Memória e identidade social*
Michael Pollak
Michael Pollak nasceu em Viena, Áustria, em 1948, e morreu
em Paris em1992. Radicado na França, formou-se em sociologia e trabalhou como pesquisador
do Centre National de la Recherche Scientifique -CNRS. Seu interesse acadêmico,
voltado de início para as relações entre política e ciências sociais, tema de
sua tese de doutorado orientada por Pierre Bourdieu e defendida na École
Pratique des Hautes Études em 1975, estendeu-se a diversos outros campos de
pesquisa, que confluíam para uma reflexão teórica sobre o problema da identidade social em situações limites. Entre seus últimos
trabalhos incluem-se um estudo sobre mulheres sobreviventes dos campos de
concentração publicado sob o título L'expérience concentrationnaire: essai
sur le maintien de 1'identité sociale (Paris, Éditions Metailié, 1990), e
uma pesquisa sobre a Aids (Les homosexuels face au SIA).
Pollak esteve no Brasil entre outubro e dezembro de 1987
como professor visitante do CPDOC e do PPGAS do Museu Nacional. Na ocasião
concedeu uma entrevista sobre a Aids a Alzira Alves de Abreu e Aspásia Camargo publicada
em Ciência Hoje, vol. 7, n.º 41 (abr.
1988). Proferiu também, no CPDOC, a conferência aqui transcrita, que vem se
somar a seu artigo "Memória, esquecimento, silêncio"; publicado em Estudos
Históricos 3 (1989). Prestamos hoje uma homenagem póstuma a este grande
expoente das ciências sociais na França.
Tratarei aqui do problema da ligação entre memória e
identidade social, mais especificamente no âmbito das histórias de vida, ou
daquilo que hoje, como nova área de pesquisa, se chama de história oral. Ultimamente
tem aparecido certo número de publicações que dizem respeito, sob aspectos
relativamente diferentes, ora ao problema da memória - e refiro-me apenas à abordagem
histórica - ora ao problema da identidade. Para falar apenas da França, a
última obra de Fernand Braudel foi precisamente um livro sobre a identidade
deste país. Neste caso, é claro, predominava a preocupação com os conceitos de
identidade e de construção, na longa duração, de uma identidade nacional.
No que diz respeito à memória, penso sobretudo no livro de
Pierre Nora, Les lieux de la mémoire, que é uma tentativa de encontrar
uma metodologia para apreender, nos vestígios da memória, aquilo que pode
relacioná-los, principalmente, mas não exclusivamente, com a memória política.
Finalmente, no caso das diversas pesquisas de história oral, que utilizam
entrevistas, sobretudo entrevistas de história de vida, é óbvio que o que se
recolhe são memórias individuais, ou, se for o caso de entrevistas de grupo,
memórias mais coletivas, e o problema aí é saber como interpretar esse
material.
Se levarmos em conta certo número de conceitos usados
freqüentemente na história da França - mas é claro que eu poderia me referir a
qualquer outro país -, há algumas designações, atribuídas a determinados
períodos, que aludem diretamente a fatos de memória, muito mais do que a
acontecimentos ou fatos históricos não trabalhados por memórias. Por exemplo,
quando se fala nos "anos sombrios", para designar a época de Vichy,
ou quando se fala nos "trinta gloriosos", que são os trinta anos
posteriores a 1945, essas expressões remetem mais a noções de memória, ou seja,
a percepções da realidade, do que à factualidade positivista subjacente a tais
percepções.
A priori, a memória
parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da
pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória
deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou
seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,
transformações, mudanças constantes.
Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da
memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na
maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes,
imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de história de vida percebem
que no decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem cronológica não
está sendo necessariamente obedecida, em que os entrevistados voltam várias
vezes aos mesmos acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos da
vida, ou a certos fatos, algo de invariante. É como se, numa história de vida
individual - mas isso acontece igualmente em memórias construídas coletivamente
houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória
foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo
sentido, determinado número de elementos tornam-se realidade, passam afazer
parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos
e fatos possam se modificarem função dos interlocutores, ou em função do
movimento da fala.
Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória,
individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos
pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de
"vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou
pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos
quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho
relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por
tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo
de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da
socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção
ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória
quase que herdada. De fato - e eu gostaria de remeter aí ao livro de Philippe
Joutard sobre os camisards -, podem existir acontecimentos regionais que
traumatizaram tanto, marcaram tanto uma região ou um grupo, que sua memória
pode ser transmitida ao longo dos séculos com altíssimo grau de identificação.
Além desses acontecimentos, a memória é constituída por pessoas,
personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema, falar de
personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de personagens
freqüentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se
transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagens que não pertenceram
necessariamente ao espaço-tempo da pessoa. Por exemplo, no caso da França, não
é preciso ter vivido na época do general De Gaulle para senti-lo como um
contemporâneo.
Além dos acontecimentos e das personagens, podemos
finalmente arrolar os lugares. Existem lugares da memória, lugares
particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança pessoal,
mas também pode não ter apoio no tempo cronológico.
Pode ser, por exemplo, um lugar de férias na infância, que
permaneceu muito forte na memória da pessoa, muito marcante, independentemente
da data real em que a vivência se deu. Na memória mais pública, nos aspectos
mais públicos da pessoa, pode haver lugares de apoio da memória, que são os
lugares de comemoração. Os monumentos aos mortos, por exemplo, podem servir de base
a uma relembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma, ou de um
período vivido por tabela. Para a minha geração na Europa este é o caso da
Segunda Guerra Mundial.
Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma
pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por
conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse
grupo. Aqui estou me referindo ao exemplo de certos europeus com origens rias
colônias. A memória da África, seja dos Camarões ou do Congo, pode fazer parte
da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em sentimento
de pertencimento. Outro exemplo seria o da segunda geração dos pieds noirs na
França, que na verdade nem chegaram a nascer na Argélia, mas entre os quais a
lembrança argelina foi mantida de tal maneira que o lugar se tornou formador da
memória.
Esses três critérios, acontecimentos, personagens e lugares,
conhecidos direta ou indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos,
personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas
pode se tratar também da projeção de outros eventos. É o caso, na França, da
confusão entre fatos ligados a uma ou outra guerra.
