Esse texto consiste num curso de filosofia ministrado pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984) no College de France em 1 de fevereiro de 1978. Tal texto se encontra disponível no livro Microfísica do Poder, sendo o último capítulo do livro.
Através da análise de alguns dispositivos de segurança, procurei ver
como surgiu historicamente o problema específico da população, o que conduziu à
questão do governo: relação entre segurança, população e governo. E esta
temática do governo que procurarei agora inventariar.
Certamente, na Idade Média ou na Antiguidade greco−romana, sempre
existiram tratados que se apresentavam como conselhos ao príncipe quanto ao
modo de se comportar, de exercer o poder, de ser aceito e respeitado pelos
súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus, introduzir na cidade dos homens
a lei de Deus, etc. Mas, a partir do século XVI até o final do século XVIII,
vê−se desenvolver uma série considerável de tratados que se apresentam não mais
como conselhos aos príncipes, nem ainda como ciência da política, mas como arte
de governar. De modo geral, o problema do governo aparece no século XVI com
relação a questões bastante diferentes e sob múltiplos aspectos: problema do
governo de si mesmo − reatualizado, por exemplo, pelo retorno ao estoicismo no
século XVI; problema do governo das almas e das condutas, tema da pastoral
católica e protestante; problema do governo das crianças, problemática central
da pedagogia, que aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problema do
governo dos Estados pelos príncipes.
Como se governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor
governante possível, etc. Todos estes problemas, com a intensidade e
multiplicidade tão características do século XVI, se situam na convergência de
dois processos: processo que, superando a estrutura feudal, começa a instaurar
os grandes Estados territoriais, administrativos, coloniais; processo,
inteiramente diverso, mas que se relaciona com o primeiro, que, com a Reforma e
em seguida com a Contrarreforma, questiona o modo como se quer ser
espiritualmente dirigido para alcançar a salvação.
Por um lado, movimento de concentração estatal, por outro de dispersão e
dissidência religiosa: é no encontro destes dois movimentos que se coloca, com
intensidade particular no século XVI, o problema de como ser governado, por
quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral
do governo em geral.
Em toda esta imensa e monótona literatura do governo, gostaria de isolar
alguns pontos importantes que dizem respeito à definição do que se entende por
governo do Estado, aquilo que chamaremos governo em sua forma política. Com
este objetivo, o mais simples sem dúvida é opor esta literatura a um único
texto que, do século XVI ao século XVIII, constitui um ponto de repulsão, implícito
ou explícito, em relação ao qual por oposição ou recusa − se situa a literatura
do governo: O Príncipe, de Maquiavel.
É importante lembrar que O Príncipe não foi imediatamente abominado:
foi reverenciado pelos seus contemporâneos e sucessores imediatos como também
no inicio do século XIX – sobretudo na Alemanha, onde foi lido, apresentado,
comentado por pessoas como Rehberg, Leo, Ranke, Kellermann, etc., e na Itália −
exatamente no momento em que desaparece toda esta literatura sobre a arte de
governar. O que se deu no contexto preciso da Revolução Francesa e de Napoleão,
quando se colocou a questão de como e em que condições se pode manter a
soberania de um soberano sobre um Estado; no contexto do aparecimento, com
Clausewitz, da relação entre política e estratégia e da importância política,
manifestada por exemplo pelo Congresso de Viena, em 1815, que se atribui ao
cálculo das relações de força considerado como princípio de inteligibilidade e
de racionalização das relações internacionais; finalmente, no contexto da unificação
territorial da Itália e da Alemanha, na medida em que Maquiavel foi um dos que procuraram
definir em que condições a unificação territorial da Itália poderia ser
realizada.
Entre estes dois momentos, houve porém uma volumosa literatura
anti−Maquiavel, às vezes explicitamente − uma série de livros que em geral são
de origem católica, como por exemplo o texto de Ambrogio Politi, Disputationes
de Libris a Christiano detestandis, e de origem protestante, como o livro
de Innocent Gentillet, Discours d'Etat sur les moyens de bien gouverner
contre Nicolas Machiavel, 1576 − às vezes implicitamente, em
oposição velada, como por exemplo Guillaume de La Pernére, Miroir Politique,
1567, P. Paruta, Della Perfezione della Vita politica, 1579, Thomas Elyott,
The Governor, 1580.
