terça-feira, 7 de julho de 2015

O racismo científico: da teoria a prática

"Não lutamos por integração ou separação. 
Lutamos para sermos reconhecidos 
como seres humanos".
Malcom X (1925-1965) 


A desigualdade racial entre o ser humano existe a milhares de anos. Desde os tempos antigos os mais diferentes povos do mundo escravizavam seus semelhantes ou outros povos, alegando não um fator biológico de inferioridade, mas o "direito" do mais forte governar sobre o mais fraco. Tal ideia ainda estava em voga no século XV, quando a escravidão moderna teve início, mas dessa vez ela retomava de forma diferente; se antes não havia uma diferença de cor para se mostrar como um preceito a condição de ser escravizado, na Idade Moderna, a população de pele negra e parda foi a principal a ser escravizada. 

A medida que a escravidão moderna se desenvolvia e se intensificou principalmente nos séculos XVII e XVIII, surgiram estudiosos que defendiam a manutenção da escravidão ou o seu fim. No entanto, o que nos interessa foram aqueles que passaram a desenvolver teses para justificar que a escravidão era pautada por preceitos "científicos", nos quais a "raça superior" deteria o "direito" de governar as "raças inferiores". Tais ideais começaram a surgir no século XVIII, mas se tornaram populares no XIX, quando surgem as "teorias raciais" e o chamado "racismo científico" ou "racialismo". 

A proposta desse texto foi contar um pouco dessa macabra história que vigorou por mais de um século, e embora hoje recuse-se totalmente essas ideias, o preconceito racial não precisa delas para se manter ainda presente. 

Raças humanas?

Desde dos tempos antigos os homens passaram a dar nomes aos animais e plantas para identificá-los e diferenciá-los entre si. No entanto, foi com o Renascimento Cultural e a Revolução Científica que os estudos na botânica e zoologia começaram a se desenvolver até se tornarem ciências propriamente ditas, e assim surgir a Taxonomia (técnica de classificação dos seres vivos), principalmente idealizada pelo botânico sueco Carlos Lineu (1707-1778), considerado por alguns como o "Pai da Taxonomia". No entanto, a taxonomia desenvolvida por Lineu referia-se apenas a classificação dos animais e das plantas, posteriormente o ser humano seria incluído como pertencente a família dos primatas, mamíferos, etc. 

No entanto, ainda no XVIII com o advento da arqueologia e da antropologia, alguns estudiosos começaram a delinear teses que defendiam uma espécie de "evolução cultural e social" entre as nações e povos do mundo, necessariamente não apontavam fatores de ordem biológica para embasar um "atraso civilizador". 

Johann Friedrich Blumenbach
Na segunda metade do século XVIII, o médico e naturalista alemão Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), lançou uma das primeiras obras importantes acerca do "racismo científico", sua tese intitulada De generis humani varietate nativa (A variedade nativa da raça humana), publicado em 1775. Com base na recente "ciência" da craniometria, ou seja, o estudo do tamanho e volume dos crânios humanos, Blumenbach defendia em sua tese que ao se analisar o volume do crânio de distintos seres humanos, que isso seria um fator para defender a ideia da existência de raças humanas. Com base nessa tese, Blumenbach sugeriu inicialmente a existência de cinco "raças humanas": caucasoide (branca), mongoloide (amarela), malaia (marrom), etiópica (negra) e americana (vermelha). As cinco "raças" propostas por ele seriam aceitas por outros estudiosos nos anos seguintes, no entanto, outros acabariam reduzindo para três ou quatro e até mesmo alguns aumentariam a quantidade. De qualquer forma, a tese de Blumenbach foi crucial para incentivar novas teorias raciais (MAGNOLI, 2009). 

Arthur de Gobineau
Em 1855 foi publicado por Joseph Arthur, Conde de Gobineau (1816-1882) a obra intitulada Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (Essai sur l’inégalité des races humaines) em quatro volumes. Tal obra tornou-se um marco para as "teorias raciais" vigentes no século XIX, influenciando vários autores até o final daquele século. Em sua obra ele defendia claramente a superioridade da "raça branca" (caucasoide) como tendo sido o elemento fundamental para o desenvolvimento das maiores civilizações humanas. Em sua visão, o "homem branco" era naturalmente dotado de intelecto superior, se comparado ao "homem amarelo, pardo e negro", os quais ele os identificava como sendo fruto de outras raças humanas. Gobineau também alegava que a miscigenação racial foi um grande mal para a humanidade, daí nações onde predominavam indivíduos oriundos do cruzamento entre brancos, amarelos, negros e pardos estavam fadadas ao atraso civilizador, cultural, social e moral. A miscigenação gerava indivíduos fracos e geneticamente inferiores, principalmente em termos cognitivos e morais (SOUSA, 2013, p. 24). 

