Diogo
Alvares, o Caramuru, e a Fundação Mítica do Brasil
Janaína
Amado
Obs: os grifos e as imagens aqui colocadas foram escolhidas por mim, para complementar a obra da autora.
Um
tema recorrente da historiografia, da literatura e do imaginário, brasileiros é
a história de Diogo Alvares, o Caramuru, um dos primeiros habitantes brancos do
Brasil, aqui, chegado, provavelmente como náufrago, no início da
colonização portuguesa. E certo que Diogo, talvez um minhoto de Viana do Castelo,2
residiu na Bahia durante muitos anos (entre três e seis décadas, não se sabe),
parte dos quais sem contato, ou com contato esporádico, com os portugueses. E
possível que nessa época se tenha relacionado com corsários franceses que então
rondavam as costas brasileiras.
Retrato hipotético de Diogo Álvares, o Caramuru (1475?-1557?). |
Diogo
Alvares aprendeu línguas e costumes dos índios, parece que se envolveu em
guerras tribais, segundo algumas fontes chegou a ser respeitado pelos chefes
indígenas, e comprovadamente deixou descendência, seja das "muitas mulheres"
indígenas que lhe atribuem certos cronistas, seja da índia Paraguaçu, filha de
um grande guerreiro e chefe tupinambá da Bahia. Teve filhos, que também se
casaram e lhe deram netos.
Segundo
a tradição, conseguiu impor-se definitivamente perante os indígenas
desde que disparou para o ar uma arma de fogo, desconhecida dos índios, os
quais, muito assustados, se prostraram a seus pés, chamando-o desde então, ou
pouco mais tarde, "Caramuru", nome para o qual foram atribuídos muitos
significados segundo a narrativa que se consulta: filho do fogo, filho do trovão,
homem do fogo, dragão do mar, dragão que o mar vomita, peixe dos rios brasileiros
semelhante à moréia, grande moréia, rio grande, europeu residente no Brasil,
aquele que sabe falar a língua dos índios3
Sem
concordar quanto à data, algumas fontes relatam uma viagem de Caramuru e
Paraguaçu à França, em navio francês que aportara às costas brasileiras, durante
o reinado de Henrique II e Catarina de Médicis: ali Paraguaçu teria sido
batizada como "Catarina", em homenagem, segundo alguns, à rainha dos franceses,
segundo outros, a Catarina de Portugal.4 Quando chegaram à Bahia as primeiras
autoridades civis portuguesas como o donatário Francisco Pereira Coutinho e o
primeiro governador-geral, Tomé de Souza, este em 1549 -, e os primeiros
jesuítas, como o padre Manuel da Nóbrega, Diogo Alvares comprovadamente os
auxiliou, prestando-lhes informações preciosas sobre a terra e a gente do
lugar, além de repetidos serviços como lingoa (intérprete) e mediador junto aos
índios.
Seu
nome, os serviços que prestou à Coroa e à Igreja e sua descendência foram
aplaudidos na correspondência civil e religiosa enviada à época da Bahia; Tomé
de Souza recompensou-o com mercês e recomendações sobre sua pessoa ao rei, e o
padre Manuel da Nóbrega, que com ele conviveu, o elogiou em mais de uma carta;
ao morrer, Diogo deixou metade de sua terça à Companhia de Jesus. E provável
que, após o início da colonização sistemática, o Caramuru tenha vivido tanto
nos núcleos urbanos quanto entre os indígenas. Tudo indica que faleceu na
Bahia, havendo dúvidas quanto à data: teria sido no ano de 1557.5
Poucos
personagens da história do Brasil têm merecido tantas, tão antigas e duradouras
referências, de tão variadas procedências. Desde o século, XVI a história de
Diogo Álvares, o Caramuru, vem sendo contada e recontada por cronistas e
autoridades civis e religiosas; desde o XVII, também por historiadores, militares,
poetas populares e curiosos; desde o XVIII, juntaram-se os poetas eruditos; no
XIX, o tema conheceu rigorosa revisão histórica, além de ter ficado conhecido
como "Caramuru" o Partido Restaurador, o qual, após a abdicação de
dom Pedro I, defendeu o retorno deste ao trono brasileiro; desde pelo menos o
início do século XX, o assunto tem servido a poetas populares, teatrólogos,
autores de livros didáticos, romancistas, jornalistas6.
Embora
não tenha mais sido objeto de livros inteiros, o tema continua atual, pois vem
sendo referido em publicações contemporâneas do Brasil e de Portugal, algumas
bastante diferentes entre si? Os autores das narrativas sobre o Caramuru foram brasileiros
e portugueses, além de franceses e ingleses, tendo sido sua produção original
editada tanto no Brasil quanto em Portugal, França, Inglaterra e outros países.8
Não
apenas a linguagem escrita se ocupou do personagem: a iconografia sobre o
Caramuru é muito vasta e rica em detalhes desde o século XVI, constando de
gravuras, desenhos, óleos, aquarelas, afrescos, esculturas etc., relacionados
aos textos escritos ou - o que é muito interessante - deles independentes. São
objetos favoritos dessa iconografia (um belo tema de estudo, ainda inexplorado)
as cenas, de Diogo Alvares disparando a arma perante os índios, de seu
casamento em França com Paraguaçu, e de uma índia, Moema, atirando-se no mar
atrás de seu amado Caramuru, que partia para a França. No Brasil,
especificamente na Bahia, há ainda outra importante fonte de referência sobre
Diogo Alvares: trata-se da tradição oral, atestada desde pelo menos a primeira
metade do século passado.
Moema. Victor Meirelles, 1866. Quadro inspirado nas histórias do Caramuru. |
São
poesias e prosas populares, encontradas na região do Recôncavo Baiano e em Cruz
das Almas, anotadas ou referidas por estudiosos. Não por acaso, em 1999, durante
as comemorações dos 450 anos de fundação da cidade de Salvador, os órgãos
públicos encarregados de festejar a data escolheram representar, com atores
vestidos em trajes de época, a chegada à terra do governador Martim Afonso de
Souza e comitiva, recebidos pelos índios e por ninguém menos que, Diogo
Alvares, o Caramuru.
Finalmente,
o personagem tornou-se tão popular no Brasil no presente século que, além de
constar de obras de historiadores, romancistas, poetas, jornalistas, dos livros
escolares, da tradição oral etc., foi também, durante a década de 1950, tema de
uma popular marchinha de carnaval, cujo refrão repetia: "Caramuru/ Uhuh/
Caramuru/ Uhuh/ Filho do fogo/ Neto do trovão...".
O
Caramuru foi ainda cantado, representado e retratado em alas, destaques e
carros alegóricos de escolas de samba cujos enredos versavam sobre
"assuntos históricos" correlatos, tais como o Brasil nas cortes de
França, o descobrimento do Brasil, o povoamento brasileiro, as três raças que
formaram o Brasil... Por fim, quando brilham nos céus do Brasil estrelas
coloridas, mandalas e lindas figuras, nosso personagem também é, de certa
forma, lembrado, pois a mais conhecida fábrica brasileira de fogos de artifício
chama-se, justamente, "Caramuru".
Portanto,
a história do Caramuru tem-se constituído, desde o século XVI, em uma das
narrativas preferidas de brasileiros, portugueses e pessoas de outras
nacionalidades quando querem falar a respeito do Brasil e estabelecer uma,
origem para esse país. E uma antiga história arraigada na cultura brasileira, importante
para a formação de uma certa idéia de nação, que tem transitado com facilidade
do erudito ao popular e à comunicação de massas, da academia às ruas, da
prosa à poesia, do oral ao escrito e ao pictórico, da tradição à inovação, fortemente
disputada pela história, pela literatura e pela tradição popular.
Surpreender
momentos dessa fascinante trajetória de construção da memória coletiva sobre o
Caramuru, por meio da análise de algumas das muitas narrativas compostas sobre
ele, será nosso objetivo, daqui em diante. No presente texto trabalharemos
apenas com narrativas escritas, eruditas, publicadas em forma de livro ou
artigo, que se mostraram importantes para a construção da memória coletiva. Na
conclusão, analisaremos as relações entre história e literatura nas narrativas
e a questão do Caramuru como mito.
O Caramuru dos
primeiros cronistas e do poeta popular
Excetuando-se
os poucos documentos de época, escritos por autoridades, portuguesas, civis e
religiosas, que conviveram diretamente com Diogo Álvares, a primeira narrativa
conhecida a tratar da história do Caramuru foi Notícia do Brasil, de Gabriel
Soares de Souza, cujas cópias manuscritas circularam na Europa a partir de
1587.10 Relato minucioso, fruto da observação direta do autor, que viveu muitos
anos no Brasil, contém descrições pormenorizadas do território, recursos,
fauna, flora e gente brasileira, bem como de acontecimentos do início da
colonização lusa. Nessa fonte preciosa da história do Brasil que, dependendo da
edição, tem cerca de 260 páginas impressas, o Caramuru é personagem
secundaríssimo, referido apenas em duas passagens que, somadas, não chegam a
preencher uma página.
A
primeira referência surge em um enredo cujo protagonista é o donatário inaugural
da Bahia, Francisco Pereira Coutinho, que, após várias derrotas frente aos
índios, se refugiara em Ilhéus; chamado de volta pelos indígenas, Pereira
decidira retornar à povoação que fundara na Bahia, Vila Velha, levando , num
dos navios "Diogo Alvares, de alcunha o Caramuru, grande língua do gentio".
A armada, entretanto, naufragou, tendo todos (inclusive Coutinho), perecido,
no mar ou devorados pelos índios; o único a escapar foi "Diogo Alvares,
com sua boa linguagem".11
A
segunda referência é um pouco mais extensa: quando Tomé de Souza chegou à Vila
Velha, aí encontrou o intérprete Diogo Álvares, que, após a morte de
Coutinho, se recompusera com os índios, vivendo com "cinco genros e outros
homens [...], com os quais, ora com armas, ora com boas razões, se foram
defendendo e sustentando até a chegada de Tomé de Souza, por cujo mandado Diogo
Correia aquietou o gentio e fez dar a obediência ao governador [...] o qual
gentio viveu muito quieto e recolhido [...] trabalhando na fortificação da
cidade, a troco do resgate que lhe por isso davam".12 Gabriel Soares,
portanto, nada revela sobre a história pregressa de Diogo, nem como chegou ao
Brasil, limitando-se, em sua prosa contida, a registrar a presença do eficiente
intérprete que vivia entre índios e colonizadores, o fato de ter sido salvo da
morte por conhecer a língua indígena, o apoio que deu às autoridades portuguesas
na pacificação dos índios e a descendência que deixou.13
Em
1663 foi publicada em Lisboa a Chronica da Companhia de Jesus do Estado do
Brasil, do padre jesuíta Simão de Vasconcellos, o primeiro livro a estender-se
sobre a "breve história notável do celebrado Diogo Álvares".14 Em quatro
páginas, inseridas na história do primeiro donatário da Bahia, Francisco Pereira
Coutinho, o jesuíta diz em resumo o seguinte:
Diogo
Alvares (não grafa o sobrenome "Correia") nasceu em Viana, de "gente
nobre"; embarcou após 1530, para o Brasil ou para a Índia, sofrendo
naufrágio no litoral da Bahia; feito cativo com outros que escaparam ao mar e à
antropofagia, dedicou-se com constância a retirar os despojos do navio (entre
os quais pólvora e arcabuzes), e os índios "contentaram-se dele e
assentaram entre si que aquele ficasse com vida"; consertado o arcabuz,
disparou um tiro para cima, matando provavelmente uma fera ou uma ave, o que
ocasionou grande medo aos índios, "dizendo a vozes que era um homem de
fogo que queria matá-los"; lutou do lado daqueles índios contra outros,
ganhando, com seu arcabuz, fama "por todos os sertões, e foi tido por homem
portentoso [...] e aqui lhe acrescentaram o nome, chamando-lhe o grande Caramuru
[...]";
assentou
casa em Vila Velha e "teve aqui grande família e muitas mulheres [...]
