Entrevista com Abdias Nascimento
dada a Revista Acervo, em 2009
Obs: as imagens presentes não constam no texto original. Optei em acrescentá-las para motivo de ilustrar alguns temas e acontecimentos citados.
Abdias
Nascimento nasceu em Franca (SP), em 1914, em uma família coesa, carinhosa e
organizada, porém pobre. Em 1929 diplomou-se em Contabilidade pelo Ateneu Francano.
Com 15 anos, alista-se no Exército e vai morar na capital paulista. Na década
de 1930, engaja-se na Frente Negra Brasileira e luta contra a segregação racial.
Prossegue na luta contra o racismo organizando o Congresso Afro-Campineiro em
1938. Funda, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), entidade que
patrocina a Convenção Nacional do Negro em 1945-1946.
Abdias do Nascimento com seus 90 e poucos anos. |
A
Convenção propõe à Assembleia Nacional Constituinte de 1946 a inclusão de
políticas públicas para a população afro-descendente e um dispositivo
constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-pátria. À
frente do TEN, Abdias organiza o I Congresso do Negro Brasileiro em 1950.
Militante do antigo PTB, após o golpe de 1964 participa desde o exílio na
formação do PDT. Já no Brasil, lidera em 1981 a criação da Secretaria do
Movimento Negro do PDT.
Na
qualidade de primeiro deputado federal afro-brasileiro a dedicar seu mandato à
luta contra o racismo (1983-1987), apresenta projetos de lei definindo o
racismo como crime e criando mecanismos de ação compensatória para construir a verdadeira
igualdade para os negros na sociedade brasileira. Como Senador da República
(1991, 1996-1999) continua essa linha de atuação. Em 1991, o governador Leonel
Brizola o nomeia secretário de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras
do Estado do Rio de Janeiro (1991-1994). Mais tarde, é nomeado primeiro titular
da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro
(1999-2000).
Acervo. O senhor nasceu 26
anos após a abolição da escravatura, o que pode ser considerado tecnicamente
como uma geração após a abolição. Como foram sua infância e juventude?
Abdias Nascimento. Minha avó Francelina
e minha avó Ismênia haviam sido escravas. Francelina, a mãe de minha mãe, não
aguentou com as marcas daquilo, ficou “variada da cabeça” e a internaram no
famigerado Asilo Juqueri, no interior de São Paulo. Ela voltou para casa quando
eu era adolescente. A avó Ismênia faleceu quando eu era bem pequeno. Minha
infância foi cercada de amor numa família estável, e isso me preparou para a
vida adulta. Minha mãe fazia tudo para nós nos educarmos e ir em frente, nos
deu apoio e nos incentivou.
Éramos
pobres, mas havia comida porque ela criava galinhas e cultivava legumes no
quintal, além de fazer e vender doces. Ela guardava um conhecimento muito
grande de ervas de uso medicinal, e as pessoas da cidade se consultavam com
ela. Uma lembrança que guardo é do Engenho Queimado, uma comunidade de negras e
negros que lavavam roupa por encomenda. Lembro-me daquelas senhoras negras,
vestidas de branco, que vinham em procissão à cidade carregando as encomendas
de roupa lavada sobre as cabeças. Nós tínhamos uma vivência rural também,
porque minha mãe ia às fazendas como ama de leite e muitas vezes nos levava.
Assim, a gente vivia aquele momento de substituição da mão de obra negra
escravizada por trabalhadores brancos, imigrantes europeus. Na verdade, para o
negro pouco mudou com o fim da escravatura.
Acervo. Nesta fase da vida
(infância e juventude) o senhor já percebia a condição social do negro
brasileiro?
Abdias Nascimento. Nas fazendas que visitávamos,
praticamente todos os negros que existiam, homens e mulheres, eram crias,
filhos, netos e ex-escravos que trabalhavam em serviços domésticos. Haviam
assimilado a cultura do branco. É provável que não tivessem interesse pelas
suas origens, pela cultura africana. Não se chamavam eles como escravos, mas a
estrutura do regime escravocrata ficava mantida ali, como se fosse imutável. Eu
me irritava às vezes, mesmo criança, com o eterno paternalismo do branco
brasileiro. Evidentemente, eu não o identificava dessa forma, não tinha
capacidade para analisar assim, mas eu sentia que havia algo errado naquelas
atitudes. Quando eu e meus irmãos ganhávamos presentes de algum desses
fazendeiros, por exemplo, eu não me sentia bem, fechava a cara. Acho que, de
forma instintiva, eu percebia aquilo como um cala-a-boca.
