Um historiador com poder de síntese incomparável. Um marxista
crítico e inquieto, sem deixar jamais de acreditar na transformação social
Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012). Historiador e professor. |
Por Martin Kettle e
Dorothy Wedderburn,
no The Guardian
| Tradução: Daniela
Frabasile e Hugo
Albuquerque
Se
Eric Hobsbawm tivesse morrido há 25 anos atrás, os obituários o descreveriam
como o historiador marxista britânico mais notável e acabariam mais ou menos
aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, ele atingiu uma posição única na vida
intelectual de seu país. Nos últimos anos, tornou-se o historiador britânico
mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela
esquerda quanto pela direita, e um dos poucos historiadores de qualquer era a
desfrutar reconhecimento nacional e internacional genuíno.
Diferente
de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx.
Em seu 94º ano, ele publicou How
to change the world [leia resenha em Outras
Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na
sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua
reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto
estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo
histórico – algo de que ele esteve muito consciente.
Em
uma profissão conhecida por preocupações microscópicas, poucos historiadores
envolveram-se num campo tão vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade.
Até o fim, Hobsbawm considerava-se essencialmente um historiador do século 19,
mas seu entendimento desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.
O
alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas
pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série
de quatro volumes A
era das… na qual se destila a história do mundo capitalista de
1789 a 1991. “A capacidade de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes
atingiu agora a escala normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com
grandes equipes”, escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de
detalhes históricos quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem
colocados no projeto dos quatro volumes, ele foi incomparável.
Hobsbawm
nasceu em Alexandria, um bom lugar para um historiador do império, em 1917, um
bom ano para um comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua
família, neto de um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos
1870. Oito filhos, incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e
todos ganharam cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry,
tornou-se o primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).
Mas
Eric era um britânico com um background
pouco comum. Outro tio, Sidney, foi para o Egito antes da
Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para Leopold numa agência de
despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm conheceu Nelly Gruen,
uma jovem vienense de uma família de classe média, que tinha ganho uma viagem
ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os dois ficaram noivos,
mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal acabaria se casando na
Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de seu primeiro filho, Eric.
“Todo
historiador tem sua história de vida, um ponto de vista privado para examinar o
mundo”, ele disse em 1993, em uma palestra em Creighton, numa das várias
ocasiões nos seus últimos anos em que tentou relacionar sua história de vida
com sua escrita. “Meu ponto de vista foi construído a partir de uma infância em
Viena nos anos de 1920, os anos em que Hitler ganhou força em Berlim, que
determinaram minha visão política e meu interesse pela história; e na
Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos 1930, quando confirmei as duas
escolhas”.
Em
1919, a jovem família assentou-se em Viena, onde Eric frequentou a escola
primária, período que ele mais tarde relembrou em 1995, em um documentário na
televisão que mostrava fotos de um jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias
até os joelhos. A política teve seu impacto mais ou menos nessa época. A
primeira memória política de Eric é de Viena, em 1927, quando trabalhadores
queimaram o Palácio da Justiça. A primeira conversa política de que ele se
lembrava aconteceu em um sanatório, por volta desse ano. Duas mulheres judias
estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que você quiser”, uma disse a outra,
“mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.
Em
1929, seu pai morreu de um ataque cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de
tuberculose. Eric tinha 14 anos, e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e
levou Eric e sua irmã Nancy para Berlim. Como um adolescente em Berlim na
República Weimar, Eric inevitavelmente se politizou. Ele leu Marx pela primeira
vez, e se tornou um comunista.
Ele
sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação
Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal
anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época,
juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do
movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele
manteve o mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade
posterior em escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos
artigos. A família permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi
enviado para a Inglaterra por seus empregadores.
O
garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a
si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola,
porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito
atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o
“som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria
uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington
“em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como
crítico de jazz do New
Statesman, e publicou uma edição especial, The Jazz Scene, sobre o
assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton (muitos anos mais tarde, a
obra foi relançada com Hobsbawm identificado como o autor).
Ao
aprender a falar inglês corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de
gramática Marybone e ganhou, em 1936, uma bolsa de estudos para a King’s
College, em Cambridge. Foi nessa época que uma frase ficou comum, entre seus
amigos comunistas de Cambridge: “tem alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”.
Ele tornou-se membro da legendária Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que
a crise de 1930 era a crise final do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois.
Mas, acrescentou, “não era”.
Quando
a II Guerra Mundial teve início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos
comunistas, para trabalho de inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca
foram segredo, levaram à rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável
na 560ª Companhia de Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade
muito operária, tentando construir defesas notoriamente inadequadas contra
invasões no litoral de East Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa
para o jovem prodígio intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime
sobre eles e a Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra
converteu-me em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os
escoceses e galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.
