Em celebração aos 500 anos (1517-2017) da publicação ou divulgação das 95 teses concebidas pelo monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546), acontecimento que se tornou marco para o início do movimento político-religioso chamado Reforma Protestante, onde publicamente Lutero se posicionava contrário a alguns dogmas e atitudes impostas e praticadas pela Igreja Católica Apostólica Romana, a decisão de Lutero abriu precedentes para que outros teólogos como João Calvino (1509-1564) e Ulrico Zuínglio (1484-1531), se manifestassem também contrários ao dogma católico, permitindo que um novo cisma se instaurasse sobre a cristandade da Europa ocidental, vindo a resultar no início da querela reformista ou protestante que levou a origem de novas igrejas cristãs.
Com isso, para celebrar esse cinco séculos do marco histórico da Reforma Protestante, trago um breve estudo e a tradução do teólogo português Pr. Dimas de Almeida, pesquisador do Centro de Estudos de Ciência da Religião da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, o qual no ano de 2008 publicou um estudo e tradução das 95 teses.
Desenho representando Martinho Lutero pregando as 95 teses na porta do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. |
Introdução
Aquele que renova o céu renova a terra. Jean Jaurès
1. Profundamente enraizada numa multiplicidade de correntes
tributárias do cultural, do político, do económico, a manifestar que não há
verdade senão encarnada, –– isto é, comprometida na diversidade dos fios que
tecem a urdidura do relativo e do contingente próprios de um tempo e de uma
geografia ––, a Reforma protestante do séc. XVI tem os contornos de um
acontecimento que marca a aparição de um novo paradigma teológico e eclesial no
Ocidente cristão.
É a passagem do paradigma católico romano da
Idade Média ao paradigma protestante da Reforma. Com as suas amplas
implicações, na medida em que Martinho Lutero não corporiza apenas a questão da
salvação ou da fé, mas incarna também –– ao tomar dramaticamente consciência de
que as superstições e as formas arcaicas da Igreja tradicional esvaziavam o cristianismo
da sua pertinência histórica –– um novo tipo de aproximação da sociedade portador
de elementos importantes para a emergência posterior da laicidade. É que na
proclamação funda da Reforma está presente não apenas a liberdade de crer mas
também a liberdade de não crer.
2. Quando se chega ao séc. XVI, a majestosa síntese tentada pela
Idade Média esfarela-se; e desse esfarelamento tudo pode morrer ou renascer.
Como em tantos outros tempos da história, debaixo dos pés dos humanos corriam
águas que tanto podiam ser genesíacas como diluvianas.
A história das outras Reformas anteriores
(mencionemos algumas delas: Bernardo de Claraval e a ordem cisterciense, Pedro
Valdo e os “pobres” de Lyon no séc. XII; Francisco de Assis e os franciscanos
no séc. XIII; John Wycliff no séc. XIV; Jan Hus no séc. XV) convida-nos a ver
nelas não só tentativas habitadas pela vontade de restituir a Igreja à sua
inspiração inicial, como também esforços fundos para se ouvir com novos ouvidos
a Promessa do Evangelho no meio do trágico da nossa história humana. Se o
destino de uma tal Promessa é o de ela ser anunciada num mundo onde reina o
trágico, então há que não evacuá-la na perversão do hierárquico, nem subtraí-la
à história espiritualizando-a numa mundividência que se esgota no fascínio do
Além.
É essa dialéctica estruturada pela distância
entre a Promessa do Evangelho e a tragicidade do quotidiano que marca a
história das Reformas. As outras e a de Lutero. Daí a sua enorme importância na
história dos cristianismos. Mas daí também os seus limites claros e as suas
ambiguidades significativas. Pretendendo-se diminuir a distância entre a
Promessa e a história, introduziu-se a possibilidade de um novo factor de
violência: em nome do Evangelho da paz ostracizou-se e matou-se. De parte a
parte.
3. No século de Lutero, a burguesia humanista e empreendedora
sentia como arcaicas as respostas da Igreja tradicional à sua tripla
necessidade de responsabilidade, de certeza de salvação e de gestão autónoma do
temporal. Lutero, particularmente ele, soube com as suas respostas, e com a
audácia da sua vida, reagir a esse triplo desafio. Sublinhou-o o dominicano
Christian Duquoc quando, evocando os Reformadores, deles disse:
« ––
Honraram a responsabilidade ao quebrarem a mediação hierárquica e ao tornarem
mais democrática a interpretação da Palavra de Deus pela entrega a cada um da
Bíblia. De hierárquica até então, a interpretação tende a tornar-se um debate
interno incessante; –– honraram a sua sede de certeza de salvação
ao proclamarem a justificação pela fé e não pelas obras de que o valor está
sempre sujeito à hesitação. Estas tornavam vã a morte de Jesus em nosso lugar e
faziam de Deus um juiz independentemente do acto redentor de Cristo. O espaço
ficava assim livre das condenações possíveis; –– honraram a sua necessidade de gestão
autónoma do temporal mediante a anamnese da bênção criadora, abertura à teoria
dos dois reinos, base para um novo cenário na relação futura entre as igrejas e
a sociedade civil.»
Aquilo a que se chama habitualmente mundo
moderno e protestantismo nascem juntos. Há, com efeito, um elo a ligar os dois,
quanto mais não seja em perspectiva cronológica. Significa isto que o espírito
de autonomia do homem e da sua busca das verdades científicas e existenciais
caminham a par com a pesquisa livre da Palavra definidora dos textos bíblicos.
Em outras palavras: o universo hermenêutico aberto por Lutero, como universo
possível para o exercício de uma liberdade inescapavelmente subversiva perante
o edifício dogmático das afirmações intocáveis, é um universo anunciador da
modernidade e anunciado por esta.