houve muitos filhos e filhas, que pelo tempo foram cabeças de nobres
gerações"; embarcou para a França numa nau carregada de pau-brasil, levando
consigo "a mais querida das suas mulheres, dotada de formosura e Princesa
daquela gente [...] não sem grande inveja das que ficaram"; o casal foi recebido
pelos reis de França, a mulher foi batizada, recebendo "por nome, Catarina
Alvares, sendo o do Brasil Paraguaçu", e ambos foram casados;
os
reis franceses não consentiram que Diogo voltasse a Portugal, mas este
conseguiu enviar a dom João III notícias sobre o Brasil e sobre a necessidade
de povoar este país; ele e Catarina retornaram à América com duas naus
carregadas e com artilharia, após se comprometerem a encher as naus francesas
de pau-brasil, o que fizeram; Diogo prosperou, tornando-se "senhor de muitos
escravos"; ajudou uma nau castelhana que naufragara, recebendo mais tarde
uma carta de agradecimento do imperador Carlos V; durante o episódio deste
naufrágio, Catarina pediu a Diogo "que tornasse a buscar-lhe uma mulher,
que viera na nau, e estava entre os índios, porque lhe aparecia em visão, e lhe
dizia que a mandasse vir para junto a si, e lhe fizesse uma casa";
após
muitas tentativas, encontrou-se "uma imagem de Nossa Senhora que um índio
recolhera na praia e tinha lançado ao canto de uma casa"; Catarina
identificou esta imagem com a da visão; a imagem recebeu uma casa e foi
"honrada com o título de Nossa Senhora da Graça, enriquecida de muitas
relíquias e indulgências, que então mandou o Sumo Pontífice", passando à
guarda dos beneditinos; os filhos e filhas "destes dois devotos da
Senhora" foram batizados por religiosos, casando-se várias filhas com fidalgos
(constam seus nomes) e "deste tronco procederam muitas das melhores e mais
nobres famílias da Bahia";
"donde
dizemos que Francisco Pereira Coutinho [donatário da Bahia] foi o primeiro
povoador por data d'EI-Rei, e , direito. Real; porém Diogo Alvares foi o
primeiro por data dos senhores da terra naturais, o direito das gentes".15
Frontispício da primeira edição do tomo I da Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, escrita pelo padre Simão Vasconcelos, e publicada em 1663. |
Todos
os principais elementos, portanto, que mais tarde caracterizariam as diversas
versões da história do Caramuru estão já contidos nessa narrativa de Simão de
Vasconcellos: a viagem a partir de Viana, o naufrágio, o tiro para o ar, o
respeito dos índios, o nome Caramuru, o amor de Paraguaçu, a ida à França, a inveja
das mulheres que ficaram no Brasil, o batismo e o casamento, o retorno ao
Brasil, o naufrágio do navio espanhol, a visão de Paraguaçu, a descendência de
Caramuru, o apoio deste às autoridades portuguesas no trato com os índios.16
Pode-se
dizer que a narrativa do Padre Vasconcellos constitui O "núcleo duro",
a matriz, o centro do enredo do Caramuru.17 Daí em diante muito pouco se criou
a respeito do assunto, quase tudo se transformou. Nenhum elemento ou evento
realmente novo foi acrescentado ao tema, ocorrendo apenas transformações. Essas
transformações - verdadeiras alquimias - foram geradas por diversos, e muitas
vezes simultâneos, mecanismos sociais ou especificamente narrativos,
tais como: rearranjos de partes da história, ressignificações de seus elementos,
atualizações de estilo, ênfases em diferentes passagens, diversidade de
audiências a serem alcançadas, diferenças de pontos de vista sobre o tema, múltiplos
usos sociais para a história, variedade de meios por que foi divulgada
etc.
E
interessante notar que, no mesmo século XVII que fixou o duradouro núcleo duro
da história do Caramuru, surgiu também, pela primeira vez, uma versão
dissidente, satírica, da história. Seu autor foi ninguém menos que o poeta Gregório
de Matos, o "Boca do Inferno", que, com o talento e a ironia
habituais, utilizou-se do Caramuru para explorar um dos seus temas favoritos: a
sátira às pretensões de fidalguia da elite baiana, uma elite mestiça que
gostava de autoproclamar-se branca.
Em
seu poema, Gregório de Matos registra a acepção que a palavra "caramuru"
assumira já no século XVII: a de sinônimo de "europeu residente no
Brasil".18 Esta acepção revelou-se tão disseminada e duradoura que,
duzentos anos depois, no século XIX, foi atribuída ao Partido Restaurador, o
qual, após a abdicação de dom Pedro I, defendia o retorno deste ao trono
brasileiro. O Partido Restaurador tinha entre seus membros muitos europeus
residentes no Brasil, ou seja, muitos caramurus, e por isso foi apelidado, pelo
povo e pela imprensa, de "Caramuru".
Gregório
de Matos ridiculariza impiedosamente a pretensão dos "principais" da
terra à brancura de pele (com todas as conseqüências sociais favoráveis que
disso lhes adviria), demonstrando que os pretensos "caramurus"
descendiam tanto de negros - com seus vinhos de caju, seus pilões, suas
muquecas e carurus - quanto de índios. Em vez de ser, portanto, "caramurus",
os principais do Brasil eram em verdade "paiaiás", isto é, pajés,
ainda por cima misturados com sangue negro.
Além
disso, o tão falado Caramuru, o personagem histórico resgatado pela elite para
confirmar sua pretensão à brancura de pele, para Gregório de Matos não teria
passado de um "marau", isto é, de um bajulador esperto. Diz o poema, significativamente
intitulado "Aos principais da Bahia chamados de Caramurus":
Há
causa como ver um Paiaiá
Mui
prezado de ser Caramuru!
Descendente
de sangue de Tatu!
Cujo
torpe idioma é cobé pá!
A
linha feminina é carimá
Moqueca,
pititinga e caruru!
Mingau
de puba, e vinho de caju
Pisando
num pilão de Piraguá!
A
masculina é um Aricobé
Cuja
filha Cobé um branco Pai
Dormiu
no promontório de Passé
O
Branco era um marau, que veio aqui!
Ela
era uma Índia de Maré
Cobé
pá, Cobé Paí.19
Pela
pena de Gregório de Matos o Caramuru entrou pela primeira vez para a
literatura, que, conforme se verá, será terreno fértil para a fixação, ampliação
e divulgação da história. Contudo, a original vertente inaugurada por Gregório
de Matos - a da sátira impiedosa, que lembra o tom de alguns modernistas, especialmente
o de Macunaíma -, não predominará na construção da história do Caramuru. Ao
contrário, nesse caso, assim como aconteceu com outras partes de sua obra,
Gregório de Matos permaneceria voz isolada, solitário grito da consciência
social do poeta.
Caramuru como objeto
da história
Nova narrativa acerca do Caramuru, publicada em 1730, foi inserida em um livro de grande prestígio no século XVIII e início do XIX: História da América Portugueza, de Sebastião da Rocha Pitta.20 Escrita em estilo barroco, a obra descreve com pormenores os "mais expressivos feitos" da colonização portuguesa, a geografia e os recursos do país; seguindo o costume em alguns livros do gênero, não apresenta fontes, bibliografia ou notas de rodapé nem se preocupa em comprovar a veracidade do que afirma. A obra de Rocha Pitta tornou-se paradigma do conhecimento da história do Brasil e modelo de narrativa histórica no país, mantendo vivo o Caramuru ao atualizar estilo e enredo segundo o gosto e as preocupações do público erudito de então.
Frontispício da História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, 1730. |
Rocha
Pitta antecipa a história do Caramuru em cerca de quinze anos, desvinculando-a
da saga do primeiro donatário da Bahia e relacionando-a à expedição exploradora
de Cristóvão Jacques.21 A grande novidade dessa narrativa é o protagonista, não
mais Caramuru, mas Paraguaçu. Essa "notável matrona", "filha do
principal da província da Bahia", tem desde logo esclarecido seu
importante papel para a história: "foi instrumento de que mais facilmente
se dominasse a Bahia"; "e seria desatenção", explica o autor,
"excluir deste teatro tão essencial figura".22
Paraguaçu
vivia entre os seus até chegar de Viana o nobre náufrago Diogo Álvares, cujas
primeiras aventuras são as mesmas narradas pelo Padre Simão de Vasconcellos.
Dada por seu pai, como esposa, a "Caramuru-assu [...] o mesmo que Dragão
que sai do mar" - enquanto outras índias foram dadas a ele como concubinas
-, Paraguaçu "nesta bárbara união viveu algum tempo", até receber em
França, "em soleníssimo ato, com assistência de muitos prín- ,
cipes", o batismo, e ser, depois, casada.
De
volta ao Brasil "Catarina Álvares [...] corno senhora destes gentios fez
que com menor repugnância se sujeitassem ao jugo português". Durante o
naufrágio do navio espanhol, ela teve a visão conhecida, com as conseqüências
já sabidas. Catarina e Diogo deixaram descendentes que "fizeram
nobilíssimas famílias". Rocha Pitta a seguir passa a narrar "a vinda
do glorioso Apóstolo S. Thomé anunciando a doutrina católica, não só no
Brasil, mas em toda a América".23
Rocha
Pitta repetiu, com nova roupagem, todos os eventos do enredo tecido
pelo padre Simão de Vasconcellos, cuja obra, à época, já se tornara rara.24 Ao
fazê-lo, contribuiu para a divulgação deste enredo, num momento em que ele, concorrendo
já com muitas outras poderosas memórias, talvez corresse o risco de diluir-se
no esquecimento. O prestígio da obra de Rocha Pitta e a deferência com que foi
tratada pelos eruditos conferiram à história de Paraguaçu e Caramuru a
autoridade do historiador, legitimando-a frente às audiências. A
par disso, ao promover a rotação de protagonistas, trazendo Paraguaçu-Catarina
para o centro do seu teatro, Rocha Pitta inaugurou uma nova maneira de celebrar
a colonização portuguesa e os laços de continuidade Portugal-Brasil: valorizar
o papel que nela tiveram os brasileiros, começando por aqueles que, como
Paraguaçu, eram autoctones.25
Três
décadas depois em 1761 foi editado o Orbe serafico novo brasilico, de frei Antônio
de Santa Maria Jaboatão.26 O autor esclareceu ser seu objetivo escrever a
história dos franciscanos no Brasil, tarefa já encomendada, sem sucesso, a dois
outros padres. Ao contrário de Rocha Pitta, Jaboatão revela suas fontes: as anotações
deixadas pelos dois antecessores e "papéis espalhados pelos arquivos dos
conventos de toda a Província e seus Cartórios", aos quais teve acesso na qualidade
de "companheiro e Secretário do P. Provincial".
Frontispício de uma edição de 1859 do Novo Orbe Serafico Brasileiro do frei Antônio Jaboatão. |
Curiosamente,
afirma que tais fontes, por conterem "tão pouco que registrar [...] mais
nos serviam de embaraço ao discurso do que de norte e luz para a história",
acrescentando "outro inconveniente grave" à história que escrevia, na
qual pretendia "compreender não só o passado, mas também o presente, o moderno
e o antigo": "no antigo, por falta de notícias, é perigoso o exame, e
no moderno, pelos respeitos, mui arriscada a expressão". Explica ainda que
não cita bibliografia ("citação de autores") ao tratar da história
dos franciscanos no Brasil porque é o primeiro a escrevê-la, mas o faz, ao
abordar a história das capitanias; quando discorda dos autores ou "da
tradição", sempre aponta "os princípios e os motivos para o fazermos
assim".27
Frei
Jaboatão afirma ser a história do Caramuru já conhecida "pelo vulgo"
e por "todos os escritores destas conquistas". Mas ele também dela se,
ocupará, por ter sido Diogo Álvares Correia o "primeiro povoador" da
terra (ali chegado, portanto, antes do primeiro donatário da Bahia) e porque
descobriu a respeito "um antigo Manuscrito [...] no Arquivo do Convento da
mesma Bahia, e que [...] mostra ser escrita por pessoa que existia, senão no
mesmo, muito propínqua àquele tempo ".28
No
Orbe serafico, o episódio do Caramuru é antecipado (como já o fizera Rocha
Pitta) para cerca de 1516, embora não apareça relacionado à expedição de Cristóvão Jacques, pois o nobre de Viana se
dirigia para a India quando naufragou junto ao Rio Vermelho, na Bahia. Os fatos,
contados com pormenores por Jaboatão, são mais ou menos os mesmos das
narrativas anteriores, com duas exceções.
A
primeira refere-se à alcunha de Diogo, para a qual é oferecida uma explicação
bastante sofisticada: "lhe foi posto o nome de Caramuru-Gaçu [...] por ser
achado entre as concavidades daquelas pederneiras do seu naufrágio [...] como
uma grande Moréia, e à imitação de muitas que nela habitavam; [...] o segundo
lhe foi apropriado pelo gentio, quando ele, como um cruel dragão que saiu do
mar, atirou a muitos; e assim, significando o nome Caramuru-Guaçu um, só
indivíduo, [...] ficou Diogo Alvares com este grande nome, um só Caramuru-Guaçu
com dois significados; com o primeiro, de Moréia grande, pela naturalidade daquele
caso; com o segundo, de Dragão do mar, por apropriação do seu valor".29
A
segunda novidade da narrativa de Jaboatão diz respeito à data da viagem de
Diogo à França que, segundo o autor, não poderia ter ocorrido no reinado de
Henrique II e Catarina de Médicis, pois este se iniciara em 1547, época em que
tanto Martim Afonso de Souza quanto Francisco Pereira já haviam estado no
Brasil e encontrado Diogo retornado da França; a proposta de Jaboatão - baseada
em minucioso confronto de datas - é a viagem ter-se realizado em 1524, durante
o reinado de Francisco I, havendo Paraguaçu recebido o nome de Catarina em
homenagem não à rainha de França, mas à esposa de dom João III de Portugal.
A
concepção de história de frei Jaboatão, muito diversa da de Rocha Pitta,
mostra-se curiosamente próxima daquela que predominará no Brasil na segunda
metade do século XIX, de certa forma a anunciando. Frei Jaboatão antecipou,
portanto, em um livro surpreendente, um modo de perceber e narrar o Caramuru
que só se cristalizaria no país duzentos anos após a publicação de sua obra.
