O ciclo de agitação social de 1917-1920
Joana Dias Pereira
Introdução
Os
últimos anos da Primeira Guerra Mundial
e os primeiros do pós-guerra foram marcados por um ciclo de agitação social
global. Os países beligerantes, como todos os contextos nacionais afetados pela
desestabilização da economia, foram palco de levantamentos populares contra os
açambarcamentos e a carestia de vida e de uma onda de greves com uma adesão
inédita. Este artigo procura examinar este processo de mobilização,
prosseguindo uma tradição historiográfica que progrediu desde a análise da
evolução dos repertórios de ação coletiva à explicação da dinâmica de conflito.
Na
obra Dynamics
of Contention (2001), Charles
Tilly, Sydney Tarrow e Doug McAdam, desenvolvendo o programa
de investigação dos movimentos sociais, procuram destacar a centralidade dos processos
relacionais perceptíveis em diversos episódios de ação coletiva, fortalecendo o
modelo analítico com novos conceitos. Assim, em vez de oportunidade, estruturas
de mobilização, enquadramento e repertórios pré-existentes, examinaremos a
percepção de oportunidades, a apropriação social dos recursos organizacionais e
a mediação entre diferentes atores e repertórios.
Este
modelo destaca as tendências mais significativas implícitas nos processos de
mobilização, como o estabelecimento de novos atores e identidades políticas, a
polarização ou o salto de escala do conflito local para o translocal. Também
explora reconfigurações ao nível das consciências, dos laços de solidariedade e
das relações entre a comunidade de atores, em situações excepcionais, como a
guerra. Segundo este esquema interpretativo, todavia, os movimentos sociais
resultam sempre de um mais abrangente processo de transformação, que é
necessário compreender para um profundo entendimento da sua emergência e trajetória.
Por
outro lado, extravasando deliberadamente as fronteiras entre os diferentes
tipos de conflito – ondas de greves, guerras, movimentos sociais, revoluções,
nacionalismos, entre outros –, este modelo relaciona vários repertórios de ação
colectiva1. Assim, é particularmente útil para refletir sobre a problemática
deste artigo: as designadas «revoltas da fome» e a onda de greves, ambas
iniciadas na Primavera de 1917,
foram parte do mesmo processo de mobilização?
Com
base neste modelo e nas fontes disponíveis – os relatórios oficiais conservados
no fundo do Ministério do Interior e a imprensa, sobretudo a operária – será
argumentado que estes dois repertórios foram parte de um único processo de
mobilização e que a sua articulação foi levada a cabo pela ala mais radical do
movimento sindical. Esses atores foram capazes de tomar posse da estrutura
organizacional, construída pelos socialistas desde do século XIX, e de tirar
vantagens da grande influência que tinha nas redes sociais dos trabalhadores.
Os sindicatos e outras associações de trabalhadores, bem como os laços
informais que atravessavam as comunidades operárias, possibilitaram a
articulação das lutas em torno da produção e do consumo. Ao tomar posse destes
recursos organizacionais, os sindicalistas revolucionários foram capazes de
estruturar o seu movimento a nível nacional, atingindo uma escala sem
precedentes.
Destacando
o papel do movimento organizado dos trabalhadores, este artigo não deixa de
relevar o papel das mulheres na gestão das redes de reciprocidade, familiares e
de vizinhança, que muito embora assumissem um carácter informal, tiveram um
papel central como recurso organizacional primário. Como além-fronteiras tem
vindo a ser argumentado, a entrada em massa das mulheres nas fábricas foi
fundamental para extravasar as fronteiras entre as comunidades de ofício e de
residência e entre as lutas em torno do consumo e da produção.
A dinâmica de
conflito
As transformações
estruturais
No
final do século XIX, um multifacetado conjunto de transformações estruturais
afeta significativamente o trabalho manufatureiro e as economias domésticas,
mesmo nos países de industrialização tardia. As principais inovações registadas
no sector transformador foram a sua progressiva deslocalização para as
periferias urbanas e o gradual aumento de dimensão das unidades de produção. A
concentração de trabalhadores em fábricas não mecanizou o trabalho, mas
reorganizou-o. Uma nova distribuição de tarefas tornava possível empregar um
grande número de trabalhadores não qualificados, alterando significativamente
as hierarquias herdadas do modo de trabalho artesanal e diminuindo o controlo
dos antigos artesãos sobre o processo produtivo. No entanto, esta perda de
protagonismo dos trabalhadores qualificados foi relativa enquanto os
fabricantes não investiram claramente em inovação2.
