Guerreiras de Ódinn:
As Valkyrjor na mitologia viking
Prof. Dr. Johnni Langer
“(…) a figura da Valquíria: ela é matadora de
homens – em sua qualidade de mensageira de Odin, é bem verdade, e de executante
de suas sentenças – mas é, ao mesmo tempo, uma sedutora: não há quem resista a
seus encantos propriamente mágicos”. Régis Boyer, Mulheres viris, 1997b.
No resgate e popularização da mitologia nórdica,
poucas narrativas fascinam tanto como a do mito das valkyrjor (singular –
valkyrja: valquíria). Celebradas pela música wagneriana, pela literatura,
cinema e até mesmo pelas histórias em quadrinhos, as guerreiras de Óðinn ocupam
um lugar especial em nosso imaginário sobre a cultura dos Vikings. Mas até que
ponto essa nossa contemporânea, construída pela arte oitocentista, corresponde
ao que os escandinavos imaginaram originalmente? Qual o papel das valkyrjor
para a religião e a sociedade nórdica?
Nossa principal hipótese é a de que o mito das
valkyrjor esteve vinculado a certos fatores sociais relacionados com a
aristocracia e a realeza – com finalidades de legitimação dos poderes políticos
e sociais destas mesmas classes. A metodologia que adotamos no presente artigo
são as teorizações do historiador francês Régis Boyer. Influenciado pelo
mitólogo Georges Dumézil, Boyer aplica a teoria da tripartição social dos povos
de origem Indo-Européia especificamente para os estudos de religião
escandinava. A concepção cósmica de mundo, os rituais e as divindades seriam
concebidos em termos de ordem social. Para Régis Boyer os mitos e os cultos
nórdicos foram construídos gradativamente, passando por acréscimos sucessivos
(BOYER, 1981: 10). Essa concepção diacrônica também será adotada por nós, bem
como as atuais pesquisas que demonstram as influências culturais estrangeiras
no processo de formação religiosa dos Vikings (DUBOIS, 1999; DAVIDSON, 1988,
1994) (1).
A sociedade nórdica estava originalmente dividida em
duas grandes categorias, a dos homens livres (karls) e a dos escravos (thræll).
A maior parte da população livre era constituída de fazendeiros (bóndi, pl.
bœndr), que também dedicavam-se ao comércio, a navegação e a guerra. A
aristocracia hereditária (jarl) constituía o pequeno grupo que mantinha seus
privilégios nas comunidades, especialmente nas assembléias gerais (things) e
nos vínculos com a corte real (hirð). Toda a política e o suporte militar era
definido pelo chefe local (lendrmaðr, membro da aristocracia), mas a autoridade
absoluta era centrada no rei (konungr), que também exercia o papel de principal
sacerdote público. A grande maioria da população livre era adepta dos cultos ao
deus Þórr e aos vanes (entidades relacionadas à fertilidade, especialmente
Freyr e Freyja). A aristocracia e a realeza perpetuavam especialmente os
rituais ao deus principal do panteão germano-escandinavo, Óðinn (Odin,
“fúria”), na qual o mito da valkyrjor estava intimamente relacionado.
A palavra original do Nórdico antigo, Valkyrja,
significa “a que escolhe os mortos” (BOYER, 1997a: 164). Entidades
sobrenaturais relacionadas diretamente com marcialidade, a sua associação com o
destino dos guerreiros mortos na batalha remete a uma tradição mítica muito
anterior aos Vikings, vinculada aos antigos germanos. Na literatura anglo-saxã
do século VIII surge o termo wælcyrge (“a que escolhe os mortos”) (2). Hilda
Davidson e Régis Boyer apontam três e Brian Branston quatro fases nas imagens
das valkyrjor, mas todas possuindo aspectos relacionados à batalhas, ou seja,
de entidades femininas ligadas a conflitos. (3)
A origem do mito: as valkyrjor como entidades
monstruosas
A primeira dessas imagens corresponde à representação mais antiga do mito, talvez herdada diretamente dos antigos Germanos. Nela, as valkyrjor corresponderiam a seres grotescos, sanguinários, sobrenaturais, sedentos de sangue, promotores de carnificina em batalhas e mortandades. Verdadeiros “augúrios de luta e morte; elas às vezes aparecem para os homens em sonhos” (DAVIDSON, 2004:54). A mais importante fonte para essa descrição é um poema tardio islandês, Darraðarljóð (“A canção da lança”), integrante de Nijal’s Saga do século XIII. Numa visão de sonho que teria ocorrido antes da batalha de Clontarf em Dublin (1014), um estranho grupo de 12 mulheres foi visto tecendo uma macabra tapeçaria feita de cabeças e entranhas de homens. O poema é composto de 12 estrofes e 88 versos:
“A urdidura é
feita de entranhas humanas;
Cabeças humanas são usadas como pesos;
As varas do tear são lanças encharcadas de sangue;
As hastes são firmes,
E flechas são as lançadeiras.
Com espadas nós teceremos
A teia da batalha. (2ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157)
Cabeças humanas são usadas como pesos;
As varas do tear são lanças encharcadas de sangue;
As hastes são firmes,
E flechas são as lançadeiras.
Com espadas nós teceremos
A teia da batalha. (2ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157)
É horrível agora
olhar para o redor,
uma nuvem vermelha de sangue
Escurece o céu.
O firmamento está manchado
com o sangue dos homens,
e as valkyrjor
cantam sua canção”. (10ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157).
olhar para o redor,
uma nuvem vermelha de sangue
Escurece o céu.
O firmamento está manchado
com o sangue dos homens,
e as valkyrjor
cantam sua canção”. (10ª estrofe, NJÁL’S SAGA 157).
Podemos perceber no poema as valkyrjor como tecelãs
do destino dos homens, sendo comparáveis as nornir (nornas). Um destino
terrível, sangrento. Verdadeiras agentes da morte, escolhendo quais guerreiros
tombarão no campo de batalha, trazendo muito sangue e dor, cujo símbolo
principal é a lança, o maior atributo do deus Óðinn. Algumas hipóteses foram
criadas para tentar explicar essa representação tão terrível do mito original.
Donahue acreditava que na Antiguidade, quando Celtas e Germanos estavam em
contato próximo, havia uma crença coletiva em sangrentos espíritos de guerra
femininos (DAVIDSON, 2004: 55).
