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Leandro Vilar

sábado, 30 de junho de 2012

Temp(l)os de consumo: memórias, Territorialidades e cultura histórica nas Ruas recifenses dos anos 20 (século XX)


Temp(l)os de consumo: memórias,
Territorialidades e cultura histórica nas
Ruas recifenses dos anos 20 (século XX)

Iranilson Buriti de Oliveira1

O espaço comunica; mostra, a quem sabe
ler, o emprego que o ser humano faz dele
mesmo.
Antonio Viñao Frago


As fotos aqui utilizadas foram escolhidas por mim.

Ruas. Territórios desejados por homens, mulheres, ricos e pobres, trabalhadores e vagabundos, senhoras moralistas e meliantes, homens de negócios e pedintes, as ruas se constituem no aparelho circulatório de andantes, de negociantes, em territórios nos quais circulam memórias e economias simbólicas. As ruas são a geografia de desejos e de perversões, de manifestos e procissões, de passeatas, de protestos e aclames religiosos. As ruas são territórios de consumo e de formação de identidades e cultura histórica.

As ruas encantam com seus códigos, com suas histórias. As ruas têm fôlego, memórias para serem revisitadas através de profissionais interessados em compreender, no patrimônio histórico-cultural urbano, os signos que educam os sentidos de moradores e transeuntes. Mas as ruas foram abandonadas, por décadas, como objetos de investigação do historiador, preso a conceitos que excluíam as placas como possuidoras de historicidade.

Este texto, portanto, ancorado em pressuposto teórico-metodológico da Nova História Cultural, busca analisar a relação entre economia e territorialidades a partir da cultura histórica, dita consumista, presente nas ruas do Recife no início do século XX, vistas e ditas como espaços de consumo. Entenda-se que o conceito de consumo não é territorializado apenas pela sua estrita definição econômica, mas como consumo de imagens, de sons, de ritmos e de valores que emergiam nesse contexto histórico.

Ruas. Territórios sócio-espaciais dos prazeres proibidos e dos lazeres permitidos, das dores, dos gritos e do silêncio das madrugadas mortas, gélidas, monótonas ou, talvez, calientes. Geografia desejante para os sujeitos afeitos aos novos códigos de sensibilidade e de consumo, à proporção que emergem como o lugar do desenraizamento, a partir do qual se projeta a decadência das sociabilidades tradicionais e de seus códigos culturais. Ruas. Espaços que comunicam, que educam (e deseducam!), que ensinam posturas, que possuem historicidades.

As ruas possuem almas, como escreveu o cronista carioca João do Rio, nos idos da primeira década do século passado, referindo-se aos espaços urbanos do Rio de Janeiro. Mas as ruas foram abandonadas, por décadas, como objetos de investigação do historiador, preso a conceitos que as excluíam como possuidoras de historicidade.

Estudar as ruas é um convite à história urbana, perscrutando a memória da cidade e a cidade na memória. Estudar as ruas é compreender a educação num sentido amplo, procurando entender a documentalidade e a pedagogia da memória através de suas placas, de suas praças, de seus habitantes, das lojas situadas em cada esquina, em cada micro-espaço, disputando clientes com as outras de ramo comercial semelhante. Estudar as ruas é verificar de que maneiras a cultura histórica pode ser trabalhada mediante práticas pedagógicas que entendam o patrimônio histórico-cultural enquanto espaço de memória, de transmissão de saberes e de constituição de identidades, pois as ruas fazem parte de uma pedagogia da memória que envolve história local, acontecimentos históricos de cunho nacional e regional, emancipação política, além de construir uma paisagem de nomes de personalidades diversas, tais como mestre-escola, professoras, parteiras, agricultores, comerciantes, religiosos, políticos, dentre outros que desfilam no panorama sócio-cultural da urbe enquanto construtores de tempos e de templos, de cartografias, de práticas locais de consumo e lazer.