Com
a generalização do sistema salarial, a precariedade e os baixos rendimentos
passam a ser as principais características das relações de trabalho
industriais. Para além disso, a resiliência das estratégias familiares baseadas
nas economias domésticas típicas do Antigo
Regime, induziu a perpetuação da divisão sexual do trabalho nas fábricas.
Os empregadores aproveitaram essas práticas para reduzir os custos do trabalho,
pagando salários muito baixos a mulheres e crianças. No entanto, a sua
coexistência com os trabalhadores organizados mais qualificados e com maior
capacidade reivindicativa contribuiu para o seu gradual envolvimento em
protestos e greves3.
Em
paralelo com mais altas taxas de concentração no local de trabalho, a
urbanização contribuiu para a criação de um contexto físico e social que
potenciou um sentido mais amplo de unidade e solidariedade entre os
trabalhadores. O desenvolvimento industrial e do sector de construção em
expansão permitiram a fixação de trabalhadores sazonais, que circulavam entre
os diferentes segmentos dos mercados de trabalho urbano e suburbano. Este
processo foi a base de uma nova divisão social do espaço dentro das
aglomerações urbanas europeias, induzindo a formação de bairros socialmente
mais homogéneos em torno de áreas industriais. As famílias trabalhadoras,
incluindo artesãos, trabalhadores qualificados e indiferenciados, coexistiram
desde então em espaços de produção e residência, que se sobrepunham, promovendo
uma endogamia social sem precedentes, que os estudos monográficos têm
confirmado empiricamente4.
No
alvorecer do século XX, o movimento operário assumiu novas proporções e contou
com novos protagonistas. Foi o proletariado fabril que deu uma escala sem
precedentes às greves, embora, particularmente nos países de industrialização
tardia como Portugal, os trabalhadores qualificados e os seus recursos
organizacionais tenham desempenhado um papel crucial. As organizações
tradicionais dos artesãos, herdadas do Antigo Regime, procuraram adaptar-se à
nova organização do trabalho, incorporando as reivindicações dos trabalhadores
não qualificados, que se tornaram a maioria dos trabalhadores industriais – as
relacionadas com aumentos salariais, sobretudo, em detrimento de outras mais
específicas e relacionadas com a organização do trabalho artesanal, como a luta
pelo controlo do processo produtivo5.
Não
obstante as estratégias dos industriais tendentes a enfraquecer a solidariedade
entre os trabalhadores, dividindo-os por especialidades e promovendo a
concorrência, os sindicatos foram capazes de forjar um sentimento de unidade
entre os diferentes estratos do universo operário. As mulheres e as crianças
eram os grupos mais vulneráveis, tendo em vista a natureza sazonal do seu
trabalho, muitas vezes feito em casa ou em pequenas unidades de produção. As
estratégias dos sindicatos para superar este obstáculo passaram muitas vezes
pela integração das mulheres nas organizações masculinas pré-existentes,
apoiando as suas reivindicações por melhores salários.
Totalmente
dependentes de salários para assegurar as necessidades básicas de subsistência,
as economias domésticas das famílias trabalhadoras estavam profundamente
subordinadas à relação entre emprego/salário/preços. Durante o período que
precede, acompanha e sucede a Primeira Guerra Mundial, os trabalhadores foram
severamente afetados pelos ciclos económicos como consumidores. Os preços
aumentavam lentamente desde a viragem do século, mas foi na segunda década do
século XX que uma galopante inflação se refletiu negativamente e com especial
acuidade sobre os salários industriais e as condições de vida dos
trabalhadores. Desde então, as mulheres desempenharam um papel fundamental e
inédito nos protestos laborais, tendo em conta a sua entrada nas fábricas, mas
também o seu papel na economia familiar. No entanto, foi nas lutas em torno do
consumo que as mulheres mais se destacaram como gestoras de redes de
solidariedade informais que permitiram uma mobilização massiva das populações.