Acervo. Houve um marco
vivencial em que pela primeira vez se compreendeu o que seria injustiça ou
preconceito racial? Como isto o impactou e qual foi a sua reação?
Abdias Nascimento. O episódio mais marcante
envolveu minha mãe, uma vizinha e um colega do grupo escolar onde eu estudava
na minha infância lá em Franca, o Felisbino. Ele era órfão, o coitadinho, e
vivia perambulando pela rua, contando com uma ou outra pessoa para lhe dar um
prato de comida. Um dia, uma vizinha branca nossa resolveu lhe dar uma surra
tremenda. A minha mãe, que era uma pessoa muito meiga, cresceu com raiva e foi
enfrentar a mulher, arrancando o menino das mãos dela. As palavras de minha
mãe, a atitude dela, foram a minha primeira lição de solidariedade racial, a
primeira lição de panafricanismo, que recebi ainda menino.
Depois,
com o incentivo de minha mãe, eu estudei muito e me formei em contabilidade ainda
adolescente. Ofereceram-me um emprego em uma fazenda, onde eu iria, aos 14
anos, ganhar mais que a maioria dos adultos de minha família e vizinhança. Combinamos
o dia de eles irem me buscar para me levar à fazenda. No dia, chegou uma
carroça carregada com galinhas, cabras e suprimentos que haviam comprado na
cidade. E me mandaram subir lá atrás, na traseira, junto com as galinhas e as
cabras. Eu me recusei, afinal estava sendo contratado para o cargo de auxiliar
de guarda-livros, cuja função era a de dar conta de toda a escrituração comercial
do estabelecimento. Não iria me submeter a esse tipo de tratamento. Desisti na
mesma hora do tal emprego. Minha família ficou atônita.
Acervo. De Franca, sua
cidade natal, qual o seu caminho ao encontro do ativismo?
Abdias Nascimento. Saí de Franca me alistando
no Exército. Era a maneira de ir à capital e começar uma vida nova. Minha mãe
era amiga de muitas pessoas de influência na cidade, fregueses dos doces que
ela fazia ou clientes dos seus tratamentos fitoterápicos. Um deles, o então
secretário da Prefeitura ou da Câmara de Vereadores de Franca, Antônio Constantino,
me deu um encaminhamento e fui a São Paulo para ser soldado. Só havia visitado
a capital em uma outra ocasião, em 1927. Eu fazia parte de uma delegação de
jovens atletas de Franca aos jogos estaduais ligados à campanha política de
Júlio Prestes. Tinha treze anos e corria a prova de cem metros.
Naquela
época, uma das mais prestigiadas instituições do município de São Paulo era a sua
Guarda Civil, e era de Franca o seu fundador e diretor, Antônio Pereira Lima. Um
orgulho de nossa cidade. A seu convite, a delegação francana foi assistir um desfile
dessa Guarda Civil, e eu fiquei estarrecido: todos os seus integrantes eram
brancos, louros de olhos azuis; não havia um negro sequer no meio daquela força
municipal. Acontece que o senhor Antônio Pereira Lima era nosso vizinho e cliente
de minha mãe. Naquele tempo não havia telefone, e os poderosos quando queriam
se comunicar mandavam um “moleque de recado”.
Eu
e meus irmãos levamos e entregamos muito recado do fundador da Guarda Civil do
Município de São Paulo. Tentei saber com ele a razão daquela exclusão dos
negros nos quadros da guarda, e ele evidentemente tentou me enrolar numa
conversa mole. Mas quem era eu para interpelar um homem poderoso assim?
Conversava era com minha mãe sobre o assunto, e ela ficava indignada também,
pois era amiga daquele homem; como é que ele poderia sustentar uma atitude
dessas? Mais tarde, já na capital, participei de outras iniciativas em relação
a essa exclusão dos negros da Guarda Civil, e, finalmente, a Frente Negra
Brasileira conseguiu um posicionamento oficial das autoridades sobre o assunto,
supostamente acabando com a discriminação.
