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sábado, 25 de março de 2017

O ciclo de agitação social de 1917-1920

O ciclo de agitação social de 1917-1920


Joana Dias Pereira


Introdução

Os últimos anos da Primeira Guerra Mundial e os primeiros do pós-guerra foram marcados por um ciclo de agitação social global. Os países beligerantes, como todos os contextos nacionais afetados pela desestabilização da economia, foram palco de levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida e de uma onda de greves com uma adesão inédita. Este artigo procura examinar este processo de mobilização, prosseguindo uma tradição historiográfica que progrediu desde a análise da evolução dos repertórios de ação coletiva à explicação da dinâmica de conflito.

Na obra Dynamics of Contention (2001), Charles Tilly, Sydney Tarrow e Doug McAdam, desenvolvendo o programa de investigação dos movimentos sociais, procuram destacar a centralidade dos processos relacionais perceptíveis em diversos episódios de ação coletiva, fortalecendo o modelo analítico com novos conceitos. Assim, em vez de oportunidade, estruturas de mobilização, enquadramento e repertórios pré-existentes, examinaremos a percepção de oportunidades, a apropriação social dos recursos organizacionais e a mediação entre diferentes atores e repertórios.

Este modelo destaca as tendências mais significativas implícitas nos processos de mobilização, como o estabelecimento de novos atores e identidades políticas, a polarização ou o salto de escala do conflito local para o translocal. Também explora reconfigurações ao nível das consciências, dos laços de solidariedade e das relações entre a comunidade de atores, em situações excepcionais, como a guerra. Segundo este esquema interpretativo, todavia, os movimentos sociais resultam sempre de um mais abrangente processo de transformação, que é necessário compreender para um profundo entendimento da sua emergência e trajetória.

Por outro lado, extravasando deliberadamente as fronteiras entre os diferentes tipos de conflito – ondas de greves, guerras, movimentos sociais, revoluções, nacionalismos, entre outros –, este modelo relaciona vários repertórios de ação colectiva1. Assim, é particularmente útil para refletir sobre a problemática deste artigo: as designadas «revoltas da fome» e a onda de greves, ambas iniciadas na Primavera de 1917, foram parte do mesmo processo de mobilização?

Com base neste modelo e nas fontes disponíveis – os relatórios oficiais conservados no fundo do Ministério do Interior e a imprensa, sobretudo a operária – será argumentado que estes dois repertórios foram parte de um único processo de mobilização e que a sua articulação foi levada a cabo pela ala mais radical do movimento sindical. Esses atores foram capazes de tomar posse da estrutura organizacional, construída pelos socialistas desde do século XIX, e de tirar vantagens da grande influência que tinha nas redes sociais dos trabalhadores. Os sindicatos e outras associações de trabalhadores, bem como os laços informais que atravessavam as comunidades operárias, possibilitaram a articulação das lutas em torno da produção e do consumo. Ao tomar posse destes recursos organizacionais, os sindicalistas revolucionários foram capazes de estruturar o seu movimento a nível nacional, atingindo uma escala sem precedentes.

Destacando o papel do movimento organizado dos trabalhadores, este artigo não deixa de relevar o papel das mulheres na gestão das redes de reciprocidade, familiares e de vizinhança, que muito embora assumissem um carácter informal, tiveram um papel central como recurso organizacional primário. Como além-fronteiras tem vindo a ser argumentado, a entrada em massa das mulheres nas fábricas foi fundamental para extravasar as fronteiras entre as comunidades de ofício e de residência e entre as lutas em torno do consumo e da produção.

A dinâmica de conflito

As transformações estruturais

No final do século XIX, um multifacetado conjunto de transformações estruturais afeta significativamente o trabalho manufatureiro e as economias domésticas, mesmo nos países de industrialização tardia. As principais inovações registadas no sector transformador foram a sua progressiva deslocalização para as periferias urbanas e o gradual aumento de dimensão das unidades de produção. A concentração de trabalhadores em fábricas não mecanizou o trabalho, mas reorganizou-o. Uma nova distribuição de tarefas tornava possível empregar um grande número de trabalhadores não qualificados, alterando significativamente as hierarquias herdadas do modo de trabalho artesanal e diminuindo o controlo dos antigos artesãos sobre o processo produtivo. No entanto, esta perda de protagonismo dos trabalhadores qualificados foi relativa enquanto os fabricantes não investiram claramente em inovação2.