O importante é que esta literatura anti−Maquiavel não tem somente uma
função negativa de censura, de barragem, de recusa do inaceitável: é um gênero
positivo que tem objeto, conceitos e estratégia, e é em sua positividade que
gostaria de analisá−lo. Sem dúvida encontramos uma espécie de retrato negativo
do pensamento de Maquiavel, em que se representa um Maquiavel adverso. O
Príncipe, contra o qual se luta, é caracterizado por um principio: o
príncipe está em relação de singularidade, de exterioridade, de transcendência
em relação ao seu principado; recebe o seu principado por herança, por
aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que
o unem ao principado são de violência, de tradição, estabelecidos por tratado com
a cumplicidade ou aliança de outros príncipes, laços puramente sintéticos, sem
ligação fundamental, essencial, natural e jurídica, entre o príncipe e seu
principado.
Corolário deste princípio: na medida em que é uma relação de
exterioridade, ela é frágil e estará sempre ameaçada, exteriormente pelos
inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu principado e
internamente, pois não há razão a priori, imediata, para que os súditos
aceitem o governo do príncipe. Deste principio e de seu corolário se deduz um
imperativo: o objetivo do exercício do poder será manter, reforçar e proteger
este principado, entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e o
território, o principado objetivo, mas como relação do príncipe com o que ele
possui, com o território que herdou ou adquiriu e com os súditos. É este liame
frágil do príncipe com seu principado que a arte de governar apresentada por
Maquiavel deve ter como objetivo. Consequentemente, o modo de análise terá dois
aspectos: por um lado, demarcação dos perigos (de onde vêm, em que consistem,
qual é sua intensidade); por outro lado, desenvolvimento da arte de manipular
as relações de força que permitirão ao príncipe fazer com que seu principado, como
liame com seus súditos e com o território, possa ser protegido.
Esquematicamente, se pode dizer que O Príncipe de Maquiavel é
essencialmente um tratado da habilidade do príncipe em conservar seu principado
e é isto que a literatura anti−Maquiavel quer substituir por uma arte de governar.
Ser hábil em conservar seu principado não é de modo algum possuir a arte de
governar.
Para caracterizar esta arte de governar, examinarei o Miroir
politique contenant diverses maniéres de gouverner, de Guillaume de La
Perriére, um dos primeiros textos desta literatura anti−Maquiavel, que
apresenta alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, o que o autor entende
por governar e governante? Diz ele, na página 24 de seu texto: "governante
pode ser chamado de monarca, imperador, rei, príncipe, magistrado,
prelado, juiz e similares". Como La Perriére, também outros,
tratando da arte de governar, lembram continuamente que também se diz governar
uma casa, almas, crianças, uma província, um convento, uma ordem religiosa, uma
família.
Estas observações, que parecem simplesmente terminológicas, têm de fato
implicações políticas importantes. O príncipe "maquiavélico" é, por
definição, único em seu principado e está em posição de exterioridade,
transcendência, enquanto que nesta literatura o governante, as pessoas que
governam, a prática de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida
em que muita gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o
pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. Existem, portanto muitos governos, em relação aos quais o do príncipe
governando seu Estado é apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes
governos estão dentro do Estado ou da sociedade.
Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de
governo com relação ao Estado; multiplicidade e imanência que se opõem radicalmente
á singularidade transcendente do príncipe de Maquiavel. É certo que entre todas
estas formas de governo, que se cruzam, que se imbricam no interior da sociedade
e do Estado, uma forma é bastante especifica: trata−se de definir qual é a
forma particular que se aplica a todo o Estado.
É assim que, procurando fazer a tipologia das diferentes formas de
governo, La Mothe Le Vayer, em um texto do século seguinte (uma série de
escritos pedagógicos para o Delfim), diz que existem basicamente três tipos de
governo, cada um se referindo a uma forma específica de ciência ou de reflexão.
O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar
adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem
governar o Estado, que diz respeito à política. Em relação à moral e à
economia, a política tem sua singularidade, o que La Mothe Le Vayer indica muito
bem. Mas o importante é que, apesar desta tipologia, as artes de governar
postulam uma continuidade essencial entre elas.
Enquanto a doutrina do príncipe ou a teoria jurídica do soberano procura
incessantemente marcar uma descontinuidade entre o poder do príncipe e as
outras formas de poder, as teorias da arte de governar procuram estabelecer uma
continuidade, ascendente e descendente.
Continuidade ascendente no sentido em que aquele que quer poder governar
o Estado deve primeiro saber se governar, governar sua família, seus bens, seu
patrimônio. É esta espécie de linha ascendente que caracterizará a pedagogia do
príncipe. La Mothe Le Vayer escreve assim para o Delfim primeiro um tratado de
moral, em seguida um livro de economia e finalmente um tratado de política.
Continuidade descendente no sentido em que, quando o Estado é bem governado, os
pais de família sabem como governar suas famílias, seus bens, seu patrimônio e
por sua vez os indivíduos se comportam como devem.
