terça-feira, 26 de maio de 2015

História da Ciência da Religião

História da Ciência da Religião

Frank Usarki



O status quo “ideal” da disciplina como referencial


O termo Ciência da Religião refere-se a um empreendimento acadêmico que, sustentado por recursos públicos, norteado por um interesse de conhecimento específico e orientado por um conjunto de teorias específicas, dedica-se de maneira não normativa ao estudo histórico e sistemático de religiões concretas em suas múltiplas dimensões, manifestações e contextos socioculturais.


A formulação “religiões concretas” alude ao fato de que a Ciência da Religião encontra seus objetos no mundo empírico. Trata-se de uma consequência do axioma de que religiões representam sistemas simbólicos elaborados em relação a uma “realidade culturalmente postulada não falsificável”1 que transcende o alcance de qualquer método cientificamente comprovado.


A investigação de elementos religiosos empiricamente acessíveis tem como único objetivo aprofundar e aperfeiçoar o conhecimento sobre os fatos da vida religiosa.2 Isso significa que a Ciência da Religião não instrumentaliza seus objetos em prol de uma apologia a uma determinada crença privilegiada pelo pesquisador. De acordo com essas ambições, a Ciência da Religião defende uma postura epistemológica específica baseada no compromisso com o ideal da “indiferença” diante do seu objeto de estudo. Trata-se de uma técnica de observação e descrição que na literatura especializada é frequentemente associada a termos como “ateísmo metodológico” ou “agnosticismo metodológico”. Comprometido com este ideal, o cientista da religião exclui da sua agenda a questão da “última verdade” e não se permite avaliar aspectos religiosos em comparação com as normas de outra religião ou com quaisquer outros critérios ideológicos.


A formulação “empreendimento acadêmico” aponta para o status consolidado da respectiva área de estudo. Trata-se, em outras palavras, de uma matéria institucionalizada que faz parte integral do sistema universitário de alcance internacional. Esta posição representa uma conquista relativamente recente e constitui uma das marcas simbólicas para distinguir a Ciência da Religião propriamente dita de movimentos intelectuais precedentes e em termos do seu estatuto legal ainda “provisórios”.


O status institucional da disciplina é, em parte, fruto de uma demanda pública no sentido da relevância prático-social da disciplina que, por sua vez, sanciona o apoio político e material da disciplina por órgãos públicos. A essa demanda corresponde uma oferta da Ciência da Religião no sentido de produção de um conhecimento específico não fornecido por nenhuma outra disciplina acadêmica. A originalidade desta oferta é epistemologicamente baseada em um matiz heurístico subjacente que norteia o trabalho de um cientista da religião. Na literatura especializada, tal matiz é tematizado em termos de um etos intelectual3 ou de escolas próprias de investigação. Em outras palavras, a diferença entre a Ciência da Religião e outras disciplinas engajadas no estudo das religiões se dá no sentido de uma determinada tradição da segunda ordem, isto é, uma visão coletiva das principais escolas de interpretação, métodos operacionais, herança de erudição e, sobretudo, uma memória vital compartilhada das maneiras mediante as quais todos esses fatores constitutivos são inter--relacionados. Na prática acadêmica da comunidade científica em questão, a compartilhada tradição da segunda ordem manifesta-se em um consenso sobre a legitimidade ou não de um problema de pesquisa do ponto de vista disciplinar.4


Ao mesmo tempo, implica um acordo sobre a estrutura interna da disciplina no sentido de duas áreas complementares nas quais o trabalho diversificado da Ciência da Religião se encaixa. A definição no início do artigo alude a essa dupla estrutura da disciplina quando destaca estudos históricos e sistemáticos como tarefas da Ciência da Religião.


Todos os elementos esboçados apontam para uma ciência paradigmaticamente madura e homogênea. Em vários pontos, essa descrição está em tensão com a atual situação diversificada da disciplina no âmbito mundial. As respectivas contradições, porém, não invalidam essa imagem “pura”, desde que o leitor tenha em mente que os constituintes encontrados no início deste artigo foram destacados por razões heurísticas em prol da reconstrução do caminho através do qual a Ciência da Religião tem se aproximado do ideal construído.


Desse ponto de vista, a época mais instigante pode ser datada, grosso modo, entre 1875 e a Primeira Guerra Mundial. Trata-se de um período altamente produtivo durante o qual convergiram vários impulsos intelectuais já rudimentarmente identificáveis em momentos anteriores. Antes de fornecer um esboço dessa fase-chave da história disciplinar, vale um olhar genérico sobre conquistas e movimentos intelectuais centrais que antecederam a consolidação da Ciência da Religião propriamente dita.


Tendências constitutivas para a formação da Ciência da Religião


O longo caminho do estudo das religiões na direção da sua formação programática e institucionalização é marcado por duas tendências principais inter-relacionadas, a saber: (a) o crescente conhecimento sobre outras culturas, inclusive suas características religiosas; (b) a crescente submissão do estudo das religiões ao pensamento científico-racional em desfavor das abordagens apologéticas e exigências dogmáticas.


O CRESCENTE SABER SOBRE OUTRAS RELIGIÕES


O processo da acumulação do saber sobre outras religiões foi durante muito tempo uma função imediata do avanço tecnológico que facilitou a comunicação entre as diferentes culturas. Grosso modo, vale como regra que a frequência e a intensidade do contato entre as religiões repercutiram na quantidade e qualidade do conhecimento sobre “o outro”. Exemplos para narrativas rudimentares resultando de contatos relativamente esporádicos entre povos interessados na delimitação do “próprio” diante do “vizinho diferente” encontram-se no Antigo Testamento, no qual o discurso negativo em relação a práticas “alheias” revelam esforços retóricos em prol da plausibilização da veneração exclusiva de Yahweh. Motivos apologéticos também predominam na maioria dos Padres da Igreja que tematizaram os cultos “pagãos” e seus desafios para a fé cristã. Mais tarde, obras teológicas mostraram-se preocupadas com cultos de tribos germânicas e finalmente, sobretudo, com o Islã.


Apenas na segunda metade do século XI surgiu, com a Gesta Hammaburgensis ecclesiae pontificum de Adam von Bremen (circa 1050 a circa de 1085), uma obra de um autor cristão que — na tentativa de recuperar detalhes de práticas religiosas de tribos saxônias resistentes a esforços de cristianização no século IX — contenta-se com uma mera descrição de fatos históricos. Cerca de dois séculos mais tarde, o franciscano Roger Bacon (1214-1294) completou seu Opus maius, que opta por uma abordagem alternativa a um tratamento generalizante e normativo dos “outros” como “incrédulos” e apresenta uma classificação sêxtupla das religiões conhecidas na sua época.


Paralelo ao crescimento do conhecimento sobre aspectos de outras religiões no âmbito da tradição judaico-cristã, foram produzidos relevantes relatos e reflexões por autores gregos, chineses e muçulmanos. Um representante dos “estudos” primordiais da religião na Grécia antiga é Heródoto (484-425), com suas descrições sobre os costumes religiosos do Egito, da Babilônia e da Pérsia. Os contatos entre os gregos e outras culturas tornaram-se mais frequentes a partir do período helenista.


Um representante dessa época e testemunha das oportunidades aperfeiçoadas para adquirir um conhecimento sobre os povos localizados no império expandido foi o etnógrafo Megástenes (cerca 350-cerca de 290 a.C.). Mandado por Seleuco I Nicator, primeiro rei do Império Selêucida, como diplomata para Índia, Megástenes dedicou-se à elaboração dos quatro volumes de sua Índica. Nessa obra, encontra-se uma série de informações sobre o Hinduísmo, porém diversas delas prejudicadas por material fictício que o autor tinha ouvido de terceiros. Quanto a protagonistas chineses, vale a pena lembrar o peregrino chinês Fa-Hien (cerca de 337-cerca de 422 d.C.), que permaneceu entre 399 e 413 d.C. na Índia.


Um ano mais tarde, publicou seu Relato sobre países budistas, que contém um grande contingente de informações, inclusive anotações exatas de dados históricos e detalhes sobre as rotinas de comunidades budistas monásticas nas regiões visitadas. Cerca de duzentos e quarenta anos mais tarde, Hieun-Tsiang (603-664 d.C.), outro viajante chinês famoso, voltou para sua terra depois de uma longa viagem pela Índia trazendo do subcontinente uma série de artefatos e manuscritos budistas assim contribuindo para o conhecimento dos chineses sobre as doutrinas e práticas indianas da época.


A partir do século IX, autores muçulmanos começaram a se articular sobre outras religiões. Entre eles encontram-se Tabari (838-923) interessado na religião persa, e Mas’udi (morte 956), cuja obra contém dados sobre o Judaísmo, o Cristianismo e as religiões indianas. Outros estudantes da religião reputados foram Al Biruni (973-1050), que informou seus leitores sobre as crenças e práticas na Índia e Pérsia, e o erudito multidisciplinar andaluz Ibn Hazm (994-1064), que colecionou um grande espectro de informações sobre o Judaísmo e o Cristianismo. Nessa lista não pode faltar o nome do historiador das religiões persa Sharastani (1086-1153), que — devido à sua descrição sistemática de todas as religiões então conhecidas — foi retrospectivamente considerado o autor de um livro excepcional que supera qualquer contribuição de autores cristãos anteriores e contemporâneos.