Para embasar tal argumento, Gobineau recorreu ao estudos da sociologia, história, antropologia e arqueologia, apontando que os diferentes "graus de evolução cultural" estariam associados a esse fator racial; ou seja, os povos de origem negra, parda e amarela estava fadados a viverem em diferentes estágios civilizatórios, pois naturalmente eles eram "raças inferiores", sendo incapazes de "evoluírem" até a "alta sociedade branca" como vista na Europa e na América do Norte. 

Enquanto Blumenbach procurava salientar uma diferença biológica entre as "raças humanas", Gobineau foi além, defendendo que essas diferenças biológicas influenciariam o comportamento, a moralidade, a inteligência e o desenvolvimento social e cultural dos povos. 

Seguindo essa opinião, Gobineau também defendia que as grandes civilizações entraram em colapso porque teriam se misturado a "raças inferiores". Tal pensamento foi reaproveitado pelos nazistas como forma de justificar a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e a política antissemita defendida por Adolf Hitler, no que resultou no hediondo Holocausto dos judeus. Hitler pensava que a Alemanha só poderia tornar-se definitivamente uma potência mundial, quando expurga-se as "raças inferiores" que atrasavam o desenvolvimento da nação.  

Gobineau também chegou a defender que nações bastante miscigenadas como o Brasil, estariam destinadas em 200 anos (contando a partir da sua época) a serem extintas, pois a miscigenação entre europeus, indígenas e africanos "geraram um povo inferior". Ironicamente, Gobineau era amigo do imperador D. Pedro II, o qual embora não concordasse plenamente com as ideias do conde, ainda assim, continuou a ser seu amigo por vários anos e até o convidou para ser ministro da França no Brasil, em 1869. (SOUSA, 2006, p. 1). 

Quatro anos depois da publicação do livro de Gobineau, um outro livro polêmico foi publicado, era a Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin. Obra que abalou a sociedade na época. Todavia, Darwin não fez menção a evolução do homem na ocasião, vindo apenas em 1871, quando publicou A descendência do Homem e Seleção em relação ao sexo, no qual apresentou sua hipótese da evolução da espécie humana, mas se adentrar propriamente o debate racial. A teoria de Darwin foi reforçada também vários anos depois, após a descoberta do fóssil do Homem de Neardental (descoberto em 1863). Tal hominídeo originalmente considerado um "homem primitivo", posteriormente foi considerado uma espécie diferente, o que se mostrava como fundamento para a teoria darwinista da evolução humana. 

"Nos tempos de Charles Darwin tornara-se usual hierarquizar as raças humanas  em função de suas capacidades intelectuais e explicar as realizações culturais e econômicas dos povos a partir de potencialidades raciais. Contudo, no século XIX, ninguém se entendia sobre a própria classificação racial. Georges Cuvier reduziu as raças a 3, James Prichard encontrou 7, Louis Agassiz aumentou-as para 12, Charles Pickering  preferiu 11 e Thomas Huxley sugeriu 4. As coisas pioraram no século XX, com as novas descobertas dos exploradores e etnólogos. Joseph Deniker enumerou 29 raças em 1900 e Egon von Eickstedt listou 38 em 1937, enquanto outros propunham sistemas com mais de uma centena de raças". (MAGNOLI, 2009, s.d).

Pintura de 1904 do Nordisk Familjebok, retratando supostas 35 raças de asiáticos. Na época que essa pintura foi feita, os estudos raciais ainda estavam em alta.
 
"Duas grandes vertentes aglutinavam os diferentes autores que na época enfrentaram o desafio de pensar a origem do homem. De um lado, a visão monogenista, dominante até meados do século XIX, congregou a maior parte dos pensadores que, conforme às escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una. O homem, segundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum, sendo os diferentes tipos humanos, apenas um produto "da maior degeneração ou perfeição do Éden" (QUATEFRAGE, 1857 apud STOCKING, 1968). Nesse tipo de argumentação vinha embutida, por outro lado, a noção de virtualidade, pois a origem uniforme garantiria um desenvolvimento (mais ou menos) retardado, mais de toda forma semelhante. Pensava-se a humanidade como um gradiente - que iria ao mais perfeito (mais próximo do Éden) ao menos perfeito (mediante a degeneração) -, sem pressupor, num primeiro momento, uma noção única de evolução". (SCHWARCZ, 1993, 48). 