4. As diversas interpretações protestantes de Lutero surgidas em
cada uma das celebrações dos centenários da Reforma (e dentro de nove anos
teremos mais um centenário) são curiosas e significativas. Em 1617, a ortodoxia
luterana honra nele o fundador genial de um sistema teológico codificado numa
nova escolástica; em 1717, apresentam-no como o homem de um drama interior
excepcional, antepassado dos pietistas e românticos; em 1817, é celebrado como
o homem da ruptura com o magistério infalível, antepassado da filosofia das
Luzes (Aufklärung), pioneiro da tolerância; em 1917, é glorificado como o homem
alemão, fundador de uma cultura original e de uma Alemanha independente.
Cada uma dessas leituras luteranas do
Reformador tem o seu interesse. Mas o verdadeiro Lutero escapa a todas elas. E
continuará a escapar a leituras futuras. É que, senhor de um pensamento
teológico cujo vigor impressiona, muito mais do que a preocupação sistemática,
preocupou-o, sobretudo a actualidade profética da Palavra e não a elaboração de
um sistema. E se o momento subjectivo teve nele lugar importante, no seu
horizonte está sempre a descoberta de uma objectividade libertadora.
Curiosamente, vários marxistas, na sequência
de Engels, saudaram nele o promotor infeliz de uma revolução sociopolítica de
que não teve a coragem de assumir as consequências. É óbvio que a valorização
de Lutero inscrita em alguns discursos marxistas aparece acompanhada de uma
redução quer do religioso quer do teológico. Lutero fica, assim, reduzido a um
humanismo revolucionário. O religioso não é senão uma superestrutura. O
essencial, para esses marxistas, está noutro sítio.
Figura profundamente controversa, Martinho
Lutero perfila-se na história como anunciador da Modernidade. É-o, porém,
paradoxalmente. É-o sem ter sido habitado nem pela preocupação da actualidade
(a sua actualidade), nem pela intenção de introduzir na história o novo
paradigma da Reforma. Com ele, e nesse extraordinário «acontecimento da
palavra» sobretudo por ele corporizado, é um mundo que estremece, da Idade
Média aos Tempos Modernos. Dele, significativa e provocantemente, haveria de
afirmar o socialista francês Jean Jaurés: «Aquele que renova o céu renova a
terra.»
5. É assim que, a partir de 1517, o monge Martinho Lutero (tem ele
então 34 anos) será projectado para o primeiro plano da actualidade. No decurso
de muito pouco tempo (não mais de alguns meses) o seu nome e a missão de que se
sente incumbido vão ser conhecidos de uma opinião pública que se mostra cada
vez mais galvanizada pelos acontecimentos que se vão sucedendo em catadupa. O
detonador: a questão das indulgências.
Já antes de 1517 Lutero –– não só como exegeta
das Escrituras mas também como teólogo, e particularmente como pregador ––
tinha emitido reservas a propósito das indulgências. Homem de Igreja que era,
as reservas que começou por emitir no concernente às indulgências centravam-se
particularmente no receio que nutria de que estas pudessem pôr em causa a
sinceridade da penitência. Um tal receio aumentou quando, precisamente nesse
ano de 1517, substituiu o pároco de Vitemberga: nessa sua tarefa constatava, na
prática do ofício da confissão, o modo como os penitentes –– pouco motivados a
fazerem sinceramente penitência –– se apresentavam no confessionário, munidos
de uma indulgência que tinham comprado em Jüterborg, próximo de Vitemberga,
onde o dominicano Tetzel, subcomissionário na venda das indulgências, operava.
Mas de que se tratava verdadeiramente quando
se fala de indulgências? «No princípio entendia-se com isso a remissão, pela
Igreja, de uma pena que havia sido imposta ao penitente depois de este ter
confessado a sua falta e recebido a absolvição. Um tal procedimento repousava
na ideia de que um acto pecador arrastava consigo não somente uma falta mas
também uma pena que o pecador devia sofrer na terra ou no purgatório. (...)
Para uma tal remissão a Igreja recorria ao tesouro dos méritos supererrogativos
de Cristo e dos santos, de que ela pensava poder dispor.» 1
A doutrina estruturante do «tesouro da Igreja»
é meridianamente clara: em virtude da comunhão dos santos, a Igreja,
administradora do tesouro dos méritos de Cristo, tem o poder de os colocar à
disposição daqueles que querem escapar às penas temporais impostas para a
expiação dos seus pecados. A exposição clássica desta doutrina católica romana
vamos encontrá-la na bula Unigenitus Dei Filius, do papa Clemente VI,
publicada em 1343:
«(...) O Filho único de Deus, mediante o seu
próprio sangue, é para nós redenção eterna. (...) Foi pelo seu sangue precioso
que Ele nos resgatou. No altar da Cruz, Ele, o inocente imolado, derramou não
uma gota ínfima de sangue (o que já teria sido suficiente), mas sangue em
abundância, um rio de sangue, (...) Que imenso tesouro foi assim por ele
adquirido para a Igreja militante (...). Este tesouro, por vontade sua, Ele
quis que fosse distribuído aos fiéis para sua salvação por intermédio do
bem-aventurado Pedro, (portador das chaves do céu), e dos seus sucessores, seus
vicários na terra (...) a fim de lhes perdoar a eles, fiéis, tanto parcialmente
quanto completamente, a pena temporal devida ao pecado. (...) Sabemos que os
méritos da bem-aventurada Mãe de Deus e de todos os eleitos, do primeiro ao
último, contribuem para a riqueza desse tesouro, acerca do qual não se deve
temer nem que se esgote nem que diminua: além de os méritos infinitos de Cristo
serem infinitos, há ainda a ter em conta que quantos mais homens são levados à
justiça pela aplicação desse tesouro, mais cresce a massa dos méritos.» 2.
Os méritos supererrogativos eram assim os
méritos que a Igreja entendia terem sido alcançados «em excesso» (daí
supererrogativos) por Cristo, por Maria Mãe de Deus e pelos santos,
constituindo desse modo o que em terminologia doutrinária católica romana se
chama o «tesouro da Igreja». Temos assim que a fonte das indulgências é o
tesouro satisfatório da Igreja, tesouro inesgotável, que se compõe das
sobreabundantes satisfações de Cristo e dos santos.