Na mitologia céltica existia uma deusa denominada
Morrigu (“corvo”), representada sob a forma deste pássaro e que excitava os
guerreiros para as batalhas (MARKALE, 1999: 181). O corvo também é um dos
animais associados ao deus Óðinn e as valkyrjor. Outra hipótese é relacionadas
às sacerdotisas dos antigos cultos para divindades da guerra entre os germanos.
Como a maioria desses cultos eram muito violentos, contando algumas vezes com
sacrifícios humanos após os conflitos, o mito de seres femininos sangrentos
poderia ser uma lembrança desse aspecto religioso:
“como era sempre decidido em sorteio quais
prisioneiros seriam mortos, a idéia de que o deus ‘escolhia’ suas vítimas, por
meio da intermediação das sacerdotisas, devia ser muito familiar, fora a óbvia
suposição de que alguns eram escolhidos para morrer em guerra” (DAVIDSON, 2004:
51).
E o próprio sacrifício era efetuado pelas
sacerdotisas, seja com um corte na garganta, seja pelo espetamento com lanças,
enforcamentos e queimas (DAVIDSON, 1988, 58-68; 2001: 97; 2004: 45).
Nas fontes anglo-saxônicas do século VIII ao XIV,
as Wælcyrge aparecem como sinônimos de entidades maléficas da mitologia
clássica ou mesmo bruxas. Nos manuscritos Corpus Christi (séc. VIII) e Ms.
Cotton (séc. X), elas são associadas com as erínias (as Fúrias dos romanos). Na
obra De Laude Virginitatis (séc. VIII) do bispo Aldhem, a palavra wælcyrge é
utilizada como sinônimo para Veneris, enquanto que em outro manuscrito o sinônimo
são as górgonas (4). Outro bispo inglês, Wulfstan (Sermo Lupi, séc. X), incluiu
as welcryge numa lista de praticantes do mal, juntamente com as bruxas e
pecadores. O poema Cleaness (séc. XIV) também as compara com as bruxas (ELLIS,
1968: capítulo III; DAVIDSON, 2004: 51-53; BRANSTON, 1968: 333-334). Mesmo que
sejam descontados os óbvios “filtros” destas fontes cristãs, percebemos que a
associação das valkyrjas como entidades maléficas e sanguinárias provém de uma
tradição muito mais antiga, da Inglaterra paganista anglo-saxônica.
Ainda no mundo germânico da Antiguidade Tardia,
aparecem algumas referências a seres femininos sobrenaturais atrelados com as
guerras. Em poemas anglo-saxões, essas personagens estão relacionadas com
encantamentos para proteger guerreiros em batalhas. Do mesmo modo, no famoso
encantamento alemão de Merseburg (século IX), elas são chamadas de Idisi (5), e
relacionam-se com a capacidade de paralisar homens no momento das lutas:
“Uma vez que as
Idisi pousaram aqui,
resolveram aqui e lá;
Algumas prender grilhões;
algumas obstruir o grupo na guerra,
algumas afrouxar os vínculos do bravo.
Salte para adiante dos grilhões! Escape dos grilhões!”
resolveram aqui e lá;
Algumas prender grilhões;
algumas obstruir o grupo na guerra,
algumas afrouxar os vínculos do bravo.
Salte para adiante dos grilhões! Escape dos grilhões!”
(MERSEBURG I)
Trata-se de um encantamento para abrir “correntes”,
ou seja, tanto desfazer outros encantamentos como para obter poder sobre os
inimigos. Em muitos encantamentos anglo-saxões do mesmo período, existem
referências a lanças mágicas atiradas por mulheres poderosas, infringindo dor
aos guerreiros, interpretado por Hilda Davidson como sobrevivência de antigos
encantamentos para batalhas (2004: 53). Ainda nestes mesmos tipos de fontes,
surge o termo sigewīf (“mulheres da vitória”), associando esses seres às
abelhas (DAVIDSON, 1988: 96).
Um animal voador e que possuí ferrão, uma imagem
simbólica muito próxima das valkyrjor e suas lanças. Desde a Idade do Bronze a
representação da lança é um atributo do deus da guerra no mundo
germano-escandinavo (BOYER, 1981: 66), elemento essencial de Óðinn e claramente
vinculado com suas atendentes femininas. Interpretado geralmente como símbolo
fálico, axial e solar (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002: 535), essa arma
geralmente aparece nas epopéias e sagas nas mãos de heróis, deuses e reis. A
associação das lanças com as valkyrjor não somente as torna mais masculinizadas,
como também autoriza a sua identificação com os rituais de morte do deus Óðinn.
A idealização guerreira: servas de Óðinn,
condutoras para o paraíso.
Foi durante a Era Viking (799-1066 d.C.), que o mito das valkyrjor foi amenizado, transformado em uma representação mais dignificada, heróica e nobre.
O poeta islandês Snorri Sturluson resgatou durante
o período cristão (Edda em Prosa, também denominada de Edda Jovem, 1220 d.C.),
uma das imagens literárias mais populares dessas criaturas para a mitologia dos
tempos Vikings:
“Há ainda outras para auxiliar no Valhöll, servir a
bebida em volta, servir a mesa e os cornos de cerveja (…) Ódinn as envia para
todas as batalhas, onde elas escolhem quem vai morrer, e as regras sobre a
vitória” (STURLUSON).
Um papel duplo. Ao mesmo tempo em que são
guerreiras e escolhem o destino das batalhas, transportando os homens tombados
nos conflitos para o Valhöll (Valhala: “salão dos mortos” de Óðinn), neste
mesmo local elas atuarão como serventes, semelhantes a taverneiras:
“Ces seraient alors des esprits des morts, privilégiés en quelque sorte, qui doivent se choisir des congénères. Elles traduiraient ainsi, admirablement, les idées centrales attachées à Ódinn, dieu des morts parce que régentant leur destin, quand bien même le sien prope lui échapperait” (BOYER, 1981: 142).
Essa dupla imagem também aparece em outra importante fonte do período cristão, a Elder Edda (Edda Antiga, também chamada de Maior ou Poética), uma compilação de poemas escandinavos escritos no final do século X ao XIII (e reunidos em um único manuscrito, Codex Regius, de 1300) (HAYWOOD, 2000: 60).