O pensamento monogênico era bastante influenciado pelas ideias cristãs, de uma origem edênica, no entanto, como observado na citação acima, o preceito da degeneração como vetor de um atraso já se encontrava presente. A partir da obra de Gobineau e Darwin, a tese poligênica passou a ganhar maior reputação, pois a evolução biológica proposta por Darwin, tornou-se um forte embasamento, para respaldar as disparidades físicas e sociais vistas entre distintos povos do mundo (SCHWARCZ, 1993, p. 48). 

Seguindo a tese de uma origem poligênica para a espécie humana, o Homo sapiens arcaico ao evoluir para o Homo sapiens sapiens teria se dividido em três raças principais: Caucasoide, Negroide e Mongoloide. A partir da miscigenação entre essas três raças, sub-raças se originaram como os Australoides e os Amerinoides, e por sua vez, variações dessas próprias raças também surgiram, daí haver diferentes tipos de caucasoides, negroides, mongoloides, etc. 


Desenho ilustrando as supostas "três raças humanas" principais. 

"Para E. Renan (1823-92) existiram três grandes raças - branca, negra e amarela - específicas em sua origem e desenvolvimento. Segundo esse autor, os grupos negros, amarelos e miscigenados "seriam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso". (SCHWARCZ, 1993, p. 62). 

Por essa concepção poligênica, os povos europeus seriam essencialmente pertencentes a raça caucasoide, por sua vez os povos asiáticos seriam predominantemente mongoloides, mas tendo havido miscigenação com os caucasoides, os quais se espalharam pelo Oriente Médio; e com os negroides, pois as populações da Índia e do sudeste asiático são mais escuras, e estas por sua vez teriam dado origem aos aborígenes australianos. 

No caso das populações da África, essas seriam predominantemente negroides, mas devido a miscigenação, haveria elementos mongoloides e caucasoides. Na concepção de Gobineau, o Egito só se tornou uma civilização avançada, pois predominou o elemento branco (tese hoje desmentida e sem fundamento, pois a população egípcia era mestiça, sendo a maioria de negros e pardos, embora que os filmes, séries e novelas ainda conservem a ideia de um "Egito Antigo branco"). 

No caso da população das Américas, apenas no século XX é que se consolidou a teoria da migração de povos asiáticos, através do Estreito de Bering. De fato, através da genética se confirmou que os povos ameríndios descendem de povos asiáticos, no entanto, no século XIX tal informação ainda não era sabida, mas já havia teses sugeriam esse parentesco.


Desenho ilustrando as supostas cinco raças básicas. Lembrando que os teóricos raciais nunca chegaram a um consenso acerca da quantidade de raças que existiria. 

Não obstante, ainda no século XIX as ideias evolucionistas de Darwin, as quais passaram a serem conhecidas como darwinismo, acabaram sendo usadas por outros estudiosos para dar origem ao chamado darwinismo social, cuja linha de pensamento procurou implantar nos estudos sociológicos, antropológicos, geográficos, arqueológicos e históricos a concepção de "evolução social e cultural". 

"Denominada "darwinismo social" ou "teoria das raças", essa nova perspectiva via de forma pessimista a miscigenação, já que acreditava que não "se transmitiriam caracteres adquiridos", nem mesmo por um processo de evolução social. Ou seja, as raças constituiriam em fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento, por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de postulado eram duas: enaltecer a existência de "tipos puros" - e portanto, não sujeitos a processos de miscigenação - e compreender a mestiçagem como sinônimo de degeneração não só racial mas como social". (SCHWARCZ, 1993, p. 58). 

Com base na teoria da seleção natural, procurou-se dizer que o desenvolvimento dos povos deveu-se a forma de como eles se adaptavam as mudanças do mundo, fossem de ordem natural ou humana; por tal pensamento, os povos atrasados eram os menos aptos a sobrevivência, estando vulneráveis a serem assimilados ou destruídos por "culturas mais sofisticadas". 

Tal ideia embasou as políticas imperialistas do século XIX e começo do XX, como uma das justificativas para se manter a colonização nas Américas, África e Ásia, pois as "nações europeias" que era "superiores", estavam "salvaguardando" as "nações inferiores", pois estas "naturalmente" se encontravam em um "estágio atrasado", e não possuiriam os "meios para se desenvolverem" e acabariam fatidicamente se "auto-aniquilando", ou "causando males a outras nações". 

Todavia, ao mesmo tempo também se popularizava as técnicas e pseudociências, as quais procuraram corroborar através do "estudo científico", a veracidade das teoria poligênica da evolução humana. Tais técnicas partiam do pressuposto que variações físicas como o tamanho do crânio, a cor da pele e dos olhos, a forma dos cabelos, o diâmetro do nariz, das orelhas e da face,  etc., seriam fatores que comprovariam a existência de tais raças. 