Caramuru como epopeia
Caramuru
e sua história ganharam novo estatuto e popularidade no final do século XVIII,
quando o frade agostiniano José de Santa Rita Durão, brasileiro educado e
residente em Portugal, publicou sobre o tema um longo poema épico.30 Editado em
Lisboa em 1781, Caramuru mereceu por parte da crítica, à época de seu
lançamento, acolhida respeitosa mas morna. Com o tempo, ganhou público e admiradores,
embora boa parte dos críticos posteriores tenha reconhecido no autor um
versejador apenas correto, desprovido de maiores recursos literários; foi
destacado sobretudo seu pioneirismo em descrever uma ação passada no Brasil,
inspirada na história brasileira, em grande parte protagonizada por, indígenas,
transformando-a em epopéia: "E o poema mais brasileiro que possuímos [...]
o mais brasileiro de todos os nossos livros", escreveram a respeito, no final
do XIX, Sílvio Romero e João Ribeiro; "O Caramuru resiste ao tempo pela sua
importância histórica", completou mais tarde o crítico Afrânio Coutinho.31
Caramuru
acabou conhecendo várias edições e adaptações. Santa Rita Durão esclareceu a
razão da escrita do livro; após afirmar, numa clara alusão a Os Lusíadas, serem
os "sucessos do Brasil" tão merecedores de um poema quanto "os
da Índia", completou: "incitou-me a escrever este [poema] o amor à
Pátria". As fontes em que se baseou para construir a epopeia foram as
narrativas históricas: "Leia-se [Simão de] Vasconcellos na História do Brasil,
Francisco de Britto Freire e Sebastião da Rocha Pitta".32
O
poema é inteiramente construído em torno da epopéia do Caramuru, o "dragão
dos mares" (Diogo também seria chamado de "filho do trovão"
pelos índios).33 Dividido em dez cantos, cada qual com cerca de oitenta
estrofes, segue a estrutura de enredo cristalizada por Simão de Vasconcellos e
retomada por Rocha Pitta, respeitando-lhe a ordem, desde a partida de Viana do
Castelo até a descendência de Caramuru. O episódio do disparo da arma de fogo é
muito valorizado: Diogo veste-se com colete e elmo de ferro, tendo à mão uma
espada (recolhida na nau), quando dispara pela primeira vez, sendo o episódio
várias vezes repetido ao longo do poema, perante diferentes índios.34
Frontispício do poema Caramuru. Do frei José de Santa Rita Durão. |
Caramuru
faz uma excelente amizade interétnica com o "bom e justo" índio
Gupeva, e o ajuda a combater o temível cacique35 Jararaca. Boa parte do poema é
dedicada às guerras entre as tribos, das quais Caramuru participa. Santa Rita
Durão mostra-se ardoroso defensor da monogamia: desde o início Caramuru possui
apenas uma esposa,
Paraguaçu. As outras são apenas apaixonadas por ele, havendo entre elas "a
infeliz Moema", afogada ao atirar-se jun to com as outras ao mar, atrás de
Diogo, que parte para a França com Paraguaçu.36
A
visão que Paraguaçu tem de Nossa Senhora é antecedida de um sonho, no qual ela
vê, e depois descreve para os outros, vários momentos da história futura do
Brasil. Muitos outros acontecimentos históricos ocupam o poema. Mas, sendo uma
ficção, a narrativa de Santa Rita Durão cria, sobretudo, personagens. E a
primeira vez, desde que a narrativa começou a ser contada, que Caramuru e
Paraguaçu deixam de ser referências ou descrições para tornarem-se seres
humanos, com direito a características físicas próprias, sentimentos, vida
interior etc.
Diogo Álvares reúne infinitas qualidades, muitas identificadas à época, no plano
ideal, com as de um nobre - é aristocrata, justo, piedoso, corajoso, patriota,
belo (objeto do amor de quase todas as "donzelas brasilianas") e
civilizado, além de tolerante, paciente e amoroso, estes últimos atributos
essenciais para relacionar-se adequadamente com o mundo diferente e cobiçado
por outras potências onde naufragara.
A
mudança de nomes do personagem simboliza sua constante transição entre as
identidades (a antiga, preexistente à experiência, e a nova, que se afirma à
medida que a experiência prossegue, até configurar uma verdadeira transmutação
cultural): referido no início do poema apenas pelo nome cristão, o personagem
passa a ser, após o episódio do disparo da arma de fogo, nomeado também como
"Caramuru" - aquele que "indicava o Brasil no sobrenome" (Canto
I.LXLVI) -, epíteto que vai se tornando mais freqüente à medida que o
protagonista se envolve com os índios; volta a ser Diogo no episódio da viagem
à França, para, ao escolher retornar ao Brasil, virar definitivamente "Caramuru".
Apenas
na última linha do poema torna a ter declinado o nome cristão, bem como o local
de nascimento, para marcar a continuidade entre a aventura brasileira e a
origem portuguesa: "Manda honrar na colônia lusitana! Diogo Alvares
Correia, de Viana". No poema, ser Caramuru, para Diogo, significava ser
índio? Não. Significava possuir um conjunto de atributos conferidos pelos
índios, ser um ente que, embora profundamente transformado pela experiência com
os indígenas, possuía características distintas destes, algumas reconhecidas
como francamente superiores, como o poder de fogo.
Caramuru
é, assim, o herói capaz de levar até a América o povoamento branco, a
civilização, a religião, o idioma e a cultura, por via do amor, da tolerância,
do respeito e do conhecimento, qualidades reforçadas ou adquiridas pelo contato
com a outra civilização, e, quando necessário, também por via da guerra. O
contato com a alteridade, sofrido e traumático em muitos momentos, transforma
profundamente Diogo: o náufrago quase devorado pelos índios precisou sofrer,
amar uma nativa, aprender com dificuldade uma língua estrangeira, adaptar-se a
costumes estranhos, viver longas décadas longe da pátria, sair do e retornar ao
Brasil para transformar-se no Caramuru, o herói híbrido, culturalmente mestiço
e fundador de uma descendência biologicamente mestiça, redimido e engrandecido
pela experiência com o outro.37
Ser
Caramuru é não apenas sobreviver ao perigo da antropofagia - assunto recorrente
no poema -, mas também mostrar-se capaz de conduzir os índios ao abandono de
tal "prática hedionda" (curiosamente identificada, por Santa Rita
Durão, com a gula). Ser Caramuru, para Diogo, é saber administrar as duas
identidades em benefício (conclui o autor) das culturas que representam,
unindo-as: é completar e reafirmar a colonização portuguesa (numa época, o
final do século XVIII, em que eclodiam no Brasil os movimentos pró-independência)
e, ao mesmo tempo, saber, sem violência ("à sombra das leis"), conhecer
os índios e ensiná-los a alcançar a cultura e a salvação das próprias almas.38
Paraguaçu,
filha de um cacique, desde o início é retratada com atributos ideais de uma européia:
essa "dama gentil brasiliana", "de cor tão alva como a branca
nevei e onde não é neve, era de rosa", de "nariz natural, boca mui
breve", encobre a nudez "com manto espesso" e sabe falar
"boa parte da língua lusitana" (aprendida com um "português escravo"
que antes por ali aparecera), é donzela boa, recatada, delicada, submissa e
fiel a seu amor, qualidades às quais ainda se somam, talvez herdadas de seu
povo, a coragem e a altivez, demonstradas em episódios como a guerra contra
Jararaca, onde "Mil amazonas [...]/ Paraguaçu gentil todas
comanda".39
Estátua de Caramuru e Paraguaçu em Viana do Castelo, Portugal. |
Desde
o início, por conhecer o idioma português, é a intérprete de Diogo junto aos
índios, ao mesmo tempo que lhe transmite os costumes e idéias destes. Ela
também sofre mudança de nomes ao longo do poema: enquanto representa uma ponte
entre os dois mundos, é Paraguaçu. A convivência com o europeu, entretanto, a
faz compreender e aceitar seus costumes, inclusive o catolicismo, processo completado
em França - no espaço europeu -, onde convive com a corte e é batizada: a
partir de então é chamada também pelo nome cristão, dado em homenagem à rainha
de França.
Ao
voltar ao Brasil, quando, em plena passagem pelo equador, tem a visão de Nossa
Senhora - atestando, portanto, ser não apenas uma católica, mas uma depositária
da graça divina -, é nomeada apenas "Catarina" ou "Catarina
Álvares".40 É como Catarina que, já de volta ao Brasil, oferece a Diogo o
império indígena que herdara dos avós.41 Simboliza, como personagem, a
possibilidade de "redenção" integral do indígena brasileiro ao
projeto civilizador e catequético português.
No
poema, os indígenas são divididos em "bons e justos" (como o cacique Gupeva,
o grande amigo de Caramuru, e Sergipe, que aparece no início do poema, um
cacique mais "brando") e "maus e cruéis" (como Jararaca, o
grande opositor, ainda por cima enamorado de Paraguaçu, ou Taparica). Os
primeiros podem ser também inocentes, corajosos e capazes de raciocínios
surpreendentes - como a "singular filosofia" demonstrada por Gupeva
("tão alto pensar numa alma rude", espanta-se Diogo)42 -, enquanto os
segundos em geral são também antropófagos renitentes.
Todos
os índios têm como traços comuns o gosto pela guerra (o que os torna
extremamente perigosos) e, com a notável exceção de Paraguaçu, também o
desconhecimento da língua portuguesa e da religião cristã, uma profunda
ignorância e uma falta tão completa de civilidade e sofisticação que se assemelham
muitas vezes a animais: "gentio ferocíssimo", "nação
feríssima", "feras", "gente crua", "infausta
gente", "ignorância rude" e "gula infame" (= antropofagia)
são expressões com freqüência a eles relacionadas.43 Serem assim os indígenas é
o que permite a Caramuru e, por extensão, a todo o povo português, exercer a
missão evangelizadora e civilizadora a ele(s) reservada pela história.
Caramuru
estabelece uma linha de continuidade entre o período em que Diogo Álvares viveu
no Brasil e a história desse país, tanto nos anos anteriores à chegada do herói
quanto nos posteriores. Esta linha é construída em três momentos: durante a
viagem à França, quando Diogo conta a Du Plessis, comandante do navio, a
história da formação do império português, do Tratado de Tordesilhas, do
descobrimento de Cabral e das primeiras expedições exploradoras - isto é, do
período anterior à sua chegada ao país -, além de descrever-lhe, à moda dos
cronistas e de Rocha Pitta, as principais características das capitanias.
O
segundo momento, que corresponde ao tempo presente do poema, é uma narrativa de
Diogo ao rei Henrique II de França, em que descreve, com pormenores, o relevo,
a hidrografia, a fauna, a flora, os produtos naturais, as riquezas etc., do
Brasil. Finalmente, o terceiro momento é preenchido pelo sonho de Paraguaçu,
quando "vê" o futuro do Brasil e o relata aos outros: lá aparecem as guerras
contra os holandeses - com detalhes de batalhas e, numa evidente tentativa de
valorizá-los, os nomes dos heróis brasileiros que lutaram contra o "batavo
inglório", inclusive o do negro Henrique Dias -, as "áureas
cidades" brasileiras, os "vice-reis e ilustres gentes", enfim um
futuro, antevisto por uma brasileira, de "Tantos sucessos, tantas variedades/
Que somente pintado, como em sonho/ Confunde o pensamento, a vista
assombra".44
Caramuru
foi assumidamente uma obra de ficção, e nisso residiu a maior novidade da sua
narrativa, já que o poema pioneiro e satírico de Gregório de Matos estava então
esquecido. Entretanto, Caramuru estabeleceu transições tão sutis e naturais
entre ficção e história que o leitor não sabe direito onde termina uma e começa
a outra. Como seu subtítulo informa, trata-se de um poema épico sobre "o
descobrimento da Bahia"; para escrever o poema, o autor baseou-se em textos
de historiadores; nos versos, Moema, Gupeva, Taparica e outros personagens convivem
tranqüilamente com Francisco Pereira Coutinho, Martim Afonso de Souza, dom João
III, Catarina de Médicis e outros; episódios criados pelo frei mesclam-se a
todo momento com acontecimentos históricos, os quais, entretanto, não respeitam
cronologias, transitando do futuro ao passado e ao presente...
Ao
se assumir como ficção mas de fato embaralhar, definitivamente, ficção e
história, Caramuru põe a nu, ao mesmo tempo que reforça, aquela que talvez seja
a mais marcante característica do conjunto de narrativas até então escritas
sobre o tema: a permanente transição da ficção à história, e vice-versa. O
poema de Santa Rita Durão apresentava grande poder de sedução, em parte por
apoiar-se em ações vivas, coloridas, de grande apelo dramático, em parte por
repetir episódios conhecidos (como os do naufrágio, da arma de fogo, da visão de
Paraguaçu etc.), muitas e muitas vezes já contados e fixados no imaginário luso-brasileiro,
os quais, à força da repetição, ganhavam uma magia semelhante à dos contos de
fada. Cento e vinte e oito anos após a Crônica... do jesuíta Simão de
Vasconcellos, o agostiniano Santa Rita Durão, utilizando-se dos mesmos elementos,
estabeleceu, com base na ficção, um novo e poderoso padrão narrativo para a
história do Caramuru, o qual, apesar das fortes críticas que recebeu depois e
das tentativas de implantação de outros modelos, continua até hoje poderoso.
Caramuru de novo
objeto da história
As
grandes transformações no modo de construir a história operadas ao longo do
século XIX, iniciadas na Europa com repercussões por todo o mundo ocidental -
tais como a concepção da história como uma ciência, a busca da "imparcialidade"
do historiador, o apoio nos documentos como caminho para a descoberta "da
verdade", os cânones estritos de narração a fim de "depurar" a narrativa
histórica de adjetivos e suposições, o emprego de métodos racionalistas etc. -,
acabaram por se fazer presentes também nas narrativas históricas escritas a
respeito do Caramuru.