Do ponto de vista europeu, progressos filológicos a partir da segunda o século XVII foram responsáveis por um grande salto em termos de aquisição de conhecimento sobre outras religiões. Nesse contexto, vale lembrar conquistas como a decifração de hieróglifos egípcios e de caracteres cuneiformes mesopotâmios, a elaboração de dicionários e gramáticas de línguas orientais (como o árabe, o chinês, o malaio, a língua persa, o páli ou o sânscrito) e o lançamento da gramática comparada de Franz Bopp (1833).


Baseado nessas e em outras contribuições, os filólogos começaram a tradução de uma série ampla de textos religiosos dos povos que tinham despertado o interesse dos intelectuais europeus.5 Este trabalho teve seu início com fragmentos de textos filosófico-religiosos chineses por jesuítas engajados em atividades missionárias no Reino do Meio. Os referentes esforços culminaram na publicação da primeira tradução completa dos quatro clássicos confucianistas por Francisco Noël (1651-1729) para o latim em 1711. Sessenta anos mais tarde, Abraham Hyacinthe Anquetil-Duperron (1731-1805) lançou, depois de um estudo intenso de cerca de 180 manuscritos avésticos em Surat, Índia, sua tradução de textos zoroastrianos para o francês. Em 1785, Charles Wilkins (1749-1836) publicou à primeira tradução do Bhagavad Gita para o inglês. O especialista na língua páli George Tornour (1799-1843) apresentou em 1837 sua tradução do Mahavamsa para o inglês.


Entre 1840-1847, Eugène Burnouf (1801-1852) lançou os três volumes da sua tradução francesa do Bhagavad Purana. Em 1855, o filólogo dinamarquês Michael Viggo Fausböll (1821-1908), professor de sânscrito em Copenhagen, ofereceu sua tradução latina do Dhammapada, texto budista originalmente escrito em páli. Também não devem ser esquecidos os méritos arqueológicos dos séculos XIX e XX, como, por exemplo, as escavações em Troia, em Creta, na Turquia, no Egito e no vale do Indo, bem como a descoberta da arte rupestre em grutas no sul da França.


A CRESCENTE ORIENTAÇÃO DO ESTUDO DAS RELIGIÕES AO ESPÍRITO MODERNO


Um pré-requisito intelectual sine qua non para o estabelecimento da Ciência da Religião no sentido estrito foi que o termo “religião” tinha se libertado de sua identificação dogmática com uma determinada tradição, na maioria dos casos com o Cristianismo. À medida que a religião deixou de ser tratada como uma “naturalidade cultural”, ganhou plausibilidade o entendimento histórico dos fenômenos associados.


A literatura especializada é uma fonte rica de atribuições, suspeitas e especulações relativas a movimentos, impulsos e raízes de elementos que por volta da virada do século XIX para o século XX se consolidariam como o estatuto da Ciência da Religião no sentido moderno. A lista de eventos, nomes e publicações supostamente decisivos no sentido da formação final da disciplina é longa e não necessariamente consensual nas obras interessadas na recuperação da pré-história da disciplina.


Autores mais “generosos” na identificação de abordagens que — de uma forma ou outra — teriam antecipado o “etos intelectual” da Ciência da Religião rejeitam o tratamento pejorativo de religiões “alheias” pela tradição bíblica e Teologia patrística, e apontam para exemplos positivos precoces representados por determinadas correntes do pensamento grego. Nesse contexto, são lembrados filósofos como Tales (585 a.C.), Anaximandro (610-540 a.C.) ou Xenófanes (cerca de 570-457) como precursores da disciplina.


Esses e outros intelectuais da época chamariam a atenção, não por suas críticas explícitas a convicções e práticas religiosas “naturalmente” aceitas por seus contemporâneos, mas por causa de sua postura emancipada do então senso comum, ou seja, graças a uma atitude que se aproximaria de maneira “protodisciplinar” ao ideal epistemológico do cientista da religião moderno. Um mérito ainda maior é atribuído ao historiador e mitógrafo Evêmero (cerca de 350-290 a.C.). Com seu relato fictício Hiera anagraphê, no qual defende a ideia de que as divindades e os mitos associados teriam sua base antropológica em reminiscências de personagens heroicos, iniciou uma especulação sobre a origem da religião posteriormente conhecida como “evemerismo”.


Restringindo a busca a sinais de uma abstração do pensamento de predefinições religiosas a tendências mais recentes, vale a pena lembrar os esforços de intelectuais leigos do século XII para elaborar raciocínios em oposição à até então dominante visão histórica defendida pelos clérigos. Um resultado dessas aspirações foi a valorização da história mundana como verdadeiro cenário do progresso humano, um conceito que se especificou em uma posterior “história das religiões” do ponto de vista secular.


Entre os protagonistas que a médio prazo se beneficiaram dessas conquistas intelectuais, encontra-se Jean Bodin (1530-1596), cujo trabalho é considerado uma obra paradigmática em termos da reflexão “distanciada” sobre o pluralismo religioso da época. Apesar da sua atitude religiosa subjacente e de um quadro referencial normativo, Bodin abordou o tema da religião, inclusive o Cristianismo, de maneira crítica e privilegiou o princípio da razão em detrimento da ideia da revelação. Mais consequentemente do que Bodin, Edward Herbert de Cherbury (1583-1648) rejeitou a referência à revelação como fonte de conhecimento.


Sensibilizou seus leitores para a necessidade do controle de convicções religiosas no âmbito da ciência e argumentou que conclusões sobre a vida religiosa deveriam ser tomadas exclusivamente a partir de dados empíricos. Algo semelhante valeu para Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), representante do pré-iluminismo francês, e sua busca por raízes psicológicas da religião. Outro pensador citado como um dos antecipadores de abordagens compatíveis com a Ciência da Religião atual é o filosofo e historiador italiano Giambattista Vico (1668-1744), apreciado por seu esforço de pôr sua fé católica entre parênteses enquanto elaborava sua descrição naturalista de todas as instituições humanas, inclusive a religião. Logo, depois Charles de Brosses (1709-1777) lançou seu tratado Du culte des dieux fétiches, ou, Parallèle de l’ancienne religion de l’Egypte avec la religion actuelle de Nigritie (1760), visto como uma das primeiras obras programáticas em termos de uma posterior Ciência da Religião comparada.


O “mentor” precoce do estudo científico da religião mais frequentemente citado, porém, é David Hume (1711-1776) devido a sua abordagem da religião dentro de um quadro referencial estritamente científico. Conforme a literatura especializada, Hume, não interessado na defesa mas sim na explicação do seu objeto, fechou o círculo aberto por intelectuais anteriores e inaugurou uma tradição do tratamento racional da religião que, no âmbito da Filosofia, foi retomada por pensadores mais recentes, entre eles Jean-Jaques Rousseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804), Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Arthur Schopenhauer (1788-1860). Nessa sequência encaixa-se também Johann Gottfried Herder (1744-1803), lembrado como o primeiro autor moderno a destacar a importância de um olhar histórico para a Filosofia em geral e para as reflexões sobre religião em particular.6


Embora todas essas contribuições tenham sido passos importantes na direção do estudo da religião no sentido moderno, elas foram articuladas sem a perspectiva do surgimento da Ciência da Religião no sentido de uma disciplina própria e institucionalmente contextualizada no sistema universitário europeu. Igualmente, acadêmicos associados ao chamado “círculo de Göttingen”, como Johann Gottfried Immanuel Berger (1773-1803), Karl Friedrich Stäudlin (1761-1826) ou Christian Wilhelm Flügge (1773-1827), mencionaram termos como “História das Religiões” ou “Ciência da Religião” nos seus cursos ou publicações, porém sem se referirem a uma disciplina autônoma e distinta da Teologia.7


A fase formativa da Ciência da Religião


CRESCENTE NITIDEZ DA NOMENCLATURA


No decorrer da segunda metade do século XIX, aumentaram os sinais de uma consciência disciplinar cada vez mais consolidada. Uma das primeiras expressões dessa tendência encontra-se no uso aperfeiçoado do termo “Ciência da Religião”, que deixa de ser uma nomenclatura vaga e aleatória e assume uma denotação específica apontando para uma matéria acadêmica própria. De certo modo, isso já vale para a percepção cristã de diversas religiões de Théodore Prosper Le Blanc d’Ambonne (1802-1868) elaborada na obra Les Religions et leur Interprétation Chrétienne, publicada em 1852 em Paris, e para o livro sobre a mitologia comparada de Ferdinand Stiefelhagen (1822-1902) Theologie des Heidenthums, lançado em 1858 em Regensburg.


Um passo decisivo foi dado pelo indólogo alemão e desde 1854 professor na universidade de Oxford Friedrich Max Müller (1823-1900). No horizonte da institucionalização de uma série de novas matérias universitárias, entre elas a Sociologia, a Etnologia ou a Psicologia, Müller declarou no prefácio do seu livro Chips from a German Workshop (1867) que o termo Ciência da Religião devia ser reservado para designar uma disciplina autônoma.