A ciência usada para o racismo:  

Com a popularização da tese poligenista, antigas e novas "ciências" passaram a ganhar destaque, pois tornaram-se formas de "justificar e comprovar" a desigualdade entre os seres humanos. A frenologia, estudo desenvolvido por volta de 1800 pelo médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), a qual se popularizou na segunda metade do século XIX e no começo do XX, defendia que com base no estudo das áreas do cérebro, poderia se conhecer o comportamento humano. Embora haja certo ponto de veracidade nisso, hoje a frenologia foi totalmente abandonada. No século XIX ela era usada no intuito de alegar diferenças mentais, morais e comportamentais entre as "raças humanas", além de ter tido outros vários usos.

"A frenologia alcança tal visibilidade que acaba sendo amplamente utilizada. Inventam-se jogos, proliferam cursos, criam-se museus, assim como tomam forças novos modelos artísticos, como a caricatura, que encontra na frenologia vasto material de inspiração". (SCHWARCZ, 1993, p. 49). 


Capa do American Phrenology Journal, vol. X, n. 3, março de 1848. 

Assim, ao se estudar as partes do cérebro "constatou-se" que as pessoas de "raças" distintas pensavam de forma diferente, que suas faculdades racionais e morais também eram diferentes. Que pessoas mestiças tinham suas faculdades cognitivas e morais alteradas devido a miscigenação. Neste caso, para os adeptos mais ardilosos de uma desigualdade biológica racial, isso era fundamento para argumentar que indivíduos pardos e negros teriam uma "menor capacidade de aprendizado", pois seu "raciocínio" seria lento. E tal "lentidão" os tornava preguiçosos e incapazes de aprender conhecimentos mais sofisticados. Tal ideia não surgiu no século XIX, mas desde o XVI, encontramos em crônicas da época, menções ao suposto intelecto atrasado dos africanos e dos ameríndios. 


Página do Dictionary Phrenology de 1895, apresentando uma breve definição do que seria a frenologia. 

A frenologia também foi usada para se estudar as doenças mentais e a loucura, o raciocínio rápido e lógico; a genialidade, criatividade, ignorância, "burrice", etc; e até mesmo a violência e a criminalidade, como no caso do surgimento da "antropologia criminal", cuja uma das bases alegava que o ímpeto para a criminalidade seria genético, ou seja, que um pai criminoso legaria aos seus filhos esse "gene do crime". Ou que ao se analisar o cérebro, dependendo da forma de determinada parte dele, isso implicaria em tendências violentas e sociopatas. 

Outra ciência que acabou sendo empregada para as teorias raciais, foi a antropometria, a qual consistia no estudo da proporção das partes do corpo. A antropometria surgiu na Idade Antiga, pois povos como os gregos, egípcios, indianos, chineses, persas, etc., já realizavam seu estudo, mas voltado para a anatomia, medicina e estética, áreas essas ainda hoje estudadas pela antropometria. Todavia, no século XIX, a antropometria passou a embasar os argumentos de que os homens brancos, pardos, amarelos, negros e mestiços teriam suas proporções corporais diferenciadas, não por causa da genética de seus pais, mas por uma suposta condição racial. 

Com base na antropometria, surgiu a craniometria ou craniologia, estudo específico das dimensões do crânio e do cérebro. Assim como a antropometria era usada para distinguir as "raças" com base na variação física, a craniologia fazia o mesmo com base no formato do crânio. Pelo fato das pessoas terem diferentes tamanhos de cabeça, isso foi considerado um pressuposto biológico natural, ou seja, raças diferentes, teriam dimensões cranianas diferentes, mas similares entre os indivíduos da sua raça. 

Paul Broca (1824-1880) importante anatomista e craniologista francês, em 1859, fundou a Sociedade Antropológica de Paris, onde divulgava suas aulas e trabalho. Broca defendia claramente que as diferenças na forma e proporção dos crânios repercutiam na capacidade física, motora, cognitiva, racional e moral dos indivíduos (SCHWARCZ, 1993, p. 54)No entanto, além do formato da cabeça, analisava-se também a capacidade craniana, alegando-se que o "cérebro" dos pardos, negros e amarelos era menor do que dos brancos, e mesmo entre indivíduos brancos, haveria variações, sendo estes resultados da miscigenação com raças inferiores. 


Desenho retratando variações no formato do crânio de indivíduos caucasoides, negroides e mongoloides, tidos pela craniometria como fundamento para declarar que se tratava de raças diferentes.