Com a generalização do sistema salarial, a precariedade e os baixos rendimentos passam a ser as principais características das relações de trabalho industriais. Para além disso, a resiliência das estratégias familiares baseadas nas economias domésticas típicas do Antigo Regime, induziu a perpetuação da divisão sexual do trabalho nas fábricas. Os empregadores aproveitaram essas práticas para reduzir os custos do trabalho, pagando salários muito baixos a mulheres e crianças. No entanto, a sua coexistência com os trabalhadores organizados mais qualificados e com maior capacidade reivindicativa contribuiu para o seu gradual envolvimento em protestos e greves3.

Em paralelo com mais altas taxas de concentração no local de trabalho, a urbanização contribuiu para a criação de um contexto físico e social que potenciou um sentido mais amplo de unidade e solidariedade entre os trabalhadores. O desenvolvimento industrial e do sector de construção em expansão permitiram a fixação de trabalhadores sazonais, que circulavam entre os diferentes segmentos dos mercados de trabalho urbano e suburbano. Este processo foi a base de uma nova divisão social do espaço dentro das aglomerações urbanas europeias, induzindo a formação de bairros socialmente mais homogéneos em torno de áreas industriais. As famílias trabalhadoras, incluindo artesãos, trabalhadores qualificados e indiferenciados, coexistiram desde então em espaços de produção e residência, que se sobrepunham, promovendo uma endogamia social sem precedentes, que os estudos monográficos têm confirmado empiricamente4.

No alvorecer do século XX, o movimento operário assumiu novas proporções e contou com novos protagonistas. Foi o proletariado fabril que deu uma escala sem precedentes às greves, embora, particularmente nos países de industrialização tardia como Portugal, os trabalhadores qualificados e os seus recursos organizacionais tenham desempenhado um papel crucial. As organizações tradicionais dos artesãos, herdadas do Antigo Regime, procuraram adaptar-se à nova organização do trabalho, incorporando as reivindicações dos trabalhadores não qualificados, que se tornaram a maioria dos trabalhadores industriais – as relacionadas com aumentos salariais, sobretudo, em detrimento de outras mais específicas e relacionadas com a organização do trabalho artesanal, como a luta pelo controlo do processo produtivo5.

Não obstante as estratégias dos industriais tendentes a enfraquecer a solidariedade entre os trabalhadores, dividindo-os por especialidades e promovendo a concorrência, os sindicatos foram capazes de forjar um sentimento de unidade entre os diferentes estratos do universo operário. As mulheres e as crianças eram os grupos mais vulneráveis, tendo em vista a natureza sazonal do seu trabalho, muitas vezes feito em casa ou em pequenas unidades de produção. As estratégias dos sindicatos para superar este obstáculo passaram muitas vezes pela integração das mulheres nas organizações masculinas pré-existentes, apoiando as suas reivindicações por melhores salários.

Totalmente dependentes de salários para assegurar as necessidades básicas de subsistência, as economias domésticas das famílias trabalhadoras estavam profundamente subordinadas à relação entre emprego/salário/preços. Durante o período que precede, acompanha e sucede a Primeira Guerra Mundial, os trabalhadores foram severamente afetados pelos ciclos económicos como consumidores. Os preços aumentavam lentamente desde a viragem do século, mas foi na segunda década do século XX que uma galopante inflação se refletiu negativamente e com especial acuidade sobre os salários industriais e as condições de vida dos trabalhadores. Desde então, as mulheres desempenharam um papel fundamental e inédito nos protestos laborais, tendo em conta a sua entrada nas fábricas, mas também o seu papel na economia familiar. No entanto, foi nas lutas em torno do consumo que as mulheres mais se destacaram como gestoras de redes de solidariedade informais que permitiram uma mobilização massiva das populações.

Nos países do sul da Europa, a comunidade territorial desempenhou um papel fundamental neste processo, permitindo a expansão da base social do movimento reivindicativo. As greves tiveram uma adesão excepcional nas vilas e bairros operários que cercavam as principais cidades. A unificação de diferentes protestos locais também beneficiou dos fluxos migratórios do campo para a cidade e dos centros urbanos para a periferia. Nesses movimentos, foram acionadas e transferidas redes familiares e comunitárias, que se tornaram num poderoso recurso organizacional para os protestos das populações6.