Acervo. Qual o primeiro
passo da sua atuação política e social, qualquer que seja ela? Qual foi a sua
primeira manifestação ou participação ativista?
Abdias Nascimento. Eu era um soldado do
Exército, e lá era proibido qualquer tipo de ativismo político. Mas dentro do
quartel havia muita inquietação, afinal éramos jovens procurando um rumo.
Participei de um grupo que publicou e distribuiu um jornal, um panfleto chamado
Lanterna Vermelha. E às vezes participava de atos públicos da Frente Negra
Brasileira. Mas não podia participar de forma efetiva ou regular por ser soldado
do Exército. Conheci
nas fileiras do Exército Sebastião Rodrigues Alves, grande amigo de toda a
vida. Apesar de qualquer proibição, nós não aceitávamos a discriminação e
saíamos quebrando bares e barbearias, entre outras coisas, como protesto inútil
de dois jovens ousados. Fui
excluído do Exército por causa de um desses incidentes em que eu e Rodrigues Alves
reagimos contra o racismo – no caso, não queriam nos deixar entrar numa boate.
Depois disso, em 1938, eu, Aguinaldo Camargo e Geraldo Campos de Oliveira
puxamos a organização do Congresso Afro-Campineiro. Já me dedicava à luta
contra o racismo.
Acervo. Publicamente a
percepção da sua atuação começa pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). Como e
por que ele se formou?
Abdias Nascimento. Foi no Teatro
Municipal de Lima, no Peru, que assisti a uma apresentação da peça O imperador
Jones, do grande dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill, em que Brutus
Jones, o principal personagem, um negro, era representado por um ator branco
argentino, Hugo d’Evieri, pintado de preto. Da minha indignação diante daquele
espetáculo, que apenas refletia o procedimento “normal” no teatro ocidental –
um procedimento racista –, nasceu a vontade de criar um teatro negro. Depois,
passei um ano em Buenos Aires, onde participei dos espetáculos abertos do
Teatro del Pueblo. Era uma riqueza enorme, porque os espetáculos eram
acompanhados de sessões onde se discutia a dramaturgia e as questões estéticas
e políticas envolvidas nas apresentações. Foi uma grande escola para mim, uma
verdadeira formação teatral. Já me sentia pronto para fundar o meu teatro
negro.
Mas
na minha volta ao Brasil eu fui preso. Havia sido condenado à revelia, quando estava
fora do país, por causa daquele mesmo incidente de recusa à discriminação racial,
e fui cumprir pena na Penitenciária do Carandiru. Lá criei minha primeira iniciativa
teatral, o Teatro do Sentenciado, junto com outros presos e com o apoio e
incentivo do então diretor da penitenciária, um médico e homem culto chamado
Flamínio Fávero. Só quando saí da prisão pude, finalmente, levar à frente a
minha intenção e criar o Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro.
Acervo. O que o TEN gerou? E
como artisticamente o TEN se relacionou no meio cultural?
Abdias Nascimento. O TEN formou o primeiro
grupo de artistas, atrizes e atores negros, assim rompendo a barreira de cor no
teatro brasileiro. Antes do TEN, os negros não pisavam no Teatro Municipal a
não ser para fazer faxina! Além disso, o TEN incentivou a criação de uma literatura
dramática que tratasse com os temas e conflitos que surgem da experiência histórica
e humana dos africanos e seus descendentes no Brasil. Nelson Rodrigues escreveu uma peça para nós, Anjo negro, e outros
autores como Rosário Fusco e Lúcio Cardoso também. O TEM publicou
uma antologia chamada Dramas para negros e prólogo para brancos (1961).
Fundamentalmente, o TEN propunha-se a resgatar, no Brasil, os valores da
cultura negro africana, degradados e negados pela violência da cultura
branco-europeia; propunha-se à valorização social do negro através da
educação, da cultura e da arte.
Ensaio da peça Sortilégio pelo Teatro Experimental do Negro, em 1957. O homem de joelhos é Abdias, e a sua direita, a atriz Léa Gárcia, a qual foi sua terceira esposa. |
Teríamos
que agir urgentemente em duas frentes: promover, de um lado, a denúncia do
racismo e uma ação de valorização da estética negra e, por outro lado, fazer com
que o próprio negro tomasse consciência da situação social em que estava inserido.