Nos Estados Unidos, o médico e naturalista Samuel George Morton (1799-1851), foi o fundador da "escola americana" de Etnologia, tendo sido um dos responsáveis por difundir as teorias raciais no país. Morton no final da vida havia reunido uma coleção de mais de mil crânios humanos, usados em suas pesquisas raciais. Além dessa vasta coleção de ossos, Morton escreveu vários trabalhos nos campos da geografia, geologia, medicina, botânica, zoologia, anatomia humana. Em termos de teoria racial, suas principais obras foram Crania americana (1839) e Crania aegyptiaca (1844). (MAGNOLI, 2009). 

"Nos dois Crania, Morton partiu do princípio de que o tamanho do crânio é um indicador direto de inteligência e entregou-se à comprovação de sua tese prévia sobre as hierarquias das raças". (MAGNOLI, 2009, p. s.d).

A craniometria, a antropometria, a frenologia, etc., foram "ciências" usadas ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, para respaldar as teorias raciais de uma origem poligênica da humanidade. No entanto, para além do desenvolvimento dessas pseudociências, também surgiram cursos, livros, teses, jornais, revistas científicas, instituições, sociedades, grupos de pesquisa, etc., principalmente no XIX, voltados para o estudo da frenologia, antropometria, craniometria, eugenia, evolução, miscigenação, degeneração, anatomia e biologia humana, antropologia, etnografia, etc. Nesse século e na metade do século seguinte, o crime de descriminação racial não existia. O racismo era nu, cru, normal, legitimado publicamente, socialmente, culturalmente e "cientificamente". 

Vejam o bicho-homem: 

Em 1963, o escritor Pierre Boulle lançava O Planeta dos Macacos (Le Planète de Singes), obra que se tornou um dos maiores livros de ficção científica do século XX. Nesse livro, o protagonista Ulysse Mérou chega a um planeta chamado Soror, o qual descobre ser habitado por macacos inteligentes e civilizados, enquanto os seres humanos são selvagens, ignorantes e considerados desprovidos de razão, sentimento e alma. Neste planeta, Mérou vivencia uma caçada aos seres humanos, os quais fugiam como se fossem verdadeiros animais. Posteriormente, ele visita um zoológico, no qual humanos eram exibidos em jaulas, fazendo macaquices para ganhar doces, ou lutando entre si pela disputa de frutas. 

Embora alguns aleguem que isso seja mera ficção científica, a realidade é bem mais sombria. Não precisamos ir a outro planeta para testemunhar o que Mérou viu. Embora hoje não exista mais tais barbaridades, basta conhecermos a História e descobriremos que o que ocorria em Soror, também aconteceu na Terra. 

Desde os tempos antigos pessoas eram perseguidas por causa de guerras, invasões, saques, violência, destruição, etc., no entanto, havia casos que pessoas eram caçadas para serem feitas escravas ou por "esporte". Tais medidas assombrosamente resistiram ao lento passar das eras. Com a descoberta do Novo Mundo, índios eram levados aos países europeus e exibidos ao lado de animais, minerais e plantas, pois eles faziam parte das "maravilhas exóticas" dessas "novas terras". Por outro lado, com o advento da colonização nas Américas e em África, pessoas passaram a serem caçadas, a fim de serem vendidas como escravas. 

Milhões de africanos foram transportados através do Atlântico às Américas, entre os séculos XVI e XIX. Estima-se que pelo menos 5 milhões de africanos foram levados apenas para o Brasil. Por sua vez, as entradas e bandeiras, considerados ações que desbravaram as florestas e sertões do Brasil, e pelas quais definiu as grandes fronteiras que hoje o país possui, entre algumas das suas funções, estavam a de caçar negros e índios, para que fossem vendidos como escravos. 

Três bandeirantes conduzindo uma família de índios aprisionada. Uma das funções das bandeiras era de "prear" índios, como se dizia na época, ou seja, caçar índios para que fossem vendidos como escravos. 

Mesmo com o fim da escravidão na Europa, já na segunda metade do século XIX, as expedições realizadas pelos nobres e ricos burgueses às Américas, África e Ásia, ainda se mantiveram, e embora não se capturasse mais escravos, não significava que não se pudesse "caçar pessoas" para servir de cobaias para as pseudociências da época; servir de espetáculos para circos, zoológicos, feiras, festas, etc., ou por mero esporte. 

Fotografia do final do século XIX mostrando um caçador de cabeças, diante de seus "troféus" de caça. Ainda na primeira metade do século XX, caçar seres humanos por esporte ou em nome da ciência, era algo comum. 