A atribuição das indulgências –– no princípio
ligada a momentos particulares (como por exemplo o fim das Cruzadas) ––
tinha-se tornado, em fins da Idade Média, uma prática cada vez mais frequente,
ligada particularmente às necessidades financeiras do papado. A indulgência
contra a qual se insurgiu Lutero tinha sido promulgada em 1506 e renovada em
1517. As somas recolhidas eram destinadas ao financiamento da construção da
basílica de
S. Pedro em Roma. A aquisição de uma
indulgência (cujo custo para os artesãos era de um florim, importância suficiente
para uma pessoa viver durante uma semana, e para os reis, príncipes e bispos
vinte e cinco florins) proporcionava àqueles que a compravam o perdão dos
pecados. Para os espíritos simples a confissão aparecia, portanto, como uma
mera formalidade.
Já em 1516, no importante texto De
indulgentiis, Lutero havia sublinhado a necessidade de um verdadeira
penitência (arrependimento), sendo que a indulgência não podia substituir-se a
esse arrependimento, caso contrário os cristãos tornar-se-iam vítimas
de uma falsa segurança.
É nesse mesmo espírito que Lutero redige as 95
teses sobre as indulgências (historicamente ligadas ao 31 de Outubro de 1517).
Logo na tese 1 é proclamado: «Ao dizer “fazei penitência...”, nosso Senhor e
Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis seja uma penitência.»; e na
tese 94: «Há que exortar os cristãos a empenharem-se no discipulado de Cristo,
seu chefe, através do sofrimento, da morte e dos infernos.»; e na tese 92
«Passem bem, pois, esses profetas que dizem ao povo de Cristo: “Paz, paz”
quando não há paz!».
Até que ponto as 95 teses são revolucionárias
e implicam já, in nuce, uma ruptura com a Igreja, eis matéria de debate.
Do que não há dúvida é que Lutero está persuadido de que as teses podem
ser consideradas como uma crítica legítima dos abusos gerados pelas indulgências
e como uma contribuição para o esclarecimento de um «lugar» teológico
ainda obscuro.3 Se por um lado não aparece ainda claramente expressa a
rejeição do princípio das indulgências («Que aquele que fala contra a
verdade das indulgências apostólicas seja anátema e maldito.», tese 71), por
outro lado há que não depositar nelas a nossa confiança (vd. teses 32, 49, 52);
e mais que isso «Deve ensinar-se aos cristãos que dar aos pobres ou
emprestar aos necessitados é melhor obra que comprar indulgências.»
(tese 43).
O ataque desferido por Lutero atinge já,
indubitavelmente, a base da doutrina das indulgências, o famoso «tesouro da
Igreja». Para ele, «O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da
glória e da graça de Deus.» (tese 62). Daí a falsidade inerente ao gesto daqueles que, por causa da pregação
das indulgências, ordenam que a Palavra de Deus seja completamente reduzida ao
silêncio no conjunto das igrejas (teses 53-54).
Na perspectiva do luterólogo Marc Lienhard «É
todo o sistema que parece estar a ser posto em causa com a afirmação de Lutero:
“Qualquer cristão, verdadeiramente arrependido, tem completa remissão tanto da
pena como da culpa; ela é-lhe devida mesmo sem cartas de indulgências.” (tese
36). Que se evoque, sobretudo, a relativização do ministério sacramental do
papa e do clero em geral quando Lutero declara que “O papa não pode perdoar
nenhuma falta senão declarando e afirmando que ela foi perdoada por Deus” (tese
6). A remissão dada pelo papa é “um anúncio da remissão divina” (tese 38).» 4
Ao tornar públicas as 95 teses, Lutero
situava-se no campo de uma reflexão teológica, e visava indubitavelmente, nesse
campo, um debate. Mas ao afirmar, peremptoriamente, nas teses 42 a 51 «Deve
ensinar-se aos cristãos... », não estará ele a ir mais longe ? O lugar da
inscrição das teses não será já o de um manifesto, um formidável apelo lançado
à cristandade, proléptico já do que poucos anos depois vai tomar forma no texto
sobre a liberdade cristã?
A difusão que as teses conheceram foi
espantosa. Elas surgiam como catalisadoras de inquietações variadas que
habitavam muitos espíritos do tempo: o mundo que as teses habitam e pelo qual
são habitadas é o mundo das aspirações mais diversas e da crítica
incontornável. O monge e professor Martinho Lutero continua, não obstante as
teses, a considerar-se um fiel do papa. A ruptura ainda não ocorreu. Numa carta
que então escreve ao Papa, afirma: «Por isso, Santo Padre, prostro-me aos pés
da tua santidade e dou-me a ti com tudo o que sou e o que possuo.»5
Fiel do papa, Lutero é-o ainda. Mas é-o
sobretudo como aquele que desencadeia um processo cujas dimensões irão
ultrapassar, e ultrapassar em muito, as de uma simples disputa de escola. O
acontecimento histórico de que Lutero é protagonista começa por ter como ingredientes a questão das indulgências e
a da vida cristã em geral. Mas, mais do que isso, vai fazer eclodir o problema
dos sacramentos e o problema do papado. E com isso o magno problema da
autoridade na Igreja, concomitante ao da liberdade do cristão.
Em 1517 Lutero não faz a sua aparição no palco
do mundo com um programa de reforma. E, contudo, é o movimento por ele
desencadeado que recebe o nome de Reforma, substantivo próprio que passa
a designar um fenómeno histórico preciso que vai abalar toda a história
europeia subsequente. Em 1518, num texto explicativo das 95 teses, pode ler-se:
«A Igreja tem necessidade de uma reforma. Mas isso não é coisa de um só homem,
nem do papa, nem de vários cardeais –– o último concílio mostrou-o claramente.
É, sim, coisa de toda a Terra, ou antes, unicamente de Deus. Quanto ao tempo de
uma tal reforma, só o Criador dos tempos o conhece.»6
6. O dia 31 de Outubro tornou-se, a partir de 1617, o aniversário
da Reforma. É assim que é evocada anualmente essa data pelas igrejas
protestantes como o dia em que Martinho Lutero afixou as suas 95 teses sobre as
indulgências nas portas da igreja do castelo de Vitemberga. E, contudo, a facticidade
histórica desse gesto começou a ser posta em causa há umas cinco ou seis
dezenas de anos.