A Primeira Guerra Mundial deixou marcas muito fortes em
certas regiões, por causa do grande número de mortos. Ficou gravada a guerra
que foi mais devastadora, e freqüentemente os mortos da Segunda Guerra foram
assimilados aos da Primeira. Em certas regiões, as duas viraram uma só, quase
que uma grande guerra.
O que ocorre nesses casos são portanto transferências,
projeções. Numa série de entrevistas que fizemos sobre a guerra na Normandia,
que foi invadida em 1940 pelas tropas alemãs e foi a primeira a ser libertada,
encontramos pessoas que, na época do fato, deviam ter por volta de 15,16,17
anos, e se lembravam dos soldados alemães com capacetes pontudos (casques à
pointe). Ora, os capacetes pontudos são tipicamente prussianos, do tempo da
Primeira Guerra Mundial, e foram usados até 1916, 1917. Era portanto uma
transferência característica, a partir da memória dos pais, da ocupação alemã
da Alsácia e Lorena na Primeira Guerra, quando os soldados alemães eram
apelidados de "capacetes pontudos", para a Segunda Guerra. Uma
transferência por herança, por assim dizer.
Além dessas diversas projeções, que podem ocorrer em relação
a eventos, lugares e personagens, há também o problema dos vestígios datados da
memória, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um
acontecimento. Em função da experiência de uma pessoa, de sua inscrição na vida
pública, as datas da vida privada e da vida pública vão ser ora assimiladas,
ora estritamente separadas, ora vão faltar no relato ou na biografia. Quando fizemos
entrevistas com donas de casa da Normandia que passaram pela guerra, pela Ocupação,
pela Libertação etc., as datas precisas que pudemos identificar em seus relatos
eram as da vida familiar: nascimento dos filhos, até mesmo datas muito precisas
de nascimento de todos os primos, todas as primas, todos os sobrinhos e
sobrinhas. Mas havia uma nítida imprecisão em relação às datas públicas,
ligadas à vida política.
No extremo oposto, só para marcar a polaridade, se fizermos
entrevistas com personagens públicas, a vida familiar, a vida privada, vai
quase que desaparecer do relato.
Iremos nos deparar com a reconstrução política da biografia,
e as datas públicas quase que se tornam datas privadas. É claro que não podemos
interpretar isso exclusivamente como uma espécie de sobre-construção política
da personagem. Pode ocorrer de fato que as coações da vida pública, como por
exemplo, o tempo disponível, levem uma pessoa, a partir de um certo momento de
sua vida, a reduzir-se praticamente à personagem pública, à representação dessa
personagem. Não se deve, portanto considerar esses aspectos como indicadores de
dissimulação ou falsificação do relato. O que importa é saber qual é a ligação
real disso com a construção da personagem.
Sobretudo em relação à datas públicas, observam-se claros
fenômenos de transferência que às vezes são até, por, assim dizer, sancionados
legalmente. No caso do fim da guerra, analisamos as comemorações pia França,
isto é, usamos como indicadores empíricos as práticas de comemoração, em vez de
nos apoiarmos nas memórias individuais. Observamos em que dias do ano e de que
maneira os habitantes de pequenas aldeias comemoravam o fim da guerra. Nesse
caso também pudemos verificar, na maior parte das regiões francesas, que, embora
haja datas oficiais relativas ao fim da Primeira Guerra Mundial, dia 11 de
novembro, e da Segunda Guerra, dia 8 de maio, na prática, quase que espontânea
e automaticamente, as populações só guardavam uma única data, o 11 de novembro.
O 8 de maio era claramente identificado como um feriado qualquer, como um
domingo, enquanto no 11 de novembro realizavam-se comemorações duplas, alusivas
a ambas as guerras. As memórias individuais e a atuação das associações de
ex-combatentes juntavam-se para atribuir à Primeira Guerra um peso maior para a
história da França do que a Segunda, através de uma memória mais traumática,
ligada ao número de vítimas. Outro fator que atua nessa transferência do 8 de
maio para o 11 de novembro é simplesmente a real importância histórica das
respectivas datas para determinada região.
Podemos ver que, por assim dizer, a memória pode
"ganhar" da cronologia oficial. Sabe-se que a França foi libertada
por etapas. Em conseqüência, a data da vivência da Libertação e do fim da
guerra não é a mesma para todos. O 8 de maio é uma data longínqua, porque é
muito posterior à da Libertação de Paris. O grande momento de alegria popular
não é 1945, não é o 8 de maio, e sim a segunda metade do ano de 1944. A rigor,
pode-se dizer que, além da transferência entre datas oficiais, há também o
predomínio da memória sobre determinada cronologia política, ainda que esta
última esteja mais fortemente investida pela retórica, até mesmo pela
reconstrução historiográfica.
Depois desta curta introdução, que mostra os diferentes
elementos da memória, bem como os fenômenos de projeção e transferência que
podem ocorrer dentro da organização da memória individual ou coletiva, já temos
uma primeira caracterização, aproximada, do fenômeno da memória. A memória é
seletiva. Nem tudo fica gravado.
Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, herdada,
não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações
que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo
expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da
memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta
seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas
do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio
de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes
problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória
nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos
para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de
um povo.
Esse último elemento da memória - a sua organização em
função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória
é um fenômeno construído. Quando falo em construção, em nível individual, quero
dizer que os modos de construção podem tanto ser conscientes como
inconscientes. O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é
evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização.
Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um
fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória
herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita
entre a memória e o sentimento de identidade.
Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu
sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é o sentido da
imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire
ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta
aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também
para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros.
Nessa construção da identidade - e aí recorro à literatura
da psicologia social, e, em parte, da psicanálise - há três elementos
essenciais. Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras
físicas, no caso do copo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no
caso de um coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra,
mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de
coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo são
efetivamente unificados. De tal modo isso é importante que, se houver forte
ruptura desse sentimento de unidade ou de continuidade, podemos observar
fenômenos patológicos. Podemos portando dizer que a memória é um
elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva,
na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de
si.
Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para
si e para os outros, há um elemento dessas definições que necessariamente
escapa ao indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o
Outro. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,
de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno
que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de
aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da
negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem
perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos
como essências de uma pessoa ou de um grupo.
Se é possível o confronto entre a memória individual e a
memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores
disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em
conflitos que opõem grupos políticos diversos. Todo mundo sabe até que ponto a
memória familiar pode ser fonte de conflitos entre pessoas. Por exemplo, todos
os que fizeram pesquisas de história oral sobre as estruturas familiares nas classes
populares, como já fiz na Áustria, puderam verificar o quanto um nascimento
ilegítimo pode ser um ponto importante quando se trata de resolver litígios
ligados a heranças. Não se trata apenas de herança no sentido material, mas
também no sentido moral, ou seja, do valor atribuído a determinada filiação.
Sabemos que a memória, bem como o sentimento de identidade nessa continuidade
herdada, constituem um ponto importante na disputa pelos valores familiares, um
ponto focal na vida das pessoas.
Em nível mais organizado, vejamos o que acontece em relação
à memória de um grupo. Tornemos como grupos não apenas partidos políticos ou
sindicatos, mas também grupos um pouco mais informais. Na França, tomarei o
exemplo daqueles que, durante a
Segunda Guerra Mundial, foram deportados. E totalmente
trágico verificar até que ponto a memória deles constitui um cacife importante
para serem reconhecidos pelos outros, ou seja, serem valorizados pelos outros,
num momento, logo depois da guerra, em que ninguém ou quase ninguém quer mais
ouvir falarem sofrimento. Além do problema da valorização em relação à
sociedade em geral, ria diversidade das lembranças e das memórias revelam-se também
disputas e litígios entre os próprios subgrupos de deportados. A deportação foi
vivenciada de modo diferente, conforme suas razões oficiais. Um motivo como a
participação na Resistência era mais fácil de valorizar depois da guerra do
que, por exemplo, ter sido preso numa blitz por ser judeu. Ou ainda, ter
sido deportado por condenação de delito penal, por ter atuado no mercado negro.
Há uma multidão de motivos, uma multidão de memórias e lembranças que tomam
difícil a valorização em relação à sociedade em geral e que podem ser a origem
de conflitos entre pessoas que vivenciaram o mesmo acontecimento e que, a
priori, por terem elementos constitutivos comuns em suas vidas, deveriam
sentir-se como pertencentes ao mesmo grupo de destino, à mesma memória.
O caráter conflitivo se torna evidente na memória de
organizações constituídas, tais como as famílias políticas ou ideológicas. Para
ficar no caso francês, posso falar da memória da Resistência. É sabido que a
Resistência francesa teve componentes muito diversificados: grupos comunistas,
grupos gaullistas, grupos que haviam optado por uma resistência organizada
dentro do país, e que aderiram mais ou menos rapidamente, ou mais ou menos lentamente,
ao general De Gaulle.
Por conseguinte, nessa memória há um certo número de objetivos,
de conflitos, de litígios. Só para saber quem detinha a verdadeira legitimidade
de ter sido a vanguarda da Resistência, houve grandes disputas no jogo político
francês depois de 1945 entre as duas famílias políticas e ideológicas que eram,
de um lado, o gaullismo, e do outro, o comunismo. O objetivo era verem
reconhecida a interpretação do passado de cada um e, logo, a sua memória
específica. A elaboração desse tipo de memória implica um trabalho muito árduo,
que toma tempo, e que consiste na valorização e hierarquização das datas, das personagens
e dos acontecimentos.
No instituto onde trabalho, o Institut d'Histoire du Temps
Présent, fizemos pesquisas sobre a lembrança da Resistência e pudemos verificar
que, nos anos 50, a percentagem de resistentes que relatavam ter ouvido
pessoalmente o apelo do general De Gaulle, no 18 de junho de 1940, era
relativamente baixa. Mas se hoje formos entrevistar antigos resistentes, teremos
dificuldades em encontrar um que não tenha escutado o apelo do 18 de junho. Sob
certos aspectos, a memória gaullista conseguiu transformar-se em memória
nacional, ou, pelo menos, deixou certo número de datas extremamente
valorizadas.
Outro fato que constitui uma espécie de amostra de acerto
entre as diversas famílias da Resistência é o personagem de Jean Moulin. Nos
anos 50, Jean Moulin aparece como um dos lideres da Resistência que pouca gente
conheceu pessoalmente. Depois do traslado do seu corpo para o Panthéon, e do
seu reconhecimento como líder inconteste da Resistência interna, ou seja, como
aquele que foi enviado por Londres e realizou a obra de unificação dos diversos
grupos da Resistência, ele passou a ser conhecido pessoalmente por todos.
Está claro portanto que a memória especificamente política
pode ser motivo de disputa entre várias organizações. Para caracterizar essa
memória constituída, eu gostaria de introduzir o conceito de trabalho de
enquadramento da memória. Vale dizer: há um trabalho que é parcialmente
realizado pelos historiadores. Temos historiadores orgânicos, num sentido tomado
emprestado de Gramsci, que são os historiadores do Partido Comunista, os historiadores
do movimento gaullista, os historiadores socialistas, os sindicalistas etc.,
cuja tarefa é precisamente enquadrar a memória. Em relação à herança do século
XIX, que considera a história como sendo em essência uma história nacional,
podemos perguntar se a função do historiador não terá consistido, até certo
ponto, nesse trabalho de enquadramento visando à formação de uma história
nacional. Este fenômeno é mais claramente acentuado em países cuja unificação
nacional se deu tardiamente, e onde a ciência histórica linha uma tarefa de
unificação e manutenção da unidade. Estou me referindo a certa corrente da
historiografia alemã do século XIX, marcada pelo nome de Traitschke, mas também
em outros países esse fenômeno é bem conhecido de todos.
Por conseguinte, o trabalho de enquadramento da memória pode
ser analisado em termos de investimento. Eu poderia dizer que, em certo
sentido, uma história social da história seria a análise desse trabalho de
enquadramento da memória. Tal análise pode ser feita em organizações políticas,
sindicais, na Igreja, enfim, em tudo aquilo que leva os grupos a solidificarem
o social.