E esta linha descendente, que faz repercutir na conduta dos indivíduos e
na gestão da família o bom governo do Estado, que nesta época se começa a
chamar de polícia. A pedagogia do príncipe assegura a continuidade ascendente
da forma de governo; a polícia, a continuidade descendente. E nos dois casos o
elemento central desta continuidade é o governo da família, que se chama de
economia.
A arte de governar, tal como aparece em toda esta literatura, deve
responder essencialmente à seguinte questão: como introduzir a economia − isto
é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no
interior da família − ao nível da gestão de um Estado? A introdução da economia
no exercício político será o papel essencial do governo.
E se foi assim no século XVI,
também o será no século XVIII, como atesta o artigo Economia Política, de
Rousseau, que diz basicamente: a palavra economia designa originariamente o
sábio governo da casa para o bem da família. O problema, diz Rousseau, é como
ele poderá ser introduzido, mutatis mutandis, na gestão geral do Estado.
Governar um Estado significará, portanto estabelecer a economia ao nível geral
do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos
comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle
tão atenta quanto a do pai de família.
Uma expressão importante no século XVIII caracteriza bem tudo isto:
Quesnay fala de um bom governo como de um "governo econômico". E se
Quesnay fala de governo econômico − que no fundo é uma noção tautológica, visto
que a arte de governar é precisamente a arte de exercer o poder segundo o
modelo da economia – é porque a palavra economia, por razões que procurarei explicitar,
já começa a adquirir seu sentido moderno e porque neste momento se começa a considerar
que é da própria essência do governo ter por objetivo principal o que hoje
chamamos de economia.
A palavra economia designava no século XVI uma forma de governo; nó
século XVIII designará um nível de realidade, um campo de intervenção do
governo através de uma série de processos complexos absolutamente capitais para
nossa história. Eis, portanto o que significa governar e ser governado.
Em segundo lugar, encontramos no livro de Guillaume de La Perriére a
seguinte afirmação: "governo é uma correta disposição das coisas de que se
assume o encargo para conduzi−las a um fim conveniente". Gostaria também
de fazer uma série de observações sobre esta frase, começando com a palavra
coisa. No Príncipe de Maquiavel, o que caracteriza o conjunto dos objetos
sobre os quais se exerce o poder é o fato de ser constituído pelo território e
seus habitantes. Com relação a esse ponto, Maquiavel não fez mais do que
retomar um princípio jurídico pelo qual se caracterizava a soberania no direito
público, da Idade Média até o século XVI. Neste sentido, pode−se dizer que o
território é o elemento fundamental tanto do principado de Maquiavel quanto da
soberania jurídica do soberano, tal como a definem os filósofos e teóricos do
direito. O território pode ser fértil ou estéril, a população densa ou escassa,
seus habitantes ricos ou pobres, ativos ou preguiçosos, etc., mas estes
elementos são apenas variáveis com relação ao território, que é o próprio
fundamento do principado ou da soberania.
No texto de La Perriére, ao contrário, a definição do governo não se
refere de modo algum ao território. Governam−se coisas. Mas o que significa
esta expressão? Não creio que se trate de opor coisas a homens, mas de mostrar
que aquilo a que o governo se refere é não um território e sim um conjunto de
homens e coisas.
Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas em
suas relações com coisas que são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência,
o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade,
etc.; os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os
hábitos, as formas de agir ou de pensar, etc.; finalmente, os homens em suas
relações com outras coisas ainda que podem ser os acidentes ou as desgraças
como a fome, a epidemia, a morte, etc.
Que o governo diga respeito às coisas entendidas como a imbricação de
homens e coisas temos a confirmação em uma metáfora que aparece em todos esses
tratados: o navio. O que é governar um navio? É certamente se ocupar dos
marinheiros, da nau e da carga; governar um navio é também prestar atenção aos
ventos, aos recifes, às tempestades, às intempéries, etc.; são estes
relacionamentos que caracterizam o governo de um navio.
Governar uma casa, uma família, não é essencialmente ter por fim salvar
as propriedades da família; é ter como objetivo os indivíduos que compõem a família,
suas riquezas e prosperidades; é prestar atenção aos acontecimentos possíveis,
às mortes, aos nascimentos, às alianças com outras famílias; é esta gestão
geral que caracteriza o governo e em relação ao qual o problema da propriedade
fundiária para a família ou a aquisição da soberania sobre um território pelo
príncipe são elementos relativamente secundários.
