Literatura negra:
uma voz quilombola na literatura brasileira
Conceição
Evaristo
Doutoranda em Literatura
Comparada
Universidade Federal
Fluminense – UFF
Ao
propormos uma leitura em torno da Literatura negra, julgamos necessária mesmo
que ligeira, uma reflexão sobre a transposição e a continuidade das culturas
africanas em solo brasileiro.
O primeiro exercício de
sobrevivência efetuado pelos africanos deportados no Brasil, assim como em toda
diáspora, foi talvez o de buscar recompor o tecido cultural africano que se
desteceu pelos caminhos, recolher fragmentos, traços, vestígios, acompanhar
pegadas na tentativa de reelaborar, de compor uma cultura de exílio refazendo a
sua identidade de emigrante nu. (GLISSANT, 1996)1.
O homem africano no
movimento de reterritorialização encontra no culto da tradição a possibilidade
de viver um continuum apesar de espaço e tempo históricos diferentes. Tradição
que para Muniz Sodré (1988)2.
“Afirma-se não como forma
paralisante, mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma
negro na continuidade histórica.”
Para Edouard Glissant, o
emigrante nu, ainda que despojado de tudo, principalmente de sua língua,
recompõe, entretanto a partir de vestígios, a sua cultura. Essa recomposição par
traces, tratada por Glissant3, é também destacada por Wilson Barbosa (1994)
que vê a cultura negra brasileira guardando “grande parte dos instrumentos
materiais da cultura africana ainda vivos embora simplificados.” Barbosa
exemplifica informando que na África existem sete tipos de gunga ou berimbau,
no Brasil, porém, só sobrevive um. Os sete berimbaus africanos guardam
significações diferentes entre si, relacionadas a entidades e estados grupais
diversos. A quantidade de instrumentos, e a função diferencial de cada um,
deixaram de existir na América, porque, ao juntarem-se as variadas culturas
africanas, surgiu “um novo significado, uma nova leitura para um conceito síntese.”4 E o autor continua:
“(...) pode-se esquecer as
formas sagradas do berimbau, mas não se perde o berimbau, e a sua função
convocatória. Se a Cultura não pode se reproduzir pelo seu máximo, ela
reproduzirá pelo seu mínimo, mas ela ainda será produzida".
É interessante notar o
aspecto provocativo de uma cultura que se reprime, ela se reduz, mas ao mesmo
tempo, se concentra: ela caminha por uma centralidade, diminui os seus gestos
expansivos, mas mantém-se por gestos essenciativos. 5
O africano, emigrante nu,
trazido como escravo, tendo perdido o seu território físico, ao chegar na
diáspora, busca a reterritorialização no terreiro. Vai ser nesse espaço
“território político-mítico-religioso” que o patrimônio simbólico do africano e
seus descendentes vai encontrar o seu lugar de transmissão e preservação,
conforme pontua Muniz Sodré. (1988)6.
“O
espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura
fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai
tentar refazer a sua família, e o seu clã, que tal como na África, são formados
independentemente de laços sanguíneos No espaço do terreiro, o indivíduo
buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai
reencontrar a sua nação".
O terreiro vai induzir em
seus filhos posturas, comportamentos, assunções de outras coletividades. Várias
criações como os afoxés, congadas, maracatus, folias, grupos de samba podem ser
reconhecidas como “desdobramento das matrizes simbólicas dos terreiros,
conforme atesta Muniz Sodré.
Com relação aos terreiros,
qualquer denominação que recebam, candomblé, Xangô, pajelança, Jurema, catimbó,
tambor de mina, umbanda, Muniz Sodré pontua que:
“Em qualquer deles,
entretanto permaneceu ainda hoje o paradigma – um conjunto organizado de
representações litúrgicas, de rituais nagô – mantidos em sua maior parte pela
tradição Ketu.”7
O terreiro é visto como um
quilombo, por Marco Antônio Chagas Guimarães em sua Dissertação de Mestrado, em
Psicologia, sobre a construção de identidade em comunidade de terreiro.