O
texto sobre nosso tema mais representativo dessas novas tendências historiográficas
foi a densa monografia O Caramuru perante a História, do historiador brasileiro
Francisco Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro.45 Trabalho vencedor de
um concurso promovido pelo recém-criado e já muito prestigiado Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro,46 a monografia estabeleceu intenso diálogo sobre o
Caramuru com antecessores e contemporâneos, reivindicando, com muita firmeza, o
assunto para a área da história, nos moldes então apregoados. Para isso
realmente ocorrer, segundo Varnhagen, seria preciso proceder a uma busca de
novos documentos sobre o Caramuru e a uma rigorosa crítica, tanto das fontes
primárias quanto das obras editadas sobre o tema, inclusive as de autoria de
historiadores. Foi isso o que Varnhagen se propôs fazer.
O
texto começa com uma longa preleção sobre os "contos maravilhosos" de
que "quase todas as nações oferecem exemplos".47 Classificando tais
contos como próprios dos "primeiros tempos da história" de uma
civilização, quando "os povos [ ... ] não tinham de si muito a dizer",
afirma que há nesse tipo de narrativa "quase sempre um fundo
verdadeiro". A medida, porém, que tais contos eram divulgados às novas
gerações, seu "fundo verdadeiro" desfigurava-se no "caos" e
na "Babel de línguas díspares", por efeito principalmente da poesia e
da imaginação,48 ambas ao gosto sobretudo das mulheres, o "sexo que
recolhe mais íntimas essas sensações e que depois no-las transmite com o
leite".
Devido
exatamente a seu aspecto cada vez mais fantasioso, as histórias deteriam o
enorme poder de emocionar ("tocar os corações") e "ferir a
imaginação". Ora, como os historiadores, segundo Varnhagen, só apareceriam
muito mais tarde ("quando o povo se tem constituído e adiantado em
civilização"), encontrariam já essas primeiras histórias compostas
"num arquivo muito mais popular, e não menos duradouro que os documentos
escritos em pergaminho".
Ao
conjunto dessas histórias e crenças, o visconde de Porto Seguro deu o nome de
"tradição". Esta permaneceria mesmo após o surgimento da história,
devido a duas ordens de razões: seus defensores são como "sectários"
de uma "religião", que não aceitam idéias contrárias às suas; suas
histórias possuem um poder de sedução (semelhante ao da mitologia, compara
Varnhagen) tão grande que mesmo quando "aprendemos nas escolas" a distinguir
a "parte histórica" da "parte imaginativa", "quando
lemos um poeta clássico acreditamos com igual fé assim as entidades que tiveram
uma existência histórica, como as propriamente, fabulosas". E qual a fonte
do poder da tradição? "E a magia do poeta" – responde Varnhagen -,
"que melhor sabe tocar-nos, vibrando-nos as cordas do sentimento."
O
autor conclui assim a primeira parte da monografia: "E esta convicção em
que estamos de que nenhum mal pode já a crítica desapaixonada produzir para
arrefecer o entusiasmo pela nossa epopéia brasileira" - refere-se ao poema
de Santa Rita Durão, sobre o qual já publicara inclusive elogioso ensaio 4 -
"e o muito desejo de tratar um assumo em que o Instituto mostrou empenho [...]
que nos dá força para entrar nele; o que faremos expondo primeiro o que de documentos
autênticos constar, deixando à natural e singela expressão deles e à luz da
crítica guiar o resto. [...] Desembaracemo-nos pois de quaisquer prejuízos que
nos tenham deixado as leituras de nossos historiadores a tal respeito [...] e ponhamos
também de parte, ainda com mais razão, as imagens e invenções do poema, e vamos
desprevenidos perscrutar documentos."
Em
sua longa e sofisticada introdução, Varnhagen estabelece premissas fundamentais
para o futuro desenvolvimento do trabalho. Apoiando-se em um modelo de análise
já claramente influenciado pelo positivismo,50 classifica a história em etapas
sucessivas, cumulativas (no início os povos não "tinham muito a dizer de
si") e evolutivas (progride-se da barbárie à civilização, da mitologia à ciência,
da tradição à história etc.), situando o trabalho do historiador numa etapa já
"adiantada em civilização". A construção dessa hierarquia é que
permite a Varnhagen estabelecer um original paralelismo entre etapas históricas
e modelos narrativos. Circunscrevendo os "contos maravilhosos" a uma
primeira e remota etapa da evolução dos povos - no caso do Brasil, portanto, a
um período já encerrado -, os contrapõe às narrativas históricas, próprias das
"civilizações adiantadas", tais como, é evidente, aquela em que o
autor vive e escreve.
Aos
atributos dos "contos maravilhosos" - fantasia, imaginação, poesia,
sintomaticamente identificadas com a figura feminina, que os transmitiria aos
homens "pelo leite" -, contrapõem-se, portanto, os atributos
referidos das narrativas históricas e do trabalho do historiador, como o uso de
documentos "autênticos", a prática da "crítica rigorosa", a
citação das fontes e da bibliografia utilizada e o emprego de métodos racionais
e profissionais de pesquisa. Esse conjunto de atributos, quando bem utilizado,
é que permitiria à história restabelecer "a verdade dos fatos",
ampliando o "fundo verdadeiro" primordialmente existente nos contos,
porém deformado pela ação da tradição.
Até
aqui, portanto, Varnhagen estabeleceu, via hierarquia e delegação de atributos,
uma nítida fronteira entre mito e ciência e entre história e tradição, deixando
claro de que lado está e o que fará. Mais: esclareceu também os limites entre a
"boa" história e a "má" história, a primeira assentada na "busca
da verdade", com o aparato metodológico e técnico que a acompanhava. Um
problema, entretanto, o raciocínio de Varnhagen não conseguia contornar: o
enorme poder da fabulação, da tradição e do mito, que reconhecia muito superior
ao da ciência e ao da história, a ponto de seduzir até homens como ele próprio.
A solução encontrada por Varnhagen para o problema foi identificar naturezas
completamente distintas para as duas ordens de fatores (uma natureza para
tradição, mito etc. e outra para ciência, história etc.).
Sendo
tão diversas, originando-se uma da fantasia e da fabulação e a outra do rigor e
da razão, ambas nunca se encontrariam, não havendo comparação possível entre
elas. Em decorrência, um trabalho de história como o que ele, Varnhagen,
empreendia, não poderia ter qualquer interferência, nem causar qualquer dano, a
uma obra de ficção sobre o mesmo tema - como o poema de Santa Rita Durão, de
que ele, Varnhagen, tanto gostava -, e vice-versa. Um buscava a verdade, por
meio da razão e da comprovação; o outro, o mito, por meio da imaginação e da
fantasia. Separados (como impunha sua natureza), ambos eram legítimos; juntos, eram
condenáveis. Varnhagen a seguir apresenta os frutos de sua pesquisa: os
numerosos documentos históricos que recolheu sobre o Caramuru, muitos deles
inéditos.51
Um
minucioso exame comparativo desses documentos (de cujos pormenores pouparemos o
leitor), especialmente das datas em que foram compostos ou das datas a que se
referem, e um exercício de raciocínio dedutivo permitiram a Varnhagen chegar às
seguintes conclusões principais acerca do tema:
a)
existiu um Diogo Alvares (recusa-lhe o sobrenome "Correia",
atribuindo-o - injustamente, aliás - a uma criação de Rocha Pitta), português
provavelmente sem tradição de nobreza, natural não se sabe com certeza de onde,
que naufragou na Bahia por volta ou antes de 1510 e deixou descendentes;52
b)
com certeza este Diogo viveu na Bahia entre 1510 e 1535, lá estando também em
1538 (data da chegada do donatário da Bahia), em 1546 (quando foi mensageiro de
Pero de Campos) e em 1549 (quando ajudou Martim Afonso de Souza) e, a partir
desse ano até o da sua morte - que Varnhagen, citando Aires de Casal, data
provavelmente de 1557 -, também morou na Bahia. Por dedução, Caramuru só
poderia ter ido à França entre 1535 e 1538 - pois nos intervalos dos outros
anos estava ajudando as autoridades, e "repugna à razão que [nesses
intervalos] desamparasse os seus patrícios". Mesmo essa viagem, porém, foi
pouco provável, pela "falta total de alguma noticia ou informação",
no Brasil e na França, sobre o fato; assim, é muito mais provável "que a
tal viagem à França nunca tenha existido.
c)
vários pequenos fatos e circunstâncias foram esclarecidos, tais como: o nome
"Caramuru" significa um peixe brasileiro, semelhante à moréia,
conforme explicara desde o século XVII Claude d' Abbeville; dificilmente a
índia verdadeira se chamava "Paraguaçu", palavra que em tupi quer
dizer "rio grande", e que não costumava ser nome de mulher entre os
tupinambás; a carta de Carlos V a Diogo provavelmente não existiu, pois
"repugna à razão" que um imperador perdesse
seu tempo escrevendo a um reles náufrago. Varnhagen elogia largamente a Notícia
do Brasil, de Gabriel Soares de Souza - este autor, um contemporâneo dos
acontecimentos, teria apenas testemunhado corretamente o que viu -, estabelecendo
claramente uma linha de continuidade, uma filiação, entre a Notícia e a
monografia da própria autoria, ambas escritas em estilo direto e comprometidas
com "o rigor da verdade".
Em
seguida investe impiedosamente, durante várias páginas, sempre contrapondo fatos,
contra aqueles que elegem seus contendores e antagonistas principais: Simão de
Vasconcellos - narrando "um século depois" dos acontecimentos, sem
"consciência do que escrevia", teria registrado apenas "a
ardente imaginação" de "um povo tropical", numa "narração
novelesca" - e Sebastião da Rocha Pitta, pretenso historiador que não
citava suas fontes, autor somente de "um belo episódio próprio para o
romance e a poesia", recheado de "fragmentos do colorido próprio dos
gongorísticos do século passado". Pitta e Vasconcellos "não escapariam
a ser chamados ao rígido tribunal da crítica, para nele se verem
argumentados" – pelo próprio Varnhagen, naturalmente, no papel de juiz.54
Um
historiador do final do século XX, apoiado em maior número de documentos (que
vieram à luz depois de Varnhagen) e em cânones históricos diferentes, poderia
argumentar que o visconde de Porto Seguro, sem ter consciência disso, deixou
várias brechas no aparentemente inexpugnável rigor da sua lógica;55 poderia
ainda argumentar que ele, também sem disso se aperceber, empregou em sua
monografia recursos ficcionais.56
Tal
diálogo, entretanto, não caberia aqui. Importa-nos é lembrar que Francisco
Adolfo de Varnhagen, ao propugnar, de forma tão competente, a drástica cisão
entre ciência e ficção, e, portanto uma outra forma de produzir história,
inaugurou novo ponto de vista, uma maneira completamente diferente de compreender
o Caramuru e de contar sua história, mais duradoura do que talvez o próprio
Varnhagen tivesse jamais suposto.
Sua
monografia foi um divisor de águas: nos cem anos seguintes, os rumos da
historiografia levaram a maioria dos historiadores a escrever sobre o Caramuru
à maneira de Varnhagen.57 Daí em diante, postas de lado e desautorizadas nos
meios acadêmicos, a ficção e a invenção sobre o Caramuru no Brasil escorregaram
definitivamente para um meio onde já eram férteis: o da cultura popular. Aí,
impulsionadas pelos novos meios de comunicação, floresceram de modo
extraordinário, conforme assinalado no início deste artigo.
Caramuru como romance
histórico
Em
1900 foi lançado em Lisboa, Os Caramurus, de Arthur Lobo D' Avila, com o curioso
subtítulo de Romance histórico da descoberta e independência do Brasil.58 O
próprio D'Ávila esclarece título e objetivo do livro: "Causará talvez uma
certa estranheza que nesta obra conjugássemos o descobrimento do Brasil com a
sua emancipação: porque aquele fato histórico é, pela grande maioria, considerado
como uma glória, e este, como um revés, na história portuguesa.
Fizemo-lo,
porém, muito propositadamente, e precisamente porque entendemos ser conveniente
destruir no espírito popular essa errada teoria, e pareceu-me ser momento
azado, para o fazer, esta celebração festiva do quarto centenário da gloriosa
descoberta da Terra de Santa Cruz por Pedro Álvares Cabral".59 D' Á vila, após
afirmar que a independência do Brasil foi resultado de uma falta de visão ocasional
dos constituintes portugueses de 1820 - os quais queriam obrigar o Brasil, após
ter sido "elevado a todas as regalias de metrópole", a retornar à condição
de colônia -, conclui: "Portugal, que descobrira, civilizara e
desenvolvera o Brasil, teve pois também a glória de lhe transmitir o fogo
sagrado da liberdade. [...] o fato histórico da independência do Brasil é uma
glória humana e social para o país que o descobriu e desenvolveu. [...] Eis
porquê, na nossa humilde opinião, a independência do Brasil pode e deve ser
invocada como título de glória para Portugal, a par da sua descoberta."