Além do trabalho de enquadramento da memória, há também o trabalho
da própria memória em si. Ou seja: cada vez que uma memória está
relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de
coerência, de unidade, de continuidade, da organização. Por exemplo, a
partir do momento em que o Partido Comunista amarrou bem a sua história e a sua
memória, essa mesma memória passou a trabalhar por si só, a influir na
organização, nas gerações futuras de quadros; os investimentos do
passado, por assim dizer, renderam juros.
Esse fenômeno torna-se bem claro em momentos em que, em
função da percepção por outras organizações, é preciso realizar o trabalho de
rearrumação da memória do próprio grupo. Isso é óbvio no caso do Partido
Comunista. Cada vez que ocorre uma reorganização interna, a cada reorientação
ideológica importante, reescrevera-se a história do partido e a história geral.
Tais momentos não ocorrem à toa, são objeto de investimentos extremamente
custosos em termos políticos e em termos de coerência, de unidade, e portanto
de identidade da organização.
Como sabemos, é nesses momentos que ocorrem as cisões e a criação,
sobre um fundo heterogêneo de memória, ou de fidelidade à memória antiga, de
novos agrupamentos. Espero que esta rápida descrição da problemática da
constituição e da constrição social da memória em diversos níveis mostre que há
um preço a ser pago, em termos de investimento e de risco, na hora da mudança e
da rearrumação da memória, e evidencie também a ligação desta com aquilo que a
sociologia chama de identidades coletivas. Por identidades coletivas, estou
aludindo a todos os investimentos que um grupo deve fazer ao longo do tempo,
todo o trabalho necessário para dar a cada membro do grupo - quer se trate de família
ou de nação - o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência.
Gostaria de enfatizar que, quando a memória e a identidade estão
suficientemente constituídas, suficientemente instituídas, suficientemente
amarradas, os questionamentos vindos de grupos externos à organização, os
problemas colocados pelos outros, não chegam a provocar a necessidade de se
proceder a rearrumações, nem no nível da identidade coletiva, nem no nível da
identidade individual. Quando a memória e a identidade trabalham por si sós, isso
corresponde àquilo que eu chamaria de conjunturas ou períodos calmos, em que
diminui a preocupação com a memória e a identidade. Se compararmos, por
exemplo, países de antiga tradição nacional, países que são Estados nacionais
há muitos séculos, com Estados nacionais recentes, veremos que a preocupação
com a identidade e a memória toma feições bem diferentes nos dois casos. Poderíamos
tomar como objeto de análise a correlação, em períodos de longa duração, entre
a rearrumação das relações entre países em momentos de crise ou de guerra, e a
crise da memória e do sentimento de identidade coletiva que freqüentemente precede,
acompanha ou sucede esses momentos.
Seguindo esta minha hipótese, poderíamos propor aqui um
ponto para discussão: por que será que atualmente assistimos a um interesse
renovado, nas ciências humanas e na história, pelo problema da forte ligação
entre memória e identidade? Esse interesse é patente em muitas publicações, que
utilizam métodos muito diferentes, tais como a análise das comemorações, dos
lugares, mas também a análise dos discursos, de textos, de entrevistas e de
histórias individuais. É com esta questão que concluo minha exposição.
Intervenções no debate
- Sobre a crítica à história oral como método apoiado na
memória, capaz de produzir representações e não reconstituições do real:
Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação
também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita e fonte
oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a
meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto de vista, a
fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a fonte escrita pode
ser tomada tal e qual ela se apresenta. O trabalho do historiador faz-se sempre
a partir de alguma fonte. É evidente que a construção que fazemos do passado,
inclusive a construção mais positivista, é sempre tributária da intermediação
do documento. Na medida em que essa intermediação é inescapável, todo o
trabalho do historiador já se apóia numa primeira reconstrução. Penso que não
podemos mais permanecer, do ponto de vista epistemológico, presos a uma
ingenuidade positivista primária. Não acredito que hoje em dia haja muita gente
que defenda essa posição.
Agora, é óbvio que a coleta de representações por meio da
história oral, que é também história de vida, tornou-se claramente um instrumento
privilegiado para abrir novos campos de pesquisa. Por exemplo, hoje podemos
abordar o problema da memória de modo muito diferente de como se fazia dez anos
atrás. Temos novos instrumentos metodológicos, mas sobretudo, temos novos
campos. A rigor, sem assumir o ponto de vista do positivismo ingênuo, podemos
considerar que a própria história das representações seria a história da reconstrução
cronológica deste ou daquele período. O que se tem feito recentemente, como por
exemplo a história da auto-apresentação das elites de um país, e também a
história da cultura popular, ou da autopercepção popular, é, a meu ver, uma
história perfeitamente legítima.
Por outro lado, á multiplicação dos objetos que podem
interessar à história, produzida pela história oral, implica indiretamente
aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade epistemológica específica, aguçada.
Por isso mesmo acredito que a história oral nos obriga a levar ainda mais a
sério a crítica das fontes. E na medida em que, através da história oral, a crítica
das fontes torna-se imperiosa e aumenta a exigência técnica e metodológica,
acredito que somos levados a perder, além da ingenuidade positivista, a ambição
e as condições de possibilidade de uma história vista como ciência de síntese
para todas as outras ciências humanas e sociais. Há uma perspectiva que
considera a história como sendo a reconstrução, para um período determinado, de
todos os materiais que as outras ciências nos fornecem. Mas na medida em que os
objetos da história se diversificam, se multiplicam, eu pessoalmente vejo,
nessa pluralização, uma grande dificuldade em manter a ambição da história como
ciência de síntese. Penso que, pela força das coisas, a história virá a ser uma
disciplina particularizada - sem se tornar parcial, pois é isso que se critica
hoje na história oral, a sua alegada parcialidade. Acho que é este o destino da
história, talvez. Nisso vejo uma continuidade entre a história social
quantificada e a história oral.
Acredito que esses dois campos aparentemente tão opostos
apresentam uma continuidade. Vejo também uma relação particularmente estreita
entre a história e certos subcampos da sociologia. Algo que quero voltar a
sublinhar é o problema da subjetividade e das fontes. Em primeiro lugar, até as
mais subjetivas das fontes, tais como uma história de vida individual, podem
sofrer uma crítica, por cruzamento de informações obtidas a partir de fontes
diferentes.
