NOTAS SOBRE A EVOLUÇÃO
DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL
Luiz P. P. Torelly
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional
luiz.torelly@iphan.gov.br
luiz.torelly@iphan.gov.br
“O conceito de
cultura está intimamente
ligado às expressões da autenticidade, da
integridade e da liberdade. Ela é uma
manifestação coletiva que reúne heranças do
passado, modos de ser do presente e
aspirações, isto é, o delineamento do futuro
desejado.” Milton Santos.
Os grifos foram feitos por mim.
1 - INTRODUÇÃO
Neste ano de 2012, o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia vinculada ao Ministério da
Cultura, celebra 75 anos de sua criação. Uma das mais longevas instituições
públicas brasileiras e a primeira dedicada à preservação do patrimônio cultural
na América Latina, o IPHAN tem uma trajetória que se confunde com a formação
cultural do Brasil. Seu trabalho – compartilhado por uma sociedade complexa e
em veloz transformação – além de preservar, salvaguardar e acautelar bens e manifestações
culturais da nossa gente é aquilo que não percebemos, ou melhor, que sentimos
como inato: colaborar para a constituição das diferentes identidades que
compõem a diversidade cultural do País, do nosso sentido de nação, do que é ser
brasileiro.
Ao longo das próximas páginas iremos refletir
sobre alguns aspectos da missão institucional do IPHAN, seus antecedentes, sua
gênese, sua ação discricionária e subjetiva, própria das instituições voltadas
para a preservação, e principalmente sobre a evolução e a abrangência do
conceito de patrimônio cultural.
Vivemos um momento em que concepções
que datam dos anos 1970, idealizadas por Aloísio Magalhães, como as noções de
referência e bem cultural, e que têm suas origens nas formulações de Mário de
Andrade, começam a se concretizar, uma vez que o conceito de excepcionalidade é
questionado por instituir uma visão unidimensional, privilegiando a herança cultural
das elites e das classes dirigentes e subalternizando as demais manifestações e
os legados. Igualmente, a abordagem estanque do que denominamos patrimônio
material e imaterial vem sendo substituída por visões integradoras, como a
chancela da Paisagem Cultural como faces de um mesmo processo.
Enfrentamos hoje, como outros já o fizeram
no passado, o desafio da politização. Seja no âmbito da cidadania – no sentido
de ampliar a participação social e de assegurar voz e oportunidade de
manifestação e ação a grupos marginalizados pela impossibilidade de acesso aos
meios institucionais e midiáticos, ou por não partilharem da conceituação
cultural dominante – seja no sentido de democratização de política pública,
integrada às demais políticas reivindicadas pela sociedade, e não mais por ações
isoladas ou desconectadas do tecido econômico e social. O economista e ministro
da Cultura Celso Furtado sempre destacou em sua obra o papel relevante da
política cultural, por sua importância na percepção dos fins e na mudança das
mentalidades: “A política cultural consiste em um conjunto de medidas
cujo objetivo central é contribuir para que o desenvolvimento assegure a
progressiva realização das potencialidades dos membros da coletividade.”i
2 - ALGUNS ANTECEDENTES
O conceito de patrimônio cultural, da forma como hoje o conhecemos, surge
na aurora da Revolução Industrial, ao final do século XVIII, no bojo da Revolução
Francesa, instituidora de uma nova ordem política, jurídica, social e econômica,
que consolida o conceito de nação e de nacionalidade e reconhece os direitos
fundamentais do homem. O mundo de então tinha um bilhão de habitantes – contra
os sete bilhões atuais – e as mudanças na sociedade e no habitat, natural e
construído, ainda se processavam lentamente para os padrões contemporâneos,
porém com intensidade suficiente para promover um processo de industrialização
e urbanização crescentes, modificando profundamente meios de produção,
instituições seculares, ideologias, sociedades, costumes e fronteiras, sejam
políticas ou do conhecimento. “Tudo o que é sólido desmancha no
ar.”ii
As nações da Europa Ocidental e da América do Norte (Estados Unidos) demandavam
um conjunto de valores que as unificasse e que permitisse um reconhecimento
mútuo de seus cidadãos, em relação a uma simbologia comum. Os monumentos, as
grandes expressões da arquitetura religiosa, civil e militar, os espaços
públicos de intenso convívio social, a música, os documentos e os livros, assim
como as obras de arte de feição erudita, formam a memória coletiva de então,
capaz de assegurar à unidade política a identidade nacional necessária.
Assim como Portugal, onde o iluminismo e a enciclopédia tiveram sua influência
reduzida em relação aos demais países europeus, o Brasil, por sua condição de
país colonizado e periférico, esteve à margem desse processo, embora
vivenciasse um outro bem peculiar, como veremos adiante: uma considerável
autonomia cultural sem correspondência na independência econômica e política.
Esta chega em 1822, mas mantém o regime monárquico, e em seu comando a Casa
Real de Bragança, assegurando a continuidade da estrutura agrária apoiada no
latifúndio, na escravatura e na monocultura, ligada aos interesses
ultramarinos. A Proclamação da República, em 1889, embora tenha significado a
instauração de uma nova ordem política, pouco alterou o quadro estrutural do
País.
A partir dos anos 20, com o início da industrialização e do crescimento das
cidades, acelera-se a dinâmica social e econômica. Novos atores participam do
cenário político: uma classe média crescente, o surgimento de uma nova elite
vinculada à indústria e ao comércio, uma classe operária que se organiza em
sindicatos e partidos classistas. O Brasil, a exemplo de outros países, adentra
tardiamente no século XX com a Primeira Guerra Mundial, conforme registra o
historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A Era dos Extremos: o
breve século XX: 1914-1991.iii
A Semana de Arte Moderna de 1922 traz à cena cultural brasileira novos
valores estéticos identificados com as vanguardas europeias. Valores esses que, em nosso ambiente, onde passado e
presente coexistem com grande proximidade, demonstram-se paradoxais e
contraditórios: ao mesmo tempo, crítico das instituições e pregando a ruptura
com o passado acadêmico, mas identificado com ideias liberais e conservadoras.