Foi nesse sentido que realizamos a Convenção Nacional do Negro, em 1945, cujo
Manifesto à nação brasileira embasou a proposta de legislação antirracista e de
políticas positivas apresentada à Assembléia Nacional Constituinte de 1946. O I
Congresso do Negro Brasileiro, que o TEM realizou em 1950, foi outro marco
dessa busca de conscientização e organização política por parte do TEN.
Quanto
à afirmação artística do TEN no meio cultural, não há dúvida de sua seriedade e
competência. Basta para constatar esse fato ler as crônicas e críticas da época
a respeito de nosso trabalho. Havia um grande ceticismo em torno da proposta,
gerado pelo próprio preconceito, e muitas vezes a crítica se espantava com a
qualidade artística de nossas produções. Reunimos várias resenhas e críticas no
livro Teatro Experimental do Negro: testemunhos (1966), compondo um
retrato da repercussão de nossos trabalhos no meio cultural da época. Alguns
dos mais destacados artistas plásticos brasileiros colaboraram conosco como
voluntários. Santa Rosa, Enrico Bianco e Anísio Medeiros criaram
cenários para nossas peças, e muitos outros do projeto Museu de Arte Negra a partir de 1950.
Acervo. A partir do trabalho
do TEN qual foi sua atuação como liderança ativista?
Abdias Nascimento. Minha atuação sempre
teve uma dupla conotação, cultural e política (política no sentido mais amplo
da palavra). Aliás, para mim essas esferas são dimensões da mesma iniciativa, que
é a defesa e promoção dos direitos e da cultura da população de origem africana.
Então meu trabalho como ativista se ligava ao cenário artístico e vice-versa; eram
diferentes expressões da mesma coisa. No caso da política, no jornal Quilombo
do TEN eu escrevia editoriais sobre a necessidade de o negro atuar na política
como candidato e não mais apenas como cabo eleitoral dos outros. Quilombo abria
suas páginas a todos os candidatos negros, de qualquer partido.
Uma página do jornal Quilombo editado por Abdias Nascimento. |
Acervo. Mestre Abdias, neste percurso como o senhor se integrou à vida político-partidária? Qual foi o cenário político no seu mandato como deputado federal? E depois como era o cenário quando foi senador?
Abdias Nascimento. Nesse início, nas décadas
de 1940, 1950 e 1960, minhas candidaturas foram sempre preteridas ou esvaziadas
por alguma desculpa burocrática. Fui candidato a vereador, uma vez, com o lema “Não vote em branco, vote no negro Abdias”.
Na histórica ocasião em que Leonel de
Moura Brizola se elegeu deputado federal com um terço dos votos do estado
da Guanabara, maior votação da história política do Brasil em 1962, eu me
candidatei a deputado estadual e pela primeira vez me senti realmente identificado
com a proposta de um partido político. O PTB
de João Goulart e de Brizola tinha
tudo a ver com minha orientação política, embora a questão racial ainda não
ganhasse ressonância.
Mais
tarde, ainda no exílio, ao reorganizar o antigo PTB, a Carta de Lisboa afirmava o compromisso do partido “com a causa da
população negra”. Isto foi resultado de nossas conversas com Brizola em Nova
Iorque, em companhia do cientista político Clóvis
Brigagão. No Brasil, já
no período da anistia e da redemocratização, o PDT consolidaria esse
compromisso como prioridade de seu programa político. Dentro do partido, os
próprios negros organizaram a sua Secretaria
do Movimento Negro, fato inédito na vida partidária brasileira. E o
governador Brizola concretizou essa prioridade ao compreender e agir de acordo
com a necessidade de incluir negros em seu secretariado de governo, bem como
nas suas listas de candidatos a cargos eletivos. O PDT elegeu dois governadores
negros, Alceu Collares (RS) e Albuíno Azeredo (ES), e deu posse aos
primeiros secretários de estado negros, Carlos
Magno de Nazareth Cerqueira, Carlos Alberto
de Oliveira Caó e Edialeda Salgado do
Nascimento, no governo de Leonel Brizola
no Rio de Janeiro (1983-1987).