O
tema do Caramuru, portanto, serve para D'Avila (que se diz descendente de Diogo Álvares) celebrar, em um momento histórico que lhe pareceu particularmente propício
- o do IV centenário do descobrimento -, a descoberta e a independência do
Brasil como obras de Portugal. Como? Dividindo o romance histórico em duas
partes: na primeira, relata o enredo tradicional do Caramuru, enquanto, na
segunda, um descendente do primeiro Caramuru auxilia José
Bonifácio (seu colega da Universidade de Coimbra) e dom Pedro a proclamar a
independência brasileira! Relacionam-se de novo, em uma narrativa em torno do
Caramuru, história e ficção: de novo, a maneira de construir essa relação é
nova.
Frontispício de Os Caramurus, romance escrito por Arhtur Lobo D'Ávila. 1900. |
A
primeira parte do romance histórico - que ocupa cerca de 60% das suas 278
páginas - acrescenta ao enredo tradicional uma alentada seção passada em,
Portugal, na qual Diogo Álvares, nobre minhoto, vive movimentadas aventuras com
insignes personagens da história lusa, como dom João Telles, a rainha dona Leonor,
Vasco da Gama e outros, até embarcar na armada de Gonçalo Coelho, naufragando
em costas brasileiras. O enredo do "homem de fogo" segue todos os passos
já conhecidos, com muita ação e diálogos - Paraguaçu, dada pelo pai como favorita
a Diogo, brada, assim que vê este: "Sou cristã!" -, até à morte, em conseqüência
de lutas tribais, de Paraguaçu, seguida da de Diogo, não sem que este antes
consiga que o filho dos dois, uma criança, seja transportado por ninguém menos
que Hans Staden para a Europa onde terá descendentes, "que se honravam em
serem chamados Caramurus".60
Na
segunda parte do romance, o herói, "também chamado Diogo Alvares, como o
seu antepassado, mas por toda a gente conhecido por o Caramuru", um
liberal apaixonado pela jovem brasileira Margarida (amor proibido), acompanha a
família real portuguesa para o Brasil. Ali, em meio a várias peripécias, "torna-se
um entusiasta do príncipe D. Pedro", casa-se com Margarida, vai para Portugal
e volta para o Brasil, sempre partidário da independência. Quando dom João VI
regressa a Portugal, Diogo Álvares também para ali retorna, a pedido de dom
Pedro, para continuar a alimentar a causa da separação e informar o amigo dos
acontecimentos. A independência brasileira é iminente. Após
o grito do Ipiranga, Diogo, que constatara ter sido o "solar dos
Caramurus", em Viana do Castelo, destruído durante a invasão francesa,
viaja com a mulher para o Brasil, para Vila Velha, onde, nas terras que ainda
pertencem à sua família, criará os filhos e formará "um Minho
brasileiro".
Nenhuma
narrativa evidencia tão bem quanto esta um traço essencial em
todos os textos sobre o Caramuru: a forte ligação entre Portugal e Brasil, ligação
indissolúvel, posto que nada - história, destino, vontade dos homens etc. - a
poderá jamais alterar. Ao atar para sempre as duas nações em um só enredo, o
tema do Caramuru potencializa as ligações históricas existentes entre Portugal e
Brasil, fazendo com que uma nação se espelhe na outra. Ajuda, assim, a fomentar
a ideologia (nem sempre diretamente vinculada à experiência histórica), até
hoje expressa, que concebe Portugal e Brasil como "países irmãos",
"nações do mesmo sangue", "almas gêmeas" etc. Muitos podem
ser os usos políticos de uma narrativa.
O Caramuru dos
divulgadores
Em
1935 foi lançado em Portugal O Caramuru - Aventuras prodigiosas de um português
colonizador do Brasil, de autoria de João de Barros, adaptação em prosa do poema
épico de Santa Rita Durão.61 O Caramuru - Aventuras prodigiosas livro
bem-sucedido - alcançou a sétima edição em 1993 -, segue rigorosamente o original
que se propõe adaptar: mantém-lhe os mesmos personagens e estrutura, a mesma
trama, salientando os episódios e aspectos a que Durão também deu ênfase.
São
diferentes apenas os subtítulos - Barros acentua o caráter aventureiro e
prodigioso do enredo, chamando a atenção para o protagonista ser um colonizador
português -, a origem de Diogo (nobre, segundo Durão, e "homem pobre e
necessitado", segundo Barros), uma certa mediação, inexistente em Santa
Rita Durão, que Barros constrói, ao referir-se aos índios do Brasil ("Isto
passava-se há mais de quatro séculos, quando o Brasil, hoje tão glorioso e
civilizado, era ainda habitado por índios selvagens, muitos dos quais
ferozes,62) e um "Epílogo", onde Barros explica o sentido que o poema
original tem para ele.
Uma edição do romance O Caramuru de João de Barros. |
A
diferença fundamental entre as duas obras, entretanto, reside em outro ponto:
na linguagem, que a adaptação em prosa, definindo com clareza a audiência a
alcançar, buscou "correntia e fácil, que à gente moça e ao leitor mais ou
menos culto prenda e ative [...] trazer ao conhecimento de todos uma obra digna
de atenção e respeito".
O
episódio original do naufrágio de Diogo, por exemplo, que ocupa dezesseis estrofes
do Canto I de Santa Rita Durão, aí começando com um "De um varão em mil
casos agitado/ Que as praias discorrendo do ocidente...", transforma-se em
algumas linhas no livro de Barros, iniciadas com um "Vinha de Portugal
o barco perdido nas ondas, açoutado pela fúria da tempestade...", e assim
vai.63
Barros
esclarece as razões do seu trabalho de divulgação: além da qualidade literária
do poema,64 o fato de este constituir-se no "cântico anunciador da alvorada
duma Pátria", e não de uma pátria qualquer, mas daquela que "é agora um
dos fatores primordiais de novas modalidades de civilização e cultura", resultante
do "prodigioso e inteligente esforço dos colonizadores lusitanos nas terras
de além-mar".65 Em suma, Barros deseja contribuir para o "melhor carinho"
entre Portugal e Brasil, nações unidas pela história, uma mãe, e a outra, filha.
E o melhor meio que encontrou para isso foi lembrar e divulgar o Caramuru, que
considera um símbolo da união Brasil-Portugal: "Português de nascimento e
fé [...] prendeu-se tanto à formosa e hospitaleira terra do Brasil que,
realmente, não sabemos hoje se o nome de Português lhe pertence mais que o de
Brasileiro, se o nome de Brasileiro lhe compete mais que o de
Português".66
Acentuando,
no "Prefácio", no "Epílogo" e na "Vida do autor de
Caramuru", algumas características do poema de Santa Rita Durão, Barros,
ao unir num só volume o seu texto ao do poeta mineiro, prolongou o fio histórico
que o poema já possuía, projetando-o sobre a primeira metade do século XX,
quando seu livro foi publicado. Essa nova apropriação do Caramuru, com a
audiência alargada devido à modernização linguística, reiterou o tema da
unidade luso-brasileira em um momento particularmente difícil para Portugal: à
pátria de passado glorioso, então empobrecida, dona de uma sombra tênue do
antigo império, Barros apontava o caminho da união com o filho promissor, o
Brasil; e a este, o rebelde adolescente, indicava o retorno à tradição, à
solidez e à maturidade de quem "tão bem lhe desenhara a alvorada".
Conclusão
Dois
aspectos relacionados ao tema do Caramuru foram escolhidos para serem
desenvolvidos nesta conclusão: as relações entre história e ficção e o Caramuru
como mito.
História e ficção
As
narrativas aqui analisadas sobre o Caramuru são exemplos do potencial de
múltiplas combinações entre história e ficção. Algumas delas, como as de autoria
de Gregório de Matos e de Santa Rita Durão, assumem-se como ficção; outras
apresentam-se como história, como as de Jaboatão e Varnhagen; outras, , como o
romance histórico de Arthur D' A vila, se dizem história ficcionalizada; algumas
afirmam-se como crônica (Simão de Vasconcellos), outras ainda (Gabriel Soares
de Souza) valorizam o testemunho do autor.
O
conjunto das narrativas não aponta para uma linha de continuidade, um caminhar
na mesma direção, seja de gêneros, seja de complexidade, seja do literário ao
histórico (ou vice-versa) etc. Ao contrário, as trajetórias das narrativas, ao
longo do tempo, evidenciam um constante ir-e-vir entre gêneros, modelos narrativos
e níveis de complexidade.
Depois
do poema épico de Santa Rita Durão, quando tudo parecia indicar uma crescente
ficcionalização do tema, surgiram a história de Jaboatão e, mais tarde, a prosa
seca e científica do historiador Varnhagen. Após Varnhagen, terminou a fabulação,
triunfou a ciência? Não: brotou a carnavalização do Caramuru. Nenhuma linha
reta, nenhuma evolução detectadas. Antes círculos que vagueiam, abrem-se,
fecham-se, interpenetram-se em constantes movimentos, compondo novas e surpreendente
figuras, múltiplas direções.
As
vezes, há mais diferenças entre textos do mesmo gênero do que entre os de
gêneros diferentes. Embora Varnhagen e Rocha Pitta se declarem ambos historiadores,
e ambos realmente escrevam história, apresentam tamanhas diferenças entre si
que Varnhagen, para legitimar-se perante uma audiência de letrados do século
XIX, elegeu o texto de Pitta como um de seus principais antagonistas, ao mesmo
tempo que poupou da crítica - exatamente por pertencer a outro gênero, não se
apresentando como concorrente - um texto ficcional como o Caramuru de Santa
Rita Durão. Deixou, contudo, na obscuridade a obra que mais se aproximava da
sua, no campo da história, e que ele decerto conhecia: o Orbe seráfico, de frei
Jaboatão.
As
narrativas mesclam elementos tradicionalmente pertencentes à história com
aqueles que a tradição convencionou literários. Historiadores, cronista,
romancista e poeta, indistintamente, enveredam por enredos onde visões
celestiais, antropofagias, colóquios imaginários em cortes estrangeiras e profecias
fundem-se tranqüilamente com fatos e personagens da história do Brasil e de
Portugal.67 Os ficcionistas Santa Rita Durão e Arthur D'Ávila mesclam seus
personagens com a história, mas embaralham presente, passado e futuro, um
recurso da ficção ... Gregório de Matos, em um poema, foi responsável pela mais
contundente crítica social à elite da Bahia.
Algumas
narrativas, embora façam ficção, "saltam" do texto para o mundo
concreto dos autores, construindo referências explícitas à história e às
preocupações do tempo em que escreveram seus criadores. E o caso do Caramuru,
de João de Barros e do romance histórico de Arthur D'Avila, duas ficções que nos
prefácios e prólogos explicam claramente a que vieram: celebrar "o inteligente
esforço dos colonizadores lusitanos nas terras de além-mar", a
"bravura brasileira" e, no caso do segundo livro, a independência do
Brasil como "uma glória humana e social" de Portugal, tentando assim
contribuir para o "melhor carinho", o melhor entendimento entre
Portugal e Brasil, que os autores julgavam ameaçado à época em que escreveram.68
Interessante como autores tais que Varnhagen e Rocha Pitta, assumidamente
historiadores, não criaram entretanto qualquer relação explícita com a história
extra-textual, a qual aparece clara, contudo, no poeta Gregório de Matos.
Tratamentos
opostos do mesmo fato histórico às vezes resultam de perspectivas e intenções
semelhantes. Escrevendo quando já haviam explodido no Brasil as duas principais
revoltas separatistas (as Conjuras Baiana e Mineira), Santa Rita Durão sequer
se refere à possibilidade da independência, pois sua intenção é justamente a
oposta: reforçar os laços entre Brasil e Portugal. Já Arthur D' Avila, em seu
romance histórico, dá voltas mirabolantes ao enredo exatamente para tratar da
independência. Qual o objetivo de D'Avila? Justamente o mesmo de frei Durão:
fortalecer a união Brasil-Portugal.
No
caso de D'Avila, este objetivo é atingido pela construção de uma continuidade
entre os primeiros anos da história da colonização e o episódio da independência,
ainda mal digerido por Portugal, à época em que o autor escreveu; no caso de
Durão, o fim é alcançado omitindo-se a iminente separação. Mudanças sutis de
recursos estilísticos ou de composição de enredo e personagens, por outro lado,
às vezes representam profundas diferenças entre perspectivas históricas. Com
uma aparentemente simples rotação de protagonistas -
Paraguaçu, em vez de Caramuru -, Sebastião da Rocha Pitta promove uma até então
inédita valorização do papel dos indígenas no processo histórico da colonização
portuguesa.
Por
vezes, mudanças nas narrativas correspondem a transformações ocorridas nas
diversas épocas em que viveram os autores. Simão de Vasconcellos, jesuíta que
no início da colonização conviveu longamente com indígenas e colonizadores,
conhecendo muito bem os costumes de ambos, concede a Caramuru várias mulheres,
entre as quais Paraguaçu, que acaba se tornando a predileta. Rocha Pitta,
escrevendo no XVII, mantém a poligamia de Caramuru, mas reserva a Paraguaçu o
lugar de esposa e às demais, o de concubinas.
Cabe
ao frei agostiniano Santa Rita Durão, no final do século XVIII, época em que a
sociedade brasileira branca já se apresentava basicamente configurada segundo
moldes europeus, encerrar o período de "relações pecaminosas" do
protagonista, criando, desde o início da narrativa, um Caramuru monogâmico,
modelo que prevaleceu nas narrativas posteriores.