Nos diversos nomes de ruas, não temos apenas um patrimônio histórico-cultural a ser preservado, mas um acervo que auxilia na produtividade de memórias várias que fazem parte de um diálogo entre o presente e o passado, entre a história e a educação patrimonial, entrelaçando vozes, vivências, gestos, subjetividades, falas, posturas, escolhas, educação do olhar e do consumir, do sentir, do fazer e do ensinar histórias, do construir uma memória plural.

Essa postura amplia o conceito de patrimônio cultural expresso na Constituição de 1988, e rompe, mais uma vez, com a historiografia positivista pautada na concepção tradicional de preservação da ação dos “heróis nacionais”, na perpetuação da história oficial baseada no culto à genealogia da nação em detrimento de outros sujeitos históricos.

Há histórias de vida registradas nas tabuletas que, muitas vezes, passam despercebidas pelo olhar do andante nada curioso. A rua é uma produção territorial que quase nada seria, se não fosse batizada. Anônima, não teria vida, não teria glória nem tragédias, não seria lembrada. Mas as ruas não são unívocas.

Em cada cidade foram definidas e redefinidas ao longo dos anos, mas foi no início do século XX que sua fisionomia ganhou nova expressividade, com a emergência de novas práticas de consumo, de consultórios médicos e de cartazes propagandísticos.

O que dizer das ruas do Recife dos anos 20, que educavam os sentidos da população com a divulgação dos novos códigos de consumo, a exemplo da Rua Nova, Rua da Imperatriz, Rua de Cabugá, Rua Marquês de Olinda, territórios de encontros das novas gerações que não sabiam mais comandar engenhos, exortar e castigar negros, mas falar em política, discutir literatura, códigos jurídicos, ginástica sueca, métodos de aprendizagem escolar, enredos de filmes e peças de teatro? Os assuntos ligados ao engenho, à caldeira, ao açúcar, às pragas que atacavam a cana-de-açúcar pareciam cada vez mais distantes. Próxima mesmo era a Confeitaria Bijou, localizada na Rua Nova, e batizada como o ponto de convergência dos elegantes do Recife, com orquestras de foxtrotes, com chás e sorvetes também saboreados pelas sinuosas melindrosas com os seus cabelos “a la garçonne” e pelos vaidosos e provocantes almofadinhas2.

Rua Marquês de Olinda, no começo do século XX, Recife.
A Rua Nova disputava o título de mais elegante e mais frívola do Recife. As vozes adjetivavam-lhe diferentemente: “despudorada”, “fútil”, “boêmia”, “prostituída”, “mal-educada”. De ponta a ponta estava estruturada pelos territórios desejados, estonteando as famílias a Casa Costa Campos, a Casa Sloper, a Casa Francesa, a perfumaria Rosa dos Alpes, as marcas chiques da Chanel e da Patoualimentando as inquietações das melindrosas e almofadinhas aturdidos pelo gozo de consumir o instantâneo, o publicitário, a marca-espetáculo, o divertimento industrializado3.

É possível fazer uma leitura das ruas com as suas casas de moda, a partir do início do século XX, como um espaço de consumo negador das formas de consumir os signos da casa-grande do engenho, negador do perfil familiar que se apega às práticas e discursos do campo, da sociedade escravista, do Império brasileiro, ao mesmo tempo que participam da produção de subjetividades como mediadoras da reprodução do capital. Muitas ruas no cenário republicano em processo de modernização são palcos que dão evasão aos desejos, que provocam inquietações em homens e mulheres na busca de uma postura social mais livre para amar, namorar, casar, passear, viver, comprar.

Negando o passado, as ruas da cidade moderna impactam os tradicionalistas, que se armam com discursos e práticas que renegam o presente como benéfico para as famílias, como é o caso de Gilberto Freyre e de todos os simpatizantes do seu discurso.

Nesse território impactante, o carnaval substitui o entrudo e ao invés do melamela surgem novos produtos, a exemplo dos confetes, serpentinas e bailes de máscaras. Em 1920, a firma Pereira, Leça & Cia., Rua Nova, 214, anunciava “aos seus amigos e amáveis fregueses” o estoque que acabara de chegar de lança-perfume “Paris”, confetes e serpentinas. Tudo para tornar o carnaval do Recife e dos seus arrabaldes um verdadeiro misto de alegria e liberdade, mergulhando os participantes num ambiente de gritarias, de uivos metálicos produzidos pelos zabumbas, charangas, instrumentos diversos que retiniam nos ouvidos e emudeciam as vozes.