Nos primeiros anos de guerra, a repressão tinha parcialmente privado os artesãos e os trabalhadores qualificados dos seus recursos tradicionais de resistência, mas as redes sociais tecidas nos novos espaços urbanos tornaram-se a base da mobilização social. As designadas food riots assolaram toda a Europa desde o Inverno de 1915-1916. A ação coletiva foi dirigida especialmente contra o açambarcamento e a especulação sobre os preços dos géneros de primeira necessidade. A partir de 1917, os protestos contra o consumo tomaram uma dimensão política, quando começaram a articular-se com um novo surto de conflitos laborais. Em toda a Europa, uma onda de greves e manifestações eclodiram, envolvendo milhares de trabalhadores de vários setores e qualificações, devido à crescente carestia de vida (mais elevada do que o aumento dos salários), à agudização da disciplina nas fábricas e à repressão política. Os protestos e greves verificados após a Revolução de Outubro na Rússia culminaram num ciclo de agitação social global. Os parâmetros quantitativos refletem o surgimento deste movimento numa escala mundial, abrangendo todos os continentes. Mostram também que, na maioria dos países, o número de greves foi ultrapassado em comparação com a onda desenvolvida antes da guerra (1910-1913), bem como o número de grevistas, o âmbito das greves, a coesão e a força do movimento7.

A percepção colectiva de uma oportunidade
A primeira hipótese levantada neste artigo, e no que respeita ao desencadear do movimento, é que a crescente intervenção económica e social do Estado foi percepcionada coletivamente pelos trabalhadores como uma oportunidade para lutar por condições de vida e trabalho mais favoráveis. A economia de guerra serviu para enfatizar as contradições fundamentais do sistema capitalista e da economia de mercado, destacando os instrumentos políticos passíveis de utilizar para impedir a especulação e o açambarcamento. Através de legislação reguladora dos abastecimentos, os governos europeus induziram a mobilização das populações pressionando o Estado e com o objetivo de impor uma economia moral. No curso das lutas em torno das subsistências, um sentido de identidade foi forjado à escala das comunidades locais, em oposição a proprietários e a comerciantes. O Estado, no entanto, passou a ser visto não apenas como um inimigo, mas também como um instrumento.

Os estratos sociais mais atingidos pela carestia de vida percepcionaram nas medidas governamentais e na regulação dos preços, uma oportunidade para travarem a inflação desenfreada com o apoio legal. A ação coletiva foi essencialmente direcionada para as autoridades, com o objetivo de pressionar a regulamentação dos preços e da distribuição de alimentos. A ação direta surgiu apenas quando as populações foram confrontadas com a incapacidade das autoridades políticas em mitigar a crise de subsistências.

Um exame minucioso dos protestos relacionados com o consumo em Portugal sugere que estes não se traduzem em explosões súbitas e espontâneas de raiva e desespero. A resistência das populações contra a especulação e o açambarcamento integra um movimento com várias formas de luta – sessões de propaganda, comícios, representações ao governo, manifestações, greves, entre outros –, o que poderia ser classificado como um reportório de ação coletiva centrado no Estado8. Na maioria das vezes, e tendo em conta os relatórios da polícia, os manifestantes insurgiram-se contra as tentativas dos comerciantes venderem produtos acima dos preços oficiais ou a sua recusa em vender bens essenciais armazenados. Em muitos desses testemunhos, afirma-se que os bens foram pagos de acordo com os preços oficiais prescritos, e que não houve violência física significativa.

É útil lembrar o modelo proposto por John Bohstedt. No seu extenso estudo sobre food riots, observa-se que a ação coletiva ocorre somente em comunidades estáveis, normalmente em pequenas e médias cidades, com fortes redes sociais, seja horizontais – família, vizinhança e locais de trabalho; seja verticais – entre as pessoas, as elites e as autoridades. Bohstedt interpreta esse padrão como parte de um processo de negociação controlado dentro das comunidades, apenas possível quando se podia calcular os riscos e os limites dessa negociação em populações estabelecidas com fortes relações recíprocas9. As evidências empíricas recolhidas sobre as revoltas da fome, no contexto nacional, entre 1917 e 1920, sugerem que, durante a guerra, esses laços permitiram o sucesso da ação coletiva visando a apreensão e distribuição de mercadorias com a cumplicidade das autoridades administrativas e policiais.