O mais antigo desses poemas, Völuspá (“a visão da
profetisa”), composto em meados do ano 1000, possui uma estrutura nitidamente
paganista (HAYWOOD, 2000: 203). Nele, estas criaturas sobrenaturais são
representadas como guerreiras portando escudos. Seis nomes são mencionados:
Gunnr (“batalha”), Hildr (“batalha”), Göndul (“que maneja a vareta mágica”),
Skögul (“batalha”) e Geriskögul (“lobo de batalha”) (ELDER EDDA). Praticamente
todos esses nomes estão relacionados com a guerra ou com características que as
relacionam com conflitos armados. A associação entre a metamorfose do mito
valquiriano na Era Viking com mulheres guerreiras reais é muito atraente para os
analistas contemporâneos, apesar de ser uma questão ainda aberta a muitos
debates (6).
Outro poema éddico, Grimnísmál (“os ditos de
Grímnir”), repete alguns nomes e apresenta outros: Hrist (“a abaladora”), Mist
(“a bruma”), Skéggjöld (“desgaste com machado de batalha”), Þrúðr (“força”),
Hlökk (“barulho”), Herfjötur (“paralisia”), Göll (“lágrimas de batalha”),
Geirólul, Randgríðr (“escudo da paz”), Ráðgriðr (“paz dos deuses”), Reginleif
(“patrimônio dos deuses”). O interessante é que apesar do sentido destas
denominações, as valkyrjor são apresentadas como servidoras do deus Óðinn e dos
einherjar (singular: einheri, “guerreiro que combate sozinho”), os campeões
mortos nas batalhas. Esse poema deve ter sido elaborado entre os séculos X e
XI, visto que Snorri Sturluson baseou sua imagem literária no mesmo texto.
Poucas representações iconográficas sobreviventes
da Era Viking apresentam as valkyrjor portando armas, capacetes, lanças,
espadas, cotas de malha ou andando a cavalo. Em quase todos os pingentes e
esculturas/pinturas em estelas, elas surgem como damas portando longos
vestidos, cabelos bem arrumados e na maior parte das vezes, transportando um
corno com bebidas. Do mesmo modo, as representações visuais de donzelas cisnes
foram omitidas, com exceção de um objeto onde uma figura feminina lembra um
pássaro. Apenas restaram as imagens das valkyrjor como serventes do Valhöll
(7).
Dentre estas fontes iconográficas as mais
importantes são as estelas funerárias da ilha de Gotland (Suécia). Executadas
para glorificar os feitos do morto, mas também possuía um caráter religioso,
elas serviam em um primeiro momento como reforço para os cultos solares, dos
mortos e os rituais odinistas (BOYER, 1997a: 124). Também funcionaram como
instrumentos pedagógicos visuais, mantendo a legitimação do poder político da
classe aristocrática e da realeza, as principais estruturadoras do odinismo na
Escandinávia Medieval (LANGER, 2003c). Com isso, as estelas só representaram
uma faceta do mito.
Figura 4: Pingente de prata com 3,5 cm de Kalmegarden, Tisso (Dinamarca). BOYER, 2004, p. 29. Uma das poucas imagens da Era Viking retratando as valkyrjor com equipamento militar. |
Em uma sociedade dominada por uma visão totalmente
masculina, a representação da jornada de um guerreiro do mundo dos vivos para o
mundo dos mortos não podia ser questionada ou abalada. Caso uma valkyrja fosse
representada portando armas e montando cavalos (a exemplo dos guerreiros das
estelas), ela seria um elemento contra a ordem de legitimação dos triunfos da
realeza e dos heróis. Assim, sua imagem como serviçal reforça as representações
de uma grande recompensa para uma vida marcial masculina, além de manter a
ordem odinista (8).
A “domesticação” da guerreira: as valkyrjor como
donzelas-cisnes
Seguindo a seqüência dos poemas da Edda poética, encontramos outras referências sobre nosso tema, desta vez em fontes mais recentes. A Völundarkviða (“A balada de Völundr”, século XIII) narra as peripécias de três filhos do rei da Lapônia. No momento em que estes caçavam ao redor de um lago, observaram três mulheres que fiavam e possuíam aparência de cisnes. Elas eram valkyrjor e também filhas de reis (Ölrún, “senhora da cerveja”; Hládgud Svánhvit, “branca como cisne”; Hérvor Álvit, “sábia”).
Acabaram sendo tomadas como esposas por um período
de sete anos, mas depois retornaram às suas atividades em batalhas e não mais
regressaram. Percebemos que apesar da continuidade na associação das valkyrjor
com as três nornir, tecendo o destino dos homens, surge uma nova imagem. Desta
vez, as donzelas são representadas como tendo características de cisnes e
acabam casando, além de pertencerem diretamente à realeza. O simbolismo deste
animal vincula-se com a sua cor, branca, manifestação do poder e graça da luz
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002: 257).
Figura 5: A Valquíria, Peter Arbo, 1869. Nesta tela do famoso pintor norueguês do Oitocentos, percebemos a influência direta da ópera Lohengrin (Weimar, 1850). |
Apesar da estrutura narrativa deste episódio ser um
tema comum nas mitologias de origem indo-européia (9), a sua inserção dentro da
trajetória do mito ocorre tardiamente na Era Viking. Segundo alguns
pesquisadores, essa transformação foi resultado do longo trabalho de poetas
após muitas gerações (DAVIDSON, 2004: 55). Relacionados diretamente com as
cortes reais dos escandinavos, muitos poemas foram realizados para dignificar
publicamente reis e heróis (HAYWOOD, 2000: 176).
Com isso as donzelas cisnes surgem como integrantes
importantes da narrativa heróica, elo sobrenatural entre o mundo odínico e a
realeza. No poema Völundarkviða elas são filhas de reis e foram tomadas por
guerreiros valorosos. Mas não podiam fugir as suas características básicas de
agentes do destino, de tecelãs da vida dos homens. Após nove anos as três
donzelas cisnes fogem e retornam a sua condição primordial de valkyrjor (ELDER
EDDA). O número nove é o mais sagrado na religião Viking, associado ao deus
Óðinn (principalmente ao período em que ele ficou enforcado na árvore
Yggdrasill).