Nos
países do sul da Europa, a comunidade territorial desempenhou um papel
fundamental neste processo, permitindo a expansão da base social do movimento
reivindicativo. As greves tiveram uma adesão excepcional nas vilas e bairros
operários que cercavam as principais cidades. A unificação de diferentes
protestos locais também beneficiou dos fluxos migratórios do campo para a
cidade e dos centros urbanos para a periferia. Nesses movimentos, foram acionadas
e transferidas redes familiares e comunitárias, que se tornaram num poderoso
recurso organizacional para os protestos das populações6.
Nos
primeiros anos de guerra, a repressão tinha parcialmente privado os artesãos e
os trabalhadores qualificados dos seus recursos tradicionais de resistência,
mas as redes sociais tecidas nos novos espaços urbanos tornaram-se a base da
mobilização social. As designadas food riots assolaram toda a Europa
desde o Inverno de 1915-1916. A ação
coletiva foi dirigida especialmente contra o açambarcamento e a especulação
sobre os preços dos géneros de primeira necessidade. A partir de 1917, os
protestos contra o consumo tomaram uma dimensão política, quando começaram a
articular-se com um novo surto de conflitos laborais. Em toda a Europa, uma
onda de greves e manifestações eclodiram, envolvendo milhares de trabalhadores
de vários setores e qualificações, devido à crescente carestia de vida (mais
elevada do que o aumento dos salários), à agudização da disciplina nas fábricas
e à repressão política. Os protestos e greves verificados após a Revolução de Outubro na Rússia culminaram
num ciclo de agitação social global. Os parâmetros quantitativos refletem o
surgimento deste movimento numa escala mundial, abrangendo todos os
continentes. Mostram também que, na maioria dos países, o número de greves foi
ultrapassado em comparação com a onda desenvolvida antes da guerra (1910-1913),
bem como o número de grevistas, o âmbito das greves, a coesão e a força do
movimento7.
A percepção
colectiva de uma oportunidade
A
primeira hipótese levantada neste artigo, e no que respeita ao desencadear do
movimento, é que a crescente intervenção económica e social do Estado foi
percepcionada coletivamente pelos trabalhadores como uma oportunidade para
lutar por condições de vida e trabalho mais favoráveis. A economia de guerra
serviu para enfatizar as contradições fundamentais do sistema capitalista e da
economia de mercado, destacando os instrumentos políticos passíveis de utilizar
para impedir a especulação e o açambarcamento. Através de legislação reguladora
dos abastecimentos, os governos europeus induziram a mobilização das populações
pressionando o Estado e com o objetivo de impor uma economia moral. No curso
das lutas em torno das subsistências, um sentido de identidade foi forjado à
escala das comunidades locais, em oposição a proprietários e a comerciantes. O
Estado, no entanto, passou a ser visto não apenas como um inimigo, mas também
como um instrumento.
Os
estratos sociais mais atingidos pela carestia de vida percepcionaram nas
medidas governamentais e na regulação dos preços, uma oportunidade para
travarem a inflação desenfreada com o apoio legal. A ação coletiva foi
essencialmente direcionada para as autoridades, com o objetivo de pressionar a
regulamentação dos preços e da distribuição de alimentos. A ação direta surgiu
apenas quando as populações foram confrontadas com a incapacidade das
autoridades políticas em mitigar a crise de subsistências.
Um
exame minucioso dos protestos relacionados com o consumo em Portugal sugere que
estes não se traduzem em explosões súbitas e espontâneas de raiva e desespero.
A resistência das populações contra a especulação e o açambarcamento integra um
movimento com várias formas de luta – sessões de propaganda, comícios,
representações ao governo, manifestações, greves, entre outros –, o que poderia
ser classificado como um reportório de ação coletiva centrado no Estado8. Na
maioria das vezes, e tendo em conta os relatórios da polícia, os manifestantes
insurgiram-se contra as tentativas dos comerciantes venderem produtos acima dos
preços oficiais ou a sua recusa em vender bens essenciais armazenados. Em
muitos desses testemunhos, afirma-se que os bens foram pagos de acordo com os
preços oficiais prescritos, e que não houve violência física significativa.