A ordem de Momo era dançar, travestir-se, pular no império das máscaras, facécias e balangandãs, movido por forças estranhas provocadas pelas alucinações do lança-perfume e pela marcha executada pela orquestra do Clube Carnavalesco Lenhadores4. Em meio a explosões de alegria e de exaltação, o carnaval moderno ainda trazia consigo um limite de forma, ainda havia temor nos excessos que pudessem comprometer o caráter e a moral familiares.

Bandeira comemorativa do centenário do Clube Carnavalesco Lenhadores
No Brasil como um todo, o carnaval moderno ainda era celebrado com receituários prescritos, com posições demarcadas, com coreografia de gestos e movimentos prefigurados: “Era uma herança de convenções à espera de serem revividas com maior ou menor intensidade, mas não um desafio para ultrapassar todas as convenções e se precipitar na vertigem da extravagância”5.

A rua era o palco de muitas visitações no período carnavalesco. Mas, depois do carnaval, a rua continuava como um espaço desejante, territórios para outros consumos. Na Rua de Cabugá, nº 9, encontravam-se os mais requintados produtos no empório A Ville de Pariz6 que atraíam os olhos educados pela modernidade e que sentiam paixão pelos ornamentos, pelos objetos decorativos, pelas obras de arte do novo século XX.

A moda apresentava um gosto pelo espetáculo teatral, pelo produto importado, exigindo uma educação dos sentidos para conviver com a multiplicidade nesses espaços. Lojas como A Ville de Pariz difundiam esse prisma de teatralidade e de gozo estético com a exposição de suas joias e bijuterias multicoloridas, mostravam o fascínio do efeito e do artifício, do refinamento dos prazeres do olho, ao venderem lunetas e pince-nez; exibiam a delicadeza dos detalhes ornamentais com os relógios de várias marcas.

Tais produtos contrastavam, de certo modo, com as mercadorias vendidas na Casa Maravilha, que oferecia produtos mais “nacionais” ao público, destacando-se pela venda de xarope de alho do mato e urucu, xarope de mulungu, tônico de juá e mutamba para queda de cabelos7, signos de um Brasil agrário e não-industrializado.

A Ville de Pariz, assim como outras lojas do Recife, seduzia os compradores e controlava-os mediante o consumo. À liberdade de comprar dada pela sociedade capitalista, soma-se outro dispositivo disciplinar. Mudou apenas a lógica do exercício de poder, pois os saberes da moda continuam disciplinando os corpos, legitimando este ou aquele produto, marca, casa comercial. O controle se instrumentalizará através de outros mecanismos tecnológicos como o aprender, o conhecer, o selecionar a etiqueta. Esse tipo de disciplinamento é, conforme Rocha, um ato de reciprocidade, “continuamente referido e desejado, porque ele liberta, responsabiliza, torna os indivíduos autônomos, conscientes, justos, democráticos”.

Mulheres vestidas como "melindrosas", como passou a se chamar esse tipo de moda feminina nos anos 20. 
Ao ser internalizada, a vigilância reforça cotidianamente as classificações entre bons ou maus costumes, desejáveis ou indesejáveis, passados ou atuais. Amparada na dialética da superação constante, não serão mais necessários diversos “gestores”da família tradicional - padres, mucamas, irmãos, pais - inspecionando o comportamento de cada um, pois o vigilante torna-se qualquer um: aquele que dá o exemplo, que ensina a melhor postura, que adota a norma, que prescreve que atitudes tomar, que roupas são elegantes, que espaços são permitidos. “Pelo caminho da argumentação, do convencimento, das justificadas razões, sujeita-se o outro”8.

O jornal, com os seus anúncios comerciais, torna-se aos poucos um “grande bazar”, implantando cada vez mais imagens em suas propagandas objetivando despertar os olhares dos leitores, engendrando novas coordenadas de produção da subjetividade ao afirmar padrões estéticos, éticos e políticos.