A idealização de proteção: as valkyrjor como
agentes do destino heroico
Seguindo a seqüência tradicional da Edda Maior,
encontramos três poemas relacionados ao herói Helgi. Na primeira história
(Helgakviða Hjörvardssonar, “a balada de Helgi, o filho de Hjörvard”, século
XIII) relata a trajetória do filho do rei Hjörvard e Sigrlin, um rapaz de
grande tamanho mas sem fala e sem nome. No momento em que se encontrava
pastoreando, o jovem príncipe avista um grupo de nove valkyrjor. A mais formosa
destas mulheres aproxima-se e denomina o príncipe de Helgi (“sagrado”), além de
presenteá-lo com uma espada com guarda-mão em forma de dragão (10). Com o
auxílio desta arma mágica, Helgi venceu vários obstáculos, entre os quais matou
um gigante chamado Hati.
Seguindo a narrativa, Helgi se torna um grande
líder e guerreiro, casando com Sváva, também filha de rei, que lhe havia
presenteado com uma espada. No momento em que seu marido participava de
batalhas, Sváva retornava a sua condição de valkyrja. Ao mesmo tempo em que
serve como agente sobrenatural em toda a trama, Sváva protege o destino do
herói – seja ao conferir-lhe o nome, como assistindo aos seus feitos de
guerreiro. Na região de Sigarsvéllir, Helgi é ferido mortalmente, falecendo em
seguida.
O segundo poema, Helgakviða Hundingsbana II (“a
balada de Helgi, o matador de Hundingr”), narra que os dois personagens
renasceram, Helgi como filho do rei Sigmundr e Sváva como Sigrún (“runa da
vitória”), filha do rei Hogni (e do mesmo modo uma valkyrja) (11). Além de
continuar sendo amantes, Sigrún conserva seu ímpeto de proteger o amado. No
momento em que Helgi reuniu uma grande esquadra para se dirigir à região de
Frekastéin, uma enorme tempestade ameaça a esquadra. Nove valkyrjor (entre as
quais Sigrún) surgem voando e salvam a expedição.
Também em outro poema éddico narrando a narrativa
de Helgi como filho de Sigmundr (Helgakviða Hundingsbana I), as donzelas de
Óðinn protegem o rei no momento de uma perigosa travessia marítima e no
transcurso de uma batalha. Continuando a narrativa, Helgi é morto por seu
cunhado. Este último, chamado Dag, havia planejado vingar-se do herói pela
morte de seu pai, e com o auxílio da lança Gungnir (entregue pelo próprio deus
Óðinn) atinge Helgi mortalmente. Chegando ao Valhöll, Helgi tornou-se o chefe
dos einherjar. Algum tempo depois, ao visitar o túmulo do amado, Gúdrun
consegue contatá-lo e saber do seu destino como intermediário odínico. Viveu
mais alguns anos, antes de morrer e reencarnar como outra valkyrja de nome Kára
(“cabeleira crespa”). O herói renasce como Helgi Haddingiaskati.
Nas três narrativas éddicas sobre este herói,
percebemos a importância da figura das valkyrjor como intermediárias entre a
realeza, o sobrenatural odínico e o destino do guerreiro no mundo dos mortais.
Na realidade, o próprio personagem é a metáfora dos guerreiros pertencentes à
aristocracia (jarls) e a realeza (konunga-kyn): “Helgi doit incarner la notion
d’inviolabilité attachée au sol, à la famille immémoriale, aux grands ancêtres
donc. Il est peut-être aussi en relation avec la notion de royauté sacrée dans
le Nord” (BOYER, 1997: 79).
Em vez de simples serviçais ou donzelas-cisnes que
transformam-se em esposas (como vimos nos poemas éddicos anteriores), na tríade
de Helgi essas criaturas míticas são apresentadas em uma forma muito mais
doméstica, mas nem por isso menos protetoras: a personagem Sigrún/Sváva nomeia
o herói; presenteia-o com um objeto mágico para que o mesmo consiga efetuar sua
jornada; assiste-o nas batalhas; salva-o dos momentos de perigo; torna-se
esposa e concebe filhos para ele; realiza os ritos funerários; renasce como
companheira e amante. Na realidade, ela torna-se uma esposa extremamente
atuante na vida do herói, a ponto de renascer várias vezes e amá-lo novamente,
sem necessariamente transgredir nenhuma ordem social. Voltava a ser valkyrja
somente quando o marido estava longe de casa.
Lado a lado com esse aspecto protetor, temos a
idéia de que o herói (que depois transformava-se em rei) só conseguiria
completar sua jornada épica devido a essa interferência sobrenatural. As
agentes odínicas elegiam seu protegido. Do mesmo modo, podemos perceber essa
mesma idéia no poema funerário em louvor ao rei Håkon Haraldsson (Hákonarmál):
“O rei escutou a
fala das valkyrjor,
homem nobre, montado em seu cavalho de batalha;
elas reunem-se com seus capacetes, em profunda reflexão,
segurando seus escudos diante delas” (HÁKONARMÁL).
homem nobre, montado em seu cavalho de batalha;
elas reunem-se com seus capacetes, em profunda reflexão,
segurando seus escudos diante delas” (HÁKONARMÁL).
Somente os reis podem governar, porque apenas eles
seriam os eleitos pelas valkyrjor, intermediárias diretas do mais poderoso deus
do panteão germânico. A melhor forma de reconhecer a autoridade de uma
liderança política é identificar os elementos simbólicos e sagrados que
autorizem uma classe a perpetuar os seus membros no poder. No poema de Hákor,
assim como na história de Helgi e em outras narrativas escandinavas, o rei
apenas cumpriu o papel sagrado de governar a sua comunidade. Com um destino
previamente estabelecido: o de ser escolhido e protegido pelas guerreiras de
Óðinn. Diferentemente dos cultos a fertilidade (dos deuses vanes, celebratórios
da vida no campo) – com o qual rivalizavam e disputavam espaço social e
religioso – os cultos odínicos celebravam a guerra, a morte e acima de tudo, a
autoridade da figura do rei e a legitimidade do poder da classe aristocrática.