INÍCIO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CIÊNCIA DA RELIGIÃO


Os desenvolvimentos subsequentes comprovaram a pertinência da visão de Müller. Em 1873 foi fundada a primeira cátedra em História Geral da Religião na Universidade de Genebra, Suíça. Em 1877 seguiram quatro cátedras nas universidades holandesas de Amsterdã, Leiden, Groningen e Utrecht. Em 1879 foi inaugurada a primeira cátedra em História das Religiões na França, seguida por uma cátedra na universidade de Bruxelas, Bélgica (1884).


No mesmo ano surgiu em Roma a primeira cátedra de História das Religiões. Dois anos mais tarde, porém, ela foi transformada na cátedra de História do Cristianismo. O resultado foi que a Ciência da Religião na Itália ganhou um status autônomo duradouro apenas em 1924. A força da Teologia e sua abertura para métodos estritamente históricos dificultaram também a institucionalização da Ciência da Religião na Alemanha, onde a primeira cátedra foi fundada em 1910 (Berlim).


À primeira vista, surpreende também o fato de que a institucionalização da Ciência da Religião na Grã-Bretanha tenha demorado até 1904 (Universidade de Manchester). Todavia, esse atraso não reflete o grande interesse público por temas relacionados à disciplina. A atenção acadêmica para assuntos afins articulou-se explicitamente no âmbito de séries de palestras regulares oferecidas em diferentes centros universitários. Esses eventos tinham uma base financeira sólida devido a fundações de cidadãos que mantiveram uma relação forte com a universidade onde se formaram ou com o sistema acadêmico nacional.


Em termos cronológicos, a primeira série de palestras que deve ser lembrada é a das chamadas Burnett Lectures, possibilitadas por uma contribuição financeira do negociante escocês John Burnett (1729-1784). Os eventos foram organizados a partir de 1887 em Aberdeen.


Logo depois, foi convidado Robertson Smith, que entre 1888 e 1891 deu três palestras sobre a religião de semitas, aproveitando essas oportunidades para chamar a atenção para a Ciência da Religião como uma nova disciplina acadêmica em ascensão. Algo semelhante vale para as chamadas Hibbert Lectures, intituladas assim em homenagem ao negociante inglês Robert Hibbert (1769-1849), cuja doação generosa em 1847 possibilitou a posterior realização dos respectivos eventos no Manchester College. A palestra inaugural em 1878 foi proferida por Friedrich Max Müller, que falou sobre as religiões da Índia. Em 1881 foi convidado um dos melhores especialistas britânicos da época no Budismo, T. W. Rhys Davids (1843-1922).


Alguns anos mais tarde, o nome de William James (1842-1910), conhecido como um dos fundadores da Psicologia da Religião, apareceu no programa das comunicações em Manchester. Alguns dos eruditos que honraram as Hibbert Lectures apresentaram-se também no âmbito das Gifford Lectures, financiadas por um fundo criado pelo advogado e juiz escocês Adam Lord Gifford (1820-1887), que tinha laços fortes com a universidade de Glasgow. Entre os palestrantes, encontra-se novamente Friedrich Max Müller, que entre 1888 e 1892 deu quatro palestras em Glasgow sobre temas relacionados ao seu trabalho como cientista da religião. Algo semelhante vale para William James e suas comunicações sobre as variedades da experiência religiosa oferecidas entre 1900 e 1902 em Edinburgh.


ESFORÇOS FILOLÓGICOS COORDENADOS E SISTEMATIZADOS


Durante as “décadas formativas”, o trabalho filológico como um dos subsídios centrais para a investigação ampla e profunda de religiões concretas ganhou uma nova qualidade. Na área da sinologia destaca-se, entre outros, o escocês James Legge (1815-1897). Legge, na sua função como tradutor de diversas fontes fundamentais para a religiosidade chinesa, desempenhou um papel importante em relação à famosa seleção de Sacred Books of the East. Atuou junto com Max Müller como coorganizador dessa coletânea publicada entre 1879 e 1910.


A série é composta por 50 volumes de textos sagrados-chave do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Confucionismo, Zoroastrismo, Jainismo e Islã traduzidos por filólogos reputados, entre eles o inglês especialista em Zoroastrismo Edward William West (1824-1905), o orientalista inglês e conhecedor da língua árabe Edward Henry Palmer (1840-1882), o orientalista francês James Darmesteter (1849-1894), o indólogo alemão George Frederick William Thibaut (1848-194), o orientalista inglês e especialista na língua chinesa Samuel Beal (1825-1889) e outros, além de Müller e Legge, também os já citados especialistas Michael Viggo Fausböll e T. W. Rhys Davids.


Além da sua contribuição para os Sacred Books of the East, Rhys Davids é lembrado por seu engajamento na Pali Text Society. A sociedade foi fundada em 1881 com o objetivo de promover o estudo de textos em páli e ganhou fama no mundo acadêmico através do corpo maciço de traduções de textos do Budismo primitivo para o inglês, além do lançamento de dicionários, concordâncias e manuais úteis para o estudo de fontes budistas escritas na língua páli.


REFERÊNCIAS, PERIÓDICOS E CONGRESSOS


Ao lado de esforços filológicos, intensificou-se por volta da virada do século XIX para o século XX o trabalhou com enciclopédias e compêndios que serviram aos pesquisadores da religião como referências comuns. Uma dessas obras foi a enciclopédia Die Religion in Geschichte und Gegenwart, cujos cinco volumes foram lançados entre 1900 e 1913. Outros manuais na língua alemã foram as edições do Religionsgeschichtliches Lesebuch, publicadas por Alfred Bertholet (1868-1951) a partir de 1908, e o Textbuch zur Religionsgeschichte, organizado pelo historiador das religiões dinamarquês Johannes Edvard Lehmann (1862-1930), cuja primeira versão surgiu em 1912. Provavelmente a fonte mais relevante da época (e até hoje frequentemente consultada) é a Encyclopedia of Religion and Ethics, coordenada pelo presbiteriano e biblista escocês James Hastings (1852-1922). Os treze volumes dessa obra magna foram lançados entre 1908 e 1927.


Outro parâmetro para o avanço do processo da consolidação da Ciência da Religião nas décadas em questão é a fundação de periódicos dedicados à divulgação da pesquisa e do trabalho teórico da área. Entre esses jornais encontram-se a Revue de l’histoire des religions (1880), o Archiv für Religionswissenschaft (1898) e o periódico Anthropos (1904). Paralelamente, foram organizados os primeiro congressos associados à Ciência da Religião. Em 1897, os pesquisadores da religião encontraram-se pela primeira vez em âmbito internacional em Estocolmo; esse encontro foi seguido por um congresso na Exposição Mundial em Paris (1900). Outros eventos de destaque até a Primeira Guerra Mundial ocorreram na Basileia (1904), em Oxford (1908) e em Leiden (1912).


ARTICULAÇÕES EM PROL DA “SECOND-ORDER TRADITION”


As décadas em torno da virada do século XIX para o século XX foram também o período da fixação de “caminhos intelectuais proeminentes específicos para o estudo da religião”.8 Diversas publicações hoje consideradas clássicas contribuíram para essa delineação do perfil disciplinar no sentido de uma second-order tradition.


Em 1877, ou seja, no mesmo ano em que assumiu a primeira cátedra em Ciência da Religião na Universidade de Leiden, Cornelius Petrus Tiele (1830-1902) lançou em Londres sua primeira obra programática na área da História das Religiões intitulada Outlines of the history of religion: to the spread of the universal religions. Cinco anos mais tarde, Müller publicou em Oxford sua obra Introduction to the Science of Religion, nela exigindo dos seus colegas uma postura neutra diante das reivindicações da verdade pelas religiões pesquisadas. Na vida cotidiana prática, seria errado não se posicionar normativamente diante de perspectivas conflituosas de diferentes tradições religiosas.


Mas o cientista da religião se aproximaria dos seus objetos com uma perspectiva elevada e mais serena, tomando uma atitude de indiferença igual a um historiador da ciência que se dedica a um estudo histórico da alquimia. Além da formulação de um dos princípios epistemológicos centrais da Ciência da Religião até hoje, Müller vislumbrou também a organização interna da disciplina no sentido da distinção entre um ramo que se ocupa com as formas históricas da religião e um ramo sistemático interessado na explicação das condições sob as quais as religiões se manifestam.


Em 1893, por ocasião do Parlamento Mundial das Religiões, novamente Tiele deixou claro que a comparação das religiões não deveria ser confundida com um empreendimento apologético. Em vez disso, tratar-se-ia de um estudo não preconceituoso de dogmas, textos, ritos e crenças.9


Independentemente do uso explícito da Ciência da Religião, a comparação das religiões como tarefa-chave dos estudos da religião no sentido moderno é também um assunto destacado em outras publicações lançadas na década de 1890, entre elas o livro Ten Great Religions, de James Freeman Clarke, e as Lectures on the Religion of the Semites, de Robertson Smith. Mais uma vez, Tiele, na sua obra de dois volumes Elements of the Science of Religion, publicados em 1897 e 1899, respectivamente, informa seu leitor não apenas sobre as manifestações e constituintes da religião e sua evolução histórica, mas também oferece uma introdução à constituição, ao objetivo e aos métodos da Ciência da Religião.