É
útil lembrar o modelo proposto por John
Bohstedt. No seu extenso estudo sobre food
riots, observa-se que a ação coletiva ocorre somente em comunidades
estáveis, normalmente em pequenas e médias cidades, com fortes redes sociais,
seja horizontais – família, vizinhança e locais de trabalho; seja verticais –
entre as pessoas, as elites e as autoridades. Bohstedt interpreta esse padrão como parte de um processo de
negociação controlado dentro das comunidades, apenas possível quando se podia
calcular os riscos e os limites dessa negociação em populações estabelecidas
com fortes relações recíprocas9. As evidências empíricas recolhidas sobre as
revoltas da fome, no contexto nacional, entre 1917 e 1920, sugerem que, durante
a guerra, esses laços permitiram o sucesso da ação coletiva visando a apreensão
e distribuição de mercadorias com a cumplicidade das autoridades
administrativas e policiais.
Vários
exemplos de relatórios policiais e das autoridades locais ilustram como as
reivindicações dos trabalhadores e das populações criaram divisões no seio do
Estado. A percepção coletiva de uma oportunidade também se relacionou com essas
tensões, cada vez mais evidentes ao longo da conflagração. As autoridades
locais e regionais mostraram uma tendência geral para rejeitar as diretrizes do
governo central, cedendo à pressão das populações. Numerosas ameaças e
demissões coletivas dos administradores e governadores aparecem na
correspondência trocada entre poderes locais, regionais e centrais. A razão era
invariavelmente a mesma: as subsistências. À medida que esta questão se
agravava, as tensões institucionais transbordavam para o domínio público.
Vários exemplos de desafio frontal de ordens superiores por parte das
autoridades locais, no interesse das comunidades, foram identificadas nas
séries de correspondência do Ministério do Interior.
O
mesmo sucedeu no que se refere às autoridades policiais. Está bem documentada a
participação da polícia civil na revolta mais dramática que ocorreu na região
de Lisboa, a revolução da batata, em Maio
de 1917, bem como a recusa por parte dos militares para reprimir alguns dos
assaltos a padarias e mercearias durante o levantamento popular. A descrição de
um destes episódios, no Poço do Bispo, é compreensível à luz da importância que
os laços comunitários preservavam nos bairros operários periféricos da capital
portuguesa, durante o primeiro quartel do século XX. Segundo o relatório
policial, os guardas-fiscais não impediram o furto de bens alimentares pelas
mulheres, que gritavam, «a Guarda está ao lado do povo!»10.
A
segunda hipótese apresentada é que estas revoltas populares estiveram na origem
de um novo ciclo de lutas laborais. Na verdade, a paralisação da construção
civil que precipita a maior onda de greves já experimentada em Portugal,
ocorreu exatamente no curso da revolução da batata. A federação nacional dos
trabalhadores da construção civil, que liderou o movimento, organizou uma
manifestação no centro de Lisboa, no mesmo dia em que os tumultos atingiram o
seu clímax. Depois disso, durante a Primavera de 1917, as greves setoriais e
gerais agitaram toda a região, em paralelo com novos levantamentos populares
contra os açambarcamentos e a carestia de vida. Este ciclo de protestos
intensificou-se durante o Verão, culminando com a paralisação dos serviços de
telégrafos e postais, uma das primeiras greves a generalizar-se em todo o País,
desde o Algarve até Bragança, segundo a correspondência dos
governos civis para o Ministério do Interior, e que terminou com a mobilização
militar dos grevistas.
As
conquistas dos trabalhadores em termos salariais, todavia, eram rapidamente
ultrapassadas, pela inflação. No final do ano, os dirigentes sindicais decidem
então priorizar as lutas em torno do consumo, percepcionando uma oportunidade
para ampliar a base social do movimento operário. Durante 1918, todos os esforços foram mobilizados para a organização da
chamada greve geral de todos os consumidores, prevista para 18 de Novembro desse ano.
A apropriação
social de recursos organizacionais
Embora
a historiografia tradicional tenda a apartar os levantamentos populares contra
os açambarcamentos e a carestia de vida do movimento organizado dos trabalhadores,
as evidências empíricas apontam em sentido contrário, em especial nos estudos
relativos especificamente às circunstâncias excepcionais da Primeira Guerra
Mundial. Lester Golden e Temma Kaplan, ao analisarem os tumultos
na Catalunha durante este período,
observam, na aparente espontaneidade desses movimentos, uma organização
altamente disciplinada, embora informal, que associa rituais antigos e
linguagens da cultura popular tradicional e das comunidades de trabalho, com a
ideologia e o dinamismo dos movimentos de massa modernos. Golden afirma que uma
relação simbiótica foi criada entre a luta da classe trabalhadora moderna e os
laços de solidariedade construídos nas comunidades locais, argumentando que os
sindicatos, compartilhando o mesmo espaço com outras organizações de bairro,
tendem a tornar-se instituições comunitárias11.