As valkyrjor como transgressoras: as narrativas de
Brynhyldr
Imortalizada pelas óperas de Wagner, Brynhyldr
tornou-se a partir do século XIX na mais famosa valkyrja de todos os tempos. Os
últimos poemas da Edda Poética narram algumas de suas façanhas (como o nome de
Sigrdrífa, “nevasca de batalha”), bem como a Völsunga Saga.
No desfecho do poema éddico Fáfnismál (“os ditos de
Fáfnir”), o herói Sigurðr (“favorecido pela vitória”), após matar o dragão
Fáfnir e comer seu coração, consegue entender a linguagem dos pássaros da
floresta. Estes comentam a respeito de uma sala existente na montanha
Hindarfial, que seria cercada por fogo e ali dormiria uma valkyrja. Ela estaria
recebendo um castigo por não ter agido do modo que Óðinn queria.
A narrativa prossegue no poema Sigrdrífumál (“os
ditos de Sigrdrífa”). Chegando nesta montanha, Sigurðr contempla uma mulher
dormindo, totalmente vestida com equipamentos de guerra: cotas de malha bem
justas pelo seu corpo e elmo na cabeça. Utilizando sua espada mágica (Gramr), o
herói rompe a malha do corpo, despertando a valkyrja. Ela contou que se chamava
Sigrdrífa e as razões de ter sido encantada: fez morrer um rei cuja vitória em
batalha havia sido prometida pelo deus Óðinn. Além do encantamento, deveria
contrair matrimônio com um homem que não tivesse nenhum temor. Em seguida ela
descreve a sabedoria das runas, suas utilizações para a magia e para elaborar
encantamentos.
Esse caráter de uma grande sabedoria da valkyrja é
reforçado na Völsunga Saga.
Após beber e ensinar a Sigurðr os segredos das
runas, Brynhyldr (“armadura de batalha”) profere vários conselhos sobre
convívio, comportamento, enfim, regras sociais muito semelhantes às existentes
no poema éddico Hávamál, todas de cunho odinista. Apesar de ambos jurarem
fidelidade, posteriormente Sigurðr acabou casando-se com Guðrún, filha do rei
Gjúki. Também auxiliou Gunnar (irmão de Guðrún), a conquistar o direito de
casamento com Brynhyldr, por meio de uma metamorfose mágica (Sigurðr se faz
passar por Gunnar, penetrando a muralha de fogo do palácio). Tempos depois, a
valkyrja descobre toda a trama e instiga o assassinato de Sigurðr. Arrependida
e em desespero, suicida-se junto à pira funerária do herói.
Em primeiro lugar podemos perceber a atitude de
Brynhyldr, desobedecendo o deus Óðinn, como uma tentativa da mulher de se
equiparar ao homen. Sendo uma valkyrja, ela é um ser incomum. O fogo é um
símbolo odinista, bem como o segredo das runas. Ao penetrar o círculo de fogo e
principalmente, ao retirar com sua espada a cota de malha da guerreira, o herói
Sigurðr encarna o protótipo do ideal masculino: controlar a mulher e submetê-la
ao domínio do lar. Essa dualidade da situação feminina pode ser percebida em
uma passagem da Völsunga Saga, onde Bekkhildr foi descrita como típica mulher
dedicada ao domicílio, enquanto que sua irmã Brynhyldr saía sempre de casa para
lutar com elmo e cota de malha. A punição das valkyrjor é o casamento. É com essa prática que ela deixa de ser uma
desafiadora do mundo masculino e torna-se dominada. Em outra passagem da
Völsunga isso também é claro, quando Brynhyldr prediz o futuro para Sigurðr,
afirmando que os dois não ficarão juntos e ela continuará a guerrear.
Nas outras narrativas que analisamos anteriormente, também verificamos que as
donzelas-cisnes foram capturadas e tornaram-se simples mulheres com a união matrimonial:
“Casar-se com um homem é, para uma Valquíria, pura punição inflingida por Odin”
(BOYER, 1997b: 745). Tornando-se apenas reprodutoras da prole real, elas deixam
de ser uma ameaça ao ideal guerreiro:
“quando as Valquírias consentem em ter um filho,
perdem ipso facto seu status e se tornam simples mulheres, se assim se pode
dizer, servas dos guerreiros-escolhidos do Válala e mães de príncipes. Como se
houvesse incompatibilidade entre a mulher-cisne intocável ou a virgem com o
elmo na cabeça, e a senhora da cerveja (Ölrun)” (BOYER, 1997b: 746).
Também em descrições históricas de mulheres
guerreiras, como a famosa Hervor, percebemos que elas perdem essas
características marciais com o casamento (12).
Epílogo: o significado do mito
Até o presente momento pudemos verificar as
variações do mito ao longo da História, elaborando o seguinte esquema:
Evolução morfológica do mito
das valkyrjas
Entidades sanguinárias incentivadoras de
carnificinas (Antigüidade) → Selecionadoras dos mortos nas
batalhas (Antigüidade Tardia) → Selecionadoras dos mortos e
receptoras/serviçais no Valhöll
(Período das migrações/Início
da Era Viking) →
Guerreiras de Óðinn, donzelas cisnes,
esposas/amantes, filhas de reis (Final da Era Viking).
Esta metamorfose do mito é explicável, no caso da
Era Viking, pelo trabalho dos poetas e poetisas, que acabaram dignificando
muitos aspectos das narrativas orais. A existência de elementos de sujeição
sexual nas imagens mitológicas de esculturas, assim como a transformação de
entidades monstruosas em figuras da realeza, se deve diretamente a classe dos
Jarls. Assim, podemos encontrar o significado do mito em dois níveis, o ideal
masculino e a ideologia da realeza.
O poder dos homens na arte da guerra. Um dos ideais
da classe guerreira era sujeitar todas as mulheres da sua comunidade ao seu
controle direto. Somente os homens poderiam efetivamente ter o acesso ao espaço
da guerra, aos triunfos militares e à glória da imortalidade nas batalhas,
alcançando a recompensa futura. Mulheres guerreiras representavam um obstáculo
ao seu poder social, bem como ao seu prestígio perante as comunidades em que
viviam. As imagens esculpidas nas estelas representam o maior testemunho na
busca de um controle sexista da arte da guerra, assim como as descrições do
casamento das valkyrjor e a sua consequente perda de elementos marciais.