Lutero nada deixou escrito nem dito acerca
dessa afixação. O primeiro autor que o atesta é Melanchton que, em 1546 (alguns
meses depois da morte do Reformador), menciona o acontecimento de Vitemberga na
biografia que redigiu como prefácio ao 2.º volume das Obras latinas de
Lutero. E é este testemunho de Melanchton que se tem imposto quando se trata
das 95 teses. Ora, há uns cinquenta ou sessenta anos, na Alemanha, dois historiadores7
problematizaram a realidade do acontecimento. As suas teses provocaram o
aparecimento de algumas centenas de ensaios sobre o assunto.
Que se pode, em síntese, dizer de
relativamente seguro sobre o assunto?
a) Em 31 de Outubro de 1517, Lutero envia as suas teses às autoridades
eclesiásticas, entre as quais o arcebispo Alberto de Mayence, e também a alguns
amigos.
b) Terão sido alguns desses destinatários que, parece que sem o conhecimento
de Lutero, se ocuparam de as mandar imprimir, visando uma ampla divulgação.
c) Quando Lutero escreve em 31 de Outubro de 1517 a carta ao
arcebispo Alberto de Mayence, tem em vista incitá-lo a pôr fim aos abusos
cometidos no tráfico das indulgências, e não solicitar deste um julgamento
sobre as teses.
d) Em 31 de Outubro de 1517, Lutero está animado do desejo de uma
disputa em torno do tema das teses.
e) É verosímil –– ainda que não absolutamente seguro –– que ele
as tenha afixado publicamente nesse dia. A ser assim, a data reveste-se de um
significado particular: a data: véspera de Todos-os-Santos, não é somente
Tetzel e a sua pregação das indulgências que Lutero visa, visa também Frederico
o Sábio e o seu museu de relíquias; a língua: o latim supõe não um apelo
directo ao povo, mas sobretudo um convite aos clérigos, aos teólogos, aos
universitários, para assumirem a responsabilidade de um debate: o lugar: a
porta de uma igreja funciona simbolicamente como expressão de um desejo: desencadear
o debate em igreja. Nessa altura ele está ainda longe de imaginar uma ruptura
com Roma. O desejo que o anima é, fundamentalmente, o de nada dizer que não
seja conforme ao ensino da Igreja católica e aos seus doutores.8
7. Há sessenta anos aparecia na Alemanha um pequeno livro sobre
Martinho Lutero. O seu autor era Johannes Hessen, filósofo católico.9 Com esse
seu livro, Hessen dava uma importante e inovadora contribuição para uma melhor
compreensão do acontecimento-Lutero.
O desafio que Hessen sentiu traduzia-se para
ele em, como católico, ver Lutero com olhos católicos, isto é, «encará-lo e
apreciá-lo numa perspectiva espiritualmente católica, e saber extrair daí, sem
reservas, tudo o que ele nos oferece de positivo.» Hessen parte de um
pressuposto para ele fundamental: católico quer dizer universal. Em outras
palavras: implica ser-se omnicompreensivo, afirmar a Verdade, o Bem, o Belo e o
Santo, onde quer que eles se encontrem. Implica dizer «sim» à plenitude dos
valores. Implica, nas palavras de Santo Agostinho, por Hessen citado, o
reconhecimento deque «nenhum de nós se ufane de ter já achado a verdade.
Procuremo-la juntos, como se ela nos fosse a ambos desconhecida. Só poderemos
procurá-la, conscienciosamente e em boa harmonia, se nenhum de nós se arrogar
desde o primeiro momento o tê-la já achado.»
Move ainda Hessen a convicção de que, dada a
centralidade da figura de Lutero na Reforma do séc. XVI, um possível acordo acerca
dele, entre católicos e protestantes, é essencial no diálogo ecuménico.
É nesse horizonte que Hessen se move, fazendo
incidir o seu olhar crítico sobre três obras dos três historiadores católicos
que mais tinham marcado a historiografia católica sobre Lutero na primeira
metade do séc. XX.
Hessen começa com Heinrich Denifle10, para
quem Lutero era redutível ao seguinte juízo: homem intrinsecamente mau, a Reforma
por ele gerada transportava no seu âmago uma pura imoralidade. O Reformador não
passava de «um vulgar bota a baixo (...) um demónio (...) um enganador (...)
um falso profeta (...) um mentiroso e impostor»11
Hessen desmonta a tese de Denifle (visto por
Hessen como «um dominicano na alma do qual como que ardia ainda a “cólera sagrada”
do velho inquisidor»12) começando por aplicar aos seus métodos o dito clássico
de Harnack: «É fácil liquidar um génio, passando-lhe uma rasteira tirada das
suas próprias imperfeições e daquilo que ele tem de comum com a sua época»13.
Hessen, consciente de que a ciência historiográfica católica, quarenta anos depois de Denifle, já havia abandonado
Denifle, faz suas as palavras do historiador católico Sebastian Merkle14:
«Acreditar ou, pelo menos, querer fazer crer aos outros que um homem moralmente
corrupto e intelectualmente pouco lúcido, movido só pelos seus interesses ou
pelos dum pequeno grupo, pudesse arrebatar toda uma nação e um século, fazê-lo estremecer
até às suas raízes e dividi-los em dois mundos opostos, é o mesmo que inverter
toda a filosofia da história e contemplar esta numa perspectiva de ranídeo...
Seria uma triste prova de pobreza para a ciência católica, que ela não pode
admitir, deixar criar a impressão de não ter, em frente da sua rival
protestante, outra argumentação mais objectiva para se defender, e de ter de recorrer
a tão indignos ataques pessoais».
De Denifle, Hessen passa a Hartmann Grisar15 que,
repudiando a fórmula de Denifle, a substitui por outra totalmente diversa: Lutero
deixa de ser o homem mau para se transformar no doente da alma, o psicopata,
com o que o ódio cede o lugar à compaixão.