“(...) Foram e ainda são
quilombos as comunidades de terreiro que ao longo da história do negro no
Brasil mostraram ter sido o lócus de engendramento por suas características
especiais de útero mítico, que possibilitou a reaglutinação dos elementos
fundamentais para a manutenção do negro enquanto grupo e cultura.”8
A
Mística do Quilombo na Literatura Negra Brasileira
A palavra poética é um modo
de narração do mundo. Não só de narração, mas talvez, antes de tudo, de
revelação do utópico desejo de construir um outro mundo. Pela poesia,
inscreve-se, então, o que o mundo poderia ser. E, ao almejar um mundo outro, a
poesia revela o seu descontentamento com uma ordem previamente estabelecida.
Para determinados povos,
principalmente aqueles que foram colonizados, a poesia torna-se um dos lugares
de criação, de manutenção e de difusão de memória, de identidade. Torna-se um
lugar de transgressão ao apresentar fatos e interpretações novas a uma história
que antes só trazia a marca, o selo do colonizador. É também transgressora ao
optar por uma estética que destoa daquela apresentada pelo colonizador.
Pela poesia, o colonizado,
segundo Homi Bhabha, não só encena o “direito de significar” como também
questiona o direito de nomeação que é exercido pelo colonizador sobre o próprio
colonizado e seu mundo. (BHABHA, p. 321).
Viver a poesia em tais
circunstâncias, de certa forma, é assegurar o direito à fala, pois pela criação
poética pode-se ocupar um lugar vazio apresentando uma contra-fala ao discurso
oficial, ao discurso do poder.
Nas sociedades ágrafas, a
poesia conta/canta a tradição, os mitos de fundação, as histórias, os
provérbios, a sabedoria. O canto poético planta e rega a memória coletiva.
A poesia oral, presente nas
culturas tradicionais africanas, foi incorporada à literatura produzida pelos
poetas, contistas e romancistas africanos comprometidos com a luta de
libertação do povo. A poesia foi arma, foi estratégia de luta.
No Brasil, podemos
encontrar, sobretudo na voz dos descendentes de africanos, uma poética que
rememora a Mãe África, denuncia a condição de vida dos afro-brasileiros, e, nas
últimas décadas, apresenta-se afirmando um sentimento positivo de etnicidade.
Tendo sido o corpo negro,
durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço
individual e social pelo sistema escravocrata do passado e, hoje ainda por
políticas segregacionistas existentes em todos, se não em quase todos, os países
em que a diáspora africana se acha presente, coube aos descendentes de
africanos, espalhados pelo mundo, inventar formas de resistência. Vemos, pois,
a literatura buscar modos de enunciação positivos na descrição desse corpo. A
identidade vai ser afirmada em cantos de louvor e orgulho étnicos, chocando-se
com o olhar negativo e com a estereotipia lançados ao mundo e às coisas negras.
O corpo negro vai ser
alforriado pela palavra poética que procura imprimir e dar outras re-lembranças
às cicatrizes das marcas de chicotes ou às iniciais dos donos-colonos de um
corpo escravo. A palavra literária como rubrica-enfeite surge como assunção do
corpo negro. E como quelóides – simbolizadores tribais – ainda presentes em
alguns rostos africanos ou como linhas riscadas nos ombros de muitos
afro-brasileiros – indicadores de feitura nos Orixás – o texto negro atualiza
signos-lembranças que inscrevem o corpo negro em uma cultura específica.
Preocupações
surgem quanto ao termo literatura negra, pois há a argumentação de que a arte é
universal, não tem fronteiras. Sim, mas dentro dessa universalidade, há o
particular, há o específico, há no caso, da literatura negra, a identidade
étnica e cultural, revelando-se em momentos discursivos quando se busca uma
ação afirmativa, construída pela palavra literária, e que dá um sentido
positivo à etnicidade negra.
Luiza Lobo, (1989)9 ao procurar conceituar o que seria literatura
negra, levanta o dado étnico, que em sua definição é marca substancial. Pontua
que a existência da literatura negra se dá a partir do momento em que o negro
deixa de ser somente tema, deixa de ser objeto para uma literatura alheia e
passa a criar a sua própria, assumindo o papel de sujeito. Para ela, essa
mudança de posição, de papel, define o surgimento da literatura negra no
Brasil.