Entre as décadas de 1890 e 1950 houve na Europa, América do Norte, Ásia e África, zoológicos que exibiam seres humanos. Hoje isso pode soar como ficção, como algo impensável, mas não faz cem anos que zoológicos pararam de exibir pessoas em jaulas. O auge dos zoológicos humanos se deu entre 1890 e 1930, sendo um grande espetáculo na época, chegando a atrair milhares de pessoas para verem aquelas exóticas criaturas que pareciam ser gente. 

Cartaz francês anunciando a exposição de índios galibis em um zoológico, no século XIX. 

Com o auge das teorias raciais no final do XIX até meados do XX, não foi incomum encontrar ameríndios, africanos e asiáticos sendo expostos como atração. De fato chegava-se até mesmo a encenarem caçadas, lutas e danças, como forma de melhorar o espetáculo. Por mais que o Holocausto e o Apartheid tenham sido crimes raciais abomináveis, as pessoas eram tratadas como gente, como indivíduos de raças inferiores, mas no caso da escravidão e dos zoológicos, nem pessoas eles eram considerados; eram tratados como propriedade e bichos. 

Menina africana sendo exibida num zoológico belga em 1958. Essa consiste em uma das últimas fotos de pessoas exibidas em zoológicos. 

O poder do estigma:

Já ouvi pessoas tentaram desprezar o racismo, o movimento negro e outros movimentos étnicos, alegando que houve também escravidão de brancos, e dizerem que nem por isso existe "movimento branco". A questão é que a escravidão de brancos foi totalmente eclipsada pelo racismo científico, o qual inclusive ajudou a ocultar tal fato, como delegando que tal prática somente teria ocorrido num passado distante ou exercida por povos bárbaros na modernidade. E com isso, defendia-se que desde o século XV, pelo menos, brancos não se escravizavam mais, pois estavam em um estágio "civilizatório" superior. Condição essa que os amarelos, negros e pardos seguiam se escravizando, por serem "povos bárbaros". 

Por tal fato, usar a escravidão de pessoas brancas para tentar deslegitimar movimentos contra o racismo, não é um argumento válido, pois ele mesmo já foi desconstruído desde o século XVIII. Pois todos os teóricos sobre o racismo científico, mostraram que a escravidão moderna foi feita contra "raças inferiores", jamais contra seus semelhantes. Mas essa negação histórica deu certo, pois hoje dificilmente alguém associa povos brancos tendo sido escravizados durante a Idade Moderna (1453-1789), no máximo devem se lembrar da Antiguidade clássica, onde romanos e gregos escravizavam outros europeus. 

Além de não haver essa associação quanto a escravidão de povos brancos durante a modernidade, o estigma de associar o escravo com a cor branca, também não permaneceu. Fato esse que nas Américas e Europa, devido a escravidão de negros e pardos ter acabado no século XIX, mesmo se passado mais de cem anos, o estigma ainda é forte. Condição essa que quando se fala em escravidão, geralmente as cores escuras são associadas a tal prática. Mas dificilmente lembra-se que brancos também foram escravizados. E por essa condição não há "movimento branco", pelo simples fato de não haver estigma dessa cor com a escravidão dos últimos séculos

Embora eu tenha ouvido pessoas alegarem que ser chamado de "branquelo", "branco azedo", "branco como leite", "fantasma", "desbotado" etc. seria racismo, na verdade não o é. Embora sejam ofensas. Pois as pessoas confundem racismo achando que seja apenas o ato de ofender outra pessoa por sua cor, mas não é  apenas isso. Lembre-se que os judeus europeus que sofreram com o racismo, eram todos brancos. Mas o racismo no caso deles não era devido a cor, mas a origem étnica deles

Pela condição da cor branca e os traços caucasoides serem privilegiados desde o século XVII pelas teorias racialistas, esse fato permaneceu até hoje. Condição essa que a estética da moda ainda hoje se baseia em características do biótipo europeu: pessoas de pele, cabelos e olhos claros; cabelos lisos ou cacheados; nariz fino; lábios finos ou carnudos. Tais características físicas são baseadas em padrões europeus que já existem a séculos. E quando você tenta contestá-lo, surgem críticas e resistência. Condição essa que pessoas com cabelo crespo e encaracolado, ainda hoje alisam seus fios ou raspam a cabeça, por sentirem vergonha, já que eles sofrem o estigma de terem "cabelo ruim" ou estarem fora do "padrão de beleza" normalmente aceito e comercializado. Fato esse que muitas mulheres independente da cor da sua pele, pintam o cabelo de louro, pois o louro é bem quisto socialmente, e é a cor associada ao biótipo caucasoide, apesar que a maior parte da população do mundo tenha cabelos escuros, o louro tornou-se um símbolo de beleza. 