As
múltiplas combinações entre história e ficção no Caramuru poderiam ser
exploradas quase indefinidamente. Como em um caleidoscópio, é suficiente agitar
de leve os elementos para descobrir um conjunto de relações inteiramente novo,
outras perspectivas. História e ficção são ambas essenciais na construção da
grande narrativa do Caramuru. Esta representa um caso-limite, mas não uma exceção:
em geral as narrativas que contamos estão mais impregnadas de história e de
ficção do que costuma admitir a nossa tradição iluminista.
Mito
Todas
as narrativas analisadas, independentemente de como entrelaçam história e
ficção, dos recursos estilísticos e da perspectiva que adotam, têm um ponto em
comum: ao contar as aventuras e desventuras de Diogo Alvares e vParaguaçu,
estão a referir-se, o tempo inteiro, e obsessivamente, a algo mais: ao Brasil e
a Portugal. As duas nações projetam suas grandes sombras sobre os textos, que,
talvez por isso, apresentem uma relação tão íntima com a história.
Os
exemplos da constante referência a Portugal e ao Brasil são muitos, vários
deles apresentados no item anterior, e seria cansativo relacioná-los de novo aqui.
Lembremos apenas que todas as narrativas, sem exceção, situam o episódio do
Caramuru dentro da história da colonização portuguesa do Brasil (o que varia -
e isso não tem importância para o ponto em discussão - é o tempo dessa inserção:
se na época do donatário Francisco Pereira, se na da expedição de Gonçalo
Coelho ou na de Cristóvão Jacques). Não
por acaso os livros têm títulos e subtítulos como "Notícia do
Brasil", "Poema épico do descobrimento da Bahia", "Romance
histórico da descoberta e independência do Brasil", "Aventuras prodigiosas
de um português colonizador no Brasil" etc.
Tudo
isso aponta para a idéia que queremos discutir: o conjunto de narrativas sobre
o Caramuru, pensamos, pode ser considerado um mito de origem do Brasil, um
conjunto discursivo que, ao narrar as peripécias do casal Paraguaçu-Caramuru, metaforiza
os fundamentos de um certo país Brasil. Para facilitar a exposição,
apresentaremos a seguir, brevemente, as principais características dos mitos,
em especial dos de origem, retornando depois à história do Caramuru, para
investigarmos até que ponto ela se imbui de tais características.
Os
mitos (expressão que, em grego, significa "história" ou
"palavra") "dramatizam
a visão de mundo e a experiência em uma constelação de poderosas metáforas",
expressando vivências fundamentais para um determinado grupo humano.69
Representam uma das formas possíveis para uma comunidade revelar e compartilhar
emoções, esperanças, medos e sonhos coletivos, expor e resolver conflitos,
fixar, transmitir e reelaborar experiências e, por isso, geralmente apresentam
uma íntima relação com o sagrado.70 Os mitos agrupam elementos fundamentais -
que Karl Jung chamou "arquétipos,71 - com os quais a maioria de um grupo
se identifica.
Representam,
assim, visões de mundo, lidando sempre com questões essenciais, relacionadas à
origem, ao fim e à natureza das pessoas e coisas. Explicam o universo a um
determinado grupo, nos seus próprios termos, oferecendo aos que nele acreditam
uma identidade, um lugar no mundo. Mitos têm estrutura peculiar, como os
sonhos; não seguem a razão, por isso são capazes de simbolizar grande número de
acontecimentos e emoções em uma única cena, podendo também abrigar contradições.
São
dotados de um pensamento subliminar, uma hypnoia
e, por isso, geralmente são expressos por metáforas.72 São coletivos e
flexíveis, comportando em geral várias versões, responsáveis pelas atualizações
da história original e pelas diferentes apropriações que a sociedade faz deles;
às vezes determinada versão de um mito se torna predominante, mas é comum
ocorrer uma vigorosa disputa entre diversas versões. Um mesmo mito pode ser
repetido durante milênios.
Os
mitos transformam-se mais lentamente do que as sociedades, por três razões
principais: giram em torno de poucos elementos, cristalizados; operam em nível
simbólico, difuso, mais protegido contra mudanças do que o nível material; e
são capazes de rearranjar internamente seus elementos, adaptando-os a novas
situações, sem contudo perder os atributos essenciais. Ninguém - pessoa, grupo
ou nação - é capaz de criar um mito baseado apenas em seu desejo de fazê-lo.
Para existir, um mito deve corresponder a necessidades sociais profundas, expressando
símbolos poderosos; a criação e permanência de um mito é socialmente determinada,
não uma ação isolada.
Os
mitos podem ser, e muitas vezes são, socialmente manipulados, pois representam
uma fonte potencial de poder. Muitos mitos são conscientemente reforçados, atenuados,
divulgados, "envelhecidos" ou embelezados porque beneficiam um
determinado segmento social, um governo ou uma nação. Um grupo que se
identifica ou é identificado com um mito positivo transfere a autoridade simbólica
conferida pelo mito - que é imensa - para si próprio. A partir de então poderá
decidir quem irá, ou não, compartilhar dessa identidade, quem pertencerá - ou não
ao grupo.
Um
mito, às vezes, metaforiza o nascimento de um grupo ou nação: "Os mitos de
origem da natio, no sentido original
do termo, são o resultado de uma aplicação à coletividade, por uma extensão
analógica, do processo biológico de nascimento do indivíduo [..]. O nascimento
de uma criança supõe biologicamente a existência de uma mãe, a ação de um pai
(mas nem sempre o seu reconhecimento) e geralmente a união de um casal
parental. [...] O terceiro caso de figura concerne a história de um casal parental
simbólico, que engendra um povo; este povo cria para si um duplo espaço habitável,
sob uma forma concreta (um território) e sob uma forma simbólica (uma cultura).
Esse
conjunto constituído pelas terras de um lado e, de outro lado, pelas tradições,
chama-se a 'herança dos pais', pátria,
a pátria.73 Baseado, como se viu, em metáforas, o mito do Caramuru dramatiza algumas
das mais fundamentais experiências históricas e simbólicas do Brasil e de
Portugal. Experiências tão importantes que sobre elas se assenta grande parte da
construção das duas identidades nacionais: no caso brasileiro, a sociedade multiétnica
e multicultural, tema que tem rondado as artes, a ensaística e a imaginação
brasileira há séculos; no caso português, a construção do império colonial, um
dos fulcros da identidade lusitana.
O
mito aponta também para a continuidade luso-brasileira - tema recorrente em
todas as narrativas, conforme assinalado - e, ao fazê-lo, encerra ambas as
experiências em um único e poderoso simbolismo. Mais: situando-se nos
primórdios da colonização portuguesa, o mito constrói uma origem, um
fundamento, um nascimento para o Brasil. No mito de origem, Paraguaçu e
Caramuru representam o casal parental simbólico: não por acaso todas as
narrativas - que são discursos fundadores -, sem exceção, referem-se
à
vasta e nobre descendência que deixaram.
Mas
o mito estabelece a origem de qual Brasil? Diferenças à parte (no momento
lidamos com as semelhanças entre as narrativas), todos os textos referem-se a
um país que se encontra numa encruzilhada entre, de um lado, um longo e
influente passado, que é indígena e que se projeta, poderoso, sobre o presente
( = sobre o tempo da narrativa); e, de outro lado, um presente (dependendo da
narrativa, também um passado recente), que é marcado pela influência física e
cultural dos brancos, europeus e católicos, consubstanciados nos portugueses (que
trarão consigo os africanos). O futuro desse país referem as narrativas,
depende fundamentalmente de como tais elementos serão relacionados entre si e
equacionados. Esse é o enredo dos vários textos. E esse Brasil surpreendido na
encruzilhada da história que a narrativa do Caramuru metaforiza.
Assim
o indígena, apresentado como bruto, feroz, antropófago, ateu, ignorante,
desprovido de cultura e civilização, mas também guerreiro, intrépido, sem
malícia e corajoso - uma força da natureza - deve ser domesticado e catequizado,
para permitir ao Brasil o desenvolvimento e a feliz integração ao rol das
nações civilizadas. Essa oportunidade aparece com a chegada dos personagens
históricos portugueses (referidos em todos os textos): os donatários,
sacerdotes, capitães, pilotos, funcionários reais etc.
O
presente do Brasil - diz o mito do Caramuru é difícil, os embates são
duríssimos: um donatário morre devorado pelos índios, logo morrerá um bispo (a
sempre presente antropofagia lembra o constante risco de o Brasil indígena
"devorar" o Brasil português), os demais colonizadores enfrentam
naufrágios, animais ferozes, bestas humanas, matas virgens... onde moram o
pecado, a ruína e a sedução.
Situados
bem no meio da encruzilhada, Diogo e Paraguaçu vivenciam todos esses perigos
mas a tudo resistem, redimidos, pois o casal mestiço representa exatamente a
possibilidade de superação, de solução do impasse brasileiro. "Herdeira do
império tupinambá", ela torna-se não apenas uma cristã, mas uma eleita de
Deus, ao ter visões de Nossa Senhora - e aqui se estabelece o elo com o sagrado,
essencial em um mito. Ele é o herói engrandecido pela convivência com os
indígenas, o homem-ponte, o intérprete entre duas culturas, que traz em suas alcunhas
o peixe, o dragão, o mar e o fogo, Caramuru de tantos nomes quantas forem as
apropriações e versões que se fizerem do seu mito, homem múltiplo, pois
representa muitos outros homens.
Do
casal interétnico e intercultural emerge o futuro promissor e positivo do
Brasil, expresso nas "cidades douradas" e nos "vice-reis"
da visão de Paraguaçu. Surge um país que conseguiu resolver satisfatoriamente
seus impasses e se integrou, "sobranceiro", ao império do qual fazia
parte. E onde, é claro, deve continuar: todas as narrativas, já se viu, apontam
para a continuidade entre Portugal e Brasil, para este como parte daquele.
Os
textos, contudo, não tratam apenas do Brasil. Ao surpreender esse país no
início do século XVI, eles se referem também, é claro, a Portugal, aos portugueses,
ao projeto de consolidação do império português. Lá estão dom Manuel, dom João
III, Martim Afonso de Souza, Gonçalo Coelho, as relações com a França, os
donatários, os sacerdotes, os colonos, as caravelas e naus, as vilas, os fortes,
as guerras nas conquistas... Não por acaso o enredo do Caramuru foi criado por
autores portugueses e, durante muito tempo, divulgado por e para portugueses;
não por acaso, também, quando o Brasil já havia muito estava , independente,
foram dois portugueses, João de Barros e Arthur D' A vila, que retomaram o tema.
As
narrativas sobre o Caramuru, portanto, são metáforas também de Portugal. De
qual Portugal? Os textos referem-se a uma nação católica, civilizada, unida em
torno de um rei - sua maior autoridade e símbolo -, cujos vassalos saem pelo
mundo com a gloriosa, porém dificílima, missão de conquistar, civilizar e
catequizar bárbaros de toda espécie. Para isso, eles (como o fez Diogo Alvares)
abandonam lar e pátria, expõem-se aos perigos do mar (há dois naufrágios na história),
lutam desesperadamente para sobreviver em meio aos rudes bárbaros (alguns
perecem), mas nunca desistem da alta missão, atribuída por Deus e pelo rei, de
evangelizar e educar, estendendo a fé, a cultura e as armas do império português
ao mundo inteiro.
O
mito do Caramuru, tecido ao longo de séculos, constituído por um núcleo
básico - repetido ad infinitum, após
fixado pelo Padre Simão de Vasconcellos -, adaptado, como se viu, às sempre
novas audiências e demandas, foi várias vezes politicamente apropriado (basta
lembrar as intenções explícitas dos dois últimos autores portugueses), mas,
como a fênix, ressurgiu sempre, renovado e despolitizado, pronto para ser
novamente apropriado. E um mito que toca em alguns dos mais importantes,
queridos e afagados componentes da construção das memórias coletivas de
brasileiros e portugueses. No caso do Brasil, metaforizando o belo país
abençoado por Deus, que soube sempre resolver com amor, sem violência, com
alegria (com samba, cachaça, carnaval e futebol), com negociação e
congraçamento (por artes do "jeitinho" e da malandragem, da
mestiçagem e da democracia racial) os imensos desafios da sua sociedade plural.
No
caso português, o da nação gloriosa de Afonso Henriques e dos grandes navegadores,
do pequenino país descobridor e povoador de mundos, civilizador e salvador de
almas, que jamais se curvou ante os enormes perigos do destino imposto por Deus
e pela História. Caramuru, mito de origem do Brasil e do entrelaçamento de duas
nações, confluência de narrativas plenas de eventos, imaginação e desejos.
NOTAS:
1. Não há qualquer
segurança a respeito da data de chegada à Bahia de Diogo Alvares. Os documentos
de época são vagos a respeito, alguns contraditórios, o que leva os
historiadores a adotar opiniões diferentes, segundo a fonte em que se baseiam.
A maioria das fontes conduz
para os anos imediatamente posteriores a 1500; algumas, entretanto, apontam
para a década de 1530. Embora não se costume levantar dúvidas a respeito
da condição de náufrago de Diogo Alvares - de tão repetida, parece hoje "incorporada"
ao personagem -, o fato é que ela não é comprovada. Gabriel Soares de Souza
refere-se a um naufrágio, porém ocorrido nas costas da Bahia, durante uma
viagem entre Ilhéus e Vila Velha, em companhia do donatário Francisco Coutinho.