“Um dos aspectos primordiais
que ao meu ver define a literatura negra, muito embora não seja um elemento
norteador, em geral, dos estudos sobre o assunto, é o fato de a literatura
negra do Brasil – ou afro-brasileira – ter surgido quando o negro passa de
objeto a sujeito dessa literatura e cria a sua própria história; quando o negro
visto geralmente de forma estereotipada, deixa de ser tema para autores brancos
para criarem sua própria escritura no sentido de Derrida: a sua própria visão
de mundo. Só pode ser considerada literatura negra, portanto, a escritura de
africanos e seus descendentes que assumem ideologicamente a identidade de
negros”(1988).10
Zilá Bernd indaga11: “que
fator será o determinante da fissura a partir da qual se pode falar em
literatura negra e não apenas em temática da escravidão?”
E responde:
“que esse demarcador de
fronteiras é o surgimento de um sujeito de enunciação no discurso
poético, revelador de um processo de conscientização de ser negro entre
brancos”.12
Reafirmando que não é
somente a cor da pele do escritor que vai definir, situar o seu texto como
literatura negra, mas também a sua postura ideológica, a maneira como ele vai
viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor, concordamos com
Márcio Barbosa, (1985)13 quando o escritor do
Quilombhoje diz que a “existência da literatura negra é posterior à
existência de uma consciência negra”.
Márcio Barbosa, tomando como
referencial de negro escritor o poeta Cruz e Sousa, impõe e responde a questão:
“Pode-se falar de uma literatura negra?”
Tomamos
o caso específico da poesia: Cruz e Sousa entra para a história da literatura,
entra como um escritor que, por casualidade, era negro. O fato de ser negro
nunca foi nos apresentado pela história como condição essencial e anterior à
sua condição de escritor. A diferença é fundamental: a anterioridade da
condição de escritor lhe determina um papel social diferente daquele que seria
determinado pela anterioridade da condição de ser negro. A anterioridade de ser
um escritor (que por acaso era negro) lhe dá uma especificidade que tem a ver
com o papel social dos demais escritores. A anterioridade da condição de ser
negro (por acaso escritor) lhe daria uma especificidade que teria a ver com o
papel social dos demais negros. O fato de ser escritor lhe garante uma
universalidade em que as demais coisas lhe aparecem como qualidades adicionais.
O fato de ser negro lhe
daria uma particularidade que o envolveria nas responsabilidades do seu
presente político, na sua especificidade cultural enquanto oprimido. Esta
diferença é, sobretudo, temporal e gerada por uma opção consciente. Uma opção
que depende unicamente do escritor e seu direcionamento aos problemas do grupo
social é que vai defini-la. Por isso a existência de uma li-teratura negra é
posterior à existência de uma consciência negra. 14
A literatura negra apresenta
um forte teor ideológico, pelo fato de lidar, de tomar como pano de fundo e de
eleger como sua temática a história do negro, a sua inserção e as relações
étnicas da sociedade brasileira.
Há muito tempo que a
literatura negra se insinua na literatura brasileira. Otavio Ianni (1988)15 aponta Luís Gama (1830-1882), Cruz e Souza
(1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) e, até mesmo, o polêmico, no que se
refere à sua assunção como negro, Machado de Assis, como vozes precursoras de
um discurso literário negro. Uns se revelando de forma patente, outros, de
maneira latente, mas onde é possível perceber a condição negra em seus textos.
A literatura negra tem o
negro como protagonista do discurso e protagonista no discurso, – “sujeito que produz e que está reproduzido
naquilo que produz”.16
Quando falamos de sujeito na
literatura negra, não estamos falando de um sujeito particular, de um sujeito
construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está
abraçado ao coletivo.