Mas acredito que, ao fazê-lo, e vou dar um exemplo, chegamos
rapidamente a esgotara capacidade de trabalho dos pesquisadores. É preciso
reconhecer isso honestamente. Na pesquisa sobre histórias de vida de mulheres
deportadas, de onde foi extraído o meu artigo "Le témoignage",* a
primeira história de vida que recolhemos, com duração de aproximadamente dez
horas, foi controlada sob todos os aspectos. Éramos quatro pesquisadores para
uma só história de vida, e começamos um controle muito cerrado de todas as
informações. Primeiro, controlamos a data de nascimento da mulher, mediante
consulta ao registro civil. Depois, controlamos as escrituras do apartamento de
sua família em Viena, a data do comboio que a levou para o campo de extermínio,
a data da operação que sofreu em Auschwitz. Achamos isso tudo. Para uma só
entrevista, uma só história de vida, quatro pessoas trabalharam durante dois
anos. Fica evidente que se você fizer um projeto implicando uma centena de
histórias de vida, até mesmo umas trinta, irá logo esgotar a possibilidade de trabalho
da equipe. Se pretendermos controlar todos os dados, será muito difícil
realizar isso na prática.
Acho que o que devemos fazer é levantar meios de controlar
as distorções ou a gestão da memória. Quanto menos uma história de vida for
pré-construída, mais isso funcionará. Numa história de vida muito comprida, há
certas coisas que são completamente solidificadas. Na minha experiência de
trabalho, as coisas mais solidificadas, assim como as coisas mais fluidas - ou
seja, as que se transformam de uma sessão de entrevista para outra - são as
mais problemáticas. Paradoxalmente, são ao mesmo tempo indicadoras de
"verdade" e de "falsidade", no sentido positivista do
termo. Acredito que as partes mais construídas dizem respeito àquilo que é mais
verdadeiro para uma pessoa, mas ao mesmo tempo apontam para aquilo que é mais
falso, sobretudo quando a construção de determinada imagem não tem ligação, ou
está em franca ruptura com o passado real. O que mais nos deve interessar, numa
entrevista, são as partes mais sólidas e as menos sólidas. Eu diria que no mais
sólido e no menos sólido se encontra o que é mais fácil de identificar como
sendo verdadeiro, bem como aquilo que levanta problemas de interpretação.
Vou dar um exemplo. Entre os fatos mais traumatizantes dos
campos de extermínio, havia alguns que apareceram nos primeiros relatos publicados
imediatamente depois da guerra. Ora, tais fatos desapareceram dos relatos
publicados entre 1949 e 1980, para só reaparecer agora, em dois relatos
publicados recentemente. Esses fatos dizem respeito ao nascimento de filhos de
mulheres deportadas. Nos campos de extermínio, quando uma deportada estava
grávida, a comunidade das mulheres a escondia para que não fosse morta.
Como não poderia ter no trabalho o mesmo rendimento das
demais, a grávida seria morta logo que fosse descoberta. Então havia esse
problema agudo, da realidade biológica da mulher, da alegria do nascimento,
coincidindo totalmente, naquele universo, com a inevitabilidade da morte, tanto
do recém-nascido como da mãe.
Esse tema apareceu nas histórias de vida que recolhemos, mas
sempre ligado a outra mulher que não a entrevistada. Só quando uma entrevistada
nos contou o fato em relação a outra mulher que já tínhamos entrevistado foi
que pudemos tratar do assunto. Essa outra mulher tinha tido realmente uma
criança no campo de extermínio, e pudemos retomar então a sua própria
experiência. O que ficou claro foi que esse fato tinha sido solidamente
registrado como acontecimento coletivo, mas não individual. Não podia aparecer
como acontecimento individual por ser trágico demais, traumatizante demais. Mas
aparecia em todas as entrevistas com muita força. Nas histórias de vida
publicadas logo depois da guerra, aparecia talvez por ser mais imediatamente
dizível do que depois de 1949. No caso de nossas entrevistas, pudemos mostrar
que o ato de relatar o evento pessoal, atribuindo-o a outra pessoa, não atendia
a uma eventual vontade de falsear a informação, mas era simplesmente uma transposição
necessária, que permitia transmitir uma experiência extremamente dolorosa.
Por conseguinte, acredito que entre o "falso" e o
"verdadeiro", entre aquilo que o relato tem de mais solidificado e de
mais variável, podemos encontrar aquilo que é mais importante para a pessoa.
Voltando ao primeiro assunto, acredito que a história tal
como a pesquisamos pode ser extremamente rica como produtora de novos temas, de
novos objetos e de novas interpretações. A história está se transformando em histórias,
histórias parciais e plurais, até mesmo sob o aspecto da cronologia. A esse
respeito, gostaria de contar um caso. Numa palestra sobre história oral no
IHTP, ministrada por um pesquisador alemão, este relatou uma pesquisa realizada
na Alemanha, na qual tinha verificado que as datas importantes da história alemã,
da história oral do Zé Povinho, não eram 1933, nem 1938-39, início da guerra,
nem 1945. Eram 1935 e 1948.
A interpretação era que, nas histórias individuais do povo
alemão, cortes políticos tais como a tomada do poder pelo 3º Reich haviam sido
recalcados, ou então não tinham sido vividos como tão marcantes. Mas as duas
datas lembradas eram datas marcantes porque correspondiam a uma clara melhoria
econômica. Para muitas famílias alemãs, 1935 era a primeira vez que se assistia
à estabilização do emprego e da renda familiar, assim como 1948 era o ano da
reforma monetária. Portanto, o acontecimento marcante não era a criação da República
Federal Alemã em 1949, não era o fim da guerra em 1945, mas era 1948, data da reforma
monetária. De repente, de um dia para outro, o mercado negro foi substituído
por um mercado mais acessível, houve um começo de estabilização econômica, e
isto se fixou na cronologia vivenciada. Agora, como podemos distinguir uma
cronologia "verdadeira" de uma cronologia "falsa"? Acredito
que a única coisa que se pode dizer é que existem cronologias plurais, em
função do seu modo de construção, no sentido do enquadramento da memória, e também
em função de uma vivência diferenciada das realidades.