Em 1901, Edmund Hardy (1852-1904), professor de indologia na universidade de Friburgo (Suíça), delineou no seu artigo “Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung”, publicado no volume inaugural do novo órgão Archiv für Religionswissenschaft (1901), o método da Ciência da Religião comparada enquanto uma abordagem sistemática baseada na pesquisa histórico-empírica. Quatro anos mais tarde, o pesquisador das religiões canadense Louis Henry Jordan (1855-1923) lançou em Edinburgh sua obra Comparative Religion. Its Genesis and Growth, sobre a gênese e o desenvolvimento da sua disciplina. Conforme o prefácio, o livro representa uma tentativa de oferecer um esboço da emergência de uma nova linha de pesquisa, as dificuldades que ela enfrenta, os problemas que ela pretende resolver e os resultados obtidos até então.


Essa nova ciência tem uma raison d’être própria que consiste em colocar as inúmeras religiões do mundo lado ao lado com o objetivo de compará-las. Diferentemente da apologética cristã, não tem o objetivo de assegurar a superioridade de uma religião diante das outras.


A história inacabada da Ciência da Religião


A história mais recente comprova a receptividade de sistemas acadêmicos em todas as partes do mundo para a implementação de estudos da religião no sentido moderno. Um olhar atual panorâmico revela a existência de inúmeros cursos, ofertas de estudo em programas de Ciência da Religião institucionalizados, bem como a presença de associações que representam e coordenam os interesses de cientistas da religião no âmbito nacional e, na maioria dos casos, no âmbito da Internacional Association for the History of Religion (IAHR), fundada em 1950 com o objetivo de promover as atividades de todos os membros (42 associações nacionais e seis regionais em 2012) que contribuem para o estudo histórico, social e comparado da religião.


O início e a velocidade da internacionalização da Ciência da Religião, bem como os resultados desse processo variam de país para país, dependendo de uma série de fatores intra e extra-acadêmicos. Para o Japão, por exemplo, foi decisiva a abertura do país para o Ocidente e suas tradições intelectuais a partir do último terço do século XIX. A Fundação da Japanese Association for Religious Studies em 1930 é uma das manifestações dessa nova atitude e indica que nas décadas anteriores da criação do órgão nacional os estudos da religião se articularam em algumas universidades locais.


Para o Leste Europeu, a queda da cortina de ferro criou um novo horizonte para os estudos da religião, seja no sentido de uma retomada de uma tradição mais antiga representada por renomados filólogos e orientalistas como o húngaro Alexander Csoma de Körös (1784-1842) ou os russos Vasili P. Vasiliev (1818-1900), Nikolai F. Petrovsky (1837-1908) e Ivan Pavlovich Minaev (1840-1890), seja no sentido de fundação de departamentos de Ciência da Religião, como na Ucrânia (1991), em Bucareste (2003) ou em Budapeste (2005).


Uma pesquisa profunda sobre a situação atual nos respectivos países teria que também abranger associações acadêmicas no âmbito nacional como, por exemplo, a Czech Association for the Study of Religions, que existe desde 1990, a Slovak Association for the Study of Religions, inaugurada um ano depois, ou a Romanian Association for the History of Religions, fundada em 1997.


Na Austrália, a Ciência da Religião se beneficiou de uma onda de institucionalizações na década de 1970 que culminou na fundação da Australian Association for the Study of Religions em 1976. Três anos mais tarde, surgiu a Association for the Study of Religions in Southern Africa, que, do ponto de vista da IAHR, atua no nível sub-regional diferentemente, por exemplo, da Nigerian Association for the Study of Religions (nacional), por um lado, e da African Association for the Study of Religions, fundada em 1992 como associação regional, por outro lado. A Asociación Latinoamericana para el Estudio de las Religiones (ALER) foi fundada em 1990 e associou-se no mesmo ano à IAHR como associação regional.


Do ponto de vista de associações nacionais como a Associação Brasileira da História das Religiões (ABHR, fundada em 1999 e associada à IAHR desde 2000) ou a Associação de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião (Anptecre, que iniciou suas atividades em 2008), os modos de cooperação com a ALER e a representatividade atribuída a ela pela IAHR mereceriam um esclarecimento melhor.


Todos os exemplos mencionados não apenas comprovam a dinâmica contínua da história da Ciência da Religião em geral, mas sensibilizam também para a heterogeneidade cultural dos contextos em que a disciplina se articula e busca manter sua identidade. Essa busca torna-se particularmente delicada em situações em que uma determinada comunidade científica sente a necessidade de conciliar exigências disciplinares originalmente formuladas a partir do último quarto do século XIX por eruditos europeus com os princípios e o “estilo” da tradição intelectual nacional. Nesses casos, os respectivos cientistas da religião estão diante da tarefa de reinterpretar os padrões predominantes na discussão internacional. Não cabe a este resumo da história disciplinar se posicionar diante dos riscos e ganhos de esforços de aculturação da Ciência da Religião.


Referências bibliográficas:

CAPPS, Walter. Religious Studies; the Making of a Discipline. Minneapolis: Fortress Press, 1965.

COLPE, Carsten. Religious Studies. In: The Encyclopedia of Christianity. Grand Rapids: Eerdmans-Brill, 2005. pp.637-638.

HARDY, Edmund. Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung. Archiv für Religionsforschung, n. 4 (1901), pp. 45-66; 97-135; 193-228.

KIPPENBERG, Hans G. Die Entdeckung der Religionsgeschichte; Religionswissenschaft und Moderne. München: Beck, 1997.

SANTOS, F. Delfim. Cronologia das traduções e das obras filológicas orientalistas (séc. XVIII e XIX). Nuntius antiquus, n. 5 (2010), pp.149-159.

SEAGER, Richard Hughes. The World’s Parliament of Religions; the East/West Encounter. Chicago: s.n., 1893.

USARSKI, Frank. O caminho da Institucionalização da Ciência da Religião — Reflexões sobre a fase formativa da disciplina. Religião & Cultura, v. II, n. 3 (2003), pp.11-28.

VAN BEEK, W. E. A.; BLAKELY, T. D. Introduction. In: BLAKELY, T. D.; VAN BEEK, W. E. A.; THOMSON, D. L. (eds.). Religion in Africa. London: James Currey, 1994. pp.1-20.

WIEBE, Donald. The Politics of Religious Studies. New York: Palgrave, 1999.


Notas

1 Van Beek; Blakely, Introduction, p. 2.

2 Hardy, Zur Geschichte der vergleichenden Religionsforschung, p. 45.

3 Wiebe, The Politics of Religious Studies, pp.3ss.

4 Capps, Religious Studies, p. xv.

5 Santos, Cronologia das traduções e das obras filológicas orientalistas.

6 Kippenberg, Die Entdeckung der Religionsgeschichte.

7 Colpe, Religious Studies.

8 Capps, Religious Studies, p. xiii.

9 Seager, The World’s Parliament of Religions, p. 69.

Fonte: USARKI, Frank. História da Ciência da Religião. Revista Ciberteologia: teologia e cultura, ano X, n. 47, 2013, p. 139-150. 

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Uma história da medicina hipocrática e galênica

Na história da medicina antiga, entre os vários médicos que viveram nestes períodos, destacam-se os nomes de Hipócrates, o chamado "Pai da Medicina" e Cláudio Galeno. Ambos os médicos de origem grega, viveram séculos de distância um do outro, no entanto, seus trabalhos se tornaram referências para médicos ao longo da História. Sendo assim, a proposta desse texto foi contar um pouco da vida e obra desses dois importantes médicos, responsáveis por alguns dos avanços da "medicina científica".

Esse texto foi concebido a partir do meu avô que passou 30 dias enfermo, o que me levou a passar um mês de idas e vindas a hospitais, internações, noites em claro, cirurgia e 21 dias de internação na UTI, vindo a falecer neste mês de maio. Que os médicos de hoje tenham a aprender com a ética de Hipócrates e Galeno. 

In memorian do meu avô Severino (1929-2015).

Sobre a vida de Hipócrates:

"A vida é curta, a arte é longa, 
a oportunidade é fugaz, 
a experiência enganosa, 
o julgamento difícil".
Aforismos, Hipócrates
 
Embora Hipócrates seja chamado de o "Pai da Medicina", ele não foi nem o primeiro médico e nem o inventor da medicina. As artes curativas já existem a milênios, e antes de Hipócrates houve vários médicos, mas o que o fez ser chamado de "pai", deve-se ao reconhecimento por seu trabalho.