O essencial é, portanto este conjunto de coisas e homens; o território e
a propriedade são apenas variáveis. Este tema do governo das coisas que aparece
em La Perriére será encontrado ainda nos séculos XVII e XVIII. Frederico II, em seu Anti−Maquiavel, escreveu passagens
significativas. Diz, por exemplo: comparemos a Holanda e a Rússia; a Rússia
pode até ser o país de maior extensão em relação aos outros Estados europeus,
mas é composta de pântanos, florestas, desertos, é povoada apenas por um bando
de miseráveis, sem atividade nem indústria; a Holanda, que é pequeníssima e
constituída de pântanos, possui ao contrário uma população, uma riqueza, uma
atividade comercial e uma frota que fazem dela um país importante da Europa, o
que a Rússia está apenas começando a ser. Portanto, governar é governar as
coisas.
Voltemos ao texto citado de La Perriére: "governo é uma correta disposição
das coisas de que se assume o encargo para conduzi−las a um fim
conveniente". O governo tem uma finalidade, e nisto ele também se opõe
claramente à soberania. Certamente nos textos filosóficos e jurídicos a soberania
nunca foi apresentada como um direito puro e simples. Nunca foi dito nem pelos
juristas nem afortiori pelos teólogos que o soberano legítimo teria
razões para exercer o poder. Para ser um bom soberano, é preciso que tenha uma
finalidade: "o bem comum e a salvação de todos".
Tomarei como exemplo um texto do final do século XVII em que seu autor,
Pufendorf, diz: "Só lhe será conferida autoridade soberana para que ele se
sirva dela para obter e manter a utilidade pública". Um soberano não deve
se beneficiar de nada se ele não beneficiar o Estado.
Em que consiste este bem comum ou esta salvação de todos que regularmente
são colocados como o próprio fim da soberania? Se examinarmos o conteúdo que os
juristas e teólogos dão ao bem comum, vemos que há bem comum quando os súditos
obedecem, e sem exceção, às leis, exercem bem os encargos que lhe são
atribuídos, praticam os ofícios a que são destinados, respeitam a ordem
estabelecida, ao menos na medida em que esta ordem é conforme às leis que Deus
impôs à natureza e aos homens. Isto quer dizer que o bem público é
essencialmente a obediência à lei: seja a do soberano terreno seja a do
soberano absoluto, Deus.
De todo modo, o que caracteriza a finalidade da soberania é este bem
comum, geral, é apenas a submissão à soberania. A finalidade da soberania é
circular, isto é, remete ao próprio exercício da soberania. O bem é a
obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas
obedeçam a ela. Qualquer que seja a estrutura teórica, a justificação moral e
os efeitos práticos, isto não é muito diferente de Maquiavel quando afirmava que o objetivo principal do
príncipe devia ser manter seu principado. Estrutura essencialmente circular da
soberania ou do principado com relação a si mesmo.
Com as tentativas de definição de governo de La Perriére, vê−se aparecer
um outro tipo de finalidade. O governo é definido como uma maneira correta de
dispor as coisas para conduzi−las não ao bem comum, como diziam os textos dos
juristas, mas a um objetivo adequado a cada uma das coisas a governar. O que
implica, em primeiro lugar, uma pluralidade de fins específicos, como por
exemplo fazer com que se produza a maior riqueza possível, que se forneça às
pessoas meios de subsistência suficientes, e mesmo na maior quantidade
possível, que a população possa se multiplicar, etc. Portanto, uma série de
finalidades específicas que são o próprio objetivo do governo. E para atingir
estas diferentes finalidades deve−se dispor as coisas. E esta palavra dispor é
importante, na medida em que, para a soberania, o que permitia atingir sua
finalidade, isto é, a obediência à lei, era a própria lei; lei e soberania
estavam indissoluvelmente ligadas.
Ao contrário, no caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei
aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis,
ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que
determinados fins possam ser atingidos.
Isto assinala uma ruptura importante: enquanto a finalidade da soberania
é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma de lei, a finalidade do governo
está nas coisas que ele dirige, deve ser procurada na perfeição, na intensificação
dos processos que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem constituídos
por leis, são táticas diversas. Na perspectiva do governo, a lei não é
certamente o instrumento principal; e este é um tema frequente nos séculos XVII
e XVIII que aparece nos textos dos economistas e dos fisiocratas, quando
explicam que não é certamente através da lei que se pode atingir os fins do
governo.
Finalmente, quarta observação sobre o texto de La Perriére. Ele diz que
um bom governante deve ter paciência, soberania e diligência. O que entende por
paciência? Para explicá−la, ele toma o exemplo do "rei dos insetos do
mel", isto é, o zangão, dizendo que o zangão reina sobre a colmeia sem ter
necessidade do ferrão; Deus quis mostrar com isso, de modo místico, diz ele,
que o verdadeiro governante não deve ter necessidade de ferrão, isto é, de um
instrumento mortífero, de uma espada, para exercer seu governo; deve ser mais
paciente que colérico; não é o direito de matar, não é o direito de fazer
prevalecer sua força que deve ser essencial a seu personagem. E que conteúdo
positivo é possível dar a esta ausência de ferrão? A sabedoria e a diligência.