Vários exemplos de relatórios policiais e das autoridades locais ilustram como as reivindicações dos trabalhadores e das populações criaram divisões no seio do Estado. A percepção coletiva de uma oportunidade também se relacionou com essas tensões, cada vez mais evidentes ao longo da conflagração. As autoridades locais e regionais mostraram uma tendência geral para rejeitar as diretrizes do governo central, cedendo à pressão das populações. Numerosas ameaças e demissões coletivas dos administradores e governadores aparecem na correspondência trocada entre poderes locais, regionais e centrais. A razão era invariavelmente a mesma: as subsistências. À medida que esta questão se agravava, as tensões institucionais transbordavam para o domínio público. Vários exemplos de desafio frontal de ordens superiores por parte das autoridades locais, no interesse das comunidades, foram identificadas nas séries de correspondência do Ministério do Interior.

O mesmo sucedeu no que se refere às autoridades policiais. Está bem documentada a participação da polícia civil na revolta mais dramática que ocorreu na região de Lisboa, a revolução da batata, em Maio de 1917, bem como a recusa por parte dos militares para reprimir alguns dos assaltos a padarias e mercearias durante o levantamento popular. A descrição de um destes episódios, no Poço do Bispo, é compreensível à luz da importância que os laços comunitários preservavam nos bairros operários periféricos da capital portuguesa, durante o primeiro quartel do século XX. Segundo o relatório policial, os guardas-fiscais não impediram o furto de bens alimentares pelas mulheres, que gritavam, «a Guarda está ao lado do povo!»10.

A segunda hipótese apresentada é que estas revoltas populares estiveram na origem de um novo ciclo de lutas laborais. Na verdade, a paralisação da construção civil que precipita a maior onda de greves já experimentada em Portugal, ocorreu exatamente no curso da revolução da batata. A federação nacional dos trabalhadores da construção civil, que liderou o movimento, organizou uma manifestação no centro de Lisboa, no mesmo dia em que os tumultos atingiram o seu clímax. Depois disso, durante a Primavera de 1917, as greves setoriais e gerais agitaram toda a região, em paralelo com novos levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida. Este ciclo de protestos intensificou-se durante o Verão, culminando com a paralisação dos serviços de telégrafos e postais, uma das primeiras greves a generalizar-se em todo o País, desde o Algarve até Bragança, segundo a correspondência dos governos civis para o Ministério do Interior, e que terminou com a mobilização militar dos grevistas.

As conquistas dos trabalhadores em termos salariais, todavia, eram rapidamente ultrapassadas, pela inflação. No final do ano, os dirigentes sindicais decidem então priorizar as lutas em torno do consumo, percepcionando uma oportunidade para ampliar a base social do movimento operário. Durante 1918, todos os esforços foram mobilizados para a organização da chamada greve geral de todos os consumidores, prevista para 18 de Novembro desse ano.

A apropriação social de recursos organizacionais

Embora a historiografia tradicional tenda a apartar os levantamentos populares contra os açambarcamentos e a carestia de vida do movimento organizado dos trabalhadores, as evidências empíricas apontam em sentido contrário, em especial nos estudos relativos especificamente às circunstâncias excepcionais da Primeira Guerra Mundial. Lester Golden e Temma Kaplan, ao analisarem os tumultos na Catalunha durante este período, observam, na aparente espontaneidade desses movimentos, uma organização altamente disciplinada, embora informal, que associa rituais antigos e linguagens da cultura popular tradicional e das comunidades de trabalho, com a ideologia e o dinamismo dos movimentos de massa modernos. Golden afirma que uma relação simbiótica foi criada entre a luta da classe trabalhadora moderna e os laços de solidariedade construídos nas comunidades locais, argumentando que os sindicatos, compartilhando o mesmo espaço com outras organizações de bairro, tendem a tornar-se instituições comunitárias11.

Lynne Taylor, revisitando vários estudos sobre food riots, defende que as revoltas do século XX tendem a assumir novas características, que as distinguem daquelas que foram extintas durante o século XIX. Normalmente, esses protestos ocorrem em reação à inflação dos preços dos produtos alimentares ou o custo de vida e, apesar de serem organizadas com base em redes sociais, as organizações políticas com uma relação estreita com as comunidades tendem a ser mobilizadas e as suas ideias e estratégias adaptadas12.