O manifesto antropófago de Oswald de Andrade, de 1928, propõe-se a deglutir as
formas importadas para produzir uma arte e cultura genuinamente nacionais. O
resgate de um Brasil de feição mestiça e desgarrado dos padrões europeus de
então, mais indígena, mais africano, mais caboclo e caipira, inicia uma nova
síntese cultural que procura abarcar as múltiplas faces da brasilidade.
Trata-se de reinventar o País, a partir da valorização de um passado até então
desprezado.
O movimento modernista rapidamente se hegemoniza no cenário cultural e
político brasileiro. Artes plásticas, literatura, poesia, música, escultura,
arquitetura, urbanismo, sociologia, história. Em pouco mais de uma década os
cânones foram definitivamente substituídos. Uma nova concepção de cultura e do
imaginário nacional, que inicia a incorporação das manifestações populares,
surge em um contexto social onde as mazelas centenárias permanecem, mas a
modernização é crescente. São as famosas “ideias fora de lugar”,iv para
as quais, Roberto Schwarz nos chama a atenção em seu clássico ensaio homônimo.
As mudanças sociais, econômicas e políticas, ensejadas pela Revolução de 1930,
exigirão uma nova organização do Estado brasileiro, onde a valorização da nacionalidade
é essencial para a estruturação de um projeto de país e para a afirmação do
regime.
Uma conjunção histórica ímpar une ao governo autoritário de Getúlio Vargas o que se pode chamar, sem exageros, de uma plêiade de
intelectuais, cujas obras permanecem referenciais na atualidade: Mário de
Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Carlos
Drummond de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Lúcio Costa, Heitor
Villa-Lobos, Cândido Portinari e outros tantos de grande importância.
As décadas de 20 e 30 do século passado foram pródigas em realizações e
marcos em vários campos do conhecimento. Na história e na sociologia surgem
livros ainda hoje centrais na cultura brasileira, como Casa Grande e
Senzala, de Gilberto Freire, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda. Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Mário de Andrade, autor de Pauliceia
Desvairada (1922) e de Macunaíma (1928), já o são, nos anos 30, poetas
e literatos modernos bastante consagrados, sendo este último, artista e pensador
de múltiplas facetas, um dos principais mentores da Semana de 22. Na
literatura, Graça Aranha, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado
promovem uma revolução temática e estilística que irá pautar as letras brasileiras
por décadas.
Lúcio Costa, nas palavras de Lauro Cavalcanti, “como estudioso do passado
e idealizador de novas formas”v é o formulador do modernismo na arquitetura e
no urbanismo e constitui-se, com Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário de
Andrade, no principal pilar de estruturação do IPHAN e, consequentemente, de
legitimação de um projeto de construção da nacionalidade e da identidade
brasileiras. Além das ideias, o elo comum que os une é a figura carismática do
ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, a um só tempo conservador, prócer do
regime varguista e mecenas das artes e das letras.
As missivas trocadas entre Mário de Andrade e Gustavo Capanema são documentos
reveladores da relação de proximidade entre os intelectuais e o regime de
Vargas(vi). Em um mundo onde o totalitarismo era presente sob vários matizes, à
esquerda e à direita, a racionalidade e os modelos reducionistas dele
decorrentes pareciam capazes de moldar a realidade. O cenário que assistíamos
no Brasil, certamente, guardava muitos pontos em comum com esse contexto. O
conceito de que tradição e modernidade podem caminhar juntas é um deles. Uma
modernidade que, embora ousada em suas formulações estéticas e formais, convive
com uma estrutura socioeconômica anacrônica.
3 – GÊNESE – A FASE HEROICA
Desde a segunda década do século XX, uma série de iniciativas de
intelectuais foi despertando sensibilidades e gerando acúmulo para a criação de
uma instituição nacional de preservação do patrimônio cultural. Minas Gerais
era uma espécie de “Meca” para a redescoberta do Brasil. Além dos já citados,
são personagens fundamentais: Alceu de Amoroso Lima e o francês Blaise
Cendrars, redator dos estatutos da Sociedade dos Amigos dos Monumentos
Históricos do Brasil – proposta de instituição que contava com o apoio da
aristocracia do café – e também Oswald de Andrade, que sugeriu a criação do
Departamento de Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil
(Dodepab), ao Presidente da República Washington Luiz, em 1926vii. Na esfera
pública, a criação das Inspetorias Estaduais de Monumentos nos estados da
Bahia, de Minas Gerais e Pernambuco, ainda nos anos 20, assim como a elevação
de Ouro Preto à condição de Monumento Nacional, em 1933, e a criação da
Inspetoria de Monumentos Nacionais, em 1934, estabeleceram antecedentes
indispensáveis à consolidação da ideia.
O inovador e visionário projeto de Mário de Andrade para a criação do então
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), por encomenda do
ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, constituiu-se em referência
central para a elaboração do Decreto-Lei Nº 25, de 1937, que estabeleceu o
conceito de patrimônio cultural e criou o instrumento do tombamento. Conceitos
como o de arte ameríndia e popular, bastante abrangentes, incluindo o que hoje
denominamos de saberes, fazeres e falares, bem como o de paisagem cultural –
sem ainda receber esta denominação –, estão nele presentes, o que lhe confere
impressionante contemporaneidade após tantos anos. As sementes lançadas irão
germinar ao longo das últimas oito décadas, antecipando em vários aspectos –
especialmente na dimensão imaterial – as iniciativas e convenções da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
referência internacional na preservação do patrimônio cultural, criada em 1946.
O Decreto-Lei Nº 25 caracteriza-se principalmente por sua concisão e objetividade.
Sua utilização ao longo de 75 anos, sem modificações em um período de profundas
transformações sociais, econômicas e políticas, é o principal testemunho de
suas qualidades. Incorpora os principais conceitos do projeto de Mário de Andrade, como os de arte
arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, ao
mesmo tempo que introduz o possível tombamento das paisagens naturais e a noção de valor excepcional.
Sua ênfase principal é na definição e na regulamentação da aplicação do instituto do
tombamento, medida inovadora e acertada em uma sociedade cuja elite sempre foi pouco afeita a restrições ao
direito pleno de propriedade, em prejuízo de sua função social.