Sabedoria: não, como para a tradição, o conhecimento das leis humanas e
divinas, da justiça ou da equidade, mas o conhecimento das coisas, dos
objetivos que deve procurar atingir e da disposição para atingi−los; é este
conhecimento que constituirá a sabedoria do soberano.
Diligência: aquilo que faz com que o governante só deva governar na
medida em que se considere e aja como se estivesse ao serviço dos governados. E
La Perriére se refere mais uma vez ao exemplo do pai de família, que é o que se
levanta antes das outras pessoas da casa, que se deita depois dos outros, que
pensa em tudo, que cuida de tudo pois se considera a serviço da casa. Vê−se
como esta caracterização do governo é diferente da caracterização do príncipe
que se encontra ou que se pensava encontrar em Maquiavel.
Creio que este esboço da teoria da arte de governar não ficou pairando
no ar no século XVI. Não se limitou somente aos teóricos da política. Pode−se
situar suas relações com a realidade: em primeiro lugar, a teoria da arte de
governar esteve ligada desde o século XVI ao desenvolvimento do aparelho
administrativo da monarquia territorial: aparecimento dos aparelhos de governo;
em segundo lugar, esteve ligada a um conjunto de análises e de saberes que se
desenvolveram a partir do final do século XVI e que adquiriram toda sua
importância no século XVII: essencialmente o conhecimento do Estado, em seus
diversos elementos, dimensões e nos fatores de sua força, aquilo que foi
denominado de estatística, isto é, ciência do Estado; em terceiro lugar, esta
arte de governar não pode deixar de ser relacionada com o mercantilismo e o
cameralismo.
Esquematicamente, se poderia dizer que a arte de governar encontra, no
final do século XVI e início do século XVII, uma primeira forma de
cristalização, ao se organizar em torno do tema de uma razão de Estado. Razão
de Estado entendida não no sentido pejorativo e negativo que hoje lhe é dado
(ligado à infração dos princípios do direito, da equidade ou da humanidade por
interesse exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e pleno: o Estado se
governa segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem
nem das leis naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da
prudência; o Estado, como a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que
de outro tipo.
Por sua vez, a arte de governo, em vez de fundar−se em regras transcendentes,
em um modelo cosmológico ou em um ideal filosófico−moral, deverá encontrar os princípios
de sua racionalidade naquilo que constitui a realidade específica do Estado. Os
elementos desta primeira racionalidade estatal serão estudados nas próximas
aulas.
Mas desde logo se pode dizer que esta razão de Estado constituiu para o
desenvolvimento da arte do governo uma espécie de obstáculo que durou até o
início do século XVIII.
E isto por algumas razões. Em primeiro lugar, razões históricas em
sentido estrito: a série de grandes crises do século XVII, como a guerra dos 30
anos com suas devastações; em meados do século, as grandes sedições camponesas
e urbanas; finalmente, no final do século, a crise financeira, a crise dos
meios de subsistência que determinou a política das monarquias ocidentais.
A arte de governar só podia se desenvolver, se pensar, multiplicar suas
dimensões em períodos de expansão, e não em momentos de grandes urgências
militares, políticas e econômicas, que não cessaram de assediar o século XVII.
Em segundo lugar, esta arte de governo, formulada no século XVI, também
foi bloqueada no século XVII por outras razões, que dizem respeito ao que se
poderia chamar de estrutura institucional e mental. A primazia do problema da
soberania, como questão teórica e princípio de organização política, foi um
fator fundamental deste bloqueio da arte de governar.
Enquanto a soberania foi o problema principal, enquanto as instituições
de soberania foram as instituições fundamentais e o exercício do poder foi pensado
como exercício da soberania, a arte do governo não pôde se desenvolver de modo
específico e autônomo. Temos um exemplo disto no mercantilismo.
Ele foi à primeira sanção desta arte de governar ao nível tanto das
práticas políticas quanto dos conhecimentos sobre o Estado; neste sentido, podemos
dizer que o mercantilismo representa um primeiro limiar de racionalidade nesta
arte de governar, de que o texto de La Perriére indica somente alguns
princípios, mais morais que reais. O mercantilismo é a primeira racionalização
do exercício do poder como prática de governo; é com ele que se começa a constituir
um saber sobre o Estado que pôde ser utilizável como tática de governo.