A narrativa do Padre Simão de Vasconcellos, que dá Diogo como náufrago numa
viagem com origem em Portugal, omite suas fontes, mas documentos posteriores
repetiram a informação, também sem indicar a origem. No século XVII, o poema
épico de Santa Rita Durão, ao dedicar ao episódio do naufrágio um movimentado,
heróico e trágico canto, ligou definitivamente Caramuru à condição de náufrago;
isto foi reforçado pela iconografia, que reproduziu fartamente o episódio.
Permanecem, contudo, outras possibilidades, também sem
confirmação documental: a de Diogo Alvares ter sido um entre vários degredados
então abandonados no litoral brasileiro, com o objetivo de aí aprender língua e
costumes locais, para depois os transmitir aos portugueses; a de ter sido
tripulante de uma das primeiras expedições enviadas ao Brasil e ter decidido,
por vontade propagada em permanecer em terra, como o fizeram outros
portugueses; e a de ter sido um dos diversos judeus que, expulsos do Reino em
1496, buscaram a América.
2. Embora ela seja
provável, não há segurança acerca dessa naturalidade. Há certeza apenas quanto
à nacionalidade, portuguesa de Diogo Alvares, atestada por testemunhos de
época. Alguns autores registraram o nome completo, como Diogo Alvares Correia.
3. O episódio da arma
de fogo - que, até onde sabemos, foi referido por escrito, pela primeira vez,
pelo Padre Simão de Vasconcellos -, aparece em quase todas as narrativas sobre
o Caramuru até meados do século XIX; Varnhagen foi o primeiro a duvidar do
episódio e a ironizá-lo. Vários historiadores posteriores, porém, continuaram a
referir-se ao fato.
4. Algumas fontes (p.
ex., Gabriel Soares de Souza) omitem tal viagem; Varnhagen, escrevendo em
meados do século XIX, nega sua existência. Desde a obra de Simão de
Vasconcellos, porém, a referência à viagem é uma constante dos textos.
5. Os fatos
históricos referidos até aqui constam dos documentos citados na nota número 49
e também dos seguintes: Cartas do Pe. Manuel da Nóbrega ao Pe. Miguel de Torres,
Lisboa, 3/4/1557, 8/5/1558 e 14/8/1558, in Leite (1955: 197, 289 e 302); Carta
do Pe. Manuel de Paiva ao Pe. Manuel da Nóbrega, 18/8/1551, in Leite (1965 :
56); Carta do Governador Geral Tomé de Souza ao Rei de Portugal, 13/8/1549, in
Marques (1988, vol. 4: 112). Há ainda documentos inseridos nas narrativas analisadas
neste artigo.
6. Exemplos dos
vários tipos de narrativa que o tema do Caramuru conheceu no século XX (para
evitar repetições, as referências bibliográficas dos outros séculos estão em
outras notas do presente texto): poesia popular (literatura de cordel) - João
Gonçalo, Do naufrágio, das , lutas e vitórias de Diogo Alvares Correia, dito 'O
Caramuru, nas sagradas terras da Bahia (Feira de Santana, s. ed., 1931); jornalismo
- José Hildebrando, "O Caramuru", A Tarde, Salvador, 26/6/1972; peça de
teatro - Aidil Linhares, ''A espingarda do Caramuru ou o pique dos índios"
(Salvador, mimeo); livro didático -
quase todos os que se referem aos primeiros anos da colonização portuguesa no
Brasil contêm referências, mais ou menos pormenorizadas, à história do Caramuru;
romance - Arthur Lobo D' A vila, Os Caramurus – Romance histórico da descoberta
e independência do Brasil (cf. A vila, 1900).
7. Apenas como
exemplos, citem-se dois livros paradidáticos recentes, escritos para públicos
diversos (universitário e primário, respectivamente), um editado em Portugal,
outro no Brasil, que contêm referências ao Caramuru: Couto (1995) e Sousa
(1995).
8. Autores não
luso-brasileiros que se referiram ao Caramuru foram em geral cronistas, ativos
participantes da história, como Claude d'Abbeville (1614), ou historiadores,
como Southey (1981). Sua produção, extremamente importante, porém pouco
significativa para o entendimento da construção da memória do Caramuru (pois,
em geral, eles apenas fazem referências muito breves ao tema ou repetem os
autores luso-brasileiros), não será objeto de análise neste texto.
9. Alguns livros que
atestam a existência de uma tradição oral na Bahia sobre o Caramuru: Carneiro
(1955) e Pierson (1958). Ferdinand Denis, intelectual francês que escreveu sobre
o Brasil na primeira metade do século XIX, testemunhou a existência da tradição
na Bahia desde essa época: "Há uma quinzena de anos, mostraram-me ainda, na
extremidade do Corredor da Vitória, uma árvore quase desprovida de sua, Diogo
Alvares, o Caramuru folhagem, que era designada pelo nome , de 'Arvore da
Descoberta'. Foi atrás dela, dizia-se, que Diogo Alvares se havia escondido
quando, após o naufrágio, viu os selvagens se apossarem de seus companheiros"
(Denis, 1837). Pelas razões expostas na nota anterior, a narrativa de Denis não
será objeto de análise.
10. Gabriel Soares de
Souza nasceu em Portugal, provavelmente em 1545. Aportou por volta de 1569 à
Bahia, onde permaneceu durante quase duas décadas, como senhor de engenho e
ocupante de cargos públicos. Aí constituiu família. Durante a União Ibérica,
esteve em Lisboa e Madri tentando obter licença e apoio para, junto com o
irmão, explorar riquezas minerais de que tivera notícias, nas cabeceiras do rio
São Francisco. Nessa época levou consigo para Portugal o manuscrito de Notícia
do Brasil, oferecendo-o a Cristóvão de Moura. Em 1591, com mais de 360 colonos,
retornou à Bahia, mas perdeu grande parte dos passageiros em um naufrágio.
Chefiou uma bandeira em direção ao São Francisco, morrendo no caminho. Notícia
do Brasil (nomeado em algumas edições Tratado descritivo do Brasil), por haver
circulado em cópias manuscritas e anônimas a partir de 1587, durante muito tempo
teve sua autoria atribuída a diversas pessoas; contudo, uma carta de Gabriel
Soares a Cristóvão de Moura, encontrada mais tarde, esclareceu definitivamente
a questão da autoria. Citarei aqui a edição de 1989.
11. Souza (1989: 32).
12. Souza (1989: 76).
Nesta página, uma única vez, o autor confere dois sobrenomes a Diogo: Alvares e
Correia.
13. Uma outra obra, de
autoria de Frei Vicente do Salvador, História do Brasil - 1500-1627, a primeira
história geral do Brasil escrita por um brasileiro, repete brevemente a versão
de Gabriel Soares de Souza. Acrescenta-lhe a informação de que os índios chamavam
Diogo de "Caramuru" porque "lhe sabia falar a língua",
afirmando que o conhecimento do idioma talvez não tivesse bastado para salvá-lo
da antropofagia, "se dele não se namorava a filha de um índio principal que
tomou a seu cargo defendê-lo"; nascia assim, ainda timidamente, a futura Paraguaçu.
No entanto, a importante obra de Frei Vicente do Salvador não faz parte da história
da construção da memória do Caramuru: escrita no século XVII foi publicada pela
primeira vez apenas em 1889, mais de 250 anos depois, quando a memória sobre o
personagem já se encontrava enriquecida por muitos outros relatos eruditos e
populares.
14. Simão de
Vasconcellos, nascido no Porto em 1596, foi jovem para o Brasil, onde ingressou
na Companhia de Jesus, professando em 1636. Com exceção do ano de 1641-42,
quando esteve em Lisboa, viveu até 1658 em terras brasileiras, onde foi
professor, reitor dos colégios da Bahia e do Rio de Janeiro e provincial. Após
um ano (1662-63) em Roma, como procurador da província do Brasil, retornou ao
Rio, dedicando-se até à morte (1671) a estudar e a escrever sobre a atuação dos
jesuítas no Brasil. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil,
publicado em 1663, é seu livro mais importante; narra a atuação dos primeiros
jesuítas e colonizadores portugueses com detalhes inexistentes em outras obras
da época, pois o autor, dada a sua formação e posição, teve acesso a
importantes informações reservadas. Citarei aqui a edição de 1865.
15. Vasconcellos (1865:
25-28).
16. Uma das muitas
versões a repetirem Vasconcellos foi Francisco de Britto Freyre (1675). Freyre,
almirante da armada portuguesa que lutou no Brasil contra os holandeses,
modificou apenas os seguintes pormenores: o nome Caramuru significa "homem
do fogo"; as mulheres, inconformadas com a viagem de Caramuru à França,
atiraram-se à água, e "dizem que se afogou uma" (Freyre, 1675: 73). A
narrativa de Freyre, assim como a maioria das outras publicadas nos séculos
XVII e XVIII sobre o Caramuru, não cita o livro de Simão de Vasconcellos. O
costume de escrever notas e referenciar fontes generalizou-se mais tarde.
17. A noção de
"núcleo duro" como "elemento central do enredo, que aparece repetido
quantas vezes forem necessárias em outros textos", está em Kermode (1983).
18. Cf. Cunha (1998: 103).
19. Matos (1969, vol.
4: 840).
20. Sebastião da Rocha
Pitta nasceu na Bahia, em 1660, e formou-se em cânones na Universidade de
Coimbra. Após breve passagem pela Infantaria de Ordenança da Bahia, como
coronel, recolheu-se à fazenda de sua propriedade em Cachoeira e aí se dedicou
à pesquisa e à produção escrita. Após compor sem sucesso obras de ficção, decidiu-se
a escrever uma história do Brasil. Para tanto, pesquisou durante anos em
arquivos e bibliotecas do Brasil e também de Lisboa; a fim de ler documentos no
original, aprendeu idiomas estrangeiros. Sua História da América Portugueza foi
à época elogiada por intelectuais importantes e aprovada com louvor pela
Academia de História Portuguesa, que tornou o autor seu membro supranumerário;
o prestígio da obra ajudou Rocha Pitta a tornar-se fidalgo da Casa Real e
cavaleiro da Ordem de Cristo. Citarei aqui a edição de 1880.
21. Rocha Pitta não
data a expedição de Cristóvão Jacques. Esta expedição exploradora, muito pouco
mencionada em livros anteriores, teve sua existência (hoje comprovada)
discutida pelos historiadores até meados do século XX. Atualmente se admite que
Cristóvão Jacques chefiou duas expedições ao Brasil, uma entre 1 5 16 e 1 5 1
9, e outra entre 1526 e 1 528 (cf. Vianna, 1974); pelas informações que dá, o
relato de Pitta parece referir-se a uma data próxima a 1 5 1 5. Cristóvão Jacques,
segundo relataram Pina e outros, chegou até o rio Paraguaçu ("rio
grande", em tupi), na Bahia.
22. Pitta (1880: 29).
23. Pina (1880: 31).
Ao longo do século XVIII escreveu-se bastante acerca das pregações de São Tomé
no Brasil. A esse respeito existe no Arquivo Nacional da Torre do Tombo curioso
manuscrito do século XVIII, em que o autor, talvez baseado na obra de Pina,
entre vários outros episódios da história brasileira, descreve a ida de São
Tomé ao Brasil (cf. ANTT Papéis do Brasil. Códice 13, p. 1-26).
24. A segunda edição
da obra do Pe. Simão de Vasconcellos, originalmente publicada em 1663, data de
1865, quando os exemplares existentes da Chronica já eram de "extrema
raridade", segundo o editor (cf. ''Advertência Preliminar", in
Vasconcellos, 1 865, s. p).
25. Não por acaso são
estas as primeiras palavras do livro de Pitta: ''As grandezas e excelências, ó
leitor discreto, da região do Brasil" ...
26. Frei Antonio de
Santa Maria Jaboatão nasceu em 1695 em Pernambuco, na freguesia de Santo Amaro
(rega da pelo rio Jaboatão) e morreu em cerca de 1765. Professou em 1717 na
Ordem de S. Francisco, onde exerceu vários cargos. Autor de numerosas obras -
crônicas, histórias e sermões -, muitas dedicadas à história de sua ordem, seu
principal livro é Orbe serafico novo brasilico, de 1761.
27. ''Antilóquio'',
in Jaboatão ( 1761, s. p.).
28. Jaboatão (1761:
22).
29. Jaboatão (1761:
25-26).
30. Frei José de Santa
Rita Durão, ao que tudo indica filho de portugueses, nasceu em Cata Preta,
aldeia da diocese de Mariana, Minas Gerais (1722?), e faleceu em Lisboa em 1784.
Levado para Portugal ainda criança, ingressou na Ordem de Santo Agostinho e doutorou-se
em teologia na Universidade de Coimbra, onde posteriormente foi professor.
Ocupou algum alto posto nesta universidade (algumas fontes dão-no como reitor)
durante o período do Marquês de Pombal; há indícios de que teria caído em
desgraça perante Pombal, por discordar da política em relação aos jesuítas
aplicada pelo bispo dom João da Cunha. Compôs o poema épico nos últimos anos de
vida, quando, impossibilitado de escrever devido a uma doença grave, teria
ditado uma parte da obra pela qual é lembrado: Caramuru Poema épico do descobrimento
da Bahia. Citarei aqui a edição de 1845.