O sujeito da literatura
negra tem a sua existência marcada por sua relação, e por sua cumplicidade com
outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros
e, ao falar dos outros, fala de si. (ORLANDI, 1988)17
A voz do poeta não é uma
fala única, solitária, mas a ressonância de vozes plurais. Realiza a fusão
Eu/Nós, apresentando uma das características da literatura menor, apontada por
Deleuse e Guatarri: “Tudo adquire um valor coletivo”.18
A literatura negra nos traz
a revivência dos velhos griots africanos, guardiões da memória, que de
aldeia em aldeia cantavam e contavam a história, a luta, os heróis, a
resistência negra contra o colonizador. Devolve-nos uma poética do solo, do
homem africano, transplantada, reelaborada nas terras da diáspora.
O que caracteriza uma
literatura negra não é somente a cor da pele ou as origens étnicas do escritor,
mas a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro
escritor. Não podemos deixar de considerar que a experiência negra numa
sociedade definida, arrumada e orientada por valores brancos é pessoal e
intransferível. E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor
e essa experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando
essa vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a
sua escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro – diferente e diferenciador do discurso
institucionalizado sobre o negro – podemos ler em sua criação referências de uma
literatura negra.
David Brookshaw (1983),
reconhece que os escritores negros podem produzir internalizando e defendendo
estereótipos contra eles mesmos, todavia faz uma ressalva:
“(...) O aspecto importante
a emergir da obra dos escritores negros, como veremos, é que, embora possam
defender e mesmo internalizar estereótipos criados pela tradição branca a
respeito deles,suas obras raramente limitam-se a isso, mas inevitável e
desejavelmente, transmitem um conhecimento mais íntimo da posição do negro na
América Latina e uma perspectiva mais pessoal e honesta de suas aspirações.”19
Apropriar-se de sua história
e de sua cultura, reescrevê-la segundo a sua vivência, numa linguagem que possa
ser libertadora, é o grande desafio para o escritor afro-brasileiro. Ele
escreve, se comunica através de um sistema linguístico que veio aprisioná-lo
também, enquanto código representativo de uma realização linguística da cultura
hegemônica.
O predomínio da língua
portuguesa, conforme expõe Alberto Musa (1990)20, tomando como exemplo o caso
brasileiro, marcou seus efeitos, desde o início da colonização, já que era o
idioma de quem mantinha o poder político-econômico. A preponderância da língua
do colonizador se fará notar em relação às línguas indígenas e africanas,
utilizadas nas comunicações intergrupais das várias etnias que aqui aportaram.
A língua portuguesa significava a continuidade de um estado de poder, guardando
também um status superior na hierarquia das línguas. A sua assimilação
servia para diminuir a capacidade de um levante da população escrava e
dificultava a construção de um compromisso ideológico entre os africanos e os
seus primeiros descendentes já nascidos no Brasil.
Apesar da comunidade negra
brasileira ter perdido quase toda a referência das línguas africanas, com
exceção de adeptos do candomblé, a produção literária negro-brasileira se
aproxima ora mais, ora menos de uma expressividade oral, herança das culturas
africanas no solo brasileiro. Oralidade que garantiu a nossa memória e se
presentifica na escrita afro-brasileira.
Luiza Lobo (1987), ao
analisar textos de literatura negra brasileira, tem um parecer sobre oralidade
presente nessa produção.
“A diferença entre o escrito
e o falado, entre o significado lógico e o sentido pragmático que tem marcado
toda cultura ocidental, notadamente o Primeiro Mundo, tem sido conscientemente
abandonada pelos escritores de origem africana, até mesmo na tentativa de
encontrar um universo simbólico discursivo próprio.”21
A literatura negra
brasileira, ao apresentar um discurso outro que pretende uma auto-apresentação
do negro – discordante de um discurso de representação do negro produzido pela
literatura dominante – vale-se da
paródia como maneira de inverter, de subverter um discurso que, muitas vezes,
ainda consagra o negro como res, coisa “ex-ótica” e que não cabe no campo de visão de um olhar viciado,
limitado, que não compreende a alteridade, a não ser por um juízo de valor.
O discurso paródico da
literatura negra, por meio de um enfrentamento ideológico, desenha novos
caminhos, novos contornos para a alteridade negra, redefinindo o lugar da
diferença.