Entretanto, o mercantilismo foi bloqueado, freado, porque se dava como
objetivo essencialmente a força do soberano: o que fazer não tanto para que o
país seja rico, mas para que o soberano possa dispor de riquezas, constituir
exércitos para poder fazer política. E quais são os instrumentos que o mercantilismo
produz? Leis, ordens, regulamentos, isto é, as armas tradicionais do soberano.
Objetivo: o soberano; instrumentos: os mesmos da soberania. O mercantilismo,
assim, procurava introduzir as possibilidades oferecidas por uma arte refletida
de governar no interior de uma estrutura institucional e mental da soberania,
que ao mesmo tempo a bloqueava.
De modo que, durante o século XVII e até o desaparecimento dos temas
mercantilistas no início do século XVIII, a arte do governo marcou passo,
limitada por duas coisas. Por um lado, um quadro muito vasto, abstrato e
rígido: a soberania, como problema e como instituição. Esta arte de governo tentou
compor com a teoria da soberania, isto é, procurou−se deduzir de uma teoria
renovada da soberania os princípios diretores de uma arte de governo. É neste
sentido que os juristas do século XVII formulam ou reatualizam a teoria do
contrato: a teoria do contrato será precisamente aquela através da qual o
contrato fundador − o compromisso recíproco entre o soberano e os súditos – se
tornará uma matriz teórica a partir de que se procurará formular os princípios
gerais de uma arte do governo. Que a teoria do contrato, que esta reflexão
sobre as relações entre o soberano e seus súditos tenha desempenhado um papel
muito importante na teoria do direito público, o exemplo de Hobbes o prova com
evidência (mesmo se o que Hobbes quis formular tenham sido os princípios
diretores de uma arte de governar, na verdade ele não foi além da formulação
dos princípios gerais do direito público).
Portanto, por um lado, um quadra muito vasto, abstrato, rígido da
soberania e, por outro, um modelo bastante estreito, débil, inconsistente: o da
família. Isto é, a arte de governar procurou fundar−se na forma geral da
soberania, ao mesmo tempo em que não pôde deixar de apoiar−se no modelo
concreto da família; por este motivo, ela foi bloqueada por esta ideia de
economia, que nesta época ainda se referia apenas a um pequeno conjunto
constituído pela família e pela casa.
Com o Estado e o soberano de um lado, com o pai de família e sua casa de
outro, a arte de governo não podia encontrar sua dimensão própria. Como se deu
o desbloqueio da arte de governar? Alguns processos gerais intervieram:
expansão demográfica do século XVII, ligada á abundância monetária e por sua
vez ao aumento da produção agrícola através dos processos circulares que os
historiadores conhecem bem. Se este é o quadro geral, pode−se dizer, de modo
mais preciso, que o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão
com a emergência do problema da população; trata−se de um processo sutil que,
quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a
centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da
população estão ligados.
Foi através do desenvolvimento da ciência do governo que a economia pôde
centralizar−se em um certo nível de realidade que nós caracterizamos hoje como
econômico; foi através do desenvolvimento desta ciência do governo que se pôde
isolar os problemas específicos da população; mas também se pode dizer que foi
graças á percepção dos problemas específicos da população, graças ao isolamento
deste nível de realidade, que chamamos a economia, que o problema do governo
pôde enfim ser pensado, sistematizado e calculado fora do quadro jurídico da
soberania. E a estatística, que no mercantilismo não havia mais podido
funcionar a não ser no interior e em beneficio de uma administração monárquica
que também funcionava nos moldes da soberania, tornar−se−á o principal fator
técnico, ou um dos principais fatores técnicos, deste desbloqueio.
De que modo o problema da população permitirá desbloquear a arte de
governo? Em primeiro lugar, a população − a perspectiva da população, a
realidade dos fenômenos próprios à população − permitirá eliminar
definitivamente o modelo da família e centralizar a noção de economia em outra
coisa. De fato, se a estatística tinha até então funcionado no interior do
quadro administrativo da soberania, ela vai revelar pouco a pouco que a
população tem uma regularidade própria: número de mortos, de doentes,
regularidade de acidentes, etc.; a estatística revela também que a população
tem características próprias e que seus fenômenos são irredutíveis aos da
família: as grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral do trabalho e
da riqueza, etc.; revela finalmente que através de seus deslocamentos, de sua
atividade, a população produz efeitos econômicos específicos.
Permitindo quantificar os fenômenos próprios à população, revela uma especificidade
irredutível ao pequeno quadro familiar. A família como modelo de governo vai desaparecer.
Em compensação, o que se constitui nesse momento é a família como elemento no interior
da população e como instrumento fundamental.