O mais engraçado dessa história foi que na discussão que se
seguiu um historiador francês disse: "É um absurdo, é inadmissível, não se
pode ignorar as realidades, não se pode dizer que 1948 é mais importante que
1945!" Só que o historiador alemão não tinha dito nada disso, disse apenas
que as cronologias fixadas são plurais e diferenciadas. Para o historiador francês
isso era inadmissível. Mas quando se passou a falar da França, e do 8 de maio
de 1945, e de 1944, cuja importância relativa dependia da vivência, nesse caso
ele não se colocou problema algum! Ele aí admitia muito bem essa polifonia das
datas fixadas. Esta é apenas uma historinha, mas que mostra bem, a meu ver, que
a única saída é admitir a pluralidade da história, das realidades, e, logo, das
cronologias historicamente admissíveis.
- Sobre a tendência da história oral a valorizar o subjetivo
por oposição ao objetivo:
Posso dizer que, de fato, há esse movimento, bastante
primário. Vi isso nas conferências internacionais sobre história oral. O
historiador estava se restringindo aos arquivos, e, de repente, está se
confrontando com a realidade concreta. Numa atitude quase militante, quer dar a
palavra àqueles que jamais a tiveram, daí essa vontade de reabilitar o subjetivo
frente ao objetivo Cria-se assim uma oposição entre história oral e história
social quantificada, enquanto eu, por mim, não vejo oposição, e sim
continuidade potencial.
Acho que hoje a questão objetivo versus subjetivo
está um pouco ultrapassada. Em certos artigos de Bertaux, e sobretudo de Régine
Robin, a questão foi transportada para outro nível. O debate entre
subjetividade e objetividade transformou-se num debate opondo a escrita literária
à escrita cientificista. Haveria de um lado o vazio, o seco, o enfadonho, que
seria o discurso científico, ainda por cima reducionista e, diz Régine Robin,
fechado à pluralidade do real, enquanto a história oral seria uma das
possibilidades de reintroduzir nas ciências humanas, depois do período
estruturalista, uma escrita não apenas subjetiva, mas sobretudo literária.
Régine Robin toma como paradigma daquilo que deveríamos fazer o romance clássico
do século XIX e do início do século XX, portanto, o próprio romance polifônico,
do tipo Proust, Musil, James Joyce. Diz ela que a pluralidade do romance é em
realidade o critério do verdadeiro no discurso sobre o social. Ou seja: o
discurso científico, com o seu fechamento e sua tendência reducionista, é um
discurso que restringe a realidade, e por conseguinte não é verdadeiro, já que
não leva em conta o plural - aqui se trata mais do plural do que do subjetivo,
o subjetivo não é mais o problema para Régine Robin. A história devida individual
diretamente relatada, que a primeira geração de historiadores coloca em termos
de oposição, é recusada por ela, porque ela acha que a história individual
expressa, de fato, o pré-construído social, em vez da verdade, enquanto a
construção romanesca seria o modo privilegiado da escrita, capaz de restituir a
verdade social em todas as suas alternativas e toda a sua pluralidade.
É claro que quando confrontamos a produção atual sobre
história de vida com Musil, Proust e James Joyce, o argumento é extremamente
válido. Mas quando pegamos tudo aquilo que foi escrito no campo romanesco, como
por exemplo os livrinhos que se compram nas estações de trem ou de ônibus,
compostos com a técnica romanesca de condensação de várias possibilidades em
uma ou duas personagens que têm um caso de amor que geralmente chega às raias
do inverossímil, verificamos que a falta de domínio da técnica romanesca produz
tanto de não-verdadeiro, de não-plural, quanto o faria a falta de domínio
técnico no campo das ciências sociais. Digo portanto que se nos proporcionamos
os meios e as condições para construir cientificamente, com todas as técnicas
das quais dispomos hoje em dia, temos condições de produzir um discurso
realmente sensível à pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade, não
de objetividade, mas de objetivação, que leva em conta a pluralidade das
realidades e dos atos. Acredito que um discurso científico desse tipo é
perfeitamente possível, nem que seja como projeto.
Não aceito portanto essa oposição, que não é mais entre
subjetivo e objetivo, mas entre técnica romanesca - vista como restituição
verdadeira do social - e escrita científica –vista como reducionista. Aliás,
acredito que as oposições binárias, das quais as discussões intelectuais fazem
grande uso - subjetivo/objetivo, racional/irracional, científico/religioso – só
servem para fins de acusação ou de autolegitimação. Acho que é muito mais
interessante estudar as condições de possibilidade dessas oposições do que
levá-las a sério em si mesmas.
A rigor, quando aparece esse tipo de discussão, não se deve
dar importância, a não ser, é claro, que se queira utilizar um desses pólos
numa tática destinada a marcar fortemente uma posição.
- Sobre o início da utilização da história oral na pesquisa
histórica:
Um fato que acho importante é que, na Europa, a primeira
geração dos pesquisadores que trabalharam com história oral, como Bertaux na
França e Rieder na Alemanha, entre outros, veio da sociologia demográfica e da
análise quantitativa da mudança social. Foi portanto a impossibilidade da
explicação por meio da observação de longas séries que levou a isso. Os pontos
de ruptura nas tendências de séries relativamente homogêneas permaneciam inexplicáveis,
e foi esse o ponto de partida do interesse daquele pessoal em relação às histórias
de vida. Penso que a história de vida apareceu como um instrumento privilegiado
para avaliar os momentos de mudança, os momentos de transformação.
- Sobre a sensibilidade no trabalho de história oral:
Acho que este é um aspecto extremamente interessante, mas
que não poderemos resolver aqui. Seria importante observar a maneira de
trabalhar dos historiadores, quer eles trabalhem com escritos biográficos ou
com relatos, ou seja, seria importante estudar não com o que eles
trabalham, mas como eles trabalham. Quando a gente conversa sobre a
"cozinha" do trabalho com os colegas, é possível observar coisas
muito interessantes. Um exemplo é a passagem do documento, que a gente pode
pegar, pode sentir na mão a qualidade do papel, para a ficha microfilmada, que
dói na vista e que só nos permite apertar um botão. Há historiadores que são
fás dos arquivos, que sentem a necessidade de segurar o papel velho, e que
falam disso, do mesmo modo que eu posso falar, depois da entrevista, do
cafezinho servido por aquela velha senhora que quase me chamou de filho... Acho
que há uma sensibilidade no trabalho científico, e cada vez que ocorre unia
mudança no trabalho, ela se traduz quase que fisicamente na sensibilidade das
manipulações. Seria muito interessante refazer uma história das ciências
questionando a importância dessa sensibilidade no contato com os materiais
sobre os quais a gente trabalha, em relação àquilo que a gente pesquisa e sobre
o que a gente escreve.