As circunstâncias históricas e políticas que caracterizaram no Brasil a concepção
de preservação do patrimônio especialmente no IPHAN, além da ausência de outros
instrumentos que não o tombamento, determinaram que as ações de proteção se
concentrassem quase que exclusivamente até os anos 1990, na identificação e na
proteção de monumentos, edifícios e conjuntos urbanos de relevante interesse
histórico e artístico, na denominada “pedra e cal”. Os bens móveis – que desde
o Brasil-Colônia, com a criação do Museu Nacional, em 1818, já recebiam certa
atenção governamental – foram, antes mesmo da criação do IPHAN, valorizados
pela criação de museus, como o do Ipiranga, em 1909, pelo Governo do Estado de
São Paulo e o Histórico Nacional, em 1922.
Essa política se amplia em escala, após 1937, e se soma ao esforço de reconhecimento
internacional, por intermédio da divulgação de livros e textos de escritores
estrangeiros, como o francês German Bazin, o inglês John Bury e o austríaco
Stefan Zweig – autores, respectivamente, de Arquitetura Religiosa Barroca
no Brasil, Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, e Brasil, País do
Futuro. Esse período, acertadamente denominado de “fase heroica”viii,
coincide com os 30 anos (1937/1967) que Rodrigo Mello Franco de Andrade dirigiu
a Instituição, a ponto de simbolizar o patrimônio no Brasil, e a tornou uma das
mais importantes do mundo.
A hegemonia modernista promove uma notável revisão de paradigmas e de
ressignificação da herança cultural brasileira. Nessa dialética tradição/modernidade,
é fundamental lembrar que as artes em geral e a arquitetura em particular,
foram e continuam sendo, entre outras coisas, eficazes instrumentos de
irradiação de ideias e conceitos. O resgate do barroco estilo dominante nos
séculos XVII e XVIII, especialmente o mineiro, até então relegado por ser
considerado excessivo e trágico em sua visão de mundo e metáfora da vida
celestial, valoriza aos olhos do País e do mundo um legado que, embora de
origem ibérica, revela a contribuição singular de arquitetos, artistas, mestres
e músicos – cuja maioria, ao largo de uma formação acadêmica regular, em
condições muito peculiares, produziu um conjunto de realizações de grande
beleza e apuro técnico. Antônio Francisco Lisboa, “o Aleijadinho”, mestres
Ataíde e Valentim, o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, entre
muitos outros, foram reconhecidos por autores como Affonso Ávila, Lúcio Costa e
Lourival Gomes Machado, representantes legítimos da originalidade da produção artística
aqui desenvolvida, em contraste com uma cultura repetitiva dos padrões
europeus, que até então eram a referência de um país que iniciava sua
urbanização e procurava no academicismo a sua feição civilizatória.
A fase heroica liderada por Rodrigo Mello Franco de Andrade, embora prestigiada
politicamente e tendo o concurso de profissionais altamente qualificados e engajados na tarefa de preservar e
conservar o acervo colonial/barroco
brasileiro foi condicionada por um processo estrutural, cujas forças eram
poderosas e velozes: a urbanização. O caso brasileiro, em condições de
subdesenvolvimento e dependência, foi dos mais rápidos e intensos em
termos de deslocamentos demográficos em escala mundial. Em cinco décadas o
País se transformou, tornando-se essencialmente urbano pela migração de
dezenas de milhões de pessoas do meio rural para as cidades – e entre as regiões
geográficas, especialmente, do Nordeste para o Sudeste.
Tal fenômeno promoveu e ainda promove, com menor
intensidade, profundas alterações na sociedade e no território, marcado por
disparidades interpessoais e inter-regionais, grandes concentrações
metropolitanas, segregação socioespacial e degradação ambiental. Apesar das
centenas de tombamentos, desde pequenas capelas a conjuntos urbanos e cidades
inteiras, e de terem sido protegidas centenas de milhares de bens móveis de
grande valor histórico e artístico, muito se perdeu. Como a urbanização até os
anos 60 se concentra nas grandes cidades da região Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, a assimetria desenvolvimentista
inter-regional acaba por ajudar a preservar, em um primeiro momento, conjuntos
urbanos, em especial na região Nordeste, em cidades como Salvador, Cachoeira,
São Cristóvão, Recife e Olinda, entre outras.
Foram importantes para a evolução da abrangência do
conceito de patrimônio cultural, nesse período, a descaracterização e a perda
de qualidade dos espaços públicos, bem como o reconhecimento de aspectos
psicossociais ligados à memória urbana, não relacionados especificamente a
critérios históricos ou de excepcionalidade, mas a referências espaciais e
vivências afetivas reconhecidas como o “espírito do lugar”. Essa sensibilidade
ampliada iria promover uma revisão de critérios que, durante a “fase heroica”,
impediram um olhar mais generoso sobre a produção cultural – arquitetônica em
particular – do último quartel do século XIX e início do XX, embora se deva
reconhecer, tardiamente.
Principalmente São Paulo, mas também o Rio de
Janeiro perderam testemunhos relevantes de sua memória citadina. Da São Paulo
colonial e pré-industrial, muito pouco se salvou. O Rio de Janeiro, pela
extensão de seu patrimônio e pelo fato de ter sido capital do País por quase
200 anos, teve menos perdas. A Avenida Paulista, em São Paulo, e a atual
Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, cuja abertura data de 1905, são exemplos
desse processo. Ceifados pela especulação imobiliária, sobreviveram raros exemplares
dos edifícios ecléticos que compunham as duas importantes artérias, a primeira
de caráter residencial e a segunda, eminentemente comercial.
Como já havia ocorrido com o barroco em relação ao
neoclássico, durante muito tempo sinônimo de extravagante e por tanto
desprezado, o ecletismo foi desprezado por suas vinculações com os estilos
históricos e por seu descompasso com os rumos de uma nova ordem econômica e
cultural, caracterizada pela industrialização e pela urbanização, em um momento onde ocorria uma ruptura com o passado que ele
simbolizava.