Em outras palavras, até o advento da problemática da população, a arte
de governar só podia ser pensada a partir do modelo da família, a partir da
economia entendida como gestão da família. A partir do momento em que, ao
contrário, a população aparece como absolutamente irredutível à família, esta
passa para um plano secundário em relação à população, aparece como elemento interno
à população, e, portanto não mais como modelo, mas como segmento. E segmento privilegiado,
na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população − quanto aos
comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. − é pela família que se
deverá passar.
De modelo, a família vai tornar−se instrumento, e instrumento
privilegiado, para o governo da população e não modelo quimérico para o bom
governo. Este deslocamento da família do nível de modelo para o nível de
instrumentalização me parece absolutamente fundamental, e é a partir da metade
do século XVIII que a família aparece nesta dimensão instrumental em relação à população,
como demonstram as campanhas contra a mortalidade, as campanhas relativas ao casamento,
as campanhas de vacinação, etc. Portanto, aquilo que permite à população desbloquear
a arte de governar é o fato dela eliminar o modelo da família.
Em segundo lugar, a população aparecerá como o objetivo final do
governo. Pois qual pode ser o objetivo do governo? Não certamente governar, mas
melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua
saúde, etc. E quais são os instrumentos que o governo utilizará para alcançar
estes fins, que em certo sentido são imanentes à população?
Campanhas, através das quais se age diretamente sobre a população, e
técnicas que vão agir indiretamente sobre ela e que permitirão aumentar, sem
que as pessoas se deem conta, a taxa de natalidade ou dirigir para uma
determinada região ou para uma determinada atividade os fluxos de população,
etc. A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que
como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de
aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente
ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer
que ela faça.
O interesse individual − como consciência de cada indivíduo constituinte
da população − e o interesse geral − como interesse da população, quaisquer que
sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem − constituem
o alvo e o instrumento fundamental do governo da população. Nascimento,
portanto de uma arte ou, em todo caso, de táticas e técnicas absolutamente
novas.
Em terceiro lugar, a população será o ponto em torno do qual se
organizará aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do
soberano, no sentido em que a população será o objeto que o governo deverá
levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar
efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de um saber de
governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos
os processos referentes à população em sentido lato, daquilo que chamamos
precisamente de "economia”.
A economia política pôde se constituir a partir do momento em que, entre
os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população.
Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população, o
território, a riqueza, etc., se constituirá uma ciência, que se chamará economia
política, e ao mesmo tempo um tipo de intervenção característico do governo: a intervenção
no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de governo
para uma ciência política, de um regime dominado pela estrutura da soberania
para um regime dominado pelas técnicas de governo, ocorre no século XVIII em
torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da economia
política.
Com isto não quero de modo algum dizer que a soberania deixou de
desempenhar um papel a partir do momento em que a arte do governo começou a
tornar−se ciência política. Diria mesmo o contrário: nunca o problema da
soberania foi colocado com tanta acuidade quanto neste momento, na medida em
que se tratava precisamente não mais, como nos séculos XVI e XVII, de procurar deduzir
uma arte de governo de uma teoria da soberania, mas de encontrar, a partir do
momento em que existia uma arte de governo, que forma jurídica, que forma institucional,
que fundamento de direito se poderia dar á soberania que caracteriza um Estado.
Tomemos, por exemplo, dois textos de Rousseau. Em primeiro lugar, o
artigo Economia Política da Enciclopédia, o primeiro
cronologicamente. Nele, Rouseau coloca o problema do governo e da arte de
governar nos seguintes termos: a palavra economia designa essencialmente a
gestão dos bens da família pelo pai; mas este modelo não 'deve mais ser aceito,
mesmo se era este o modelo a que as pessoas se referiam no passado; atualmente,
diz Rousseau, sabemos que a economia política não é mais a economia familiar;
sem referir−se explicitamente à fisiocracia, à estatística ou ao problema geral
da população, ele registra bem uma ruptura: o fato de que a "economia
política" tem um sentido totalmente novo que não pode mais ser reduzido ao
velho modelo da família. Seu objetivo portanto neste artigo é o de definir uma
arte de governar. Em segundo lugar, O Contrato Social. Nele, o
problema será: como se pode formular, com noções tais como natureza, contrato, vontade
geral, um princípio geral de governo que substitua tanto o princípio jurídico
da soberania quanto os elementos através dos quais se pode definir e
caracterizar uma arte de governo.
Portanto, o problema da soberania não é de modo algum eliminado pela
emergência de uma nova arte de governo; ao contrário, ele torna−se ainda mais
agudo que antes. A disciplina também não é eliminada; é certo que sua
instauração − todas as instituições no interior da qual ela se desenvolveu no
século XVII e início do século XVIII, a escola, as oficinas, os exércitos, etc.