Lynne
Taylor, revisitando vários estudos sobre food
riots, defende que as revoltas do século XX tendem a assumir novas
características, que as distinguem daquelas que foram extintas durante o século
XIX. Normalmente, esses protestos ocorrem em reação à inflação dos preços dos
produtos alimentares ou o custo de vida e, apesar de serem organizadas com base
em redes sociais, as organizações políticas com uma relação estreita com as
comunidades tendem a ser mobilizadas e as suas ideias e estratégias
adaptadas12.
A
hipótese a discutir nesta secção é que quer as organizações de trabalhadores
quer as redes informais foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários
para transformar os motins e as greves num movimento político único. Este
processo só foi possível devido ao aumento da interação entre esses recursos
organizacionais dentro das comunidades operárias. Em Portugal, a distribuição
geográfica das greves, manifestações, sessões de propaganda e de outras
iniciativas levadas a cabo pelos sindicatos, por um lado, e as lutas em torno
dos meios de subsistência, por outro, prova que estes dois tipos de contestação
estavam profundamente inter-relacionadas. Desde o início até ao refluxo, os
epicentros de ambos foram as áreas urbanas industriais. Os estudos monográficos
mostram como essa interação foi possível. As associações de classe foram
envolvidas nas revoltas da fome e as redes informais foram mobilizadas para
difundir e sustentar o movimento grevista.
Diversas
fontes, desde os relatórios policiais à imprensa, relatam como o movimento
organizado dos trabalhadores participou nos levantamentos populares,
aparentemente espontâneos. De acordo com estas, os assaltos e tumultos eram
planeados nas sedes das associações operárias, como as sociedades de socorros
mútuos, as cooperativas e até mesmo as coletividades de cultura e recreio,
espaços de agregação fundamentais nas comunidades operárias. Consequentemente,
as medidas preventivas e repressivas foram direcionadas especialmente para o
movimento associativo. O papel das redes sociais informais na sustentação de
greves também é profusamente descrito na imprensa regional e nas outras fontes
históricas acima mencionadas. Festas, festivais, performances e subscrições
realizadas em bairros operários permitiram sustentar lutas extensas e
prolongadas.
A
propagação da agitação social deu origem à reorganização do movimento operário,
que nos primeiros anos da guerra foi amordaçado pela repressão, mas também
levou a uma mudança na sua táctica. A União
Operária Nacional (UON) mudou oficialmente o seu foco para as lutas e
protestos em torno do consumo. As conferências operárias de 1917, presididas
pelo anarco-sindicalista Manuel Joaquim de Sousa, adoptaram uma
tese a respeito do custo de vida. Esta questão foi discutida acaloradamente,
decidindo-se que, dada a impotência e a incapacidade do governo para minimizar
a escassez de alimentos, os próprios trabalhadores deviam defender os seus
interesses diretamente, por meio dos seus sindicatos.
Na
preparação da greve geral de todos os consumidores, em 1918, as associações de
classe, e sobretudo as suas estruturas translocais, foram apropriadas pelos
sindicalistas revolucionários para mobilizar as populações contra a especulação
e os açambarcamentos. Foram organizadas muitas centenas de iniciativas:
comícios, reuniões, protestos e distribuições de manifestos nas principais
cidades e centros industriais – Lisboa, Porto, Coimbra, Viana do Castelo,
Guimarães, Covilhã, Faro, Funchal, etc. – e profusamente entre os trabalhadores
rurais – em Évora, Beja, Portalegre, Sousel, Estremoz, Ferreira do Alentejo,
Coruche, Aljustrel, Redondo, Sines, etc. O resultado decepcionante da greve
geral, para o qual contribuíram o armistício e a pneumônica, não minimiza a
importância do movimento.
Essa
mobilização sem precedentes também resultou em centenas de novas organizações,
que emergiram com uma grande capacidade de mobilização nos primeiros meses de 1919, quando o Sidonismo foi derrotado.