Os publicitários desejam que o produto anunciado cause no leitor uma necessidade de consumi-lo, o que leva Guattari a denominá-la de sujeição subjetiva, pois que, ao agenciar certos comportamentos, a publicidade promove o consumo de determinados produtos, interferindo, com seu discurso pedagógico, nos níveis mais íntimos da subjetividade9. Torna-se, portanto, um elo entre o sistema de produção e o universo de consumo, estreitando a confiança entre o produtor e o consumidor.

Conforme Ortiz, a publicidade moderna “já não mais se fundamenta na ‘utilidade’ dos bens apresentados e dirige-se diretamente à imaginação, aos desejos. Ela é sugestão, deve ‘prender a atenção’, ‘despertar’ as necessidades virtuais do consumidor.

Os produtos são ‘lançados’ antes mesmo que a vontade em adquiri-los se manifeste; o que requer a sistematização deste mundo material e imaginário”10. Quando a noite cai, algumas ruas centrais do Recife se vestem com trajes de sedução. Os tempos dividem as famílias. As crianças vão dormir.

Os adultos, embebidos pelos sabores da Confeitaria Bijou, visitam também o Cinema Moderno, o Pathé, o Vitória, o Royal, o Polytheama, deslumbrados pelos artistas do porte de Clark Gable, Carlitos, Louis Wilson, Helena Ferguson, Harold Lloyds, Helene Chadwich, Theodore Roberts, Errol Flynn, Olivia de Havilland e Dorothy Dalton, que contracenavam em filmes como Orgulho de Campeiro, Piratas do Ouro, A Herdeira do Aristocrata, O Maricas, O Homem que não gostava de mulheres, Idílio da Selva, Quo Vadis?, Meia-Hora, Capitão Blood, A Jóia Fatal, inaugurando novas formas de sociabilidade e fissurando o jeito de viver da família educada aos moldes tradicionais.

Antigo prédio do Cinema Moderno, Recife.
Seduzidos pelos estilos de vida mostrados na cenografia, esses novos sujeitos enfeitam-se da cabeça aos pés, sob conselhos da Mme. Garcia, subjetivando as tendências da moda e da Alta Costura11 como um “estilo de vida”, respondendo aos seus movimentos metamórficos, suas extravagâncias e renovações dos valores mundanos, exibindo seus artifícios e ornamentações em territórios distintos. 

Escutam os programas da pioneira Rádio Clube de Pernambuco12. Usam jóias compradas na Casa Gerard, chapéus capelline ou conotier na Chapelaria Adolfo e vestem-se comandados pelas modistas da Rua da Imperatriz, distribuídas em casas comerciais como Atelier Viegas, A Maison Chic, A Deusa da Moda, Ave do Paraíso13, nomes que reluzem o afrancesamento da moda, bem como as metáforas a ela ligadas: a moda é deusa, é paraíso para almofadinhas e melindrosas, para todas as “aves” que levantam voos no território da modernidade. A sociedade produzia suas normas e estas precisavam de sujeitos para poder se concretizar, se atualizar, se materializar, se fazer e se refazer por intermédio de “um sistema complexo de relações sociais, elos que se impõem aos seus membros, indicando (...) tudo aquilo que é estritamente necessário e tudo o que é dispensável ou superficial para que se possa criar e sustentar o evento que se deseja construir”14.

Rua da Imperatriz no começo do século XX, Recife. 
Esses novos costumes ganham visibilidade após os anos 20, encarregando-se da formação de uma sensibilidade social, passando a ser vistos como integrantes das instituições sociais como escolas e clínicas, que veem em muitos filmes “verdadeiras aulas” de higiene e de bom comportamento. A moda, como uma arte moderna, ganhava uma linguagem própria e dava visibilidade a determinados modelos de organização familiar e de métodos pedagógicos, embriagados pela mística do progresso.