Quando
exerci o mandato de deputado federal
(1983-1986), eu era o único negro assumido no Congresso e dedicava o mandato à
defesa dos direitos humanos e civis da população negra. Ainda prevalecia, na
esquerda daquela época, a ideia de que as questões sociais específicas, como a
racial e a de gênero, eram inoportunas e politicamente equivocadas porque
dividiriam e enfraqueceriam a luta do
proletariado contra a exploração econômica e de classe. Deputados de esquerda e
de direita me aparteavam anunciando a ausência do “problema racial” no Brasil e
às vezes até invocando, como prova disto, o carinho deles por suas amas de
leite negras. Poucos se solidarizavam comigo.
Quando
assumi o mandato de senador em 1991,
essa situação havia mudado um pouco. Na Constituinte
de 1988, havia três deputados negros
comprometidos com a causa: Caó
(PDT-RJ), Benedita da Silva (PT-RJ)
e Paulo Paim (PT-RS). E em 1994 duas mulheres negras assumiram seus
mandatos no Senado: Marina Silva
(PT-AC) e Benedita da Silva (PT-RJ).
Abdias Nascimento discursando na tribuna do Senado, em 1991. |
A
questão racial ficou mais em evidência a partir de 1995, tricentenário da imortalidade
de Zumbi dos Palmares, e no contexto
da III Conferência Mundial Contra o
Racismo (2001). A participação do
Brasil nessa Conferência foi um marco
importante, e desde então houve vários
avanços. Hoje, existe a Frente Parlamentar
pela Igualdade Racial, uma reunião
de senadores e deputados dedicada à
proposição de políticas públicas como
o Estatuto da Igualdade Racial e a lei
n. 10.639/2003.
Resumindo:
quando cheguei à Câmara como deputado pelo PDT, não me deixavam falar, queriam
cortar a minha palavra, achavam que eu falava inverdades absurdas. Depois de
anos passados fazendo a minha pregação, juntavam-se outras vozes a minha e até
recebia o aval dos senadores aos meus projetos de lei. A sociedade vem mudando,
à medida que a gente bate, bate, bate na mesma tecla. É verdade que é assim aos
pouquinhos, mas é um processo irreversível.
Acervo. Durante o período do
seu exílio, o senhor teve uma experiência e atuação internacional, com relações
com o Movimento Pan-Africano. Como
foi esta experiência? O que lhe trouxe de novo aquele momento? O que o senhor
levou da vivência brasileira das lutas pelos direitos humanos e igualdade
racial para estes interlocutores?
Abdias Nascimento. Essa experiência internacional
foi um desdobramento natural de minha atuação e experiência aqui no Brasil. O
grupo do TEN era talvez a única voz no Brasil a defender e divulgar a
ideia da negritude de Aimé Cesaire, Léopold Sedar Senghor e Leon Gontran Damas, uma linha de ação
poética e política que lutava pela independência dos países africanos, contra o
colonialismo e pelo respeito à cultura e à dignidade humana dos africanos e
seus descendentes. Nos Estados Unidos, eu me identificava com a corrente de
pensamento parecida a essa. Além dos que adotavam essa linha de ação, havia os
negros de “linha correta” marxista, e havia os mais conservadores, liberais
democratas. Eu tive boas relações com todas essas correntes, porque a luta
pelos direitos da população negra nos unia, mas me identificava mais com o que
na época se chamava nacionalismo negro e hoje se identifica como a linha do
pensamento afrocentrado.
No
VI Congresso Pan-Africano, que se
realizou em Dar-es-Salaam, em 1974, o conflito entre essa linha e a marxista-leninista
se caracterizou de forma nítida. Intelectuais do Caribe, opositores aos
governos locais (de direita e de esquerda), foram excluídos do encontro e
prevaleceu a linha socialista que proclamava a ascendência da luta de classes
sobre qualquer outra consideração.
Esse
cenário nós já havíamos vivido no Brasil, quando a esquerda “democrática” se
recusava a reconhecer a legitimidade de nossas demandas. Hoje, com a evolução
do movimento negro internacional na direção de uma ação e de um pensamento
independentes, é fácil constatar que a nossa posição prevaleceu e se
desenvolveu ao longo do tempo.