Hipócrates quando nasceu por volta do ano de 460 a.C na ilha de Cós, na costa da Ásia Menor (atual Turquia), na época território da Magna Grécia, a profissão de médico entre os gregos já era conhecida e consolidada; já havia escolas de medicina, na própria Cós, Cnido, Crotona, Agrigento, Sicília entre outros locais. Além disso, o pai de Hipócrates, Heraclide era médico, tendo sido a partir dele, o incentivo ao filho para seguir essa carreira. Antigos biógrafos sugerem que sua mãe, Phenarete teria sido a responsável por incentivar o filho a seguir a carreira de médico. De qualquer forma, o jovem Hipócrates ingressou nos estudos da medicina, formando-se na Escola de Medicina de Cós. Após se formar em data incerta, pois muitos aspectos da sua vida são desconhecidos, e mesmo as biografias antigas não são totalmente confiáveis, Hipócrates teria em determinada fase da vida decidido viajar para outras regiões e cidades como Cnido, Egito, Trácia, Cítia, Tessália, Atenas, etc (BITTENCOURT, 1995, p. 92). 

Além de ter tido seu pai como primeiro professor, outros dos professores de Hipócrates teriam sido Herodicus de Selymbrie, Gorgias de Leontium e talvez o filósofo Demócrito de Abdera. No entanto, não se sabe ao certo por quanto locais realmente Hipócrates passou e viveu, além do fato de haver certo episódios questionáveis de credibilidade. Por exemplo, há o relato que Hipócrates salvou Atenas de uma peste; em visita a Macedônia, ele curou o rei Perdicas II do "mal do amor", descobrindo que a "depressão" do rei era causada pelo amor não correspondido de uma concubina de nome Phila. Hipócrates também teria recusado servir ao rei da Pérsia, Artaxerxes, alegando que pelo fato de gregos e persas serem inimigos, ele não trabalharia para o rei persa (VASCONCELOS, 1964, p. 61-62). 

"A biografia de Hipócrates, - qual é compreensível, face a tão recuados tempos, - não pode ser reconstituída, com precisão, ou restaurada, na sua integridade. Substituem, aos documentos, inexistentes, as lendas". (VASCONCELOS, 1964, p. 62). 

Sabe-se que Hipócrates casou-se e teve filhos e netos, embora se desconheça a identidade exata destes, e se também estes seguiram a carreira de médico. Todavia, também se sabe que Hipócrates teve vários discípulos e admiradores, como os filósofos Platão e Aristóteles, os quais chegaram a mencionar o nome do ilustre médico em algumas de suas obras (BITTENCOURT, 1995, p. 96). 

Quanto a data de falecimento do famoso médico, existem divergências, nas quais apontam que ele teria falecido com mais de oitenta anos, tendo morrido entre 375 e 370 a.C, possivelmente na cidade de Larissa, na região da Tessália, na Grécia. 

"Viveu, portanto no famoso século de Péricles, quando Atenas era não só a primeira cidade da Grécia, mas também o centro cultural, artístico e científico mais importante de seu tempo; contemporâneo dos filósofos Sócrates, Platão, Protágoras e Xenofonte, de historiadores como Heródoto e Tucídides, de escultores como Fídias, Policleto e Praxíteles, de trágicos e comediógrafos como Ésquilo, Sófocles e Aristófanes". (SOUSA, 1996, p. 51-52). 

De fato, a época que Hipócrates viveu foi bastante promissora para o desenvolvimento da filosofia, das artes e ciências no mundo grego, e graças a esse ambiente de inovação, questionamento e descobrimento, Hipócrates encontrou terreno propício para realizar seus estudos, e até mesmo contrariar determinadas medidas que vigoravam entre os médicos do período. 

O Corpus Hippocraticum: 

O Corpus Hippocraticum foi o nome dado ao conjunto de livros e tratados atribuídos a Hipócrates, no entanto, desde o século XVI já se sabe que na prática Hipócrates não escreveu talvez nem um décimo das obras que compõem essa vasta coleção de pelo menos 72 livros e 59 tratados (ROSA, 2012, p. 187). O mais sensato é que parte dos livros mais antigos possivelmente foram escritos por discípulos do próprio Hipócrates, e outras obras que datam de séculos posteriores, tenham sido escritas por admiradores de seu trabalho, ou tenham sido inseridas nessa coleção por alguém que notou alguma similaridade com o restante do conjunto da obra. 

"Os escritos atribuídos a Hipócrates e aos seus discípulos começaram a ser reunidos na Biblioteca de Alexandria, a partir do século III a.C. e o seu conjunto é designado pelos autores latinos pelo nome de Corpus Hippocraticum (que podemos traduzir por Coleção Hipocrática). Trata-se de um conjunto de manuscritos de variada proveniência, completos uns, incompletos outros, ou ainda, o que é pior, formados pela reunião de textos originariamente distintos. Para que se possa fazer uma ideia das dificuldades que se levantam relativamente à autenticidade destes fragmentos e à maneira como devem relacionar-se uns com os outros, basta dizer-se que nenhum deles tem data, nem título, nem nome de autor, nem sinal de que seja o início ou o final de uma obra". (SOUSA, 1996, p. 52). 

Frontispício da edição veneziana de 1575 do Corpus Hippocraticum.
Dessa coletânea, sugere-se que as obras Aforismos, Da Doença Sagrada, Epidemias, Prognósticos, Regime nas Doenças Agudas, Da Medicina Antiga e Dos Ares, Águas e Lugares, teriam sido escritas pelo próprio Hipócrates; e, inclusive o famoso Juramento de Hipócrates na verdade não teria sido concebido por ele, mas consista numa publicação bem posterior. Por sua vez, W. H. S. Jones, o qual traduziu o Corpus Hippocraticum entre 1948 e 1953 para a língua inglesa, defendeu que apenas os livros das Epidemias, Regime nas doenças agudas e Prognóstico, poderiam ser atribuídos a Hipócrates (SOUSA, 1996, p. 56).

Basicamente o a Coleção Hipocrática aborda dez temas:
  • Anatomia humana
  • Patologia
  • Fisiologia
  • Diagnóstico
  • Prognóstico
  • Terapêutica
  • Cirurgia
  • Gineco-obstetrícia
  • Doenças mentais
  • Ética médica
Dessa relação de conteúdos, Hipócrates escreveu sobre patologia, diagnóstico, prognóstico, ética, doenças mentais e terapêutica. Todavia, segundo Lima (2003, p. 45), a maioria das obras que compõem a coleção abordam temas ligados a cirurgia, relatando e descrevendo distintos procedimentos cirúrgicos.  

No entanto, embora haja dúvidas acerca de quantas obras Hipócrates tenha escrito, todos esses trabalhos, escritos por distintos autores, contribuíram para se criar a chamada "medicina hipocrática", um ramo dos estudos médicos bastante longevo, ao fato que nos séculos XVIII e XIX, em algumas universidades europeias, os estudantes de medicina estudavam o Corpus Hippocraticum inteiro, mesmo a medicina tendo avançado em mais de dois mil anos, o trabalho dessa "escola" ainda estava bastante vivo.

Mas para se entender o do porque dessa influência longínqua, é preciso conhecer alguns aspectos do trabalho de Hipócrates, os quais foram considerados inovadores em seu tempo, e assim se tornaram modelos para várias gerações de médicos, a ponto de criarem essa coleção em sua homenagem. 

A medicina hipocrática:

Chama-se medicina hipocrática as práticas médicas desenvolvidas por Hipócrates, seus discípulos e o que foi redigido no Corpus Hippocraticum. Todavia, para esse texto, preferi trabalhar apenas com a produção do próprio Hipócrates, isso considerando o fato que não existe total certeza se todas as descobertas creditadas a ele, realmente são de seu mérito. 

"A característica principal da obra de Hipócrates foi a introdução de um método no exercício médico. Este se caracterizava pela observação criteriosa de tudo que pudesse estar envolvido no surgimento de uma doença, pelo estudo do paciente como um todo em lugar de partes ou doenças isoladas e pela conduta honesta, altruísta, idealista e pouco intervencionista do médico". (LIMA, 2003, p. 46). 

Para Tavares de Sousa (1996, p. 20-23), Hipócrates teria sido um dos responsáveis por inaugurar a "medicina científica", pois o autor defende que havia outros três tipos de "medicina": a instintiva, a empírica, a religiosa e a mágica. Neste sentido, a instintiva seria a mais antiga, na qual os homens com base no instinto procurariam formas de tratar de seu corpo, como o ato de se lavar, catar piolhos, catar parasitas da pele, lamber feridas, limpar ferimentos, etc. Por sua vez, a "medicina empírica" seria mais avançada no sentido de procurar formas de tratar dos ferimentos e de algumas doenças, como base na observação e na tentativa de erro e acerto. 

Alto-relevo mostrando Hipócrates examinando um paciente.
Não obstante, a "medicina religiosa" e a "medicina mágica" apelavam e ainda apelam para o divino e o sobrenatural. Na época de Hipócrates, Apolo e Asclépio eram os deuses da medicina, e quando as pessoas adoeciam, rezava-se a tais deuses pedindo a cura. Ainda hoje se ver bastante isso, pois quando não se consegue curar uma doença ou recobrar a saúde de forma segura e rápida, apelasse ao divino por uma intervenção ou salvação, quando se trata em casos críticos, daí falar-se de milagres. 