O fim da fase heroica coincide com o término da longa e profícua gestão
de Rodrigo Mello Franco de Andrade e com uma retomada gradual do projeto
inicial de Mário de Andrade. O IPHAN era uma instituição consolidada e de grande
autonomia administrativa, com notável autoridade e reconhecimento público em
seu campo de atuação, em decorrência do êxito de suas políticas e de suas
realizações voltadas para a preservação do patrimônio cultural.ix Todavia, a
dinâmica da sociedade brasileira nos anos 1970 era bem mais complexa, e havia a
percepção, já fundada, de que o patrimônio cultural ia além da pedra e cal e da
herança lusa; e que demandava novas formulações e instrumentos, capazes de
abranger a diversidade cultural do País, especialmente as manifestações das
culturas ameríndia e africana, fortemente presentes no cotidiano e no
imaginário nacional e que, até então, não obtinham um reconhecimento
proporcional à sua importância.
4 – NOVOS PARADIGMAS DO CONCEITO DE PATRIMÔNIO
CULTURAL
Por paradoxal que pareça, a preservação do
patrimônio cultural vive, durante os anos 1970, em plena ditadura militar, um
ciclo de renovação e de ampliação conceitual que seriam determinantes no papel
do IPHAN até a atualidade. Duas novas instituições são criadas para atuar de
forma complementar no contexto da estrutura governamental responsável pela política
de preservação. Em 1973, surge o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades
Históricas (PCH), que articula ações de quatro ministérios – Educação e
Cultura, Planejamento, Interior e Indústria e Comércio –, com o objetivo de
coordenar a política do governo federal para fomentar o potencial econômico e
turístico das cidades históricas e incluí-las no processo de crescimento
econômico, então em curso, denominado “milagre brasileiro”.
O PCH ampliou a capacidade administrativa e
financeira do IPHAN, com resultados positivos quanto à proteção dos conjuntos
urbanos beneficiados e à melhoria da qualidade da infraestrutura e da gestão
pública dos estados e das cidades participantes do Programa. Criado em 1975, o
Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) promove uma revisão das noções de
preservação e patrimônio e agrega novos conceitos, como os de referência e bem
cultural.
A ideia de referência cultural admite que
diferentes visões possam coexistir acerca de um bem, e que os valores e as
práticas sociais a ele atribuídos o tornem uma representação coletiva
reconhecida por um grupo ou mais, pelo sentido de identidade que desperta,
transformando-o em um bem cultural. São conceitos capazes de reconhecer
significados e de promover a salvaguarda e o acautelamento de uma variedade de
manifestações que não encontravam respaldo nos instrumentos de gestão, então
vigentes, como o tombamento. Simultaneamente, em um momento onde havia a
supressão de liberdades individuais e um clima de autoritarismo que permeava
toda a sociedade, a participação popular era estimulada, como estratégia de compartilhar
e produzir conhecimento. A crítica ao imperialismo, seja no campo econômico
seja no cultural, foi utilizada como uma espécie de estratagema para introduzir
questões até então relegadas, como a valorização do saber e do fazer populares.
Em 1979, IPHAN, PCH e CNRC são unificados e passam a constituir a
Fundação Nacional Pró-Memória (FNpM), subordinada a um órgão normativo também
criado na mesma ocasião, a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), ambas vinculadas ao Ministério da Educação e Cultura (MEC)x.
Esta iniciativa, além dos aspectos inerentes à racionalização administrativa e
econômico-financeira, foi realizada com a expectativa de que as diferentes
visões conceituais de IPHAN e CNRC, auxiliados pela capacidade financeira e
técnica do PCH, fossem capazes de fazer frente aos desafios de implementar uma
política de preservação do patrimônio cultural, ampliada em sua dimensão
temporal e territorial, e que além de se integrar à vida econômica e social do
País e às demais políticas públicas, estivesse menos apegada às noções
tradicionais de excepcionalidade, arte e história.
A exemplo da fase heroica, cuja referência
inconteste é Rodrigo Mello Franco de Andrade, a fase denominada moderna tem na
figura criativa e inquieta de Aloísio Magalhães o seu grande pensador,
formulador e gestor. Em um período sombrio, ele conseguiu articular ideias e
mobilizar pessoas e instituições, como poucos o fizeram no País e, com uma
percepção clara da dialética da história, tornar passado e presente
contemporâneos. O conceito de patrimônio cultural se expressa como um dos
caminhos do desenvolvimento sustentável – conforme hoje entendido –, em
oposição a uma compreensão, até então vigente, de que eram processos com muitos
pontos de conflito.
Em concepção muito próxima ao pensamento de Celso
Furtado, que identifica a dimensão cultural como superveniente ao processo de desenvolvimento,
Aloísio Magalhães aposta na criatividade para romper com o estabelecido. O seu
desaparecimento prematuro ocorre em um momento no qual olhares distintos sobre
o patrimônio cultural estavam coexistindo e interagindo. A adoção de conceito
antropológico de cultura e de referência cultural, bem como a ampliação dos
objetos de especulação criativa, oriundos das ideias e formulações do CNRC
permitiram a valorização e a releitura dos saberes e dos fazeres tradicionais,
como o artesanato, a cerâmica e a tecelagem, mediante o conhecimento e o
fomento das cadeias produtivas.
Essa nova postura tinha como objetivo conferir às
manifestações culturais um caráter dinâmico, processual e transformador. As
formulações do CNRC e de Aloísio Magalhães resgataram propostas do projeto de
Mário de Andrade, até então latentes e esparsamente desenvolvidas, e apontavam
para novos, mais amplos e diversos rumos. O Brasil caminhava para a
redemocratização, e a sociedade ansiava por maior participação.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1988
mobilizou a sociedade brasileira. Foram tempos de intensos debates e reflexões
sobre nossa trajetória como país e nação e sobre o futuro que queríamos
construir, livre dos resquícios do autoritarismo. Os artigos 215 e 216, que
tratam da cultura no âmbito constitucional, promoveram importante atualização
conceitual, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento
da dimensão imaterial do patrimônio cultural; de explicitar a proteção às
manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, incorporando o conceito
de representatividade; e de estabelecer, no texto legal, instrumentos de
proteção e salvaguarda já em uso, como o inventário, o tombamento e a
desapropriação, e de criar novos, como o registro. Afora os aspectos
mencionados, os conceitos encerrados nos artigos 215 e 216 já estavam
presentes, tanto no projeto de Mário de Andrade quanto no Decreto-Lei Nº 25,
evidenciando a qualidade e a atualidade de ambos, capazes de se manterem contemporâneos
em meio a diferentes quadros político-institucionais e em uma cena cultural bem
mais diversa e complexa à da época de sua concepção.