Acervo. Como foi sua
descoberta pessoal como artista plástico?
Abdias Nascimento. O I Congresso do Negro Brasileiro votou
uma resolução sobre a necessidade de haver um museu de arte negra para estudar e mostrar a nítida, porém ocultada, ligação entre a arte negra e a arte moderna ocidental expressa na arte contemporânea no Brasil. O TEN assumiu o projeto e eu me tornei curador dessa coleção. Junto com Guerreiro Ramos, Ironides
Rodrigues e outros do TEN
realizamos um trabalho extenso com
as artes plásticas, em que tiveram e ainda
têm destaque o escultor José Heitor e
o pintor Sebastião Januário. A
coleção hoje se encontra sob a
guarda do Ipeafro, Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros,
que fundei ao voltar do exílio. O Ipeafro realizou uma mostra importante aqui no Arquivo Nacional, nos anos de 2004 e 2005.
Na
época da inauguração da primeira exposição da coleção do projeto Museu de Arte Negra, que realizamos no Museu da Imagem e do Som em 1968, Efraín Tomás Bó, meu amigo e companheiro da Santa Hermandad Orquídea, me fez um desafio: “Abdias, você que tanto trabalha com as obras dos outros, por que não cria suas próprias pinturas?” A partir desse momento, comecei a desenvolver minha pintura. Mas ela realmente passou a ter vida própria na década de 1970, nos Estados Unidos, onde fiz
várias exposições em galerias,
museus e universidades em diversas
regiões do país.
Acervo. E como foi fazendo
a sua coleção de obras de arte? E do que se compõe o seu acervo?
Abdias Nascimento. As obras chegavam, a
maioria delas doadas por iniciativa dos próprios artistas, que conheciam o
nosso trabalho e colaboravam. Temos telas de pintura em diversos tamanhos, obras
em papel (desenhos e gravuras) e esculturas. São aproximadamente 450 obras de
outros autores e 160 minhas. A coleção contém obras criadas por alguns dos mais
importantes artistas contemporâneos no Brasil, entre eles Bess, Darel, Volpi, Lóio Pérsio, Ivan Serpa, Aldemir Martins, Ana
Letícia, Nélson Nóbrega, Iberê Camargo, Manabu Mabe, Fayga Ostrower, para
mencionar apenas alguns.
Acervo. Estão fazendo vinte
anos da libertação de Nelson Mandela.
Como as lideranças políticas brasileiras se representaram nesta luta?
Abdias Nascimento. A esquerda
brasileira não se preocupava muito com essa questão. Em 1982, foi o Ipeafro que
trouxe ao Brasil, pela primeira vez, uma representação do Congresso Nacional Africano da
África do Sul. O Ipeafro realizou em 1984 um seminário internacional sobre a
luta da Namíbia por sua independência,
com a presença de um representante da SWAPO,
também uma iniciativa inédita até então no Brasil. Na Câmara dos Deputados, na
qualidade de integrante da Comissão de Relações Exteriores, eu propus e vários
deputados assinaram uma moção de rompimento das relações diplomáticas e
econômicas com o regime do Apartheid.
Em 1988, Benedita da Silva levou
essa proposta à Constituinte. Mas a proposta não vingou.
Abdias Nascimento cumprimenta Nelson Mandela, em visita deste ao Brasil em 1991. |
Acervo. Em 1991, o senhor
ficou à frente da Secretaria
Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Negras (Sedepron). Já
havia alguma secretaria com esta missão no Brasil, seja na esfera municipal ou
estadual? Em que contexto político foi criada a secretaria? Como foi sua
gestão?
Abdias Nascimento. A criação da Sedepron
foi um ato de coragem que demonstrou como o governador Leonel Brizola tinha uma
compreensão da questão racial inédita entre os políticos de grande expressão
nacional. Brizola criou o primeiro órgão de primeiro escalão com a missão de
formular e executar políticas públicas de igualdade racial. Essa ideia era muito
ousada na época, pois só existiam até aquele momento órgãos consultivos, conselhos
e assessorias. Pouco depois da Sedepron, foi criada a Secretaria Municipal de Assuntos da População Negra de Belo Horizonte,
cuja secretária foi a brava ativista
Diva Moreira.