31. Romero e Ribeiro (1906),
Coutinho (1968). Freqüentemente a obra de Durão é comparada ao Uruguai, de
Basílio da Gama, poema épico sobre as guerras entre índios, portugueses e
espanhóis em Sete Povos das Missões, então Uruguai, publicado em 1769; ambos
são considerados expressões do arcadismo setecentista no Brasil. Análises
literárias sobre o poema de Durão podem ser encontradas, entre outros, em:
Cândido (1981); Cidade (1957); Martins (1977). Houve uma tradução francesa do
Caramuru, ainda no século XIX: Monglave (1829).
32. "Reflexões
prévias e argumento", in Durão (1845, respectivamente p. XIII e XVI).
Muitos críticos chamaram a atenção para a influência do modelo de Os Lusíadas
sobre Caramuru.
33. Canto ILXLVI, in
Durão (1845).
34. A primeira
referência ao episódio está no Canto LXXVII e seguintes. As outras, em Canto
ILVIII-XII, XLIII e L, Canto III. XC e seguintes, Canto NLXVI e Canto V.XLII,
LI, LXVIII e LXX.
35. O termo
"cacique", de origem taina (Arawak, das Antilhas, depois
espanholizado
na instituição cacicazzo), não sendo vocabulário tupi, não é o mais indicado
para referir-se aos grandes guerreiros indígenas tupinambás (para usar o
etnôrnio mais freqüente da bibliografia especializada). Entretanto, como o
termo se popularizou e é efetivamente utilizado no poema de Durão, será mantido
aqui nas referências a este texto específico. Agradeço ao parecerista anônimo
deste artigo as explicações acima, referentes ao termo "cacique".
36. E famosa (e, segundo
alguns críticos, literariamente bem-sucedida) a descrição da morte de Moema,
personagem cuja existência, conforme se viu, já vinha sendo delineada antes
(cf. Canto VI.V e seguintes e Canto VI.XXXVI e seguintes). A cena é também
muito representada em desenhos, pinturas e gravuras.
37. A criação de
heróis redimidos pelo sofrimento em meios remotos tem sido comum no imaginário
de vários povos. A chegada dos europeus à América forneceu numerosas narrativas
sobre o tema (como as de Cabeza de Vaca ou de Hans Staden), muitas das quais continham
elementos presentes também na história do Caramuru: é o caso do medo que o
herói sente ao chegar, o medo que inspira devido a algum conhecimento que tem
(como o uso da arma de fogo), muitas vezes identificado pelos nativos com
alguma qualidade divina, o abandono do herói náufrago ou prisioneiro, que nessa
condição começa a viver realmente uma experiência transcultural etc. Cf. a
respeito, entre outros: Cabeza de Vaca (1987); Lery (1960); Staden (1974). Para
uma boa análise do tema, cf. O'Gorman (1992) e Todorov (1983). Para uma
comparação do tema em outro contexto histórico, é interessante conhecer as
representações sobre o pioneer, o conquistador branco do Oeste norte-americano.
A esse respeito, cf., entre outros, Nash (1967) e Slotkin (1973 e 1 985).
38. "Na generosa
empresa não descansar/De instruir a rudeza do selvagem [...] Que às expensas do
rei seja educado/O neófito, que abraça a santa Igreja." Cantos VIU.II. e
X. LXXVI in Durão (1845).
39. As citações estão
respectivamente em Canto I.LXXVIII e LXXVII, Canto NII e III e Canto NXLV e
seguintes. Representações de homens e mulheres de outros continentes com
características européias eram comuns na literatura e na iconografia da Europa
Ocidental desde o século XVI.
40. "Quando
Paraguaçu! Já Catarina..." escreve Durão no Canto VIII. XIII. Na visão que
"Catarina" teve de N. Sra. - "mais bela que esse sol que o mundo
gira/" (Canto IX.!) -, esta pedia que lhe fosse restituída uma imagem sua roubada.
O mistério da imagem desconhecida permanece durante vários cantos, até ser
descoberta, em terra, uma imagem que um carijó havia furtado. "Esta é
(disse) é esta a grã senhora / Que vi no doce sonho arrebatada" (Canto X.XLIII),
exclama Paraguaçu (cf. também Canto VIII.XVII e seguintes). Santa Rita Durão a
seguir estabelece, como outros já haviam feito, a mesma ponte entre esse
episódio miraculoso e a história do Brasil, pois a santa é escolhida padroeira
da Bahia.
41. Cf. Canto X.L e
seguintes. Os indígenas prestam "vassalagem" a
Caramuru,
que repassa tal vassalagem ao rei de Portugal (Canto X.LXIX). Escusado lembrar
que os conceitos de "herança" e "v assai agem", tal como expressos
por Rocha Pitta e Durão, eram desconhecidos dos índios.
42. Canto III.XI. Ao
narrar para Caramuru os "costumes indígenas" tais como Frei de Santa
Rita Durão os idealizou - a importância das tabas, o respeito pelos velhos, o
eficiente sistema de justiça, a punição do incesto e do adultério (!) etc. -,
Gupeva em verdade descreve uma utopia européia. Na segunda metade do século
XVIII muitas dessas utopias foram situadas pelos europeus em regiões e entre
povos "remotos".
43. Canto L XXIV,
LXXXVII, LXXXIXIV, Canto Iv. notas 1 e 2, Canto V.LXXIlI e Canto X.xVIII.
44. Canto IX. XIII e
LXXVIII.
45. Francisco Adolfo
de Varnhagen nasceu em São João de Ipanema, SP, em 1816, e faleceu em Viena,
Austria, em 1878. Filho de um militar austríaco e provavelmente de uma
portuguesa, estudava no Colégio Militar, em Lisboa, quando decidiu alistar-se
nas tropas de dom Pedro I, em defesa da restauração constitucional do Reino. De
volta ao Brasil, conseguiu comprovar a nacionalidade brasileira e ingressou na diplomacia;
serviu em vários países, inclusive Portugal e Espanha. Barão e Visconde de
Porto Seguro, foi membro de prestigiosas instituições (Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Academia Brasileira de Letras, Academia Real de Ciências
de Lisboa e Academia Real de História de Madri) e se tornou um dos mais
prestigiados historiadores brasileiros do seu tempo. Sua obra, composta de mais
de cem escritos e caracterizada pelo uso de grande número de documentos
inéditos e pelo rigor metodológico, ajudou a erigir o influente padrão
historiográfico que marcou a produção do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro à época. Note-se que, em 1859, Varnhagen publicou um romance
histórico: Caramuru. Seu trabalho aqui analisado é "O Caramuru perante a História"
publicado na Revista Semestral de História e Geographia ou Jornal do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro em 1848.
46. O concurso aberto
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tinha como tema central a
viagem de Diogo Alvares à França, reproduzindo a respeito do assunto dois
parágrafos retirados da obra de Sebastião da Rocha Pitta. Como se verá, o
premiado trabalho de Varnhagen não só criticou duramente a obra de Rocha Pitta,
como concluiu nunca ter existido a viagem de Caramuru à França.
47. Varnhagen (1848:
130). As citações seguintes estão, respectivamente, nas p. 129, 130 e 131.
48. "Quem conta
um conto / Acrescenta um ponto", lembra Varnhagen em nota (nota 1 , p. 1
30).
49. Parte deste ensaio
(originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, 1847) foi depois reproduzida na segunda edição do poema de Santa Rita
Durão. Cf. Durão (1845: VII-XIII).
50. Grande parte da
concepção de Augusto Comte sobre a história baseou-se em idéias correntes à
época em que escreveu. Tais idéias - como a classificação da história em etapas
sucessivas e evolutivas, a progressão desde a mitologia até a ciência, a identificação
entre história e civilização e a atribuição de um caráter científico ao trabalho
do historiador – influenciaram grandemente Varnhagen, sempre muito bem
informado sobre a produção européia nas áreas de história, filosofia e literatura.
51. Alguns documentos
citados ou reproduzidos na monografia: relação de Francisco de A vila sobre a
nau São Gabriel (1526), relação do capitão Diogo de Garcia (1526), carta de
Pero Lopes a Martim Afonso de Souza (1531), testemunho de Herrera (1535), carta
de Pero de Campo Tourinho a dom João III (1546) e carta de Manuel da Nóbrega (1555).
52. "Demos
existência formal ao que antes não fora talvez mais do que conjecturas
enfeitadas por uma imaginação criadora". Cf. Varnhagen (1848: 151).
53. Varnhagen (1848:
140 e 147).
54. Varnhagen não
duvida de que Pitta tenha consultado manuscritos, mas o acusa de não os haver
citado. Cf. Varnhagen (1848: 144 e 146-149).
55. Dois exemplos de
brechas no rigor da lógica: 1°) para dar "Caramuru" apenas como sinônimo
de um peixe brasileiro, Varnhagen apóia-se no capuchinho seiscentista Claude d'
Abbevile, que atuou no Maranhão e descreveu o peixe; nega assim outra fonte
igualmente válida, e mais próxima dos acontecimentos, o também seiscentista
jesuíta Simão de Vasconcellos, que morava na Bahia (isso sem argumentar com a
possibilidade da existência de dois significados para o termo, um relativo ao
peixe e outro dado , como alcunha a Diogo Alvares). 2°) Varnhagen afasta várias
possibilidades de o Caramuru ter estado na França apenas baseado numa suposição
de racionalidade do comportamento de Diogo Alvares: se este, argumenta, estava
auxiliando os portugueses, como iria se bandear para o lado dos franceses? Além
de tal comportamento racional ser apenas urna suposição do historiador, hoje em
dia está comprovado que, durante os primeiros anos da colonização, muitos
colonos transitaram entre portugueses e franceses, tirando partido da presença
de ambos no Brasil.
56. Três exemplos do
emprego de recursos de ficção no texto: o uso da ironia, para referir-se aos
autores e fatos dos quais discorda; o emprego de numerosas metáforas; e a
eleição, ao longo do texto, de protagonistas (os autores com os quais concorda)
e antagonistas (os dos quais discorda), que travam caloroso embate entre si.
57. E o caso de
praticamente todas as histórias gerais do Brasil publicadas neste século. Os
historiadores que seguiram outros cânones históricos, como o marxismo,
abandonaram o tema.
58. Não se conseguiram
dados sobre o autor.
59. D'Ávila (1900: 9).
As citações seguintes deste parágrafo estão nas p. 10 e 11.
60. D'Avila (1900:
179). A citação anterior é da p. 111, e as posteriores, das p. 180, 250 e 268.
61. João de Barros
nasceu na Figueira da Foz em 1881. Formado em direito em Coimbra, dedicou-se no
entanto à educação, como professor, diretor do Ensino Secundário e secretário
do Ministério da Inspeção; em 1925, ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros.
Autor de várias obras, que inclui poesia, ficção em prosa, adaptações de outros
textos e ensaios, a maioria sobre educação, foi um entusiasta da aproximação
luso-brasileira e escreveu sobre o assunto várias obras, as quais agrupou sob o
título de "Campanha Luso-Brasileira". Esteve três vezes no Brasil.
Seu Caramuru – Aventuras prodigiosas... é antecedido por um "Prefácio"
do autor e concluído com um "Epílogo" e uma "Vida do autor de Caramuru".
62. Barros (1935: 1
5). A citação seguinte está nas p. 9-10, e o "Epílogo" referido, nas
p. 157 e 158.
63. Canto I.1 in Durão
(1845) e Barros
(1935:
1 3).
64. "Sem que se
possa nem deva comparar-se aos Lusíadas ou à Odisséia", Caramuru é
"celebrado no rol dos Grandes Livros da Humanidade" afirma Barros (1935:
9 e 10). Na biografia de Durão, apresentada ao final do volume, Barros transcreve
opiniões elogiosas de críticos literários sobre o poema.
65. As citações estão
em Barros (1935: 10-11). Interessante é Barros afirmar, entre as qualidades do
Caramuru, que aí estão presentes "os três elementos étnicos formadores"
da população brasileira. O único negro que aparece no poema e Henrique Dias,
herói brasileiro da guerra contra os holandeses.
66. Barros (1935:
157-158).
67. As exceções são
as narrativas de Gabriel Soares de Souza e de Varnhagen, que não incorporam
elementos literários em seus enredos. Ambas, entretanto, tomaram emprestado do
ficcional outros
recursos;
sobre Varnhagen, a esse respeito, cf. nota 55.
68. Cf. Barros (1935:
1 0); D'Avila (1900: 10); e Barros (1935: 11).
69. Embora existam
definições mais sofisticadas, esta, de autoria de Richard Slotkin é clara e
atende a nossos objetivos. Cf. Slotkin (1973: 5). Sobre teorias do século XX
acerca dos mitos.
70.
Sobre mitos, cf., entre muitos outros, estes textos, que guardam diferentes
perspectivas teóricas entre si: Barthes (1957); Detienne (1986); Eliade (1981);
Levi-Strauss (1978); Samuel e Thompson ed. (1990).
71. De acordo com
Jung, os arquétipos fazem parte do inconsciente coletivo. Cf. Jung (1984). Para
uma reinterpretação da teoria junguiana, sustentando que os arquétipos são socialmente
construídos, cf., entre outros, Trevi (1987).
72. Para diferentes
perspectivas teóricas a respeito do significado das metáforas e suas relações
com a memória e a história, cf. Barthes, ed. (1987); Brooke-Rose, ed. (1991); White (1985); Ricoeur (1994); Riedel,
ed. (1988); Sahlins (1981); Veyne (1992).
73. Dubois (1991: 34 e
36), tradução nossa. A respeito do mesmo tema, cf. também Eliade (1981: 178 e
segs.).
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