A euforia advinda da democratização consagrada no
novo texto constitucional não durou muito. O governo do presidente Fernando
Collor, primeiro a ser eleito democraticamente após a ditadura militar, promove
o desmonte da área cultural no governo federal. A Fundação Nacional Pró-Memória
é extinta em 1990 e para substituí-la é criado o Instituto Brasileiro do Patrimônio
Cultural (IBPC), no bojo de uma política de minimização do papel do Estado. Os
importantes avanços institucionais e conceituais obtidos nos anos 70 e 80 foram
comprometidos com a “reforma administrativa” patrocinada pelo governo, que teve
forte impacto sobre a área cultural, com extinção e reorganização de
instituições, cortes orçamentários e demissões em massa.
O resultado foi o desmantelamento da ação
governamental no segmento, o que se faria sentir ao longo de toda uma década,
com a paralisia e o retardo da máquina pública, mentora e principal agente
técnico e financeiro das políticas preservacionistas. Por exemplo, o registro
de bens culturais de natureza imaterial, conquista importante da Constituição
de 1988, só foi regulamentado 12 anos depois, em agosto de 2000, pelo
Decreto-Lei Nº 3.551, e o primeiro bem imaterial a ser registrado como
patrimônio nacional, o “Ofício das Paneleiras de Goiabeiras”, no estado do Espírito
Santo, em 2002, 14 anos depois. Felizmente, nos últimos anos houve grande
esforço de proteção e salvaguarda dos bens de natureza imaterial, com elevada
participação da sociedade civil e dos governos locais. Atualmente são 25,
representativos das mais diversas manifestações culturais do povo brasileiro.
5 - OS DESAFIOS DA
ATUALIDADE
Nosso tempo é de
crescentes e velozes mudanças. Transformações que demoravam gerações ou décadas
ocorrem em poucos meses ou dias. Graças às novas tecnologias e mídias, as
informações e os conteúdos circulam instantaneamente. Cada vez mais a economia
e a política se entrelaçam e se tornam globalizadas, onde fatos e decisões que
nos afetam ocorrem a milhares de quilômetros. A cultura faz parte desse processo
de globalização e tende a perder, como a economia, suas características
nacionais, regionais e locais, se as manifestações autênticas e genuínas não
forem protegidas e incentivadas.
A recente crise econômica dos países da zona do
euro é um exemplo. Embora tenha seu epicentro na Europa, as repercussões
se fazem sentir em todo o mundo e as medidas de proteção adotadas pelos países
individualmente não são capazes de amenizar integralmente suas consequências.
Como nos recorda Celso Furtado, a cultura é uma dimensão superveniente do desenvolvimento,
quando está voltada para a percepção dos fins, dos objetivos que os indivíduos
e a comunidade se propõem alcançar. É a sua dimensão política
transformadora que está presente, mesmo em situações onde as condições de
sobrevivência são escassas, mas que se potencializa onde há melhoria da
qualidade de vida.
Sem combate à pobreza, à desigualdade, ao
desemprego, sem acesso a saúde e educação de qualidade, sem garantia de
liberdades políticas, étnicas, culturais e religiosas, sem respeito à preservação
ambiental, não teremos desenvolvimento. A experiência recente do Brasil e de
outros países já mostrou que pode haver crescimento econômico, sem que haja
desenvolvimento. Pior, pode haver um agravamento da desigualdade e da
concentração de renda, com aumento da pobreza e do desemprego.
Desde sua criação, o IPHAN manteve-se em situação de quase isolamento
dentro da estrutura governamental, usufruindo de grande autonomia, reconhecem
autores como Maria Cecília Londres Fonsecaxi e Sergio Miceli. Tal situação é
decorrente principalmente de sua missão institucional e do conceito de patrimônio
cultural então vigente, onde as noções de excepcionalidade, arte e história eram
predominantes e o esforço de preservação era voltado em sua maior parte para
atender demandas de uma elite culta, preocupada principalmente com os monumentos
civis e religiosos e com a arte erudita.
Durante muito tempo, esses símbolos é que interessavam ao conceito de nação
que se construía. Não que houvesse uma negativa em valorizar, por exemplo, a
arte ameríndia e popular, presentes tanto no projeto de Mário de Andrade como
no Decreto-Lei Nº 25 e na própria organização do IPHAN. É que a gênese da
instituição foi concebida tendo no barroco, e consequentemente na pedra e cal,
sua principal referência. Naquele momento e nas décadas subsequentes, não
haveria condições materiais, políticas e sociais para ir além do que era aceito
como central no patrimônio cultural: sua dimensão materialxii.
É muito ilustrativo desse processo o depoimento do antropólogo Gilberto Velho,
à época membro do Conselho Consultivo do IPHAN, sobre a polêmica que se
estabeleceu por ocasião do tombamento pioneiro do Terreiro de Candomblé Casa
Branca, em 1984, em Salvador, Bahia.xiii Este acontecimento se constituiu em um
marco na história da preservação do patrimônio cultural no Brasil. Primeiro,
por aplicar o instrumento do tombamento a um bem não ligado à tradição
luso-brasileira, cuja expressão material não se enquadrava nos critérios de
excepcionalidade então vigentes; segundo, por reconhecer a importância do
candomblé como manifestação cultural e religiosa de parcelas significativas da
população, especialmente na cidade de Salvador.
Tema quase sempre
reservado a especialistas, a preservação acaba por se circunscrever a um raio
menor do que suas atribuições e competências legais. Se essa circunstância
limita as ações da Instituição em sua articulação com as demais políticas
públicas e a sociedade civil, gera em contrapartida, em muitos círculos de
iniciados, um reconhecimento de sua especialidade e de sua experiência
diretamente relacionadas à sua continuidade temporal, independente do viés
político dos governos. O IPHAN seguramente é a instituição pública federal que
há mais tempo mantém os princípios de suas ações e o senso comum de que elas
são relevantes, pois são calcadas em significativa experiência e em procedimentos
técnicos meticulosos.