A mediação entre as
lutas em torno da produção e do consumo
O
ciclo de protestos e lutas organizados pelos sindicatos contra a carestia de
vida constituiu o maior processo de mobilização vivenciado em Portugal até à
data, envolvendo tanto o movimento organizado dos trabalhadores como as redes
sociais das comunidades operárias. Neste sentido, pode-se argumentar que a ala
mais radical do movimento sindical assumiu o papel de intermediário entre a
população em geral e os trabalhadores industriais. À medida que esses atores e
os seus repertórios de ação coletiva interagiram, os sindicalistas
revolucionários e os anarco-sindicalistas transformaram os protestos locais num
amplo movimento político.
Os
sindicalistas conseguiram construir um movimento de contestação à escala
nacional, dando-lhe um carácter político, através da apresentação ao governo de
um conjunto de exigências, que foram aprovadas em dezenas de comícios em todo o
país. Este caderno reivindicativo, amplamente divulgado na imprensa, ilustra a
base em que assentava a mediação entre as lutas em torno da produção e do
consumo e também o papel do Estado nesse processo. Na verdade, foi a crescente
intervenção deste último nas esferas económica e social que permitiu a
articulação das aspirações dos trabalhadores organizados com as dos outros
estratos sociais penalizados pelo aumento dos preços e a escassez de alimentos.
Era exigido ao Estado a regulamentação legal do trabalho das mulheres e
crianças ou do dia oito horas, entre outras regulamentações laborais, ao mesmo
tempo que se propunha que os municípios adquirissem bens na fonte para venda
direta ao consumidor, eliminando os comerciantes. Também era proposto que as
comissões criadas para essa finalidade incluíssem representantes das
associações de classe.
Durante
1919 e 1920, juntamente com grandes movimentos em torno do consumo, as duas
principais cidades e suas áreas de dependência foram abaladas por amplos
movimentos grevistas, que se transformaram sistematicamente em paralisações
generalizadas, tendo a solidariedade como mote. Os protestos multiplicaram-se e
intensificaram-se de Norte a Sul do País, resultando em vitórias muito
significativas. Os trabalhadores da cortiça, por exemplo, conquistaram a
jornada de trabalho de oito horas e um aumento salarial de 40%. As lutas dos
ferroviários foram particularmente dramáticas devido à sua abrangência, impacto
e duração e também por causa dos meios de repressão implementadas pelo governo.
A
articulação entre a ação coletiva conduzida pelas associações de classe e a
luta das populações contra a especulação e os açambarcamentos é evidente à
escala local, onde são criadas formas de luta híbridas, como greves gerais
locais contra os açambarcamentos, a apreensão e distribuição de géneros pelas
associações de classe, entre outros. Também é verificável, em estudos
monográficos, que durante estes movimentos os sindicatos expandem a sua
influência entre as comunidades operárias, possibilitando uma participação sem
precedentes do proletariado fabril, e especialmente das mulheres, na onda
greves que marcou os anos de 1917-1920. As mulheres, geralmente ausentes das
associações formais, devido à divisão sexual do trabalho que lhes deu os
empregos mais precários e desqualificados, conseguiram mobilizar as redes de
entreajuda que geriam nos espaços de residência.
A
articulação e radicalização das lutas populares com as dos trabalhadores
organizados justificam os rótulos atribuídos ao período pós-guerra em
diferentes países, o biénio rosso em Itália ou os chamados anos da ameaça vermelha em Portugal. Em
paralelo com a ampliação do processo de mobilização, foi a sua politização que
assustou as elites. Na comemoração do dia dos trabalhadores, em 1919, o âmbito geográfico da
mobilização ampliou-se. Ainda mais manifestações do que em 1918 tiveram lugar por todo o País, em comunidades operárias em
meio urbano e entre os trabalhadores rurais, com o mote dominante da luta
contra a carestia de vida. Em Lisboa,
a União Operária Nacional mobilizou
30.000 pessoas, uma manifestação monumental para a época, exigindo a «socialização
gradual e progressiva da terra e da indústria». Em todos os bairros e vilas
operários, os comícios terminavam com vivas aos trabalhadores de todo o mundo e
à Revolução Russa13.
Conclusão
Entre
1917 e 1920, as tendências de longo termo que transformavam o mundo do trabalho
industrial e o movimento operário foram extraordinariamente aceleradas e
reforçadas devido à conjuntura excepcional da Primeira Guerra Mundial. Em
Portugal, desde a última década do século XIX que, graças a uma reorganização
do trabalho e do espaço urbano, se assistia a um inédito desenvolvimento do
movimento e da organização dos trabalhadores, bem como à sua cada vez maior
inserção nas comunidades operárias. No entanto, o processo de interação entre
as redes sociais pré-existentes das famílias trabalhadoras e o repertório de
ação coletiva dos trabalhadores industriais foi visivelmente induzida pelos
efeitos económicos, sociais, políticos e psicológicos da guerra.