A hipótese a discutir nesta secção é que quer as organizações de trabalhadores quer as redes informais foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários para transformar os motins e as greves num movimento político único. Este processo só foi possível devido ao aumento da interação entre esses recursos organizacionais dentro das comunidades operárias. Em Portugal, a distribuição geográfica das greves, manifestações, sessões de propaganda e de outras iniciativas levadas a cabo pelos sindicatos, por um lado, e as lutas em torno dos meios de subsistência, por outro, prova que estes dois tipos de contestação estavam profundamente inter-relacionadas. Desde o início até ao refluxo, os epicentros de ambos foram as áreas urbanas industriais. Os estudos monográficos mostram como essa interação foi possível. As associações de classe foram envolvidas nas revoltas da fome e as redes informais foram mobilizadas para difundir e sustentar o movimento grevista.

Diversas fontes, desde os relatórios policiais à imprensa, relatam como o movimento organizado dos trabalhadores participou nos levantamentos populares, aparentemente espontâneos. De acordo com estas, os assaltos e tumultos eram planeados nas sedes das associações operárias, como as sociedades de socorros mútuos, as cooperativas e até mesmo as coletividades de cultura e recreio, espaços de agregação fundamentais nas comunidades operárias. Consequentemente, as medidas preventivas e repressivas foram direcionadas especialmente para o movimento associativo. O papel das redes sociais informais na sustentação de greves também é profusamente descrito na imprensa regional e nas outras fontes históricas acima mencionadas. Festas, festivais, performances e subscrições realizadas em bairros operários permitiram sustentar lutas extensas e prolongadas.

A propagação da agitação social deu origem à reorganização do movimento operário, que nos primeiros anos da guerra foi amordaçado pela repressão, mas também levou a uma mudança na sua táctica. A União Operária Nacional (UON) mudou oficialmente o seu foco para as lutas e protestos em torno do consumo. As conferências operárias de 1917, presididas pelo anarco-sindicalista Manuel Joaquim de Sousa, adoptaram uma tese a respeito do custo de vida. Esta questão foi discutida acaloradamente, decidindo-se que, dada a impotência e a incapacidade do governo para minimizar a escassez de alimentos, os próprios trabalhadores deviam defender os seus interesses diretamente, por meio dos seus sindicatos.

Na preparação da greve geral de todos os consumidores, em 1918, as associações de classe, e sobretudo as suas estruturas translocais, foram apropriadas pelos sindicalistas revolucionários para mobilizar as populações contra a especulação e os açambarcamentos. Foram organizadas muitas centenas de iniciativas: comícios, reuniões, protestos e distribuições de manifestos nas principais cidades e centros industriais – Lisboa, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Guimarães, Covilhã, Faro, Funchal, etc. – e profusamente entre os trabalhadores rurais – em Évora, Beja, Portalegre, Sousel, Estremoz, Ferreira do Alentejo, Coruche, Aljustrel, Redondo, Sines, etc. O resultado decepcionante da greve geral, para o qual contribuíram o armistício e a pneumônica, não minimiza a importância do movimento.

Essa mobilização sem precedentes também resultou em centenas de novas organizações, que emergiram com uma grande capacidade de mobilização nos primeiros meses de 1919, quando o Sidonismo foi derrotado.

A mediação entre as lutas em torno da produção e do consumo

O ciclo de protestos e lutas organizados pelos sindicatos contra a carestia de vida constituiu o maior processo de mobilização vivenciado em Portugal até à data, envolvendo tanto o movimento organizado dos trabalhadores como as redes sociais das comunidades operárias. Neste sentido, pode-se argumentar que a ala mais radical do movimento sindical assumiu o papel de intermediário entre a população em geral e os trabalhadores industriais. À medida que esses atores e os seus repertórios de ação coletiva interagiram, os sindicalistas revolucionários e os anarco-sindicalistas transformaram os protestos locais num amplo movimento político.

Os sindicalistas conseguiram construir um movimento de contestação à escala nacional, dando-lhe um carácter político, através da apresentação ao governo de um conjunto de exigências, que foram aprovadas em dezenas de comícios em todo o país. Este caderno reivindicativo, amplamente divulgado na imprensa, ilustra a base em que assentava a mediação entre as lutas em torno da produção e do consumo e também o papel do Estado nesse processo. Na verdade, foi a crescente intervenção deste último nas esferas económica e social que permitiu a articulação das aspirações dos trabalhadores organizados com as dos outros estratos sociais penalizados pelo aumento dos preços e a escassez de alimentos. Era exigido ao Estado a regulamentação legal do trabalho das mulheres e crianças ou do dia oito horas, entre outras regulamentações laborais, ao mesmo tempo que se propunha que os municípios adquirissem bens na fonte para venda direta ao consumidor, eliminando os comerciantes. Também era proposto que as comissões criadas para essa finalidade incluíssem representantes das associações de classe.