No quesito dessa questão de aparência, já ouvi pessoas falarem que eram brancas e possuíam cabelo crespo, mas não tinham vergonha disso, e alegavam que os negros e pardos eram vitimistas. Independente da cor da pessoa, cabelo crespo infelizmente é considerado algo ruim. Porém, um branco de cabelo crespo pode até sofrer preconceito por causa de seu cabelo, mas não por sua cor ou etnia; mas um negro de cabelo crespo, sofrerá duplo preconceito. Por isso a tendência do alisamento ou de se raspar ou manter os cabelos curtos. Mesmo havendo modelos, artistas e pessoas que valorizem tal tipo de cabelo, culturalmente ele ainda é mal visto. 

Explicado brevemente essa questão do porque a cor branca não seria alvo de racismo, embora brancos possam sofrer racismo por outros fatores, como no caso dos judeus, apontado acima; todavia, quando passamos para os negros e pardos, a cor é algo que pesa bastante sobre eles, e está enraizado na cultura e sociedade, algo chamado de "racismo institucional", e dentre outros termos. Nesse ponto, trata-se dos estigmas de associar as pessoas de cores escuras com a escravidão, com a pobreza, a miséria, a marginalidade, a ignorância,  etc. 

Isso é tão impactante ao ponto que pessoas negras são vistas com desconfiança em determinados lugares, por carregar o estigma de ser associadas com criminosos. Um branco e amarelo até pode ser visto com suspeita, mas isso dependerá da suas vestes e aparência, os quais podem influenciar na ora do pré-conceito. Mas somente por suas cores eles não transpassam essa ideia de serem marginais. Mas este estigma não associa apenas os negros e pardos com a criminalidade, mas também com a incapacidade e falta de competência. Condição essa que ainda hoje há casos de pessoas de pele escura, receberem salários inferiores a pessoas de pele clara, mesmo exercendo o mesmo ofício, devido ao preconceito de serem julgadas preconceituosamente como de competência inferior. 

Se em alguns esportes como o basquete e o futebol, há muitos jogadores negros que se tornaram famosos, porém, quando vamos para outras áreas o mesmo não acontece. Na política, nas ciências, nas artes em geral, pessoas negras são encaradas de forma preconceituosa, vistas como incompetentes, desqualificadas, incapazes de exercerem cargos e atividades nessas áreas. Isso é um pensamento preconceituoso pautado no senso comum do racismo, o qual vem sendo desenvolvido desde o século XIX, onde se associava que atividades intelectuais, artísticas e de comando, deveriam ser exercidas por brancos, pois os negros e pardos deveriam ser empregados em atividades braçais ou que requeressem resistência ou habilidades físicas. O próprio Gobineau já falava disso. Mesmo passados mais de cem anos esse estigma ainda persiste e até é mascarado e negado por alguns, dizendo que se trata de besteira, sensacionalismo ou vitimismo. 

Logo, não há necessidade de pessoas brancas criarem movimentos para combater o racismo contra brancos, pois o estigma da escravidão e da ideia de "raça inferior" não foi passado para essas pessoas. Apesar que o oposto ocorra, o surgimento de grupos supremacistas brancos, os quais tentam resgatar ideias racialistas do século XIX, como forma de evidenciar que realmente a "raça branca" seria superior as demais. E alguns desses grupos como o Ku Klux Klan foram até mais além, passando a executar pessoas negras por as considerarem inferiores, párias e uma "praga". 

Além disso, é preciso destacar que toda a teoria racialista procurou construir politicamente, culturalmente e socialmente a imagem que ser branco era algo bom. E quer queira ou não, essa ideia foi difundida no Ocidente e em partes do Oriente. Vale lembrar que na primeira metade do século XX, tínhamos ainda teorias raciais sendo defendidas, não apenas pelos nazistas e fascistas, mas por pessoas comuns que foram desde cedo influenciadas por tais ideias, que em alguns casos eram transmitidas de forma inocente como sendo senso comum. E por tal condição, ainda hoje as mídias e a moda enfatizam o tipo caucasoide como padrão de beleza. Renegando ou desqualificando outros modelos de beleza. 

E mesmo que tais teorias tenham sido abandonadas, o peso do estigma em associar negros e pardos com a escravidão manteve-se. Basta ver nos movimentos segregacionistas vistos em países como África do Sul e nos Estados Unidos, onde o racismo chegou a um ponto de ser publicamente, legalmente e socialmente aceito como a coisa mais comum do mundo. E não estou falando de um tempo tão distante assim, pois ainda na década de 1970, isso acontecia. Onde pessoas por causa de sua cor e origem, eram proibidas de frequentarem determinados lugares, de se misturarem com pessoas brancas e até mesmo de se casar ou namorar. 