O médico, assim como o estilista, renovava as formas e os conteúdos sociais, ditava os preceitos higienistas, levando homens e mulheres a se identificar com o corpo sadio e a absorver os conteúdos higiênicos de caráter social, tais como eugenia, mortalidade, saneamento, organização fisiológica, moléstias da coletividade e epidemias15. Ser saudável entrou na moda. Não se identificam mais com os chás de erva cidreira, de capim santo, com os lambedores caseiros bastante comuns no espaço do engenho. 

Agora o discurso médico receita os remédios de boticas. É lá que se deve comprar a saúde, nas fórmulas químicas, nas bulas de remédio e não mais no mato, na natureza. O espaço natural vai sendo cada vez mais desterritorializado em nome de um espaço moderno, produzido pelo homem, para comportar as novas gerações que subjetivavam essa educação sanitária, esses “costumes sadios”. 

Homens vestidos de terno, assim como era comum nos anos 20.
No entanto, os ensinos sobre a higienização do corpo permitem perceber uma pedagogização segundo o gênero: às mulheres, lições de sexualidade feminina, puericultura, função educativa e profissional da mulher. Nesses programas, a economia moral está claramente explicitada no tocante à sexualidade e à função materna. O mesmo não se constata quanto aos planos de educação masculina, que restringem o acento moral à abordagem da educação sexual ou o combate aos vícios16.

Nomes franceses e ingleses (Clark, Maison Chic, Sloper) invadiam as placas das lojas comerciais da Rua Nova, da Rua da Imperatriz e do centro comercial do Recife, desbancando os nomes regionais batizados em épocas passadas. Essas ruas tornavam-se os “laboratórios” das novidades, com suas casas “ilustres”, suas renovações de roupas e acessórios a cada estação do ano, seus desfiles de elegâncias diárias, as audácias de determinados trajes expostos nas vitrines.

Não apenas se vestia à França e à Londres. Falava-se por elas, consumia-se o estrangeirismo também verbalmente. Era chique usar vocábulos estrangeiros: maison, five o’clock, coiffeur, leit-motiv, fourreau, plissée, biscuit, bibelot, bidè. Os discursos sobre a moda favorecem o vocabulário estrangeiro, mostrando a necessidade que as escolas tinham de introduzir o estudo dos idiomas francês e inglês, retirando, assim, as línguas clássicas como latim, que passou a ser visto e dito como ultrapassado.

Assistimos, nesse momento, ao que Gilles Deleuze denominou de mimese da representação, pois os sujeitos se subordinam a novas referências de sensibilidade, dizibilidade e visibilidade que emergem histórica e socialmente17. Dessa maneira, conforme pensou Guattari, os indivíduos são agenciados capitalisticamente a destacarem-se socialmente dos demais, individualizando-se ao assumirem os referenciais de poder e de prestígio social modelizados sob os signos do capitalismo, buscando competir, vencer, destacar-se, ser o melhor nessa moldura de valores gestados historicamente e estabelecidos culturalmente18.

As vitrines disputavam clientes com seus sapatos de salto alto vendidos na Casa Clark, Rua da Imperatriz, 269, ou na Sapataria Colombo, Rua Nova, 230. Sapatos borzeguins e botinas para homens, sapatos de camurça e de vários estilos para as mulheres fazem do sapateiro um artista; tecidos finos como sedas, crepes-da-china, cetim, charmeuse, merinós, veludos e cretones vestiam as mulheres, como melindrosas que ostentavam extravagante elegância em casacos, túnicas, sobressaias e manguinhas curtas; perfumes para transpirar um odor estrangeiro, como o “delicioso, suave e refrescante English Lavender da Atkinsonsque, na Coluna Suplemento Feminino, do Diário de Pernambuco, era apresentado como possuidor de uma fragrância deliciosa que lhe envolve num sutil encantamento durante o dia inteiro...19; joias e maquilagens para tornar a mulher mais “fina” e elegante, como os batons da Michel Cosmetics, apontados como conservadores e protetores dos lábios, o pó de arroz Coty e o leite de colônia para suavizar a pele feminina.