Já no que diz respeito a "medicina mágica", essa consiste no uso de práticas mágicas como defumadores, bençãos, expurgos, poções, amuletos, rezas, etc. Ainda hoje é bastante usada em vários locais do mundo, sendo conhecida como curandeirismo. 

Na época de Hipócrates, a medicina grega vivenciava uma relação com a medicina religiosa, mágica e a científica. Entretanto, Hipócrates começou a indagar a factualidade desse tipo de medicina ensinado e praticado. Para ele as doenças não seriam causadas necessariamente por intervenção divina, por demônios ou pragas jogadas por outras pessoas; neste ponto, Hipócrates começava a duvidar de que as doenças seriam algo proveniente do sobrenatural, passando a enxergá-las como manifestações naturais (BITTENCOURT, 1995, p. 97). Concepção essa que não surgiu plenamente dele, mas foi proveniente da sua formação na Escola de Medicina de Cós.

"Na escola de Cós dominava, pelo contrário, o conceito de doença como afecção geral do organismo. Seria vão procurar distinguir as 'doenças' uma das outras pelos sintomas, porque estes veriam constantemente no decorrer da mesma doença. Cada dia o paciente teria uma 'nova doença' e o número de doenças seria infinito. A doença é uma abstração e o doente o problema real. A Medicina não pode deixar de ser a Arte de tratar o homem enfermo, segundo as normas ditadas pela experiência e guiadas pela observação minuciosa e esclarecida". (SOUSA, 1996, p. 49). 

Por tal viés, podemos já delineando alguns aspectos da medicina de Hipócrates: as doenças não eram causadas por intervenção de deuses e seres sobrenaturais, algo polêmico, pois os gregos antigos acreditavam que a vida era regida pelo humor dos deuses; embora que tal crença variasse de pessoa para pessoa. No entanto, mesmo alegando tal fato, Hipócrates não foi um homem descrente de fé, ele mesmo rendia culto a Asclépio, Apolo e outros deuses e até mesmo não abandonou totalmente a "medicina mágica", pois embora procurasse não recomendar tratamentos mágicos, Hipócrates ainda manteve noções mágico-filosóficas na sua formação, algo em voga na época entre os estudiosos gregos. 

O filósofo Empédocles de Agrigento (ca. 490 - ca. 430 a.C) foi responsável por ter criado a Teoria dos Quatro Elementos (Fogo, Água, Ar e Terra), concepção essa que influenciou os mais diversos meios da filosofia grega, lembrando que naquele tempo filosofia também englobava o que hoje chamamos de ciência. Na concepção de Empédocles, toda a matéria do Universo seria formada com base nestes quatro elementos primordiais, e por sua vez Hipócrates também foi influenciado por tal teoria. 

"A patologia hipocrática era baseada na doutrina dos quatros humores: sangue, fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra, (atrabílis), que se pensava constituírem a própria natureza do corpo humano. As suas qualidades são naturalmente as qualidades fundamentais dos elementos a que correspondem: o sangue, quente e úmido, como o ar; a fleuma, fria e úmida, como a água; a bílis amarela, quente e seca, como o fogo; a bílis negra, fria e seca, como a terra". (SOUSA, 1996, p. 59). 


Esquematização da teoria dos quatro humores de Hipócrates e sua ligação com a teoria dos quatro elementos.
Para Hipócrates esses quatro humores estariam relacionados a áreas específicas do corpo: o sangue com o coração; a fleuma com o cérebro; a bílis amarela com o fígado; e a bílis negras com o baço (BITTENCOURT, 1995, p. 97). Logo, em sua concepção patológica, um corpo saudável era aquele que mantinha em equilíbrio esses quatro humores ou fluídos como alguns chamam. Em caso de algum desses fluídos estivesse em falta ou em excesso, isso acarretaria num desiquilíbrio, e afetaria a saúde da pessoa, a deixando doente. Embora Hipócrates tivesse essa noção, ele mesmo não sabia dizer a origem de todas as doenças que ele estudava, embora houvesse hipóteses para sua ocorrência. 

Por outro lado, sua teoria dos humores embora tenha vigorado entre alguns médicos, foi repudiada entre outros. Na prática, sua teoria não tem fundamento, estando imbuída pelo pensamento mágico-filosófico da época, no entanto, mesmo assim, havia algo de correto nessa concepção de Hipócrates: a falta ou excesso de fluídos e nutrientes no corpo, afetam o organismo, causando doenças. E nesse sentido, Hipócrates possuía certa noção disso, pois recomendava sangrias e uma dieta balanceada como tratamento. 


“A tradição médica grega, ainda que reformada por Hipócrates, continuaria a ter como principal objetivo o tratamento clínico do paciente e a cura da doença, mas não o conhecimento do corpo humano e de seus órgãos, que era rudimentar, confuso, contraditório e errôneo. O estudo dos órgãos e de suas funções ficaria em um segundo plano. A Medicina continuaria a se basear, durante muitos séculos, numa Anatomia medíocre, cheia de erros, e numa Fisiologia arbitrária, devido, principalmente, à ausência de dissecação”. (ROSA, 2012, p. 186). 

Hipócrates também assinalava que outros fatores que eram responsáveis por causarem enfermidades estavam na mudança de clima, na alimentação, na qualidade do ar, no estilo de vida e na hereditariedade. Nestas perspectivas, o pensamento de Hipócrates dava um salto a frente em seu tempo, pois embora possa parecer banal dizer que no inverno as doenças pulmonares como asma, bronquite, sinusite tem maiores chances de ocorrer, assim como, o fato de beber água contaminada pode causar doenças como desinteria, cólera, etc., naquela época essa noção ainda estava sendo desenvolvida e estudada. 

Logo, Hipócrates em seu livro Dos Ares, Águas e Lugares já assinalava tais fatos, onde dizia que ingerir alimentos ruins e água ruim causaria doenças; que a qualidade do ar influenciava na sáude; que viver em locais poluídos com fonte de águas ruins, muitos mosquitos, etc., poderia originar doenças. Por outro lado, Hipócrates deu bastante atenção a alimentação, algo interessante, pois inaugurava-se o que um dia viria a ser a nutrição (SOUSA, 1996, p. 60-61).

"A dieta, segundo Singer, era prescrita segundo determinadas regras. Quanto à idade: "Os velhos se alimentam menos que os jovens", quanto ao estado físico do paciente: "as pessoas magras, embora comam pouco, devem tomar alimentos gordos, enquanto que as pessoas gordas, embora comam muito, devem tomar alimentos magros"; quanto às estações do ano: "No inverno se recomenda uma alimentação abundante e no verão uma dieta mais frugal" e, no que diz respeito à digestibilidade do alimento: "A carne preta é mais indigesta do que a branca". (BITTENCOURT, 1995, p. 94). 

Hipócrates assinalava que pessoas muito gordas tinham maior tendência a adquirir doenças e a ter uma vida mais curta, por outro lado, pessoas muito magras também estavam vulneráveis, daí ele recomendar uma dieta balanceada de acordo com as condições de cada um. Mas além de uma boa alimentação, ele também recomendava a prática de exercícios e uma vida saudável. No livro Enfermidades, há relatos de homens que levavam uma vida degradável, bebendo muito, não se alimentavam direito, não faziam atividade física, dormiam pouco e eram promíscuos, e tais homens estavam mais vulneráveis a adoecerem. 

Outro aspecto sobre a causa das doenças assinalado pelo "Pai da Medicina", dizia respeito a hereditariedade ou doenças crônicas. Observando a ocorrência de doenças entre pais e filhos, Hipócrates começou a delinear que determinadas doenças seriam transmitidas de pai para filho, como doenças pulmonares, hepáticas, mentais, etc., (SOUSA, 1996, p. 61). Por exemplo, ele acreditava que a epilepsia (chamada de doença sagrada, por supostamente ser associada a uma espécie de "ataque de loucura" causado pelos deuses) poderia ser transmitida de pai para filho. 

"Durante seu brilhante exercício profissional, colheu, com seus alunos, dados que serviram para elaborar histórias médicas nunca antes conhecidas. Enriqueceu o vocabulário da clínica médica diária com termos ainda hoje utilizados, como crise, recaída, exacerbação, paroxismo, resolução, crônico e convalescença". (BITTENCOURT, 1995, p. 95).

"Deixou descritas várias doenças: parotidite, erisipela, difteria, pneumonia, pleurisia, tuberculose e malária, catalogadas na obra intitulada "As Epidemias". Escreveu sobre a sáude pública e geografia médica ("Dos Ares, das Águas e dos Lugares"), descrevendo pela primeira vez a litíase urinária e a impotência sexual. Não esqueceu as doenças pediátricas e psiquiátricas, as febres, o reumatismo e o câncer". (BITTENCOURT, 1995, p. 95). 

Uma penúltima contribuição a ser mencionada a respeito do trabalho de Hipócrates diz respeito a forma de como o médico deveria proceder em seu ofício. Hipócrates defendia que o importante não era a doença, mas o paciente, nessa concepção, cada paciente deveria ser tratado de forma individual, pois os sintomas poderiam se manifestar de forma diferente, assim como, de forma mais ou menos grave. 