Durante 1919 e 1920, juntamente com grandes movimentos em torno do consumo, as duas principais cidades e suas áreas de dependência foram abaladas por amplos movimentos grevistas, que se transformaram sistematicamente em paralisações generalizadas, tendo a solidariedade como mote. Os protestos multiplicaram-se e intensificaram-se de Norte a Sul do País, resultando em vitórias muito significativas. Os trabalhadores da cortiça, por exemplo, conquistaram a jornada de trabalho de oito horas e um aumento salarial de 40%. As lutas dos ferroviários foram particularmente dramáticas devido à sua abrangência, impacto e duração e também por causa dos meios de repressão implementadas pelo governo.

A articulação entre a ação coletiva conduzida pelas associações de classe e a luta das populações contra a especulação e os açambarcamentos é evidente à escala local, onde são criadas formas de luta híbridas, como greves gerais locais contra os açambarcamentos, a apreensão e distribuição de géneros pelas associações de classe, entre outros. Também é verificável, em estudos monográficos, que durante estes movimentos os sindicatos expandem a sua influência entre as comunidades operárias, possibilitando uma participação sem precedentes do proletariado fabril, e especialmente das mulheres, na onda greves que marcou os anos de 1917-1920. As mulheres, geralmente ausentes das associações formais, devido à divisão sexual do trabalho que lhes deu os empregos mais precários e desqualificados, conseguiram mobilizar as redes de entreajuda que geriam nos espaços de residência.

A articulação e radicalização das lutas populares com as dos trabalhadores organizados justificam os rótulos atribuídos ao período pós-guerra em diferentes países, o biénio rosso em Itália ou os chamados anos da ameaça vermelha em Portugal. Em paralelo com a ampliação do processo de mobilização, foi a sua politização que assustou as elites. Na comemoração do dia dos trabalhadores, em 1919, o âmbito geográfico da mobilização ampliou-se. Ainda mais manifestações do que em 1918 tiveram lugar por todo o País, em comunidades operárias em meio urbano e entre os trabalhadores rurais, com o mote dominante da luta contra a carestia de vida. Em Lisboa, a União Operária Nacional mobilizou 30.000 pessoas, uma manifestação monumental para a época, exigindo a «socialização gradual e progressiva da terra e da indústria». Em todos os bairros e vilas operários, os comícios terminavam com vivas aos trabalhadores de todo o mundo e à Revolução Russa13.

Conclusão

Entre 1917 e 1920, as tendências de longo termo que transformavam o mundo do trabalho industrial e o movimento operário foram extraordinariamente aceleradas e reforçadas devido à conjuntura excepcional da Primeira Guerra Mundial. Em Portugal, desde a última década do século XIX que, graças a uma reorganização do trabalho e do espaço urbano, se assistia a um inédito desenvolvimento do movimento e da organização dos trabalhadores, bem como à sua cada vez maior inserção nas comunidades operárias. No entanto, o processo de interação entre as redes sociais pré-existentes das famílias trabalhadoras e o repertório de ação coletiva dos trabalhadores industriais foi visivelmente induzida pelos efeitos económicos, sociais, políticos e psicológicos da guerra.

Estudos transnacionais têm sublinhado o facto de que, num período como 1914-1918, quando os canais tradicionais de protesto foram bloqueados ou atrofiados, outros tipos de relações entre os atores sociais foram chamadas a desempenhar o papel das organizações políticas. Em muitos países europeus, onde os socialistas e líderes sindicais foram cooptados para os governos ou para a colaboração com os empregadores, surgiram novos veículos para as reivindicações dos trabalhadores. O movimento de delegados sindicais e comissões de fábrica que se espalhou em todos os países beligerantes significou a emergência de novos atores na organização da ação coletiva ao nível da base. Estas novas formas de organização explicam porque é que, não obstante a opção colaboracionista de boa parte dos líderes socialistas e sindicais durante a guerra, em 1917 tem início a maior onda de greves de sempre14.