Hobsbawm
casou-se com sua primeira esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de
volta a Cambridge, tomou outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre
a reforma agrária no norte da África para fazer uma pesquisa sobre os
socialistas fabianos. Foi uma escolha que abriu a porta tanto para uma vida de
estudos sobre o século 19 quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre
os problemas da esquerda. Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho
permanente, como professor conferencista de história no Birkbeck College, em
Londres, onde permaneceu grande parte da sua vida como professor.
Com
o início da Guerra Fria, um macartismo acadêmico muito britânico fez com que a
cátedra de Cambridge, que Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele
viajava de Cambridge para Londres, como um dos principais organizadores e
animadores do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, uma academia
brilhante e radical que reuniu alguns dos mais proeminentes historiadores do
pós-guerra. Entre seus membros, estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, A. L.
Morton, E. P. Thompson, John Saville e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que
o grupo tenha alcançado (e Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em
1978), a experiência certamente estabeleceu um núcleo para seus primeiros
passos como grande escritor de História.
O
primeiro livro de Hobsbawm,
“Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de documentos
da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de militância no
Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso sobre as
consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema sobre o
qual ele e R. M. Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic History Review.
A fundação do jornal Past
and Present também pertence ao mesmo período. É até hoje o mais
duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.
Hobsbawm
nunca deixou o Partido Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um
movimento internacional comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo
insuperável para abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais
como um livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido.
Sobre a invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu
o PC e provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de
protesto que, no entanto, permaneceu.
Todavia,
a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele
momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início
de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e
frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e
reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um
relato notavelmente original, especialmente para aqueles tempos, das sociedades
secretas e das culturas milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo
sobre o assunto recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois,
em Captain Swing,
um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19 na Inglaterra, em
co-autoria com George Rudé, e Bandidos,
um esforço mais abrangente de síntese. Essas obras servem de lembretes de como
Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a historiografia europeia e a britânica e,
também, um precursor do aumento notável do estudo da história social no
pós-1968 britânico.
À
essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre
os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de
alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring
Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção, Worlds of Labour, iria
surgir 20 anos mais tarde). Mas foi Industry
and Empire (1968), uma compilação convincente de muito do seu
trabalho sobre a revolução industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto
reconhecimento – e, não à toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.
Foi
ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era de…, que começou em 1962 com a A Era das Revoluções: 1789-1848.
Ela foi sucedida por A Era
do Capital: 1848-1875 (1975) e, depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987).
Um quarto volume, A Era
dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e especulativo, ainda que,
sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que as obras anteriores,
ampliou a sequência em 1994.
Os
quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a
varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a
atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um
incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do século
19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na primeira
página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como tetralogia, mas
adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo tempo,
cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio Hobsbawm,
“daquilo que os franceses chamam de ‘haute
vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não disse isso no
sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de um revisor,
“parte da mobília dos ingleses bem-formados”.
O primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951.
Durante os anos 1950, ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento
de seu primeiro filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se.
Em 1962, ele casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência
austríaca. Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em
Gales. Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.
Nos
anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada
pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele
respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista,
sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar
o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin.
Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros
publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por
todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma
publicação consideravelmente heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.
Suas
conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano
datam daqueles anos e foram publicadas em A
Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais influente
contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento proletário
europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que os
marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas
descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].
Em 1983, quando Neil Kinnock
tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua sorte
eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do Partido
Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente sua
dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que
descreveu como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado
firmemente muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” –
algo que via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o
precursor intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo
dos anos 1990.
Seu
status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair
concedeu-lhe a distinção de Companion
of Honour, poucos meses depois de ter completado 80 anos. Na sua
justificativa, o premiê disse que Hobsbawm continuava a publicar trabalhos que
“localizam na História e na política problemas que reemergem, para perturbar a
complacência da Europa”.
Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação crescer.
Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a presença
da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo dos últimos
anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On the History (1997) e Uncommon People (1998),
trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a
lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são
dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos Interessantes, publicada em 2002, e Globalização, Democracia e
Terrorismo, de 2007.
Mais famoso no fim de sua vida do que provavelmente em
qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas palestras,
comunicações e o papel como performer
no Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos,
após a morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente
sua mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida
social e cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.
Que
seus escritos tenham continuado a sensibilizar tantos públicos, no momento em
que sua política foi, de certa forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que
exasperava os direitistas. Mas foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu
e jamais complacente refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar
E. M. Forster, segundo o qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num
ângulo suave do universo”. Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o
universo era algo que ele gostava de debater, confiante na noção de que se
tratava, em muitos sentidos de um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e
seus três filhos, sete netos e um bisneto.
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