A paródia como a
“intertextualidade das diferenças” (Afonso Romano de Sant’Anna, 1991)22 torna-se um excelente recurso para uma
literatura que se faz na “contramão”23, nos interstícios de uma outra, que brota dos
lugares de um suposto silêncio e que vem virando pelo avesso, comendo pelas
beiradas um discurso que já se sacramentou a respeito do negro.
Como apropriação de um
discurso alheio, a paródia se torna o pulo do gato da literatura negra,
quando o texto negro-brasileiro consegue quebrar violentamente o “espelho”24 no qual fingidamente começou a se contemplar,
ou quando constrói uma invertida imagem.
A transgressão oferecida
pelos textos paródicos da literatura negra-brasileira pode ser observada nos
textos em que a palavra literária vem reconstruindo a história. A literatura
negra toma como parte do corpus a História do povo negro vivida e
interpretada do ponto de vista negro, propondo uma leitura transgressora da
História oficial e escrevendo a história dos dominados.
Reverter os valores,
introduzir personagens na história, dar-lhes um espaço/ tempo e uma outra
movimentação a partir de uma ótica e de uma criação próprias, encontrar seus
heróis e construir uma épica negra é uma das constantes que pode ser observada
na literatura negra.
A saga Palmarina vai ser
sempre retomada. Mulheres como Dandara, Luiza Mahin, Aqualtume serão temáticas
do canto poético negro.
Abdias Nascimento (1980)
partindo do modelo de organização quilombola formula uma espécie de “práxis
afro-brasileira – o quilombismo”, que
pode ser reconhecida nos vários tipos de organizações coletivas negras. Essa
práxis afro-brasileira nascida nos quilombos, pontos de resistência ao sistema
escravagista, de certa forma vai estar presente em “outros focos de resistência
física e cultural” ao longo da história do negro brasileiro, como nas
irmandades religiosas, clubes, terreiros, escolas de samba etc.25, desempenhando um papel relevante na
sustentação da continuidade africana” (p.225).
Há uma mística quilombola latente ou patente, como forma defensiva e
afirmativa do negro, na sociedade brasileira.
A retomada do nome Quilombo e/ou Palmares em várias organizações do
passado, e ainda no presente, aponta para o significado da ação quilombola como
um paradigma de organização social entre os negros brasileiros. Abdias Nascimento acrescenta ainda:
“Com efeito, o quilombismo
tem se revelado fator capaz de mobilizar disciplinarmente as massas negras por
causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na
história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros.”26
Há uma “idéia-força” advinda
do modelo quilombista que promove uma “reatualização” do quilombismo nas
afirmações afro-brasileiras. Há “um ideal forte e denso que via de regra
permanece reprimido pelas estruturas dominantes” podendo também passar por um
processo de sublimação pelos mecanismos de defesa do inconsciente individual ou
coletivo, afirma ainda o estudioso e político afro-brasileiro (p.256).
A historiadora Beatriz
Nascimento27,
também destaca a organização quilombola, como paradigma organizativo de
estratégias afirmativas dos negros que foram trazidos para as Américas.
Após a Abolição, a mística
quilombola interiorizou-se nos descendentes livres de africanos. Não mais como
uma mística de “guerra bélica declarada, mas como esforço de combate
pela vida”. A força vital,
experimentada pelo jovem que se iniciava no Kilombo, componente do sistema
filosófico bantu, está no modo de ser do brasileiro. “A aparente aceitação das dificuldades”,
diz a estudiosa da temática, fundamenta-se nesta filosofia, mas é preciso
fortalecer o corpo e a mente como instrumentos de luta.28 As religiões afro-brasileiras, tanto as de
origem bantu como as de fundamento nagô operam com “essa força vital,
máquina-de-guerra existencial e física.29 A religião marca o adepto como no quilombo
ancestral quando ele era marcado por ritos de iniciação.
Ao apropriar-me do conceito
de quilombismo proposto por Abdias Nascimento e por Beatriz Nascimento,
acrescento um outro aspecto talvez implícito nas considerações dos dois
estudiosos. Enfatizo a diferença entre quilombo e gueto. Aprofundo aqui um
pensamento de Mirian Alves30, quando a poetisa afro-brasileira diz que enquanto gueto
supõe impotência, quilombo traz em si a ideia de resistência, de
organização.