− só se compreende a partir do desenvolvimento da grande monarquia administrativa.
Mas nunca a disciplina foi tão importante, tão valorizada quanto a partir do
momento em que se procurou gerir a população.
E gerir a população não queria dizer simplesmente gerir a massa coletiva
dos fenômenos ou geri−los somente ao nível de seus resultados globais. Gerir a população
significa geri−la em profundidade, minuciosamente, no detalhe. A ideia de um
novo governo da população torna ainda mais agudo o problema do fundamento da
soberania e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver a disciplina. Devemos
compreender as coisas não em termos de substituição de uma sociedade de
soberania por uma sociedade disciplinar e desta por uma sociedade de governo.
Trata−se de um triângulo: soberania−disciplina−gestão governamental, que tem na
população seu alvo principal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais.
O que gostaria de mostrar é a relação histórica profunda entre: o
movimento que abala a constante da soberania colocando o problema, que se
tornou central, do governo; o movimento que faz aparecer a população como um
dado, como um campo de intervenção, como o objeto da técnica de governo; e o
movimento que isola a economia como setor específico da realidade e a economia política
como ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da realidade.
São estes três movimentos − governo, população, economia política − que
constituem, a partir do século XVIII, um conjunto que ainda não foi
desmembrado.
Para concluir, gostaria de dizer o seguinte. O que pretendo fazer nestes
próximos anos é uma história da governamentalidade. E com esta palavra
quero dizer três coisas:
1 − o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e
reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante
específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma
principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os
dispositivos de segurança.
2 − a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante
muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo,
sobre todos os outros − soberania, disciplina, etc. − e levou ao
desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um
conjunto de saberes.
3 − resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade
Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a
pouco governamentalizado.
Sabemos que fascínio exerce hoje o amor pelo Estado ou o horror do
Estado; como se está fixado no nascimento do Estado, em sua história, seus
avanços, seu poder e seus abusos, etc. Esta supervalorização do problema do
Estado tem uma forma imediata, efetiva e trágica: o lirismo do monstro frio
frente aos indivíduos; a outra forma é a análise que consiste em reduzir o
Estado a um determinado número de funções, como por exemplo, ao desenvolvimento
das forças produtivas, à reprodução das relações de produção, concepção do
Estado que o torna absolutamente essencial como alvo de ataque e como posição
privilegiada a ser ocupada. Mas o Estado – hoje provavelmente não mais do que
no decurso de sua história − não teve esta unidade, esta individualidade, esta
funcionalidade rigorosa e direi até esta importância. Afinal de contas, o
Estado não é mais do que uma realidade compósita e uma abstração mistificada,
cuja importância é muito menor do que se acredita. O que é Importante para
nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a estatização da
sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado.
Desde o século XVIII, vivemos na era do governamentalidade.
Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente astucioso,
pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo
se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a
governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver.
Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo
tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem
definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público
ou privado do que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado, em sua
sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas
gerais da governamentalidade.
Talvez se possa assim, de maneira global, pouco elaborada e, portanto
inexata, reconstruir as grandes formas, as grandes economias de poder no
Ocidente: em primeiro lugar, o Estado de justiça, nascido em uma
territorialidade de tipo feudal e que corresponderia grosso modo a uma sociedade
da lei; em segundo lugar, o Estado administrativo, nascido em uma
territorialidade de tipo fronteiriço nos séculos XV−XVI e que corresponderia a
uma sociedade de regulamento e de disciplina; finalmente, um Estado de governo
que não é mais essencialmente definido por sua territorialidade, pela
superfície ocupada, mas pela massa da população, com seu volume, sua densidade,
e em que o território que ela ocupa é apenas um componente. Este Estado de
governo que tem essencialmente como alvo a população e utiliza a instrumentalização
do saber econômico, corresponderia a uma sociedade controlada pelos
dispositivos de segurança.
Nas próximas lições, pretendo mostrar como a governamentalidade nasceu a
partir de um modelo arcaico, o da pastoral cristã, apoiou−se em seguida em uma
técnica diplomático−militar e finalmente como esta governamentalidade só pôde
adquirir suas dimensões atuais graças a uma série de instrumentos particulares,
cuja formação é contemporânea da arte de governo e que se chama, no velho
sentido da palavra, o dos séculos XVII e XVIII, a polícia. Pastoral, novas
técnicas diplomático−militares e finalmente a polícia: eis os três pontos de
apoio a partir de que se pôde produzir este fenômeno fundamental na história do
Ocidente: a governamentalização do Estado.
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