A Casa Gondim, sita à Rua Nova, 155, oferecia uma variedade de produtos para “limpar” e tornar cheirosas as famílias: pasta Kolynos, loção Mitigal para conceiras, loção brilhante F. Amours, odol, sabonetes thermal, sândalo e rialto, capilotônico, lâminas azuis Gillete, camisa crepe santé e outros produtos “elegantes”20 mostrados como fundamentais para emancipar mulheres e homens “intoxicados” pelos odores da bagaceira, do Cais do Apolo, dos mascateiros do passado.

O capitalismo, com as suas agências de divulgação, modeliza “esteticamente” a subjetividade, criando padrões de belo e feio, cheiroso ou fedorento, o que confere status ou não, a roupa que se deve vestir, o ambiente que se pode frequentar, que objetos se deve transportar para ser reconhecido como importante pelo grupo de que participa.

Adereçados de tecidos e joias, homens e mulheres desfilavam seus modelos na Praça da República, nos cinemas Moderno, Polytheama, no Teatro Santa Izabel, no Passeio Público, nos velódromos, nos chás das Cinco Horas, no Clube do Sport Club do Recife, no Jockey Club, na Confeitaria Cristal. A cada novo adereço, esses sujeitos celebravam o instantâneo, negando as formas de se adereçar do passado envolto em tradição e mesmice, rompendo com o signo do costume e do permanente; inflamando-se pelos saberes e odores estrangeiros, esnobando-se por se fazer diferente dos demais modelos de educação, como a popular e a de elite rural. São novas cartografias que desterritorializam os indivíduos tradicionalistas, pois legitimam o tempo presente e o definem como moderno ou mundano, característica de uma família envolta na “excelência social” e na superficialidade.

Praça da República no começo do século XX, Recife.
Esta é uma época em que há a substituição da latrina de barril, dos banhos de gamela e dos banhos de assento pelo water-closed, um espaço decorado com bidê, pias, privada para defecar, urinar, responder às necessidades fisiológicas. É o momento de substituição do carneiro pelo velocípede; o cinema vencia o circo com as fitas de Asta Nielsen, entrando em moda outros hábitos e oferecendo à família inovações como o telefone, a pistola mauser, o almanaque para leituras femininas, o sabonete reuter, a máquina fotográfica kodak, a injeção para curar e prevenir doenças, os biscuit para enfeitar as casas. 

Estão em voga o étagère (que os brasileiros aportuguesaram em “atagé”), o bibelot, a retreta em volta do coreto, o chapéu vitoriano, o calendário (cromo) de Boas Festas, a máquina de datilografia, o chopp, os chás lipton, o uso do ventilador, as flores artificiais, os cristais, os relógios.

Os novos ambientes domésticos afastavam-se dos antigos pelo seu colorido e multiplicação de apetrechos decorativos. Quando os consumidores compram a máquina kodak, o sabonete reuter ou qualquer outro produto moderno, eles não são movidos apenas pelo desejo de romper com os signos do passado. São movidos, também, pelos valores estabelecidos pela publicidade, agenciadora de diversos interpretantes afetivos21 e pela lógica consumista das ruas, sempre a convidar o transeunte para dar uma olhadinha nas vitrines.

Propaganda americana das máquinas fotográficas Kodak Six-16 e Kodak Six-20.
Tornava-se crescente a urbanização da vida e da paisagem nacionais, à medida que crescia a idealização dos valores urbano-industriais, contribuindo para que as pessoas organizassem suas vidas dentro desse novo cenário sócio-econômico.

As famílias numerosas começaram a ser substituídas pelas médias (cinco, seis, sete filhos) e a disparidade na idade dos cônjuges começou a diminuir22. O modelo familiar prevalecente no Brasil até o final do século XIX perde aos poucos suas coordenadas, sua geografia estável e torna-se impreciso. Os indivíduos que ainda resistem à estandardização da modernidade sentem-se desorientados diante do espaço moderno que é instaurado no país, cujos sujeitos amam o cinema, os clubes, o estrangeirismo, os métodos modernos de se aprender a ler, a escrever e a contar.