Podemos pensar o quilombo
como um espaço de vivência marcado pelo enfrentamento, pela audácia de
contradizer, pelo risco de contraviver o sistema.
O quilombo não garantia ao
escravo a liberdade. Era escravo e escravo fugido redo-brando assim a sua
exclusão social. O quilombola era o marginal, o fora-da-lei, como ob-serva Zila
Bernd31. (1988, p.80).
Distingo ainda quilombo de
senzala, porque quilombo é um lugar de escolha, senzala, como gueto,
guarda um sentido de lugar vivido por imposição. Entretanto, a senzala subverte
também a ordem, na medida em que é a oposição da casa-grande, constituindo-se
um pólo ameaçador.
A mística do quilombo vai
estar presente em várias criações da literatura negra brasileira. O
fato-símbolo da resistência negra, Quilombo dos Palmares, vai ser reverenciado.
Zumbi é o herói e a vítima do cotidiano.
Interessante observar que
Lima Barreto, um dos precursores da literatura negra, nomeia o seu espaço
particular, a sua casa, o seu referencial familiar como “Vila Quilombo”,
conforme assinala Regis de Morais (1983)32. Poderíamos pensar em uma
reapropriação de um território cultural, nomear negramente seu mundo.
A literatura negra brasileira
não está desvencilhada das pontuações ideológicas do Movimento Negro. E embora
durante quase todo o processo de formação da literatura brasileira existissem vozes
negras desejosas em falar por si e de si, a expressividade negra vai ganhar
uma nova consciência política sob inspiração do Movimento Negro, que volta para
a reafricanização, na década de 70. O Movimento de Negritude, no Brasil,
tardiamente chegado, vem misturado aos discursos de Lumunba, Black Panter,
Luther King, Malcon X, Angela Davis e das Guerras de Independência das colônias
portuguesas. Esse discurso é orientado por uma postura ideológica que levará a
uma produção literária marcada por uma fala enfática, denunciadora da condição
do negro no Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo e das coisas
negras, fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de
lamentos, mágoa e impotência.
A literatura negra não é
feita só de banzo; para isso o samba existe. O corpo esteve escravo, mas houve
e sempre há a esperança de quilombo.
Na Literatura Negra,
encontramos um canto nascido no novo Ayê, na nova terra. E, na “História para
ninar Cassul-Buanga”, de Nei Lopes (1996)33, ouvimos na voz da diáspora uma
louvação à chegada, ao trabalho, à resistência e à fundação de um novo mundo. O
poeta canta para que a memória não se aparte de nós.
História para ninar
Cassul-Buanga
(com acompanhamento de
marimbas)
Um dia, Cassul-Buanga,
alguns chegaram:
A pólvora no peito, uma
bússola nos olhos
E as caras inóspitas
vestidas de papel.
Vieram numa nau de velas
caras,
Bordadas de Cifrões.
Suas mãos eram de ferro
E falavam um dialeto
De medo e ignorância.
E fomos.
Amontoados, confundidos,
fundidos, estupefatos
Nossas dignidades eram dadas
mar atrás
Aos peixes.
Chegamos:
Nosso suor foi o doce sumo
de suas canas
– nós bagaços
Nosso sangue eram as gotas
de seu café
– nós borras pretas.
Nossas carapinhas eram
nuvens de algodão,
Brancas,
Como nossas negras
dignidades
Dadas aos peixes.
Nossas mãos eram sua
mão-de-obra
Mas vivemos, Cassul. E
cantamos um blue!
E na roda um samba
De roda
Dançamos.
Nossos corpos tensos
Nossos corpos densos
Venceram quase todas as
competições.
Nossos poemas formaram um
grande rio.
E amamos e nos demos.
E nos demos e amamos.
E de nós fêz-se um mundo.
Hoje, Cassul, nossas
mulheres
– os negros ventres de veludo-
Manufaturam, de paina, de
faina
Os travesseiros
Onde nossos filhos,
Meninos como você,
Cassul-Buanga,
Hão de sonhar um sonho tão
bonito...