Podemos sem exageros afirmar que é uma
instituição canônica, graças em especial à qualidade de seu projeto
inicial e do brilhantismo intelectual de seus fundadores, alguns deles, gestores
da mesma por longa data, como Rodrigo Mello Franco de Andrade e Lúcio Costa.
Feito esse registro inquestionável, é importante lembrar que o peso da
tradição, embora aponte rumos mais conhecidos e, portanto, menos polêmicos, por
vezes, inibe a procura de novas alternativas e possibilidades, indispensáveis
para acompanhar uma realidade complexa em permanente transformação.
Se, durante muito tempo, o tombamento se constituiu
como o principal e quase único instrumento de preservação do patrimônio
cultural – embora o planejamento urbano e territorial já dispusesse de
ferramentas para ser um importante aliado –, dispomos hoje de um número maior
de possibilidades de intervenção. Desde 1988, com a nova Constituição Federal,
obteve-se, além de um conceito de patrimônio mais abrangente, sem a tônica da
excepcionalidade, a notável conquista do registro como instrumento de proteção
e salvaguarda do patrimônio imaterial.
Com o reconhecimento da função social da propriedade “quando atende
as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”xiv,
também, em 1988, abriu-se a possibilidade de aprovação da Lei Nº
10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade. Nela está presente um
conjunto de importantes instrumentos urbanísticos, jurídicos e
tributários capazes de colaborar na preservação do patrimônio cultural,
junto ou isoladamente com o tombamento. Infelizmente sua utilização por
parte dos municípios, aos quais cabe a responsabilidade de elaboração
dos planos diretores, tem ficado aquém do necessário.
O planejamento do uso do solo para atender à função
social da propriedade, como é o caso da preservação do patrimônio cultural, não
ocorre apenas por medidas restritivas, com controle do uso e intensidade de ocupação,
a exemplo das áreas de proteção de interesse histórico, artístico, paisagístico
e arqueológico. Pode ser realizado também por medidas compensatórias e de
incentivo, que passam, por exemplo, pela transferência do direito de construir,
pela desoneração fiscal, pelo financiamento incentivado e pela valorização dos
imóveis e dos espaços públicos, na revitalização de áreas históricas
degradadas. A qualificação para a gestão e o planejamento dos municípios como
principais agentes da preservação é tarefa sempre atual e necessária, pois são
frequentes as situações onde existem recursos financeiros disponíveis, mas
falta capacidade de gestão.
Após anos de verdadeira penúria, onde o orçamento
do Ministério da Cultura era voltado apenas para a manutenção da
máquina e o atendimento de emergências, um incremento substancial de recursos
na última década permitiu diversificação e maior volume de ações de preservação,
embora ainda muito aquém do necessário. De 2002 a 2011, o orçamento do IPHAN
para investimentos finalísticos cresceu 474,26%, passando de R$ 19,443 milhões para
R$ 92,211 milhões (valores nominais). As leis de incentivo a cultura, seja no
plano federal (Lei Nº 8313/2001) ou no estadual, já que muitos estados também as
possuem, têm colaborado com um crescimento significativo, que se somam aos
investimentos promovidos pelo IPHAN.
Entre 2006 e 2011, apenas na Lei Rouanet, foram
captados R$ 217,67 milhões para preservação do patrimônio cultural,
excetuando-se os museus, o que significa uma média de R$ 36,28 milhões, por ano
(fonte: IPHAN). Todavia, há uma distribuição territorial desigual dos mesmos,
sendo os estados da região Sudeste, em especial Rio de Janeiro, Minas Gerais e
São Paulo, os principais beneficiários, embora concentrem expressiva parcela do
patrimônio cultural protegido. Os projetos de elevado valor, como por exemplo, restauração
do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, drenam parcela substancial dos recursos,
concentrando-os, geograficamente.
Há bastante tempo, o Ministério da Cultura promove
um debate público, com o objetivo de modificar a lei, para que uma parcela dos
recursos possa ser destinada ao Fundo Nacional de Cultura, visando atender
projetos de menor porte e viabilizar uma distribuição mais equânime entre entes
federados. Infelizmente, essa necessária revisão tem enfrentado resistências,
tanto no Congresso Nacional como dentro das próprias empresas, que se valem da renúncia
fiscal como um dos seus instrumentos de marketing. Algumas empresas
públicas, como a Petrobras, o BNDES, a Eletrobras e a CAIXA – maiores
investidores na área cultural, no País – têm se utilizado de editais para a
seleção dos projetos. Este procedimento reduz a concentração, mas não a ponto
de promover a justiça distributiva.
A experiência do programa Monumenta, do
IPHAN, voltado à preservação do patrimônio cultural em cidades e conjuntos
históricos, evidenciou a necessária articulação da política de preservação às
demais políticas públicas, pelos resultados positivos no contexto
socioeconômico local dos investimentos em recuperação e conservação do
patrimônio cultural, crescentes na última década, especialmente quando
simultâneos ou complementares aos de outros programas setoriais de
infraestrutura, educação, saúde e geração de emprego e renda. Além disso, os
resultados foram importantes para constatar que as ações reforçavam a lógica do
desenvolvimento sustentável, produto da relação contínua entre as comunidades e
seu ambiente, com reflexos sensíveis sobre a qualidade de vida.
A utilização dos instrumentos citados que se uniram
ao tombamento no esforço de preservação é essencial para que se possa imprimir
uma ação sistêmica, ao invés de soluções isoladas, que não envolvam as
comunidades direta e indiretamente beneficiadas. Igualmente importante foi o
aumento substancial dos recursos financeiros nos últimos anos, o que tem
permitido investimentos de maior complexidade, capazes de se integrarem às
demais políticas públicas e de estabelecer um contexto favorável à implementação
de uma concepção mais ampla e diversa de reconhecimento e proteção do patrimônio.
6 – O CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL HOJE
Conforme já mencionado, o conceito de patrimônio
cultural consagrado na Constituição Federal de 1988 representou grande avanço
ao reconhecer a dimensão imaterial e, principalmente, por relativizar a noção
de excepcionalidade – substituída em parte pela de representatividade, bem mais
includente e capaz de destacar a importância das contribuições dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. Essa mudança incorpora o conceito de
referência cultural e significa uma ampliação inestimável dos bens passíveis de
serem reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro. É importante comentar
as implicações que as novas possibilidades, afirmadas pela Constituição, podem
permitir, passados 24 anos de sua promulgação.