Albuquerque Júnior traduziu esse espaço como um organismo em funcionamento, que passa a incorporar os sinais deixados pela história, os signos do progresso e da modernização. Esse historiador, comentando a nova sensibilidade voltada para o espaço produzido, assim se reporta: O espaço que deixa de ser apenas espaço telúrico, pitoresco, tropical.

"O espaço não visto mais como imitação da natureza, mas como criação humana, configuração intelectual de formas. (...) Um novo espaço preciso e indeterminado, coerente e ambíguo. Um espaço relacional, relativo ao tempo e aos sujeitos. Um espaço em movimento, em rotação, onde o mundo já não existe de forma banal, deixando de ser apenas encantamento plástico naturalista".23

As ruas, portanto, são espaços de memória traduzidos nos muitos signos que nela circulam. São patrimônios histórico-culturais que merecem ser preservados, revisitados, analisados. Em cada placa - Rua Nova, Rua da Imperatriz, Rua de Cabugá, Rua do Bom Jesus - está um arquivo a contar os causos, os episódios que fizeram (e fazem) parte de uma história e que permitem a constituição de uma memória local. Estudar Recife nos anos 20 e 30 significa descobrir como os homens ordinários, em seus fazeres ordinários, subjetivaram códigos modernos e foram educados pela lógica capitalista. Mas a história não é uma homogeneidade. Da mesma forma que muitos se renderam ao “império do efêmero”, um grande número de pessoas, entre eles intelectuais do porte de Gilberto Freyre, José Lins do Rego e Mário Sette, se posicionaram contrários às novidades que desconstruíam o jeito de ser tradicional em detrimento de uma educação voltada para os métodos modernos.

Rua do Bom Jesus, Recife.
As ruas são, assim, temp(l)os de consumo, território de práticas culturais. Por trás das frágeis tabuletas que as nomeiam, é possível se pesquisar história, memória e trocas econômicas. É possível lembrar os tempos e as estações, as ruas calçadas, arborizadas, pavimentadas, enlameadas, varridas, pintadas, ajardinadas, poeirentas, esburacadas, pobres ou ricas de recursos materiais. É viajar no tempo da história e no território da memória, perscrutando as ruas adultas, idosas, senis... fazendo o passado explicar e justificar o presente... Ruas jovens, adolescentes, recém-nascidas... obrigando o hoje a apontar para um amanhã certamente diverso: passarão as pessoas, ficarão as lembranças; outros sentimentos povoarão a cidade e novas ruas redesenharão seu jeito único de ser. É assim que as ruas, entre sonhos coloridos e realidades em preto e branco, vão contando as histórias das cidades24.