Mas para Hessen a tese de Grisar está também
ela ultrapassada no estado da ciência católica de então acerca de Lutero. E estevão
com a tese de Joseph Lortz16: o fenómeno-Lutero não é explicável evocando-se
razões de ordem patológica. Para Lortz «É inegável que ele (Lutero) não só na
sua actividade científica como na apostólica e administrativa, com as coisas
que fez deu provas extraordinárias de robustez de saúde mental.»17
Hessen vê, porém, num texto de Franz-Xavier
Kiefl18 então decano da Sé de Regensburg, os sinais de um verdadeiro juízo positivo
sobre Lutero. E vê-os logo no modo como Kiefl, ao formular o tema do ensaio, a
psyché religiosa de Lutero, raiz de uma nova mundividência filosófica, se
move hermeneuticamente no espaço marcado por Lutero como uma «alma religiosa»
que emerge na história como alguém que, ao dar origem a um movimento espiritual
que domina os séculos, surge como «instrumento da Providência» para uma
purificação da Igreja.
Mas quem, para Hessen, ultrapassa de um modo
particularmente importante os passos positivos já dados na compreensão de Lutero,
é Josef Lortz19. Visando preparar o terreno para um diálogo ecuménico acerca do
Reformador, a partir de um aprofundado estudo da sua obra, Lortz sublinha
enfaticamente, como conditio sine qua non de toda a investigação, a
necessidade de ver em Lutero um homo religiosus por excelência. Um homo
religiosus cuja função crítica em relação à Igreja católica, a sua Igreja,
se tinha tornado historicamente necessária. Assim se exprime Lortz: «Sobre um
facto devemos todos estar de acordo, tanto de um lado como do outro: Lutero
foi, antes de todos os restantes traços que o possam caracterizar, um autêntico
homem religioso»20.
Para Lortz –– e isto é de suma importância ––
é por motivos católicos que Lutero rompe com a Igreja católica. Mar agitado e pro
fundo de forças, o homo religiosus nele presente assume-se como o
confessor da theologia crucis, do Cristo crucificado, da redenção operada
pela graça divina. Nesse sentido, o que nele ocorre é profundamente
significativo: «A sua ida para um convento, para ali, sem outras intenções e
desinteressadamente se entregar aos seus íntimos conflitos de consciência, para
os vencer, se libertar do pecado e alcançar a posse de um Deus de misericórdia;
a profundidade do seu conhecimento da Bíblia, com a qual, com este Livro dos
livros, contraiu um exemplar, eterno e fecundo matrimónio; a sua interpretação
do Magnificat e da confissão até ao fim da sua vida; a pregação ardente
da sua fé; a defesa da presença real na eucaristia, a ponto de recentemente os
protestantes terem de ver aí, outra vez, a doutrina católica do opus
operatum; o modo como ele ensinou e soube rezar, ele próprio; e ainda os
conteúdos cristãos dos seus velhos e novos cânticos religiosos.»21
Ao recusar tanto a fórmula de Denifle (Lutero,
o imoral), como a de Grisar (Lutero, o patológico), qual é, no fim de contas, a
fórmula de Lortz? Sem dúvida, o Lutero lortziano assume contornos muito
diferentes quer do denifliano quer do grisariano. Interpretando-o in bonam
partem, de Lortz se poderá dizer que ele vê Lutero como alguém
profundamente dominado por uma nota de subjectivismo.22
Nova fórmula esta que –– não obstante o seu
inegável avanço em relação às anteriores –– também não satisfaz inteiramente Hessen.
Há que, diz Hessen, reconhecer em Lutero um outro tipo espiritual de homem:
nele o que verdadeiramente emerge é o tipo profético. É que a
afirmação do eu, no Reformador, não é o mesmo que subjectivismo.
O princípio estruturante da tese de Hessen
funda-se, pois, nisto: em ver no que ele chama o «fenómeno Lutero» as marcas do
profeta. Para Hessen «Lutero vai entroncar na linha dos grandes profetas do
Velho Testamento. Como estes, é também ele um campeão de Deus, inflamado por um
santo entusiasmo. Também ele se propõe combater por um alto e puro ideal de
amor divino, e por uma adoração de Deus “em espírito e verdade”. Como os
profetas, também Lutero pretende purificar e reformar a sua religião.»
De Hessen para cá, a historiografia católica
sobre Martinho Lutero tem continuado significativamente a fazer-se. Tentando compreender
a personalidade infinitamente complexa do Reformador, inúmeros têm sido os
trabalhos que têm aparecido no grémio católico romano em contextos geográficos
os mais diversos: tanto em solo germânico quanto em solo anglo-saxónico, francês
ou norte-americano. O «fenómeno–Lutero», na sua complexidade, não tem deixado
de suscitar novos estudos. Ele «foi mais do que um teólogo. Foi uma figura
chave para a definição do equilíbrio social na Alemanha, fragmentada e rural,
que, com inquietação e atrito, procurava uma nova configuração por entre ruínas
e promessas de velhas e antigas ordens.»23
AS 95 TESES: Controvérsia em torno da questão das
Indulgências, por Martinho Lutero (1517), tradução do original em latim por Pr. Dimas de Almdeia (2008)
Por amor da verdade e elucidação da mesma, as teses
seguintes serão discutidas em Vitemberga, sob a presidência do Rev. Padre
Martinho Lutero, mestre em artes e em teologia e leitor ordinário de teologia
neste mesmo lugar. Ele pede, por esse motivo, aos que não possam estar
presentes para connosco as debaterem, que o façam, mesmo ausentes, por escrito.
Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Ámen.
1. Ao dizer “Fazei penitência...”, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo
quis que toda a vida dos fiéis seja uma penitência.
2. Esta palavra não pode ser compreendida como caracterizante da
penitência sacramental (isto é, da confissão e da satisfação), celebrada pelo
ministério dos sacerdotes.