Inicialmente, é necessário reconhecer que o
conceito que o antecedia, expressos no anteprojeto de Mário de Andrade e no
Decreto-Lei Nº 25, já previam as possibilidades depois expressas no texto
constitucional. Podemos afirmar que esses dois documentos resistiram à passagem
do tempo. Não é à toa, como já destacado, que celebram juntos com o IPHAN 75
anos de idade. Na verdade, as dificuldades que impediram uma maior abrangência
do patrimônio cultural vão além das questões políticas e ideológicas, embora
estas estejam sempre presentes e fazem parte de um mal que atinge outras
políticas públicas: a insuficiência de recursos financeiros e a reduzida
capacidade de gestão, frente a um desafio que tem como parâmetro a diversidade
cultural do País e suas dimensões continentais. Esse quadro é agravado pela
velocidade desproporcional dos meios de difusão de valores dissociados das
nossas manifestações e tradições culturais – sem que essa afirmativa se
constitua em um preceito xenófobo – das quais, muitas mínguam e morrem sem que
possam nem mesmo ser conhecidas, quanto mais salvaguardadas e protegidas como é
o caso de muitas manifestações populares de origem indígena e afro-brasileira.
Um segundo aspecto relevante diz respeito à delimitação do que vem a ser
patrimônio cultural. Como nos lembra Roque de Barros Laraia, em Cultura:
um conceito antropológico:
"Concluindo, cada sistema cultural está sempre em
mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre
gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental
para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de cultura
diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do
mesmo sistema".
Na medida em que a cultura é dinâmica e mutante, o
conceito de patrimônio também o será. Difícil estabelecer fronteiras para o que
é permanentemente concebido, criado, recriado, ampliado. Como o conceito de cultura,
o de patrimônio é um conceito aberto, decorrente de longo processo acumulativo,
independente de ser passível de construções ideológicas casuísticas – o que de
forma alguma quer dizer que todo bem cultural deva ser patrimonializado ou
protegido. O reconhecimento de um bem ou manifestação cultural por parte do
Estado é feito com base em critérios, que por mais objetivos e democráticos que
sejam, sempre serão passiveis de subjetividade e discricionariedade. Contudo, é
importante salientar que quanto mais abrangente for o conceito de patrimônio,
maior será a diversidade e riqueza cultural. Daí a relevância da substituição
do conceito de excepcionalidade, elitista e propenso a estabelecer uma
hegemonia cultural, pelo de representatividade, capaz de assegurar aos
diferentes segmentos socioculturais seu referenciamento.
O que hoje temos de distinto em relação à concepção original dos anos 20
e 30 do século passado é, na verdade, o esforço adaptativo para acompanhar a
veloz dialética da história, o tempo todo a nos exigir mudanças. A abordagem
territorial, a substituição gradativa do conceito de excepcionalidade pelo de
representatividade, a transversalidade temática, o compromisso com a cidadania
e com o desenvolvimento sustentável, na acepção que lhe foi conferida na
recente Conferência da ONU Rio+20(xv), são necessidades inadiáveis frente a uma
realidade em que os limites impostos pela capacidade de regeneração da natureza
começam a ser superados e colocam em ameaça a sobrevivência da espécie humana.
A chancela da Paisagem Cultural, estabelecida pela Portaria IPHAN Nº 127/2009 “como
uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo
de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência
humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”, é um instrumento em que
encontramos muitas das possibilidades de promover a gestão pactuada do
patrimônio em uma abordagem holística, sem lançar mão de taxionomias que, em
muitos casos, facilitam a operacionalidade de proteção dos bens culturais mas,
por outro, podem sedimentar visões parciais.
A exemplo do que já havia ocorrido com o
reconhecimento de Brasília como Patrimônio Mundial, em 1987, pela Unesco – não
por acaso, obra concebida por Lúcio Costa, um dos idealizadores no Brasil,
tanto do modernismo na arquitetura e no urbanismo, como do resgate de nossa
herança barroca –, o Rio de Janeiro foi inscrito recentemente como Paisagem
Cultural na lista do Patrimônio Mundial.
Nos dois casos, percebe-se a presença do inusitado, do novo, de formulações
que ampliam os significados vigentes. Brasília, por ser uma das grandes
realizações culturais do século XX, marco do urbanismo e da arquitetura
modernista; e o Rio de Janeiro, por sua especial conjunção de cultura e natura,
onde a aplicação do conceito de paisagem cultural, em vários recortes
significativos de uma metrópole, que envolvem tanto a orla marítima(xvi) como
parques urbanos, parques nacionais, serras e montanhas que conferem singularidade
ao “skyline” carioca, representa uma nova postura em relação ao planejamento
urbano e territorial.
A paisagem cultural, como instrumento de gestão, pode se configurar como
uma estratégia para a promoção do desenvolvimento sustentável e, simultaneamente,
como proteção do patrimônio cultural e natural. O êxito de sua aplicabilidade,
a exemplo de outros mecanismos de planejamento, depende da participação das
três instâncias de governo; de um conjunto de políticas governamentais
articuladas; de um pacto entre a esfera pública, a sociedade e a iniciativa
privada; e de coesão e participação social. Especialmente no caso do Rio de
Janeiro, teremos uma situação complexa pela extensão da “zona tampão”xvii, que
abrange bairros densamente ocupados, como Lagoa, Humaitá, Botafogo, Copacabana,
Flamengo, Catete e Glória, todos com elevada densidade demográfica e a presença
de diferentes tipologias urbanas – inclusive de favelas com graves carências de
infraestrutura e equipamentos urbanos e dos problemas dela decorrentes, que determinam
o estigma da segregação social e suas inevitáveis consequências,
como a violência urbana.