- Sobre a limitação da história oral ao tempo presente:
A história oral permite fazer uma história do tempo
presente, e essa história é muito contestada. Há vários tipos de hostilidades.
Por exemplo, há uma oposição entre fontes clássicas, legítimas, e fontes que
estão adquirindo nova legitimidade. Na França há também a
"dignidade" do período. A história medieval, por
exemplo, é o máximo, é o que existe de mais fino. É claro que quando você está
acostumado a trabalhar com a Idade Média, vai ser difícil se reciclar em
entrevistas! Mas há também um problema de legitimidade, até mesmo em relação à
história contemporânea. A história do período seguinte à Primeira Guerra
Mundial é vista como bem menos "digna" do que a história de períodos
mais antigos. Por tradição, a corporação dos historiadores já não vê com muito
bons olhos o campo da história do tempo presente, e a história oral, então, é o
nec plus ultra da novidade.
O problema da história contemporânea é que geralmente os
arquivos ainda não foram abertos, não há possibilidade de cruzar os dados com
outras fontes, as próprias fontes são bastante duvidosas, só se dispõe de
jornais, que são considerados fontes de terceira ou quarta categoria. Aí
junta-se um monte de obstáculos, de inconvenientes.
- Sobre a suposta superioridade da fonte escrita:
Na França tivemos exemplos disso, em relação a assinaturas
de manifestos. Quando o historiador positivista, que acredita naquilo que está
escrito, nas assinaturas que constam no manifesto, ouvir as pessoas que
supostamente assinaram, ele vai levar um susto com o susto dessas pessoas. Isto
porque, freqüentemente, as pessoas que organizam os abaixo-assinados não têm
tempo de telefonar para todo mundo, contam com a concordância de um cidadão, colocam
seu nome e depois esquecem de avisá-lo. Este é um caso em que a fonte escrita
não possui validade superior à da fonte oral.
- Sobre o depoimento pré-construído, comum entre os
políticos:
A esse respeito, posso falar a partir das entrevistas que
fiz com as deportadas. Entre elas, havia militantes deportadas por razões
políticas, por ações na Resistência, mas havia também algumas que tinham sido
deportadas quase que por acaso, porque tinham escondido uma mala, algo assim,
ou seja, por um ato não-político. Logo, haveria uma oposição entre o discurso
destas últimas e o das outras, um discurso relativamente construído, de
mulheres que depois da Libertação tiveram funções políticas, foram deputadas à
Assembléia Nacional na França. Se quisermos fazer a análise desses relatos,
será necessário introduzirmos outros elementos que não o conteúdo, elementos
que dizem respeito ao estilo.
O primeiro critério, ao meu ver, é reconhecer que contar a
própria vida nada tem de natural. Se você não estiver numa situação social de
justificação ou de construção de você próprio, como é o caso de um artista ou
de um político, é estranho. Uma pessoa a quem nunca ninguém perguntou quem ela
é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem muita
dificuldade para entender esse súbito interesse. Já é difícil fazê-la falar,
quanto mais falar de si. Em nossa pesquisa, tivemos assim interesse em analisar
o estilo e o emprego dos pronomes pessoais utilizados para falar de si própria.
Talvez seja interessante eu contar isso em detalhes.
Entre as falas de deportadas, encontramos três tipos de
estilo: estilo cronológico, estilo temático, e o que chamamos de estilo
factual. Todo relato mistura esses três estilos, vejam bem. Mas descobrimos que
o predomínio do estilo cronológico estava correlacionado com a característica
de um grau mínimo de escolarização. Isto é, pensar em si próprio em termos de duração,
de continuidade, e situar-se em termos de início e fim, não era simplesmente
natural.
Percebemos também que o relato que seguia uma cronologia era
fortemente correlacionado com a presença de uma socialização política. O
segundo estilo, o temático - mas seria necessário verificar isso em outras
pesquisas - é quando alguém se liga pouco na cronologia, diz, por exemplo, que
a infância não teve importância, mas depois fala no tempo de escola, não em
termos de uma seqüência escolar, mas para lembrar que o importante era a
matemática. E depois essa pessoa vai falar sobre sua profissão, não em termos
de "fiz o meu doutoramento em tal época, tornei-me chefe de serviço em tal
época", mas sobre a medicina em geral, ou sobre o funcionamento do
hospital etc. Esse caso correspondia a um grau elevadíssimo de escolarização, a
uma experiência profissional de médica, de jurista, enfim, tratava-se de profissionais
liberais, e não de mulheres ligadas à vida política, à vida pública.
O estilo factual, por fim, correspondia a um grau
educacional baixíssimo, a pouca experiência, tanto profissional como política,
e era portanto, podemos dizer, o estilo das mulheres menos enquadradas, menos
estruturadas, situadas do lado inferior da escala social. Para nós, o factual
correspondia a um relato completamente desordenado. Ou seja: pulava do filho
caçula para a deportação, pulava do deputado comunista que ontem disse uma
besteira para a notícia lida no jornal em 1930, e a gente não sabia mais onde
estava, era uma mistura de temas, não havia ordem aparente. Insisto que estou
dando aqui uma caracterização extrema, pois todos os relatos longos são
constituídos por uma mistura de estilos, embora haja um predomínio em cada
caso.