A conexão com a nobreza dos heróis e reis – a
ideologia da realeza estruturava-se nos cultos odínicos. Nas fontes literárias,
as valkyrjor nunca são representadas como simples camponesas (bóndisdóttir),
filhas de pescadores (fiskrmaðrsdóttir), filhas de comerciantes
(kaupmaðrsdóttir) e muito menos escravas (Þrællkona). Na maioria das fontes,
elas apresentam-se como filhas de reis (konungasdóttir). Com isso, o mito
legitima o poder real, o poder do konungr (“rei”) e da classe dos Jarl em
geral, em detrimento das outras divisões sociais. Colabora com a criação de
vínculos odinistas com os guerreiros vivos, a exaltar os feitos gloriosos dos
heróis mortos, a estabelecer uma conexão sobrenatural com o poder da classe
guerreira e a realeza, a minoria dominante.
Em uma sociedade onde a religião não era
centralizada, sem organização de uma instituição central, sem hierarquias
sacerdotais e com muitas variações regionais de cultos, o padrão mítico em comum
(panteões divinos e cosmologias de origem germânicas) foi utilizado pela
classes aristocráticas para fins políticos. O homem escandinavo comum, seja um
camponês ou um comerciante, estava muito mais interessado no culto aos deuses
vanes (propiciadores da fertilidade) e as possibilidade de aplicações
religiosas em seu cotidiano: “a religião de Tor e dos Vanirs, onde a ênfase é a
continuidade da família e da comunidade, em vez de qualquer imortalidade
pessoal no outro mundo” (DAVIDSON, 2004: 183).
Com isso, tanto as imagem de valkyrjor gravadas em
estelas quanto as narrativas orais destas entidades proferidas em festivais
públicos, cortes palacianas ou por poetas comunitários, enfatizavam a
supremacia dos cultos a Óðinn, e em consequência, atendiam aos anseios de poder
dos guerreiros e reis.
Agradecimentos: à historiadora Luciana de Campos (UNESP/FAFI),
pelas informações sobre teoria de gênero e história das mulheres; ao
medievalista João Lupi (UFSC) pela leitura do original e valiosas sugestões.
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NJAL’S SAGA (Darradarlljód 157), 1280 d.C. London: Penguin Books, s.d. Tradução de Magnus Magnusson e Hermann Pálsson.
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e tradução de Loptsson Elder: http://www.northvegr.org/lore/prose2/index.php.
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VÖLSUNGA SAGA, Anônimo, Islândia séc. XIII. Original em Old Norse: Fornaldarsögur Norðurlanda: http://server.fhp.uoregon.edu/Norse/. Tradução de William Morris e Eirikr Magnusson do Old Norse para o inglês moderno (Walter Scott Press, London, 1888). Disponível integralmente em The Online Medieval & Classic Librar http://sunsite.berkeley.edu/OMACL/Volsunga/.
FONTES ICONOGRÁFICAS SOBRE VALKYRJOR:
– Pingentes, amuletos e ornamentos da Era Viking:
Acessório de toucador de prata, Birka, Suécia (PAGE, 1999); pingente de prata vazada, Suécia, séc. X (GRAHAM-CAMPBELL, 1997);
Acessório de toucador de prata, Birka, Suécia (PAGE, 1999); pingente de prata vazada, Suécia, séc. X (GRAHAM-CAMPBELL, 1997);
Pingente de prata com 3,5 cm de Kalmegården, Tissø,
Dinamarca (BOYER, 2004: 29).
– Estelas funerárias/comemorativas da Era Viking,
ilha de Gotland, Suécia: Hammar I, Hammar III, Broa-Halla, Ardre VIII,
Stenkyrka-Lillbjärs, Hunninge-Klinte, Tjängvide (Pictures, 2001; The Pictures stones,
2001).
– Esculturas escandinavas medievais do período
cristão:
Escultura de Valquíria na porta da Igreja de Urnes, Norue ga, século XI (WARD, 2002); Detalhe de decoração de cadeira da Igreja de Heddal/Telemark, Noruega, século XIII (BOYER, 1997a, 30).
Escultura de Valquíria na porta da Igreja de Urnes, Norue ga, século XI (WARD, 2002); Detalhe de decoração de cadeira da Igreja de Heddal/Telemark, Noruega, século XIII (BOYER, 1997a, 30).
– Pinturas e ilustrações do século XIX:
Karl Engel, A cavalgada das valkyrjas, 1680; W.T. Maud, A cavalgada das valkyrjas, 1890; F. Leeke: As valkyrjas, 1870, Odin e Brynhild, 1890, A licença de Odin, 1875; K. Dielitz, Gudrun, 1890; Peter Arbo, A caçada de Odin, 1872; H. Herman, A cavalgada das valkyrjas, 1890 (COTTERELL, 1998). Peter Arbo, A Valquíria, 1869; H. Olrik, Friso do Ragnarok, 1857 (BOYER, 1997a). Hans Thomas, Valkyrjas, 1989 (BRANSTON, 1960). Gaston Bussière, valkyrjas, séc. XIX (GRANT, 2000). Anônimo, A cavalgada das valkyrjas, séc. XIX (COTTERELL, 1998; BRANSTON, 1960). Dielitz, A despedida de Wotan, séc. XIX (CÁZNOK & NETO, 2000). Von Theodor Pixis, Walküre, 1870 (MACK, 1978).
Karl Engel, A cavalgada das valkyrjas, 1680; W.T. Maud, A cavalgada das valkyrjas, 1890; F. Leeke: As valkyrjas, 1870, Odin e Brynhild, 1890, A licença de Odin, 1875; K. Dielitz, Gudrun, 1890; Peter Arbo, A caçada de Odin, 1872; H. Herman, A cavalgada das valkyrjas, 1890 (COTTERELL, 1998). Peter Arbo, A Valquíria, 1869; H. Olrik, Friso do Ragnarok, 1857 (BOYER, 1997a). Hans Thomas, Valkyrjas, 1989 (BRANSTON, 1960). Gaston Bussière, valkyrjas, séc. XIX (GRANT, 2000). Anônimo, A cavalgada das valkyrjas, séc. XIX (COTTERELL, 1998; BRANSTON, 1960). Dielitz, A despedida de Wotan, séc. XIX (CÁZNOK & NETO, 2000). Von Theodor Pixis, Walküre, 1870 (MACK, 1978).