3. Ela, contudo, não visa somente uma penitência interior: bem pelo
contrário, uma penitência interior é nula, a não ser que opere exteriormente
diversas mortificações da carne.
4. Esse o motivo por que a pena permanece, tanto tempo quanto
permaneça o ódio a si mesmo (isto é, a verdadeira penitência interior), por
outras palavras, até à entrada no reino dos céus.
5. O papa não quer nem pode perdoar nenhuma pena, excepto as por
ele impostas seja por sua própria vontade, seja em conformidade com os cânones.
6. O papa não pode perdoar nenhuma falta senãodeclarando e
afirmando que ela foi perdoada por Deus, ou perdoando-a de um modo firme nos
casos que a si mesmo reservou; menosprezados estes, a falta subsistiria
integralmente.
7. Deus não perdoa verdadeiramente a nenhum homem a sua falta sem o
submeter, totalmente humilhado, ao sacerdote, seu vicário.
8. Os cânones penitenciais são impostos unicamente aos vivos, nada
devendo, segundo tais cânones, ser imposto aos moribundos.
9. É por isso que o Espírito Santo nos concede um bem por intermédio
do papa, quando este exceptua sempre nos seus decretos o artigo de morte e de
necessidade.
10. De um modo ignorante e injusto agem os sacerdotes que aos moribundos
aplicam penitências canónicas tendo em vista o purgatório.
11. Uma tal cizânia, a da mutação da pena canónica em pena para o
purgatório, parece bem ter sido semeada enquanto os bispos dormiam.
12. As penas canónicas eram, outrora, impostas não depois, mas antes
da absolvição, para fazer a prova da autenticidade da contrição.
13. Os moribundos, com a sua morte, pagam todas as dívidas, e estão
já mortos para as leis dos cânones, de que estão de direito livres.
14. Uma pureza ou uma caridade imperfeitas por parte de um moribundo,
arrastam necessariamente com elas um grande temor, tanto maior quanto menores
elas forem.
15. Esse temor e esse terror bastam para produzir por si mesmos (para
não falar do resto) a pena do purgatório, pois estão próximos do horror do
desespero.
16. A diferença entre inferno, purgatório e céu, parece ser tanta quanta
a existente entre desespero, quase-desespero e confiança.
17. Parece necessário às almas do purgatório que tanto diminua o seu
terror quanto aumente a sua caridade.
18. Parece não provado nem por nenhuma razão nem por nenhuma
escritura, que essas almas estejam excluídas do estado de mérito e de
crescimento na caridade.
19. Tão pouco parece estar provado que essas almas, pelo menos na
sua totalidade, estejam seguras e certas da sua beatitude, ainda que nós
próprios de tal estejamos absolutamente certos.
20. Por consequência, o papa, ao falar de remissão completa de todas
as penas, não as tem a todas absolutamente em vista, mas somente aquelas por
ele mesmo impostas.
21. Estão por isso em erro os pregadores das indulgências que dizem
que pelas indulgências do papa, o homem está livre de toda a pena e salvo.
22. Mais ainda, o papa não perdoa às almas no purgatório nenhuma
pena que elas devessem ter pago nesta vida, segundo os cânones.
23. Se alguma vez uma remissão completa de todas as penas pudesse
ser concedida a alguém, é certo que não o seria senão aos mais perfeitos, isto
é, aos menos numerosos.
24. Daí segue-se que a maior parte do povo é necessariamente enganada
por essa promessa indistinta e fanfarrã da remissão de toda a pena.
25. O poder que tem o papa universalmente sobre o purgatório, têm-no
especialmente na sua diocese ou na sua paróquia um qualquer bispo ou cura.
26. O papa faz muito bem em dar às almas a remissão não em virtude
do poder das chaves (que de nenhum modo ele tem), mas através da intercessão.
27. Pregam uma invenção de homens aqueles que dizem que no mesmo
instante em que a moeda lançada na caixa soa, a alma (do purgatório) voa.
28. É certo que quando a moeda soa na caixa, o ganho e a cupidez
podem aumentar; mas a intercessão da Igreja depende unicamente da vontade de
Deus.
29. Quem sabe se, no purgatório, todas as almas querem ser resgatadas,
como se conta de s. Severino e de s. Pascal?
30. Ninguém está seguro da verdade da sua própria contrição, muito
menos o está de alcançar a completa remissão.
31. Tão raro é o verdadeiro penitente quão raro é o que adquire verdadeiramente
indulgências: isto é, raríssimo.
32. Condenados para a eternidade, com os seus mestres, serão os que
crêem, mediante cartas de indulgências, estar seguros da sua salvação.
33. Há que desconfiarmos, e muito, dos que dizem que as indulgências
do papa são o inestimável dom divino pelo qual o homem é reconciliado com Deus.
34. Porque as graças das indulgências dizem respeito apenas às penas
da satisfação sacramental, que foram estabelecidas pelos homens.
35. Pregam doutrina não cristã os que ensinam que a contrição não é
necessária às pessoas que querem resgatar as almas ou adquirir os bilhetes de
confissão.
36. Qualquer cristão, verdadeiramente arrependido, tem completa remissão
tanto da pena como da culpa; ela é-lhe devida mesmo sem cartas de indulgências.
37. A todo e qualquer cristão verdadeiro é concedido, como dom de
Deus, o participar em todos os benefícios de Cristo e da Igreja, mesmo sem
cartas de indulgências.
38. Não se deve, contudo, de nenhum modo, desprezar a remissão
concedida pelo papa e a participação no que ele dá, pois ambas constituem (como
já disse) um anúncio da remissão divina.
39. É dificílimo mesmo aos mais doutos teólogos poderem, diante do
povo, dar simultaneamente ênfase à profusão das indulgências e à verdade da
contrição.
40. A verdadeira contrição busca e ama as penas, mas a profusão das
indulgências fá-las minimizar e odiar; pelo menos suscita para tal a ocasião.
41. As indulgências apostólicas devem ser pregadas prudentemente,
não aconteça que o povo suponha, falsamente, que elas são preferíveis às outras
boas obras de caridade.