Porque Zâmbi mandou. E está
escrito.
Notas Bibliográficas:
1. EDOUARD GLISSANT, Introduction
à Une Poétique Du Divers, Paris, Editions, Gallimand, 1996,
p.15.
2. MUNIZ SODRÉ , O
Terreiro e a Cidade, Petrópolis, Vozes, 1988, p.56.
3.
EDOUARD GLISSANT, Introduction à Une Poétique Du Divers, p.16.
4. WILSON BARBOSA, Atrás
do Muro da Noite, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1994, p.31.
5 Idem, p.31.
6. MUNIZ SODRÉ, O
Terreiro e a Cidade, p.50.
7. Idem, p.51.
8 MARCOS ANTÔNIO GUIMARAES, É
um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo de construção de
identidade em comunidade de Terreiro – Dissertação de Mestrado. PUC/RJ,
1990, p.24.
9. LUIZA LOBO, “A Pioneira
Maranhense Maria Firmina dos Reis” in Estudos Afro-Asiáticos, RJ
- nº 16 - 1989, p.91.
10. Idem., p. 91.
11. ZILÁ BERND, Introdução à Literatura Negra, São
Paulo, Brasiliense, 1988, p.48.
12. Idem, p.48.
13. MARCIO BARBOSA,
“Questões sobre Literatura Negra” in Reflexões sobre a Literatura
Afro-Brasileira, Quilombhoje, São Paulo, Conselho de Participação e
Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985, p.51.
14. Idem, pp 50-51.
15. OTÁVIO IANNI,
“Literatura e Consciência” in Estudos Afro-Asiáticos, RJ, nº 15, 1988,
p. 208, 209.
16. ENI PULCENELLI ORLANDI,
“Incompletude do Sujeito” in Sujeito e Texto, São Paulo/PUC/1988,
p.11.
17. Idem, p.15.
18. GUATARRI, F. &
DELEUSE, Kafka: Por uma Literatura Menor, 1977, p.25.
19. DAVID BROOKSHAW, Raça e Cor na Literatura Brasileira,
Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983, p. 145, 146.
20.ALBERTO BAETA NEVES MUSA,
“Origens da Poesia Afro-Brasileira: Condicionamentos Lingüísticos in Estudos
Afro-Asiáticos nº 19, 1990, p.56.
21. LUIZA LOBO, “Literatura
Negra Brasileira Contemporânea“ Estudos Afro-Asiáticos nº 14,
1987, p.116.
22. AFONSO ROMANO DE
SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo, Ática, 1991, p.28
23. ZILÁ BERND, Negritude
e Literatura na América Latina, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987, p.17.
24. AFONSO ROMANO DE
SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, p.32.
25. ABDIAS NASCIMENTO, O Quilombismo, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 255.
26. Idem, p. 225.
27. BEATRIZ NASCIMENTO, “Kilombo”
texto mimeografado, s/d.
28. Idem.
29. Idem.
29. Mirian Alves, poetisa
paulista, uma das mais ativas participantes do grupo Quilombhoje Literatura.
30. ZILÁ BERND, Introdução
à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988, p.29.
31. REGIS DE MORAIS, Lima
Barreto, São Paulo, 1983, p.17.
32. NEI LOPES, Incursões
sobre a Pele, Rio, Artium, 1996, pp 23, 24.
Referências Bibliográficas:
BARBOSA, Marcio, “Questões sobre
Literatura Negra”. In: Reflexões
sobre a Literatura Afro-Brasileira,
Quimlombhoje, São Paulo, Conselho de Participação e Desenvolvimento da
Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985.
BHABHA. K. OMI. O
Local da Cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
BERND, Zilá, Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988.
___________, Negritude e Literatura na América Latina,
Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987.
BRITO, Maria da Conceição Evaristo
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nossa afro-brasilidade. Dissertação
de Mestrado, PUC/RJ, 1996.
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na Literatura Brasileira,
Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983.
GUATARRI, F. & DELEUSE, Kafka: Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro, Imago,
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