Estudos
transnacionais têm sublinhado o facto de que, num período como 1914-1918, quando os canais
tradicionais de protesto foram bloqueados ou atrofiados, outros tipos de
relações entre os atores sociais foram chamadas a desempenhar o papel das
organizações políticas. Em muitos países europeus, onde os socialistas e
líderes sindicais foram cooptados para os governos ou para a colaboração com os
empregadores, surgiram novos veículos para as reivindicações dos trabalhadores.
O movimento de delegados sindicais e comissões de fábrica que se espalhou em
todos os países beligerantes significou a emergência de novos atores na
organização da ação coletiva ao nível da base. Estas novas formas de
organização explicam porque é que, não obstante a opção colaboracionista de boa
parte dos líderes socialistas e sindicais durante a guerra, em 1917 tem início
a maior onda de greves de sempre14.
Este
ciclo de agitação social, que abalou a sociedade portuguesa entre 1917 e 1920,
também foi organizado por ativistas de base, envolvendo associações de
trabalhadores comunitárias, incluindo sindicatos e redes sociais informais que
cruzavam os bairros operários de então. Este processo relaciona-se com o facto
de, desde o final do século XIX, os ativistas sindicais se terem esforçado por
organizar as classes trabalhadoras ao nível local, superando as hierarquias
entre trabalhadores qualificados e desqualificados.
O
processo de mobilização que marcou os últimos anos da guerra e os primeiros do
pós-guerra deu origem a uma nova identidade, o proletariado, como o designou A
Batalha, rompendo antigas fronteiras entre o ofício e a comunidade. A
articulação dos movimentos em torno da produção e do consumo assume
características difíceis de tipificar, sugerindo que os trabalhadores, neste
período, desenvolveram um repertório de ação coletiva que, como os laços de
solidariedade germinados dentro e fora da fábrica, amalgamava as novas formas
de luta organizada com as velhas formas de resistência.
Em
conclusão, ao eleger as reivindicações dos consumidores como prioritárias, a
União Operária Nacional conseguiu estruturar um movimento nacional a partir de
levantamentos de carácter local, organizados por redes sociais informais e
associações comunitárias. A ala mais radical do movimento operário – o
sindicalismo revolucionário – foi capaz de disseminar os protestos por todo o
País, dando-lhe um caráter translocal e político. A fundação da Confederação Geral do Trabalho, em Setembro de 1919, é o resultado mais
evidente deste processo. Pode-se argumentar que a dinâmica de conflito induzida
pelos efeitos econômicos e sociais da Primeira Guerra Mundial teve um papel
crucial no alargamento, politização e estruturação nacional do movimento
operário português.
NOTAS:
1 McAdam, Adam;
Tarrow, Sidney; Tilly, Charles (2001). Dynamics of Contention. Cambridge:
University Press.
2 Entre outros
Hanagan, Michael (1980). The logic of solidarity: artisans and industrial
workers in three French towns, 1871-1914. Urbana: University of Illinois Press;
Perrot, Michelle (1986). «On the formation of the French working Class». In:
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Princeton University Press; Sewell, William H. (1986). «Artisans, factory, and
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Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns
in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press;
Hanagan, Michael e Stephenson, Charles (1986). Confrontation, class
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political identity: silk and metal workers in Lyon, France, 1900-1939. New
York; Oxford: Berghahn.
3 Entre muitos
outros Ramela, Franco (1977). «Famiglia, terra e salario in una comunità
tessile dell’Ottocento», Movimento operaio e socialista, XXIII/1 pp. 7-44;
Leslie Page Moch and Louise A. Tilly (1985), «Joining the Urban World:
Occupation, Family, and Migration in Three French Cities». Comparative Studies
in Society and History, 27/1 (Jan., 1985) pp. 33-56; Perrot, Michelle (1986),
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Fonte: PEREIRA,
Joana Dias. O ciclo de agitação social
global de 1917-1920. Ler História,
n. 66, 2014, p. 44-55.
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