NOTAS:
1. Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Unidade Acadêmica de História e Geografia e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. Bolsista Produtividade CNPq.
2 “Modas”. Diário de Pernambuco. Recife, 11 jan. 1925, p. 7 (suplemento magazine).
3 Confira SETTE, M. Maxambombas e maracatus. 3. ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1958, p. 229.
4 “Carnaval de 1920”. Diário de Pernambuco. Recife, 17 jan. 1920, p. 6. “Carnaval: iluminação da Rua Direita”. Diário de Pernambuco. Recife, 29 jan. 1920, p. 3. “Carnaval”. Diário de Pernambuco. Recife, 13 dez. 1920, p. 3.
5 SEVCENKO, N. Literatura como missão. 2 ed., São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 105.
6 A loja La Ville de Pariz recebia o mesmo nome de uma loja francesa, o maior magazine da França especializado em confecções, empregando cerca de 150 pessoas e movimentando, ainda no final do século XIX, um volume de negócios de 10 milhões de francos. Cf. ORTIZ, R. Cultura e modernidade. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 134.
7 “Casa Maravilha”. Diário de Pernambuco. Recife, 10 ago. 1921.
8 ROCHA, M. C. “Espaços escolares: nada fora do controle”. In: I Congresso Brasileiro de História da Educação - Educação no Brasil: história e historiografia. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 11.
9 GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 25 e seguintes.
10 ORTIZ, Cultura e modernidade, p. 174.
11 Conforme Gilles Lipovetsky, a Alta Costura nasceu em Paris no final do século XIX, caracterizando-se por ser uma confecção original criada sob o signo do luxo e sob medida, opondo-se à produção em série e barata, que imita “de perto ou de longe os modelos prestigiosos e griffés da Alta Costura”. A Alta Costura é singularizada pelas técnicas empregadas em sua confecção, pelos preços, pelos renomes que lhe cercam (Worth, Rouff, Patou, Chanel, Cristian Dior) e pelo público consumidor. É uma empresa industrial e comercial de luxo, cujas criações produzem uma obsolescência propícia ao consumo. Cf. LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seus destinos nas sociedades modernas. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 70.
12 Quando ainda não existiam transmissões radiofônicas na América do Sul um grupo de amadores, sob a liderança de Augusto Joaquim Pereira, fundou a Rádio Clube de Pernambuco, no dia 6 de abril de 1919. Vinte dias depois, seus estatutos foram aprovados e publicados pela Imprensa Nacional. Um edital de inauguração foi publicado dias antes no Diário de Pernambuco: “São convidados os amadores de Telegrafia Sem Fio (TSF - como era conhecido o rádio) a comparecerem à sede da Escola Superior de Eletricidade (Ponte d’Uchoa) no próximo domingo, 6 do corrente, às 13h, para a fundação da Rádio Clube”. As primeiras instalações funcionaram no Parque Treze de Maio. No início dos anos 20, utilizando discos emprestados, a Rádio Clube transmitia óperas, obras clássicas e recitais, que eram ouvidos através de um rádio receptor, construído artesanalmente e acompanhado por fones de ouvido. Em 1922, Oscar Moreira Pinto junta-se à Rádio Clube e, um ano depois, ela passa a operar com recursos próprios, mudando para a avenida Cruz Cabugá.
13 Ver a coluna “Scenas e Telas”, Diário de Pernambuco, 1º fev. 1920, p. 5; 6 fev. 1920, p. 2; 3 mar. 1920, p. 3. O chapéu capelline era indicado para as madames que usavam vestidos leves. O chapéu canotier era mais sofisticado, feito de palha preta envernizada e guarnecida com um “bandeau” egípcio feito de penas laqueadas, pretas e vermelhas, orladas de ouro. Sobre a Rádio Clube de Pernambuco, cf. “Rádio Club”. Diário de Pernambuco. Recife, 4 out. 1925, p. 3.
14 DAMATTA, R. A casa e a rua. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 13.
15 FALCÃO, J. “Melhoramentos do Recife”. Diário de Pernambuco. Recife, 12 fev. 1920, p. 3.
16 STEPHANOU, M. “Saúde pela Educação: escolarização de saberes médicos na primeira metade do século XX”. In: I Congresso Brasileiro de História da Educação - Educação no Brasil: história e historiografia. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 327.
17 DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1982.
18 GUATTARI & ROLNIK, Micropolíticas, p. 31-39.
19 Diário de Pernambuco. Recife, secção de anúncios, 1920-1930.
20 “Casa Gondim”. Diário de Pernambuco. Recife, 3 out. 1920, p. 9; “Casa Gondim”. Diário de Pernambuco. Recife, 10 ago. 1921.
21 Acerca dessas mutações nos utensílios e nos ornamentos de casa, verificar: FREYRE, G. Ordem e progresso. 43. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. FREYRE, G. Casa Grande & Senzala.26. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989, p. 46. No Diário de Pernambuco essas transformações podem ser visivelmente encontradas nas secções de anúncios propagandísticos.
22 FREYRE, Ordem e progresso, p. CXLIII.
23 ALBUQUERQUE JR., D. M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1998, p. 28.
24 ALBUQUERQUE JR., A invenção..., p. 28.







2 comentários:

Paulinho Mafe disse...

A LOJA CLARK QUE ME LEMBRO ERA NA RUA NOVA.

Leandro Vilar disse...

Paulinho não posso tirar sua dúvida, pois desconheço a história do Recife, além do fato, de que essa pesquisa e texto não são meus. Neste caso, tu teria que entrar em contato com o autor.