A segunda coisa que observamos foi a importância do pronome
pessoal que as pessoas usam para falar de si. Em francês, e em alemão, é
possível falar de si em termos de "eu", em termos de "tu"
ou "você", em termos de "ele" ou "ela". Pode-se
falar também de si usando termos coletivos, tais como "nós,
"vocês", "eles", mas o mais importante nesse caso é o on,
o "se" impessoal ou "a gente". Para entender bem essa
questão, tivemos o cuidado de voltar a Benveniste e sua análise dos pronomes
pessoais. Em nossos relatos, verificamos que o "eu" era preponderante
para falar de si. O "nós", por sua vez, não era assim tão usado para
falar dos grupos aos quais as mulheres pertenciam. Para o "nós",
encontramos duas significações opostas. Tratava-se ou do predomínio, no relato
da vida, do "nós" familiar e doméstico - é o caso das pessoas sem
experiência profissional -, ou então do que eu chamaria de "nós" familiar-político.
Pois o discurso político, incluindo a sua dimensão cívica, está fortemente ligado
à retórica doméstica e familiar. Pelo menos, foi o que achamos.
Em compensação, encontramos também duas significações para o
uso de ora, a impotência e o distanciamento. No primeiro caso, trata-se de um
coletivo ao qual se pertence, mas que não tem, ou perdeu, o domínio da
situação. A significação do distanciamento só pode ser identificada em função
do contexto, e foi muito observada entre profissionais liberais. Por exemplo,
as médicas e as advogadas tendiam fortemente, quando falavam do grupo de médicas
do campo de concentração, a usar ora, e não "nós" - os políticos,
quando se referem ao seu grupo de Resistência, sempre dizem "nós".
No caso de "você", observamos também esse sentido
de distanciamento. Havia o caso de uma deportada que dizia "Mas o que é
que você está fazendo aqui ao meu lado?", e em realidade era dela mesma
que estava falando. Claro que era uma coisa patológica, e quando a despersonalização
vai longe demais, esse "você" patológico pode degringolar rio uso de
"ela" em lugar de "eu". A perda excessiva do controle de si
pode mesmo desembocar na patologia.
Acontece a mesma coisa para o plural, numa função de
distanciamento e de impotência. Por exemplo: "Nós estávamos todos
amontoados no vagão, feito animais, nós estávamos todos na mesma situação, e de
repente tem uns que enlouquecem, que não agüentam mais, não podem deixar de
gritar e chorar porque estão com fome", e então, de repente, o relato se
refere a essas pessoas como sendo "eles". Quando as pessoas perdem o controle
da situação e se tomam seres inumanos, entra a terceira pessoa, marcando um
maior distanciamento e dessolidarização em relação a uma sub-unidade do mesmo
grupo.
Quando encontramos essas significações, que são aliás bem
mais numerosas do que as de Benveniste, as aplicamos ao nosso texto e, de fato,
observamos que os relatos cronológicos, principalmente políticos, usavam
obviamente "eu" e "nós", logo, expressavam a segurança do
eu e da identidade, com a experiência do domínio da realidade. Em compensação,
as pessoas que estavam situadas embaixo na escala social usavam muito
"eu", mas também "a gente", o que assinala a presença do
destino incontrolável. O plural era quase sempre "a gente". O
"nós" designava exclusivamente a família doméstica no sentido
estrito, isto é, as crianças etc.
Com essa análise do estilo e dos pronomes pessoais colocados
em relação com situações e acontecimentos, a história de vida - esta é a minha
hipótese - ganha um indicador muito fidedigno do grau de domínio da realidade.
O predomínio de determinados pronomes pessoais no conjunto de um relato de vida
seria uma medida, ou um indicador, do grau de segurança interna da pessoa.
Observamos, e isso é muito interessante, que no momento da
chegada a um universo totalitário, ao campo de concentração, havia pessoas que
saíam do comboio perdiam a sua família durante a seleção,* não tinham mais
ninguém, e caíam imediatamente do "eu" para "a gente". Só
falavam "a gente". Enquanto isso, as militantes políticas, mesmo quando
não tinham ninguém no trem, conservavam uma ligação imaginária com outras
pessoas, ou com um ideal que as podia manter afastadas daquela realidade, e
logo usavam o "nós" das deportadas. Era, portanto algo extremamente
forte.
Ainda não publicamos isso, mas acho que, se trabalhamos com
esses textos, é preciso integrar a análise do estilo e a análise de certos
indicadores como o uso dos pronomes pessoais. Há um monte de coisas que se pode
extrair daí.
- Sobre a iconografia conservada por determinados grupos e
sua interpretação das imagens:
Tenho a impressão de que há como que uma memória visual que
é reconstruída. Mas em termos de pesquisa, não temos nada a esse respeito. Só
posso me referir aos trabalhos de Nora sobre a integração dos lugares da
memória e sobre os símbolos e as imagens que se formam a partir dos monumentos.
Temos também trabalhos sobre comemorações, sobre a montagem das comemorações e
as mudanças que vão ocorrendo nelas. Estudamos, por exemplo, qual seria a razão
pela qual, na França, em determinadas épocas, os ex-combatentes usam pouco
uniforme ao desfilar. Isto é, pesquisamos o valor relativo da farda em
determinadas épocas. Será algo espontâneo? Integramos esses aspectos aos
trabalhos sobre comemoração e sobre os lugares da memória. Mas no sentido da
questão que me foi colocada, talvez encontremos algumas pistas na direção da
história social da arte. O que seria interessante, seria o estudo das mudanças
e da significação dessas imagens. É um assunto muito importante. A única coisa
nessa direção talvez sejam os trabalhos de Choutard, que encontrou, em
cerimônias que se referem a fatos históricos do século XX, no sul da França, a
presença de elementos ligados às guerras de religião do século XVI, que parecem ter sido
projetados no imaginário dessa montagem.
NOTAS:
* Esta conferência foi transcrita e
traduzida por Monique Augras. A edição é de Dora Rocha.
* Em co-autoria com Nathalie Heinich, publicado em Actes
de la Recherche en Sciences Sociales, 62/63:3-29, juin 1986. Ver ainda, de
M. Pollak, na mesma revista, p.30-53, "La gestion de 1'indicible'.
* Na chegada do comboio, havia uma imediata seleção que
separava os grupos e dirigia parle dosrecém-chegados para a câmara de gás,
outra para os barracões etc., a partir de critérios jamais esclarecidos (N. d. T.).
Fonte: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,
1992, p. 200-212.
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