– Fotografias do século XIX (Óperas):
Marie e Lili Lehmann, valkyrjas da Ópera O Anel dos Nibelungos, 1876 (CÁZNOK & NETO, 2000); Amalie Friedrich-Materna, Brunilda na Ópera O Anel dos Nibelungos, 1876 (MACK, 1978).
Marie e Lili Lehmann, valkyrjas da Ópera O Anel dos Nibelungos, 1876 (CÁZNOK & NETO, 2000); Amalie Friedrich-Materna, Brunilda na Ópera O Anel dos Nibelungos, 1876 (MACK, 1978).
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NOTAS
(1) O francês Régis Boyer limita a utilização dos
chamados métodos psicológicos e simbolistas nas investigações religiosas,
preferindo a perspectiva diacrônica e social (BOYER, 1981: 10-11). Já para o
historiador norte-americano Thomas DuBois a religiosidade nórdica deve ser
pensada em três eixos principais: 1 – comunidades descentralizadas de fé; 2 –
estruturas locais relacionadas com deidades específicas; 2 – Interação com
sistemas religiosos de povos vizinhos economica e geograficamente associada a
eles; 3 – Contribuição para os trabalhos sociais e políticos como um todo
(DUBOIS, 1999: 4-5). Essa perspectiva não-unitária, regionalizada e
culturalmente influenciável é uma das tendências mais aceitas na atualidade
(SØRENSEN, 1999; FELL, 2001; BLAIN, 2002). Outra perspectiva muito interessante
são as pesquisas da mitóloga britânica Hilda Davidson, especialmente as que
apontam as influências e/ou similitudes entre os simbolismos religiosos dos
Celtas e Escandinavos, renovando o método comparatvo na historiografia
religiosa (DAVIDSON, 1988, 1994).
(2) Outros termos para valkryja encontrados nas
fontes são: Walachuriá (Antigo Alto Alemão); Valakusjó (Forma gótica);
Valmeyjar (“donzelas de batalha”); Skjaldmeyjar (“donzelas com escudo”);
Hjalmmeyjar (“donzelas com capacetes”); Óskmeyjar (“donzelas do desejo”); Svanmeyja
(“donzelas cisnes”); Hvít (“branca”). WARD, 2002.
(3) Hilda Davidson distingue duas formas básicas da
representação das valkyrjas, separadas por uma perspectiva diacrônica: uma mais
antiga, sanguinária e terrível (Antiguidade Tardia), e outra mais dignificada e
poética (Era Viking) (DAVIDSON, 1988: 92-97; 2004: 50-55). Por sua vez, o
historiador francês Régis Boyer distingue três formas básicas da imagem
valquiriana, por um referencial morfológico e simbólico, levando à teoria da
tripartição dumeziliana: criaturas aladas (elementos aéreos e celestes);
mulheres cisnes (elemento aquático); servidoras do Valhöll (elementos de
fertilidade-fecundidade) (BOYER, 1981: 142). O historiador britânico Brian
Branston apresenta uma variação da representação do mito também por uma
perspectiva diacrônica, mas muito mais detalhada que a de Hilda Davidson: 1 –
Originalmente as valkyrjas eram espíritos atormentadores das almas, sem nenhuma
relação com Óðinn. 2 – Após o século I d.C., no momento em que Óðinn começa a
substituir Tyr como deus da guerra, elas passam a ser identificadas como
seletoras dos mortos em batalha. 3 – Durante o período das migrações, elas
transmutam-se em virgens que recepcionam os guerreiros mortos para o Valhöll. 4
– Durante a Era Viking, surge outra faceta muito mais aristocrática e nobre: as
donzelas cisnes, difíceis de serem conquistadas amorosamente (BRANSTON, 1960:
333-334).
(4) “Đa deor habbaþ wælkyrian eagan (inglês
arcaico); hae bestie habent gorgoneos (latim): “estas bestas possuem olhos de
valkyrjor (górgonas)”. Narratiuncunlae Anglice conscriptae. (BRANSTON, 1960:
334).
(5) Segundo alguns pesquisadores, o termo Idisi
seria derivado do nórdico antigo Dísir, traduzido por Hilda Davidson como
“deusa” (2004: 52), e por Thomas DuBois como “espíritos femininos da família”
(1999: 207). Para o lexicólogo Geir Zoëga, dísir é o plural de dís,
significando “irmã, donzela, espírito feminino protetor, deusa” (1910). A
conexão entre os dois termos é inegável e em ambos percebemos a idéia de
entidades sobrenaturais femininas muito poderosas e atuantes na vida dos
homens.
(6) Alguns pesquisadores contemporâneos relativizam
a questão da existência de guerreiras entre os Vikings. A historiadora
norte-americana Carol Clover analisando a obra de Saxo Grammaticus considerou
que os únicos casos em que existiram guerreiras nórdicas foram com relação a
mulheres solteiras, viúvas (ou na morte de parentes homens) ou quando da
necessidade de vinganças familiares. Esse papel seria temporário e sua duração
dependeria do papel da mulher guerreira enquanto filha. Para outra
historiadora, Christie Ward, os relatos de Saxo foram influenciados pelo
referencial clássico, especialmente as amazonas gregas (WARD, 2002). A relação
de guerreiras históricas na Escandinávia Medieval é muito grande: Thyra (rainha
dinamarquesa, séc. VIII); Hethna, Visna e Vebiorg (guerreiras dinamarquesas da
batalha de Bråvalla, séc. VIII); Sela (pirata); Alfhild (pirata); Hervor
(pirata e guerreira); Thorbjorg (rainha sueca); Freydis Eriksdóttir
(aventureira e colonizadora); Gunvara (guerreira); Jutta (pirata), entre outras
(LOTHENE, 2004). Uma problemática que surge nessa questão: estas mulheres
históricas tiveram o mito das valkyrjor como fonte de inspiração ou ideal
guerreiro? A runestone de Torsåker 7, Gästrikland (Suécia) apresenta uma imagem
de mulher com armas e em posição de avanço (SAWYER: 2003, 233). Não tivemos
acesso a essa fonte iconográfica e desconhecemos se é uma representação de
guerreira ou de uma valkyrja.