Este ciclo de agitação social, que abalou a sociedade portuguesa entre 1917 e 1920, também foi organizado por ativistas de base, envolvendo associações de trabalhadores comunitárias, incluindo sindicatos e redes sociais informais que cruzavam os bairros operários de então. Este processo relaciona-se com o facto de, desde o final do século XIX, os ativistas sindicais se terem esforçado por organizar as classes trabalhadoras ao nível local, superando as hierarquias entre trabalhadores qualificados e desqualificados.

O processo de mobilização que marcou os últimos anos da guerra e os primeiros do pós-guerra deu origem a uma nova identidade, o proletariado, como o designou A Batalha, rompendo antigas fronteiras entre o ofício e a comunidade. A articulação dos movimentos em torno da produção e do consumo assume características difíceis de tipificar, sugerindo que os trabalhadores, neste período, desenvolveram um repertório de ação coletiva que, como os laços de solidariedade germinados dentro e fora da fábrica, amalgamava as novas formas de luta organizada com as velhas formas de resistência.

Em conclusão, ao eleger as reivindicações dos consumidores como prioritárias, a União Operária Nacional conseguiu estruturar um movimento nacional a partir de levantamentos de carácter local, organizados por redes sociais informais e associações comunitárias. A ala mais radical do movimento operário – o sindicalismo revolucionário – foi capaz de disseminar os protestos por todo o País, dando-lhe um caráter translocal e político. A fundação da Confederação Geral do Trabalho, em Setembro de 1919, é o resultado mais evidente deste processo. Pode-se argumentar que a dinâmica de conflito induzida pelos efeitos econômicos e sociais da Primeira Guerra Mundial teve um papel crucial no alargamento, politização e estruturação nacional do movimento operário português.