42. Deve ensinar-se aos cristãos que não está de acordo com o pensamento
do papa colocar no mesmo pé de igualdade a compra das indulgências e as obras
de misericórdia.
43. Deve ensinar-se aos cristãos que dar aos pobres ou emprestar aos
necessitados é melhor obra que comprar indulgências.
44. Porque, mediante a obra da caridade, a caridade cresce, e o homem
torna-se melhor, mas mediante as indulgências o homem não se torna melhor,
somente é libertado da pena.
45. Deve ensinar-se aos cristãos que aquele que vê um pobre e, negligenciando-o,
dá para as indulgências, chama sobre si mesmo não as indulgências do papa, mas
a cólera de Deus.
46. Deve ensinar-se aos cristãos que, a não ser que abundem em bens
supérfluos, são obrigados a conservar em suas casas o que lhes é necessário, de
maneira nenhuma o dissipando em indulgências.
47. Deve ensinar-se aos cristãos que a redenção das indulgências é
livre, não imposta.
48. Deve ensinar-se aos cristãos que o papa, quando se trata para ele
de dar as indulgências, tem mais necessidade e desejo de uma oração fervorosa
do que de dinheiro sonante.
49. Deve ensinar-se aos cristãos que as indulgências do papa são úteis
se nelas eles não confiarem, mas extremamente nocivas se, por causa delas,
perderem o temor de Deus.
50. Deve ensinar-se aos cristãos que se o papa conhecesse as exacções
dos pregadores de indulgências, preferiria a basílica de S.Pedro reduzida a
cinzas a vê-la edificada com a pele, a carne e os ossos das suas ovelhas.
51. Deve ensinar-se aos cristãos que o papa prontificar-se-ia, como
é dever seu –– mesmo que para tal fosse necessário vender a basílica de S.
Pedro ––, a dar dos seus próprios bens a um grande número daqueles a quem os
fabricantes de indulgências extorquem o dinheiro.
52. É vão crer numa salvação adquirida mediante cartas de indulgências,
ainda que o comissário dessas indulgências, até mesmo o papa, dessem para tal a
sua alma como garantia.
53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação
das indulgências, ordenam que a Palavra de Deus seja completamente reduzida ao
silêncio nas outras igrejas.
54. Comete-se injúria à Palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se
consagra às indulgências tanto ou mesmo mais tempo que o dedicado a essa
Palavra.
55. O papa pensa, sem dúvida, que se se prega as indulgências (que
pouca coisa são) por meio de um sino, de uma procissão e de uma cerimónia,
deve-se celebrar o Evangelho (que é a maior de todas as coisas) com cem sinos,
cem procissões e cem cerimónias.
56. Os tesouros da Igreja, de onde o papa tira as indulgências que dá,
não estão suficientemente definidos nem são satisfatoriamente conhecidos entre o
povo de Cristo.
57. É óbvio que não se trata nisto de tesouros temporais, que muitos
pregadores não distribuem, mas exclusivamente amealham.
58. Tão pouco se trata dos méritos de Cristo ou dos santos, porque
esses produzem sempre, sem a intervenção do papa, a graça do homem interior,
bem como a cruz, a morte e o inferno para o homem exterior.
59. S. Lourenço disse que os tesouros da Igreja são os seus pobres,
mas exprimiu-se assim conforme o uso do seu tempo.
60. Sem grande audácia, podemos dizer que o tesouro consiste no poder
das chaves da Igreja (dadas pelo mérito de Cristo).
61. É, com efeito, claro que o poder do papa é suficiente em si para
a remissão das penas e dos casos canónicos.
62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória
e da graça de Deus.
63. Mas trata-se de um Evangelho que, compreensivelmente, suscita a
maior aversão, pois faz dos primeiros os últimos.
64. Inversamente, o tesouro das indulgências tem, compreensivelmente,
o melhor acolhimento, pois faz dos últimos os primeiros.
65. Por isso os tesouros do Evangelho são redes com que outrora se
pescavam os homens providos de bens.
66. Os tesouros das indulgências são redes com que agora se pescam
os bens dos homens.
67. As indulgências, que os pregadores proclamam bem alto como as
maiores graças, são na verdade consideradas como tais na medida em que
proporcionam um lucro.
68. Elas são contudo, na realidade, graças mínimas, quando com - paradas
à graça de Deus e à piedade da cruz.
69. Os bispos e os párocos são obrigados a receber com toda a reverência
os comissários das indulgências apostólicas.
70. Mas, muito mais do que isso, estão obrigados a vigiar com olhos
bem abertos e a ouvir com ouvidos bem atentos, para que não se dê o caso que
esses comissários, em vez da comissão do papa, preguem antes os seus próprios
devaneios.
71. Que aquele que fala contra a verdade das indulgências apostólicas,
seja anátema e maldito.
72. Mas que aquele que vigia na luta contra o apetite desenfreado e
o desvario verbal do pregador de indulgências, seja declarado bendito.
73. Assim como o papa, justamente, invectiva aqueles que de um modo
ou outro maquinam a fraude em detrimento do negócio das indulgências.
74. Muito mais ainda invectiva aqueles que, a pretexto das indulgências,
maquinam a fraude em detrimento da caridade e da verdade.
75. Opinar que as indulgências papais são tão poderosas que poderiam
absolver um homem mesmo se, coisa impossível, ele tivesse violado a mãe de Deus
–– opinar tal é estar louco.
76. Contra isso, afirmamos que as indulgências papais não podem, no
que à culpa concerne, apagar o mais insignificante pecado venial.
77. Dizer como por aí se diz que nem mesmo S. Pedro, se fosse hoje
papa, poderia dispor de maiores graças, é uma blasfémia contra S. Pedro e
contra o papa.
78. Contra isso, afirmamos que ele, como qualquer outro papa, dispõe
de graças maiores, a saber, o Evangelho, as virtudes, os dons de cura, etc. (cf
1 Cor 12).
79. Dizer que a cruz representada de modo deslumbrante nas armas
papais equivale à cruz de Cristo, é blasfémia.