E nessa condição quando alguém diz que branco também sofre racismo por ser branco, é preciso ter cuidado ao dizer isso. Somente embasar isso na sua cor, não dá em nada, como apontado anteriormente. Fato esse que você ser chamado de branco, culturalmente, socialmente e simbolicamente não é ofensivo, mas dependendo do contexto e do tom da voz, se você chamar alguém de preto, negro, nego, escuro, pode soar ofensivo. Pois neste caso a ofensa não está apenas na cor, mas em todo o simbolismo preconceituoso associada a ela, algo que a cor branca não carrega para esse contexto

A própria língua possui vários termos onde a cor preta é usada como sinônimo de algo ruim. No caso da língua portuguesa temos expressões como: a coisa está preta, mercado negro, a situação tá preta, grana preta, denegrir, alma negra, serviço de preto, cor do pecado, cor de pobre, são alguns exemplos como a cor preta é associada a algo ruim, condição que é utilizada para se aplicar o racismo contra pessoas de pele escura. 

Observa-se por estes comentários gerais, como o estigma de associar pessoas de pele escura é algo forte e influente. Por isso o racismo existe, mesmo que alguns tentem negá-lo, mas ele está culturalmente enraizado na sociedade. Ele até já foi pior nos últimos séculos, mas nem por isso deve deixar de ser combatido. 

Considerações finais: 

Nesse breve texto se pode delinear um pouco da terrível história do racismo científico, que vigorou por quase cem anos, entre os séculos XIX e XX, e embora estejamos no século XXI, no qual as teorias raciais, o darwinismo social, as pseudociências raciais foram todos condenados e abandonados; e embora, não haja mais escravidão legal, e pessoas sendo exibidas como bichos em zoológicos, parques, circos e feiras, o preconceito racial e xenofobismo ainda perduram. 

Dizem que pessoas inteligentes não são racistas, isso não é uma verdade, pois foram homens inteligentes que criaram as teorias raciais. Se antes eles nunca precisaram de fundamentação científica para existir, e agora mesmo sem essa, ainda continuam por aí, fazendo vítimas a cada dia. De fato, demos um grande salto, principalmente após o fim do Apartheid em 1994, e a criminalização do racismo em vários países do mundo, no entanto, a luta ainda não terminou. 

NOTA: O filme O Elo Perdido (Man to Man) de 2005, conta a história de um antropólogo escocês chamado Jaime Dodd, o qual viaja à África e captura um casal de pigmeus, chamados Toko e Likola, e os leva ao Reino Unido a fim de serem estudados. Dodd acredita que aqueles pigmeus seriam o "elo perdido" entre os macacos e o ser humano. O filme se baseou nas teorias raciais vigentes no século XIX e nos estudos empreendidos para classificar as "raças humanas". 
NOTA 2: Existem alguns livros que abordam a história dos zoológicos humanos, a maioria em língua inglesa e francesa.  
NOTA 3: Em alguns livros de Tarzan, o autor Edgar Rice Burroughs transparece em dados momentos, reflexos da teoria racial do começo do século XX, na fala de alguns personagens. 
NOTA 4: Martin Luther King Jr e Malcom X foram assassinados por protestarem contra o racismo. Para os que dizem que racismo não existe ou seja alarde, a que ponto chegamos em que pessoas são mortas por defenderem que ser de cor escura não seja algo ruim. 
NOTA 5: A cor preta é simbolicamente e esteticamente bem aceita para colorir roupas, calçados, acessórios, objetos e alguns móveis. Mas quando aplicada para a pele, ela está carregada de preconceitos. 
NOTA 6: Nos últimos 30 anos, cabelos cacheados, ondulados e encaracolados ganharam maior espaço na moda. Mas o cabelo crespo apesar de ter ganho também espaço, ainda segue estigmatizado como cabelo ruim. E há casos que os outros tipos citados acima, também entram nesse preconceito. 


Referências Bibliográficas:
BOULLE, Pierre. O Planeta dos Macacos. Tradução de André Telles. São Paulo, Aleph, 2015. 
DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Tradução de André Campos Mesquita. São Paulo, Editora Escala, 2009. 
MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo, Contexto, 2009. (Capítulo 1: Uma história do sangue). 
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. (Capítulo 2). 
SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. O Conde de Gobineau e o horror à ambivalência. Usos do Passado - XII Encontro Regional de História, ANPUH/RJ, 2006, p. 1-6. 
SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. A extinção dos brasileiros segundo o Conde de Gobineau. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jan/jun 2013, p. 21-34. 

LINK:
A história do homem que foi empalhado e exibido como um animal