(7) Relação de imagens originais da Era Viking que
retratam valkyrjor:
A – Broches e pingentes:
– Acessório de toucador em prata (Birka, Suécia. PAGE, 1999: 19). Uma figura feminina segura um corno de bebida, com os cabelos trançados em forma de nó. A estrutura geral da figura e principalmente o vestido lembram um pássaro (águia? corvo?).
– Pingente de prata vazada, século X (Suécia. GRAHAM-CAMPBELL, 1997, 109). Uma figura de mulher com vestido longo transporta um corno de bebida.
– Pingente de prata com 3,5 cm de Kalmegården, Tissø (Dinamarca). Duas mulheres equipadas militarmente. A primeira está ao lado de um cavalo, portando cota de malha (?), enquanto a outra figura porta um escudo e um capacete com entrolhos em forma de serpente. BOYER, 2004: 29.
– Acessório de toucador em prata (Birka, Suécia. PAGE, 1999: 19). Uma figura feminina segura um corno de bebida, com os cabelos trançados em forma de nó. A estrutura geral da figura e principalmente o vestido lembram um pássaro (águia? corvo?).
– Pingente de prata vazada, século X (Suécia. GRAHAM-CAMPBELL, 1997, 109). Uma figura de mulher com vestido longo transporta um corno de bebida.
– Pingente de prata com 3,5 cm de Kalmegården, Tissø (Dinamarca). Duas mulheres equipadas militarmente. A primeira está ao lado de um cavalo, portando cota de malha (?), enquanto a outra figura porta um escudo e um capacete com entrolhos em forma de serpente. BOYER, 2004: 29.
B – Estelas pintadas e esculpidas da ilha de
Gotland (Suécia.):
– Hunninge-Klinte (séc. VIII-IX)- Uma figura feminina segurando um corno com bebida, acima de um cão (geralmente interpretado como Garmr, o cão do submundo) e defronte a um cavaleiro, possivelmente um guerreiro morto e sendo recepcionado no Valhöll.
– Tjängvide (séc. VIII-IX). Novamente uma mulher aparece ao lado de um cão, portando cornos e defronte a um cavaleiro (Óðinn e seu cavalo com oito pés, Sleipnir). Cabelo trançado em nó. No mesmo conjunto, outra mulher oferece corno a um guerreiro a pé segurando machado.
– Hammar I (séc. VIII). Uma mulher portando archote de fogo, interpretada como uma valkyrja conduzindo um guerreiro no mundo dos mortos (LANGER, 2003c).
– Hammar III (séc. VIII-IX). Uma mulher oferece cornos de bebida a um guerreiro a cavalo.
– Stenkyrka-Lillbjärs (séc. VIII) Uma mulher segura um grande corno e oferece a um cavaleiro com escudo espiralado.
– Broa-Halla (séc. VIII-IX). Uma mulher oferece corno de bebida a um cavaleiro.
– Hunninge-Klinte (séc. VIII-IX)- Uma figura feminina segurando um corno com bebida, acima de um cão (geralmente interpretado como Garmr, o cão do submundo) e defronte a um cavaleiro, possivelmente um guerreiro morto e sendo recepcionado no Valhöll.
– Tjängvide (séc. VIII-IX). Novamente uma mulher aparece ao lado de um cão, portando cornos e defronte a um cavaleiro (Óðinn e seu cavalo com oito pés, Sleipnir). Cabelo trançado em nó. No mesmo conjunto, outra mulher oferece corno a um guerreiro a pé segurando machado.
– Hammar I (séc. VIII). Uma mulher portando archote de fogo, interpretada como uma valkyrja conduzindo um guerreiro no mundo dos mortos (LANGER, 2003c).
– Hammar III (séc. VIII-IX). Uma mulher oferece cornos de bebida a um guerreiro a cavalo.
– Stenkyrka-Lillbjärs (séc. VIII) Uma mulher segura um grande corno e oferece a um cavaleiro com escudo espiralado.
– Broa-Halla (séc. VIII-IX). Uma mulher oferece corno de bebida a um cavaleiro.
(8) Analisando as estelas da ilha de Gotland,
percebe-se que a maioria apresenta claramente duas cenas distintas: um navio em
sua base – geralmente interpretado como sendo a passagem da vida para a morte
ou o próprio reino dos mortos, e a cena do alto (parte superior) – a entrada do
guerreiro morto para o Valhöll. Nesta última, quase sempre foi representado um
cavaleiro com armas, ao lado de uma mulher oferecendo um corno de bebida.
Assim, temos nitidamente a oposição “homem de batalhas” X “mulher do lar”.
(9) Entre os buriatas (povo mongol que vivia às
margens do lago Baikal na antiga Rússia) encontramos o mesmo conto de três
mulheres cisnes que banhavam-se as margens de um lago e são capturadas e
transformadas em esposas. Também entre os altaicos (Ásia Central), eslavos,
iranianos e turcos essa narrativa é encontrada com pequenas variações
morfológicas (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002: 257).
(10) Neste momento percebemos uma semelhança muito
grande com outras narrativas mitológicas, como a Völsunga Saga, onde um dos
personagens da trama, Sigmundr, adquire uma espada mágica através de Óðinn.
(11) A narrativa de Helgi, o matador do rei
Hundingr e da valkyrjor Sigrún também aparece na Völsunga Saga. O relato é
praticamente o mesmo existente na Edda Poética, com exceção do primeiro
encontro de Helgi com o grupo de valkyrjor, que na Völsunga Saga ocorreu num
bosque. Do mesmo modo não existem menções a outras vidas (reencarnações) destes
personagens.
(12) Na sua descrição, Hervor era considerada forte
como um garoto. Foi treinada pelo avô materno na arte da guerra com escudo e
espada, mas também costurava e bordava. Quando jovem, assaltou alguns homens
que passavam pelos bosques. Participou de piratarias litorâneas, unindo-se a
Vikings e vestindo-se como homem – além de adotar o nome masculino de Hervardr
– realizando saques e batalhas. Junto a seus irmãos, vingou o assassinato do
pai. Finalmente, cessou sua vida marcial casando e tendo filhos com um rei.
Conf. HERVOR’S SAGA, 2003.
Fonte: LANGER, Johnni. Guerreiras de Ódinn: As Valkyrjor na mitologia viking. Revista Brathair, v. 4, n. 1, 2004, p. 52-69.
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