80. Disso terão eles, bispos, párocos e teólogos que se justificar, pois
permitem que tais doutrinas circulem entre o povo.
81. Essa licenciosa pregação das indulgências torna difícil, mesmo a
homens doutos, preservar a reverência devida ao papa das calúnias ou das
questões argutas dos leigos.
82. A saber: Porque não esvazia o papa o purgatório por amor da santíssima
caridade e da necessidade mais imperiosa das almas, que é o motivo mais justo
de todos, se resgata as almas, em número infinito, pelo amor bem funesto do
dinheiro para a edificação da basílica de S.Pedro, que é o mais inconsistente dos
motivos?
83. E do mesmo modo: Porque continuam a subsistir as exéquias e os
aniversários dos defuntos? E porque não restitui o papa, ou não permite ele que
sejam recuperados, os benefícios fundados nestas intenções, se é injurioso orar
pelos redimidos?
84. E do mesmo modo: que nova piedade de Deus e do papa é essa
mediante a qual permitem que um ímpio e inimigo resgate com dinheiro uma alma
piedosa e amiga de Deus, enquanto eles mesmos não a resgatam, tendo em conta a
sua imperiosa necessidade, pelo exercício de uma caridade gratuita?
85. E do mesmo modo: porque é que os antigos cânones penitenciais –
de há muito já abrogados, por falta de uso, e consequentemente mortos – podem
legitimar um resgate mediante indulgências compradas por dinheiro, como se
continuassem em vigor?
86. E do mesmo modo: porque é que o papa, possuidor hoje de riquezas
mais opulentas que as dos mais opulentos Crassos, não constrói ele com dinheiro
do seu bolso a basílica de S. Pedro, em vez de o fazer com o dos pobres fiéis?
87. E do mesmo modo: que restitui ou dispensa o papa àqueles que,
por uma contrição perfeita, têm direito a uma plena remissão e participação?
88. E do mesmo modo: que bem maior poderia advir à Igreja se o papa,
como por vezes faz, concedesse cem vezes por dia a um qualquer dos fiéis uma
tal restituição ou dispensa?
89. Já que 12 com as indulgências, o papa procura, mais do que o dinheiro,
a salvação das almas, porque suspende ele então as cartas e indulgências já concedidas
no passado, sendo como são igualmente eficazes?
90. Abafar pela força os argumentos sagazes dos leigos, em vez de os
dilucidar racionalmente, é expor a Igreja e o papa à zombaria inevitável dos
seus inimigos e tornar infelizes os cristãos.
91. Se, pois, as indulgências fossem pregadas segundo o espírito e o
pensamento do papa, todas estas dificuldades seriam facilmente resolvidas, não
existiriam mesmo.
92. Passem bem, pois, esses profetas que dizem ao povo de Cristo:
“Paz, paz”quando não há paz!
93. Felicidades a todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “Cruz,
cruz”, quando não há cruz!
94. Há que exortar os cristãos a empenharem-se no discipulado de
Cristo, seu chefe, através do sofrimento, da morte e dos infernos.
95. E a alimentar a confiança de entrar no céu
mais por numerosas tribulações 14 do que por uma ilusória segurança da paz.
NOTAS:
1. Vd. Marc Lienhard, Martin Luther. Un temps,
une vie, un message, pp. 61 e s.
2. Vd. Denziger, Enchiridion Symbolorum, n.os 550 a 552.
3. Vd. Richard Stauffer «L’affichage des 95 Thèses. Réalité ou légende?», in Bulletin de la Société de
l’Histoire du Protestantisme Français, Paris, 1967.
4. Lienhard, op. cit., p. 64.
5. WA, citado por Lienhard, op. cit.,
p. 65.
6. Citado por Gerhard Ebeling, Luther. Introduction à une
réflexion théologique, p. 58.
7. Erwin Iserloh e Klemens Honselmann.
8. Vd. Georges Casalis, Luther et l’Église confessante,
p. 53.
9. Johannes Hessen, Luther in katholischer Sicht, Bonn
1947, 2.ª ed. 1949 (trad. port. De
L. de Cabral de Moncada, Lutero visto pelos católicos, Coimbra, Arménio Amado
Editor, 1951.
10. Heinrich Denifle, Luther und Luthertum in der ersten
Entwickelung quellenmässig dargestelt, Mayence, 1904 e 1909 (2 volumes).
11. Hessen, ob. cit., p. 14.
12. Idem, p. 15.
13. Adolf von Harnack, Lehrbuch der Dogmengeschichte, III,
4.ª ed. Tübingen, 1910, p. 897.
14. Sebastian Merkle, «Guttes an Luther und Übles an
seinen Tadlern» in Luther in ökumenischer Sicht, ed. por Alfred von Martin,
Stuttgart 1929, p. 17.
15. Hartmann Grisar, Luther, Fribourg-en-Brisgau,
1911-1912 (3 volumes).
16. Joseph Lortz, Die Reformation in Deutchland,
Freibourg-en-Brisgau, 1939-1940. (2 volumes).
17. Idem, pp. 434 e seg.
18. Franz-Xavier Kiefl, «Martin Luthers religiöse Psyche»
in Katholische Welttanschauung und modernes Denken, Ratisbonne, 1923, pp.
17-38.
19. Joseph Lortz, Die Reformation in Deutschland,
Freiburg-en-Brisgen, 1941 (2 volumes).
20. Hessen, op. cit, p. 22.
21. Lortz, cit. por Hessen, op. cit., p. 23.
22. Hessen, op. cit., p. 25.
23. Viriato Soromenho-Marques «A
reforma luterana no horizonte da filosofia política» in Martinho Lutero,
diálogo e modernidade, Edições Universitárias Lusófonas, 1999 (pp. 13-42). Vd.
também nessa mesma obra o texto de David Sampaio Barbosa «A imagem de Lutero na
historiografia católica» (pp. 79-88).
Fonte: ALMEIDA, Dimas de. As 95 teses de Martinho Lutero. Cadernos de Ciência da Religião, Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias, 2008.
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