Por tal viez, ele recomendava um intenso processo de observação e relato sobre as condições físicas e mentais do paciente, tendo que registrar todas as mudanças ocorridas: sudorese, sangramento, tosse, catarro, vômito delírio, febre, coloração da urina, cheiro e aparência das fezes; cansaço, sonolência, fraqueza, dores, falta de apetite, respiração fraca, sede excessiva, etc. Algo que veio a se tornar o prognóstico (SOUSA, 1996, p. 61). 


Desenho ilustrando Hipócrates ao examinar um garoto.
A medida que as observações prosseguiam, o médico passava a dispor do diagnóstico e com base neste, focaria na terapêutica, que consistia no tratamento. Sendo esse de acordo com a gravidade da enfermidade ou ferimento do paciente. Como dito, Hipócrates fazia bastante uso de sangrias e da dietética, no entanto, não significa que não fossem usados remédios, emplastros, infusões e cirurgias. 

"Os meios dietéticos e terapêuticos de que Hipócrates podia dispor - caldo e papas de cevada, hidromel (mistura de água e mel), oximel (mistura de vinagre e mel), vinho, algumas plantas medicinais, purgativos, sangrias, banhos e unguentos, exercício físico ou repouso". (SOUSA, 1996, p. 64).  


“Suas descrições do estado do paciente e da moléstia são consideradas modelos de observação clínica, como os muitos citados de difteria, tifo e epilepsia, por serem sucintas, claras e breves, sem uma palavra supérflua, mas indicando tudo que seja essencial no acompanhamento do estado do paciente. O diagnóstico só era feito após minucioso exame do quadro sintomatológico, inclusive com o uso da palpação e da verificação da pulsação arterial. Organizou Hipócrates detalhado registro dos casos sob seu tratamento, registrando sucessos, mas também fracassos, tendo sido o criador dos registros médicos no Ocidente”. (ROSA, 2012, p. 188).

Todavia, na sua concepção, o médico não era responsável por curar, mas era o responsável por mediar o tratamento, sendo da natureza a função da cura. Nesse sentido, alguns consideraram um certo exagero de Hipócrates, como se ele alegasse que não seria capaz de curar ou tratar, sendo cabível a "sorte" do paciente a recuperação, no entanto, a fala de Hipócrates não está totalmente errada. Em alguns casos o tratamento em parte depende mais da resposta do organismo aos medicamentos, do que a própria aplicação destes. Lembrando que o organismo possui suas células de defesa (leucócitos) os quais já ajudam na proteção natural do corpo. 

A ética médica: 

Um último ponto a comentar sobre a medicina hipocrática diz respeito a ética médica. Embora haja um debate sobre a procedência do Juramento de Hipócrates, no entanto, os relatos atribuídos ao próprio Hipócrates e aos seus discípulos já apresentam valores dessa ética que foram retratados neste juramento. 


“Pioneiro da Ética na Medicina, a crítica de Hipócrates a charlatães e curandeiros era incisiva: “na minha opinião, ela (epilepsia) não é nem mais divina nem mais santa que qualquer outra doença, tendo, ao contrário, uma causa natural, sendo que sua suposta origem divina se deve à inexperiência dos homens e ao seu espanto ante seu caráter peculiar... aqueles que primitivamente deram a tal doença um caráter sagrado eram como os mágicos, exorcizadores, curandeiros e charlatães dos nossos tempos, homens que se gabam de possuir grande devoção e não menor sabedoria. Nada sabendo e não possuindo medicamento algum que os possa auxiliar, escondiam-se e abrigavam-se por detrás da superstição, chamando a essa doença de sagrada a fim de que sua profunda ignorância não chegasse a manifestar-se...”. Sobre o assunto da Ética na Medicina, é válido ressaltar o famoso juramento dos médicos, atribuído a Hipócrates, reconhecimento da importância da honradez e da correção no exercício da profissão”. (ROSA, 2012, p. 188).

Na concepção de tais valores, o médico deveria ser um homem honesto, cordial, íntegro, humilde, complacente, sábio, compreensivo, dedicado e deveria está disposto a ajudar o próximo custe o que custasse. Neste sentido, a pessoa deveria se tornar um médico não visando ganhar dinheiro ou status social, mas visando a ajudar o próximo, a ter compaixão em ajudar os aflitos. 

"Mostrou, também, que o médico não é um deus e, sim, uma simples criatura, um mortal como seus semelhantes, mas agraciado com a nobre missão de curar as doenças, com honradez, dedicação e amor ao próximo". (BITTENCOURT, 1995, p. 97-98). 

Juramento de Hipócrates:


"Eu juro, por Apolo médico, por Esculápio, Higeia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir,  segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.



Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.



Conservarei imaculada minha vida e minha arte.

Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.

Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.

Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.

Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça".

Sobre a vida de Cláudio Galeno: 
 
Galeno nasceu por volta de 130 d.C na cidade grega de Pérgamo na Ásia Menor (atualmente na Turquia), a qual tornou-se famosa pelo desenvolvimento do pergaminho, por sua biblioteca (que chegava a rivalizar com a de Alexandria) e por ter um dos mais destacados templos a Asclépio, local de peregrinação de vários doentes que iam para lá em busca da cura de seus males. O pai de Galeno, Élio Nicon era arquiteto, e não médico como no caso de Hipócrates, no entanto, o jovem rapaz acabou ingressando nos estudos da medicina, pois a Escola de Medicina de Pérgamo era uma das mais notáveis em seu tempo. Entre seus professores inicias destacaram-se Sátiro, que lhe ensinou anatomia e Stratónico, que lhe ensinou a medicina hipocrática (SOUSA, 1996, p. 110). Após a morte de seu pai, mudou-se para a cidade de Esmirna onde continuou com seus estudos, até posteriormente ir para Corinto na Grécia. Depois seguiu para Alexandria, o berço cultural da época (embora já em declínio). Em Alexandria viveu pelo menos cinco anos estudando e trabalhando. Tendo acesso ao imponente acervo do museu e da biblioteca, acabou desenvolvendo vários estudos não apenas no campo da medicina, mas também da matemática e da filosofia. 


"Quando regressou a Pérgamo tinha 28 anos e dominava com a claridade da sua inteligência e a energia da sua envergadura mental, não só a medicina inteira, desde Hipócrates até ao seu tempo, nas suas bases anátomo-fisiológicas como na patologia e na terapêutica, mas também a aritmética, a geometria, a filosofia, numa palavra, a Ciência daquela época". (SOUSA, 1996, p. 111). 


De volta a Pérgamo, Galeno tornou-se médico de uma das escolas de gladiadores da cidade. Onde teve oportunidade de aperfeiçoar suas técnicas de tratamento de ferimentos, hemorragias, executar cirurgias e observar a aplicação de dietas balanceadas e exercícios físicos para o bem-estar do corpo. Lá ele permaneceu quatro anos trabalhando, algo notável, pois segundo Sousa (1996, p. 111) o contrato de emprego era de um ano, sendo assim, ele teve o contrato renovado três vezes. Provavelmente tal fato se deu devido ao seu bom trabalho. 


Aos 33 anos, Cláudio Galeno mudou-se para Roma, que na época era um local bastante atrativo para os médicos gregos, pois há um século eles "reinavam" por lá. Chegando na grande Roma, começou a fazer sua clientela e posteriormente também passou a lecionar. 


"A fama de Galeno cresce rapidamente e a sua clientela incluiu o próprio Marco Aurélio e as personalidades de maior destaque no meio social e intelectual da cidade. Ao mesmo tempo realiza conferências e vivissecções públicas em animais que despertaram grande interesse entre as camadas mais cultas e contribuem para aumentar a sua reputação de médico sabedor". (SOUSA, 1996, p. 111-112). 


Após quatro anos de serviço em Roma, Galeno retornou para Pérgamo, talvez devido a perseguição no trabalho, pois biógrafos seus relatam que seu trabalho incitou a inveja de outros médicos. No entanto, ele retornou posteriormente a Roma, dessa vez a convite do próprio imperador Marco Aurélio, tornando-se seu médico pessoal e de seus sucessores, Cômodo e Sétimo Severo. Ele passou os anos seguintes em Roma, chegando a retornar para Pérgamo e depois seguiu para a Sicília onde teria falecido em 200 ou 217. 


O Corpus Galenus: 

Diferente de Hipócrates o qual não teria redigido todas as obras do Corpus Hippocraticum, Galeno por sua vez redigiu quase tudo o que se atribui a sua autoria. Neste aspecto, ele foi um estudioso e escritor bem mais prolífico que Hipócrates, a quem admirava. A obra de Galeno, chamada aqui de Corpus Galenus (Coleção Galênica) foi bastante vasta e abrangia os campos da medicina, filosofia, matemática, direito e gramática, mostrando sua versatilidade como estudioso e erudito. 


