacus and the Slave War 73-71 BC. Illustrated by Steve Noon. Oxford, Osprey Publishing, 2009. 
SHAW, Brent D. Spartacus and the Slave Wars: a brief history with documents. Boston, Palgrave Macmillan, 2001. 

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