NOTAS:
1 McAdam, Adam; Tarrow, Sidney; Tilly, Charles (2001). Dynamics of Contention. Cambridge: University Press.
2 Entre outros Hanagan, Michael (1980). The logic of solidarity: artisans and industrial workers in three French towns, 1871-1914. Urbana: University of Illinois Press; Perrot, Michelle (1986). «On the formation of the French working Class». In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Sewell, William H. (1986). «Artisans, factory, and class formation of French working class, 1789-1948». In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Hanagan, Michael e Stephenson, Charles (1986). Confrontation, class consciousness and the labor process: studies in proletarian formation. Westport, Conn.; London: Greenwood Press; Breuilly, John (1994). Labour and liberalismo in nineteenth-century Europe: essays in comparative history. Manchester: Manchester University Press; Pereira, Miriam Halpern (2001). Diversidade e Assimetrias: Portugal nos séculos XIX e XX. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; Keith Mann (2010), Forging political identity: silk and metal workers in Lyon, France, 1900-1939. New York; Oxford: Berghahn.
3 Entre muitos outros Ramela, Franco (1977). «Famiglia, terra e salario in una comunità tessile dell’Ottocento», Movimento operaio e socialista, XXIII/1 pp. 7-44; Leslie Page Moch and Louise A. Tilly (1985), «Joining the Urban World: Occupation, Family, and Migration in Three French Cities». Comparative Studies in Society and History, 27/1 (Jan., 1985) pp. 33-56; Perrot, Michelle (1986), «On the formation of the French working Class». In: Katznelson, Ira e Zolberg, Aristides, Working-class formation, In: Katznelson, Ira and Zolberg, Aristide (eds.) – Working-Class Formation: Nineteenth-Century Patterns in Western Europe and the United States. Princeton: Princeton University Press; Tilly, Louise (1992), Politics and class in Milan: 1881-1901. Oxford: University Press; García, Agustín Galán (1996), «Estratégia Familiar y mercado de trabalho en Rio Tinto, 1873-1936». In: Alonso, Santiago Castillo (coord.) – El trabajo a través de la historia: actas del IIº congreso de la Asociación de Historia Social. Córdoba, Abril de 1995. Madrid: Asociación de Historia Social, pp. 420-423; Flemming Mikkelsen, Working-class formation in Europe: in search of a synthesis. Disponivel em linha: http://www.iisg.nl/publications/mikkelse.pdf; Borderias, Cristina (2007). Género y políticas del trabajo en la España contemporânea: 1836-1936. Barcelona: Publicacions i Edicions de la Universitat de Barcelona.
4 Entre muitos outros, Lequin, Yves (1977). La formation de la classe ouvrière régionale. Les Ouvriers de la région lyonnaise (1848-1914). Lyon: Presses universitaires de Lyon; Hanagan, Michael (1980). The logic of solidarity: artisans and industrial workers in three French towns, 1871-1914. Urbana: University of Illinois Press; Gribaudi, Maurizio (1987). Itinéraires ouvriers: espaces et groupes sociaux à Turin au début du XX siècle. Paris: Editions de l’Ecole des hautes études en sciences sociales; Vidal, Frédéric (2006). Les habitants d’Alcântara: Histoire sociale d’un quartier de Lisbonne au début du 20éme siècle. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion; Smith, Angel (2007). Anarchism, Revolution and Reaction: Catalan labour and the crisis of the spanish State, 1898-1923. New York: Berghahn; Bañales, José Luis Oyon (2007), «La ruptura de la ciudad obrera y popular. Espacio urbano, inmigración y anarquismo en la Barcelona de entreguerras, 1914-1936», Historia Social, n.º 58.
5 Entre muitos outros Eric J. Hobsbawm (1984), «The New Unionism in perspective». In: Workers: worlds of labour. New York: Pantheon Books; Breuilly, John (1994), Labour and Liberalism in nineteenth Europe: essays in comparative history. Manchester: Manchester University Press; Antonioli, Maurizio; Ganapini, Luigi (1995), I sindacati occidentali dall’800 ad oggi in una prospettiva storica comparata. Pisa: Biblioteca Franco Serantini; Keith Mann (2010), Forging political identity: silk and metal workers in Lyon, France, 1900-1939. New York; Oxford: Berghahn.
6 Entre muitos outros Spampinato, Rosario (1977). «Il movimento sindacale di una società urbana meridionale. Catania 1900-1914», Archivio storico per la Sicilia orientale, a. LXXIII; Procacci, Giovanna (1989). «Dalla rassegnazione alla rivolta: osservazione sul comportamento popolare nella prima guerra mondiale», Ricerche Storiche, Ano XIX, n.º 1 (Gennaio-Aprille) pp. 46-111; Tilly, Louise (1992), Politics and class in Milan, 1881-1901, Oxford: University Press; Musso, Stefano (1999), «Gli operai nella storiografia contemporânea. Rapporti di lavoro e relazioni sociali», Annali, XXXIII, pp. IX-XLVI; Borderias, Cristina (2007), Género y políticas del trabajo en la España contemporânea, 1836-1936. Barcelona: Edicions Universitat; Stovall, Tyler (2012), Paris and the spirit of 1919: consumer struggles, transnationalism and revolution Cambridge: Cambridge University Press.
7 Entre outros Leopold Haimson and Giullio Sappeli (1992), Strikes, social conflict and the First World War. Milão: Fondazione Giangacomo Feltrinelli; Chris Wrigley (1993), Challenges of Labour: Central and western Europe 1917-1920. New York: Routledge.
8 Linden, Marcel Van der, «Introduction». In: Jan Kok (ed) – Rebellious Families: household strategies and collective action in the nineteenth and twentieth centuries. New York; Oxford: Berghahn. pp. 7-9.
9 Bohstedt, John (1983). Riots and Community Politics in England and Wales 1790-1810. Harvard: University Press.
10 ANTT. Ministério do Interior: Direcção Geral da Administração Civil e Política. Correspondência recebida. Relatório dos acontecimentos em Poço do Bispo, Caixa 45.
11 Golden, Lester (1985). The Women in Command. The Barcelona Womens’ Consumer War of 1918. In: UCLA Historical Journal, 6, pp. 5-32.
12 Taylor, Lynne (1996). Food riots revisited. In: Journal of Social History, 30/2. http://www.jstor.org/pss/3789390 (retrieved: 2011).
13 Diversos relatórios da UON publicados na Batalha durante Maio de 1919.
14 Sirianni, Carmen. «Workers Control in Europe». In: Cronin, James; Sirianni, Carmen (1983). Work, Community, and Power. The experience of labor in Europe and America, 1900-1925. Philadelphia: Temple University, pp. 254-269.

Fonte: PEREIRA, Joana Dias. O ciclo de agitação social global de 1917-1920. Ler História, n. 66, 2014, p. 44-55.


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