"A sua foi extraordinariamente vasta e diversificada. Segundo ele próprio refere, escrevera, além das obras de medicina, 125 livros sobre filosofia, matemática, direito e gramática. Calcula-se em cerca de quatrocentas o número das suas obras, uma grande parte das quais se perdeu sem que delas existissem cópicas em consequência do incêndio do Templo da Paz que destruiu também as casas vizinhas onde se guardavam aquelas obras. Todavia, resta-nos ainda hoje um importante conjunto de 83 obras, de segura autenticidade, sem falar de outras duvidosas ou de fragmentos mais ou menos extensos". (SOUSA, 1996, p. 113).


No campo da medicina os trabalhos de Galeno incidiram principalmente nas áreas de anatomia e fisiologia, mas ele também escreveu sobre cirurgia, patologia, terapêutica, dieta, diagnóstico, farmacologia, etiologia, higiene, inclusive redigiu comentários sobre as obras de Hipócrates e de outros médicos antigos. 


Suas principais obras são:
  • De usu partinum corporis humani, em 17 volumes, que discorre acerca da função das diferentes partes do corpo humano. Galeno dedicou capítulos especiais apenas para abordar a mão, a qual ele considerava um dos mais notáveis membros do corpo humano. 
  • De facultatibus naturalis, em três volumes, onde aborda sobre as "faculdades naturais" de cada órgão (algo que será comentado adiante).
  • De anatomicis administrationibus, em 16 volumes. Consiste num vasto tratado sobre anatomia humana e animal com base nas suas dissecações. 
  • De locis affectis, em 6 volumes, no qual aborda sobre vários tipos de doenças. 
  • De methodo medendi, em 14 volumes, no qual aborda a terapêutica.
No campo da anatomia-fisiologia, Galeno também escreveu sobre os ossos, o fígado, coração, cérebro, vasos sanguíneos, pulmões, sistema respiratório, sistema urinário, rins, nervos oculares, nervos, temperatura corporal, suor, músculos, "sistema circulatório", etc. 

A medicina galênica:

Comparada a medicina hipocrática, a medicina galênica realizou um grande salto no estudo da anatomia e da fisiologia, campos ainda atrasados na época de Hipócrates. Graças a esse salto o entendimento sobre o corpo humano mudou em vários aspectos, embora nem todas essas mudanças estiveram certas, pois Galeno influenciado pelas concepções de seu tempo, também cometeu seus equívocos e erros. 

"Galeno condensa e personifica a medicina grega, incluíndo a medicina alexandrina, desde HIPÓCRATES até ao seu tempo e põe-lhe, com a sua obra gigantesca, monumental remate. É um eclético, mas um eclético no melhor sentido da palavra. Conhece toda a medicina que o precedeu, mas não pertence a nenhuma escola. A ciência que colhe nos outros é avaliada, criticada e, se lhe parece válida, incluída no próprio sistema, tão perfeitamente assimilada que se lhe não distingue a origem. Porém, tudo quanto lhe parece incompatível com as linhas fundamentais do seu pensamento é liminarmente rejeitado sem hesitação". (SOUSA, 1996, p. 116). 

Assim como Hipócrates, Galeno adotou a teoria dos quatro elementos de Empedócleas e a teoria dos quatro humores de Hipócrates, lembrando que consistiam em uma concepção mágico-filosófica a qual através da obra de Galeno perpetuou-se até a época do Renascimento. 

"Aparece agora mais elaborada, porque se distinguem quatro graus em cada uma das quatro qualidades e são possíveis todas as combinações dos graus dos diversos corpos. Desta maneira aumenta grandemente a complexidade do sistema e torna-se mais difícil a sua aplicação, sem que se consista por esse facto um progresso real". (SOUSA, 1996, p. 118).

Por outro lado, Galeno defendia a concepção de que o corpo humano foi uma criação perfeita, realizada pelos deuses. Por tal ponto de vista, ele considerava que todos os órgãos, músculos, nervos, vasos sanguíneos, partes do corpo, etc., possuíam uma finalidade precisa e predeterminada (SOUSA, 1996, p. 116). 

Galeno também se baseava na concepção de que "o corpo é instrumento da alma", algo criado por Platão. A partir deste aspecto, Galeno concebeu que o organismo seria dotado de "faculdades" (dynamis), as quais seriam responsáveis por realizar as funções de cada órgão. 

"A faculdade alterativa transforma a matéria inicial, informe, de que é feito o embrião em ossos, cartilagens, nervos, veias, etc. e também na 'carne própria dos órgãos' como o coração, o fígado, o rim, etc. A faculdade formativa dispõe em seguida as diferentes partes elementares na constituição dos vários órgãos, da maneira mais conveniente e mais adequada à função de cada um deles. A atribuição a cada órgão das faculdades (atractiva, retentiva, expulsiva, secretória, etc.), correspondentes às funções que ele exerce é, evidentemente, um expediente cómodo, mas não explica coisa nenhuma". (SOUSA, 1996, p. 122). 

Tal ideia consistiu em uma das bases de sua doutrina, pois em seus estudos anatômicos e fisiológicos, Galeno procurou essa harmonia não apenas no sentido dos quatro humores, mas em todo o funcionamento do organismo humano. De certa forma isso o ajudou a melhor detalhar as funções dos órgãos, mas acabou o levando a conjecturas equivocadas: por exemplo, Galeno defendia que o sangue era criado no fígado, que as veias nasciam no coração, os nervos no encefálo, e as artérias no fígado. Conjecturou que o coração produziria um "calor natural", responsável por aquecer o corpo, mas ele seria resfriado pelo ar dos pulmões.

Mas mesmo diante desses equívocos, ele teve vários acertos. Galeno determinou que nas veias corriam sangue e não ar, como era sugerido por alguns estudiosos até então. Ele determinou como era o processo da transferência da urina até a bexiga; determinou que lesões no cérebro, cerebelo e poderiam ocasionar perda de memória, sensibilidade, movimentação, fala, raciocínio, etc. Também constatou que lesões na coluna afetariam a motivação temporariamente ou definitivamente. 

Identificou a existência dos capilares, algo já cogitado anteriormente; determinou a diferença anatômica e funcional das veias e das artérias, embora não conseguiu descobrir como o sangue circulava, pois para ele, o coração estava associado ao sistema respiratório e não necessariamente ao "circulatório", embora ele soubesse que o coração bombeasse sangue; identificou a pulsação e sua importância para saber que o coração estava funcionando adequadamente. 

No que se refere a patologia, Galeno alegava que as doenças se formavam a partir da desordem dos humores ou a partir de lesões no corpo. Neste aspecto ele procedia de forma parecida com Hipócrates, realizando uma observação minuciosa acerca dos sintomas do paciente, e suas condições físicas e mentais, para assim desenvolver um prognóstico, depois o diagnóstico e iniciar a terapêutica. 

"A terapêutica visava a restabelecer o equilíbrio humoral perturbado pela doença e deveria ser racionalmente deduzida do conhecimento da alteração das faculdades naturais e das acções e propriedades dos meios a empregar. O êxito prâtico seria a confirmação da justeza do raciocínio orientador da terapêutica. Além de uma rica e complexa matéra médica, abrangendo muito diversos meios medicamentosos, Galeno servia-se com mestria da dietética, escrupulosa e minunciosamente regulada, da sangria e da aplicação de ventosas, do repouso e do exercício físico, da hidroterapia, da massagem, etc". (SOUSA, 1996, p. 137).

"A obra de Galeno representa o termo da medicina da Antiguidade, mas não o início de uma nova era. É um fecho de abóbada, ou se preferir, uma "abóboda completa", não uma "pedra angular". (SOUSA, 1996, p. 138). A medicina galênica foi o modelo europeu por quase quinze séculos.

NOTA: A primeira edição completa da Coleção Hipocrática, foi publicada em 1525 em latim, tendo sido organizada por Fabius Calvus em Roma. No ano seguinte foi lançada a primeira edição em grego em Veneza, por Aldo Manuzio, importante tipográfo da época. 
NOTA 2: A primeira versão impressa da Coleção Galênica foi publicada em latim em Veneza, no ano de 1490. Em 1525, também em Veneza saiu a primeira edição impressa em língua grega, como escrita no original. 
NOTA 3: Uma das maiores e mais completas edições da obra de Galeno no todo, incluindo um estudo crítico, foi realizado por K. G. Kühn, publicada entre 1821-1833, constando de 22 volumes. 

Referências bibliográficas:
BITTENCOURT, Ednor Valente. A mitologia clássica na medicina: os mitos greco-latinos e o vocabulário médico. Maceió. Edição do Autor, 1995. 
LIMA, Darcy. História da medicina. Petrópolis, Medsi, 2003.  
ROSA, Carlos Augusto de Proença. História da ciência: da Antiguidade ao renascimento científico - vol. 1. 2a ed, Brasília: FUNAG, 2012. 3v
SOUSA, A. Tavares de. Curso de História da Medicina: das origens aos fins do século XVI. 2a ed, Lisboa, Fundação Galouste Gulbenkian, 1996.
VASCONCELOS, Ivolino de. Asclépio Historiador - vol. I. Rio de Janeiro: Biblioteca Brasileira de História da Medicina, 1964.