A proteção da paisagem cultural do Rio de Janeiro
estará inaugurando uma modalidade de gestão que pretende, em um cenário com
características metropolitanas, onde atuam múltiplos agentes públicos e
privados, conciliar desenvolvimento econômico e social com preservação do
patrimônio cultural e natural. O arranjo institucional que envolverá Prefeitura,
Estado e União, com a participação de diversas autarquias como IPHAN, IBAMA e
Instituto Chico Mendes, será com certeza uma experiência desafiadora, onde
podem se somar instrumentos como o tombamento, o zoneamento do uso e a ocupação
do solo – que tem nas Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APACs) uma experiência
relevante –, o registro e outras formas de acautelamento, com o plano diretor e
seus instrumentos jurídicos, urbanísticos e tributários, bem como com as demais
políticas públicas e investimentos privados que determinam a dinâmica urbana. É
uma oportunidade exemplar para a efetivação de uma política integrada de
preservação e desenvolvimento econômico e social que consolide os avanços
recentes e inaugure uma nova era, onde a preservação do patrimônio cultural e
natural sejam protagonistas do desenvolvimento sustentável e da justiça social.
NOTAS
i - FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura.
Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2012, p. 64.
ii - Frase do Manifesto Comunista publicado em 1848, de autoria de
Karl Marx e Friedrich Engels. Utilizada como título do livro de Marshall
Berman, publicado em 1986, pela Editora Companhia das Letras.
iii - HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX:
1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
iv - SCHWARZ, Roberto. As ideias fora de lugar. Ao Vencedor as
Batatas. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2000.
v - CAVALCANTI, Lauro Pereira. Moderno e brasileiro: a história
de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2006, p. 227.
vi - BOMENY, Helena. Um poeta na política – Mário de Andrade,
paixão e compromisso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.
vii - CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o Signo do Aleijadinho – Blaise
Cendrars, precursor do Patrimônio Histórico. Patrimônio: Atualizando o
Debate. São Paulo: IPHAN, 2006.
viii - FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória
da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009. O
livro de Maria Cecilia Londres Fonseca é leitura obrigatória para o
entendimento da gênese e do desenvolvimento da política de preservação do
patrimônio cultural no Brasil.
ix - FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória
da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
x - MEC/SPHAN/FNpM. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília, 1980.
xi - FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo:
trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 2009.
xii - MICELI, Sergio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Rio de
Janeiro. Revista do Patrimônio: SPHAN, 1987.
xiii - VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. O patrimônio
cultural dos templos afro-brasileiros. IPHAN: Salvador, 2011.
xiv - Constituição Federal, artigo Nº 182.
xv - O documento final de recomendações da Conferência está disponível
em www.rio20.gov.br
xvi - A paisagem cultural do Rio de Janeiro é composta por: 1) Floresta
da Tijuca, Serra dos Pretos Forros e Covanca do Parque Nacional da Tijuca; 2)
Pedra Bonita e Pedra da Gávea; 3) Serra da Carioca e Jardim Botânico; 4)
Entrada da Baía de Guanabara, Passeio Público, Parque do Flamengo, Fortes
Históricos de Niterói e Rio de Janeiro, Pão de Açúcar e Praia de Copacabana.
xvii - A expressão “zona tampão” diz respeito às áreas situadas no
entorno imediato daqueles objetos de proteção. Estão também submetidas a
restrições de uso e ocupação do solo, com vistas a evitar a sua
descaracterização e mitigar impactos negativos sobre as áreas protegidas.
REFERÊNCIAS
ANASTASSAKIS, Zoy. Dentro e fora da
política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: Aloísio
Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural. Rio de Janeiro:
UFRJ, Museu Nacional, PPGAS, 2007.
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para
criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista do
Patrimônio, Nº30, 2002.
BOMENY, Helena. Um poeta na política
– Mário de Andrade, paixão e compromisso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2012.
BOSI, Alfredo, Dialética da
colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRAYNER, Natália Guerra. Patrimônio
cultural imaterial: para saber mais. Brasília: IPHAN,
2007.
BURY, John. Arquitetura e arte no
Brasil Colonial. In: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de (Org.).
Brasília: Iphan/Monumenta, 2006.
CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o
signo do Aleijadinho – Blaise Cendrars, precursor do Patrimônio Histórico.
Patrimônio: Atualizando o Debate. São Paulo: IPHAN, 2006.
CAMPOFIORITO, Ítalo. Muda o mundo do
patrimônio: notas para um balanço crítico. Rio de Janeiro: Secretaria
de Ciência e Cultura, s/d.
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e brasileiro:
a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de
Janeiro, 2006.
CHOAY, Françoise. A alegoria do
patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os
arquitetos da memória: sociogênese
das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Rio de
Janeiro, 2009.
COHN, Gabriel. Concepção oficial de cultura
e processo cultural. Revista do Patrimônio, n. 22, 1987.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O
Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no
Brasil. Rio de Janeiro, 2009.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências
culturais: bases para novas políticas de patrimônio. Boletim de
Políticas Setoriais. Brasília: IPEA, n. 02, 2001.
FURTADO, Celso. O capitalismo global.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da
Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não terminou. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
HOBSBAWN, Eric. Era
dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras,
1995.
KONDER, Leandro. O
Estado e os problemas da política cultural no Brasil de hoje. Revista do
Patrimônio, n. 22, 1987.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2006.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2012.
MEC/SPHAN/FNpM. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória.
Brasília, 1980.
MICELI, Sergio. Sphan:
Refrigério da cultura oficial. Revista do Patrimônio, n. 22, 1987.
RISÉRIO, Antonio. A
cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012.
SANTOS, Milton. Da
cultura à indústria cultural. Folha Online. Disponível em www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc.
Acesso em 08/08/2012.
SCHWARZ, Roberto. As
ideias fora de lugar. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas
Cidades: Ed. 34, 2000.
TORELLY, Luiz Philippe (Org.) Patrimônio Cultural e Desenvolvimento Sustentável.
Brasília: Iphan, 2012.
VELHO, Gilberto. Patrimônio,
negociação e conflito. O patrimônio cultural dos templos afro-brasileiros.
Salvador: Iphan, 2011.
FONTE: Revista Fórum Patrimonial, v. 5, n. 2, 2012. http://www.forumpatrimonio.com.br/seer/index.php/forum_patrimonio/article/view/109/97
LINKS:
Nenhum comentário:
Postar um comentário