A Sedepron realizou várias iniciativas, como o curso Sankofa de
preparação de educadores e o I Fórum
Estadual sobre o Ensino da História Africana
na Escola Pública (1991), realizados em conjunto com o Ipeafro. A Sedepron
levou essas iniciativas a diversos municípios do interior do estado. Também idealizou
o projeto Força Jovem de preparação de jovens para o mercado de trabalho e
propôs a criação da Delegacia Especializada
em Crimes de Racismo e Discriminação, primeira iniciativa dessa natureza no
país. O
governador Nilo Batista inaugurou a
delegacia, localizada no coração do Centro do Rio de Janeiro, mas o governo
posterior o desativou. A Sedepron tomou outras iniciativas, mas ela teve o
mesmo destino que essa delegacia: ao tomar posse, o próximo governo extinguiu a
Sedepron.
Acervo. A lei n. 10.639, de 2003, que institui a
obrigatoriedade do ensino da história africana e da cultura afro-brasileira nos
currículos escolares, é uma grande conquista para o cidadão brasileiro na sua
compreensão de nação, mas com sete anos de vigência vemos, na prática, lacunas na
sua implementação. Qual o passo efetivo que o senhor pensa que se deve dar para
a completa adoção desses conteúdos nos currículos disciplinares?
Abdias Nascimento. Precisamos desvincular
a imagem do afro-descendente da condição escrava. No Brasil, as palavras “escravo”
e “negro” ainda são sinônimos, o que revela o quanto essa ligação penetra fundo
na consciência coletiva nacional. Parece uma sugestão pequena, modesta, talvez
ingênua, mas é o que me ocorre com mais urgência. E efetivamente é muito mais
complexo do que pode parecer. Agora, para a completa adoção desses conteúdos
não há um só passo efetivo, depende de nossa ação em todos os campos, junto às
escolas, aos educadores e às secretarias de educação municipais e estaduais,
junto às universidades e faculdades de licenciatura e pedagogia, enfim...
precisamos de uma ação ampla, intensa e a longo prazo.
Acervo. Mestre Abdias, o Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado
em 2009 entre comemorações, críticas e reações. Qual o futuro que o senhor
projeta para a igualdade racial no Brasil?
Abdias Nascimento. Como vemos com a lei n. 10.639, de 2003, é mais difícil implantar
e efetivar a execução da lei do que fazê-la tramitar e ser aprovada. O mesmo
valerá para o Estatuto da Igualdade
Racial.
Mas com isso não quero dizer que não vale a pena tê-lo aprovado. Vale sim, como
arma de luta na demanda por sua efetivação.
Acervo. Dos seus 96 anos de
idade, da sua trajetória, percepções e visão histórica qual é o possível
destino para a maior nação afro-descendente, o Brasil? Abdias Nascimento. O
negro neste país está acordado, alerta, e vai continuar sua luta sempre. Isto é
um processo irreversível! Espero que o Brasil tenha a sensatez de ouvir-lhe os
gritos em vez de se fazer de surdo. O negro no Brasil é maioria, e
democraticamente no futuro deve assumir a direção do país! É só uma questão
de tempo e de aprimoramento das instituições democráticas.
Abdias Nascimento. O negro neste país está
acordado, alerta, e vai continuar sua luta sempre. Isto é um processo irreversível!
Espero que o Brasil tenha a sensatez de ouvir-lhe os gritos em vez de se fazer
de surdo. O negro no Brasil é maioria, e democraticamente no futuro deve
assumir a direção do país! É só uma questão de tempo e de aprimoramento das
instituições democráticas.
FONTE: Entrevista com Abdias Nascimento. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, 2009, p. 5-14.
Um comentário:
Gen ial Abdias do Nascimento, no dia nacional da consciência negra, agora em 2023, finalmente, vou ter a chance de fazer uma homenagem a este líder humanitário, na sua cidade natal (Franca, SP), inaugurando uma arte na Praça Zumbi, na ocasião, divulgando um resumo desta linda reportagem do Acervo no blo que edito Folha Verde News e no Facebook, na minha time line, ligada ao movimento ecológico, da cidadania e da não violência. Enfim, mais do que na hora de revalorizar Abdias do Nascimentoi que tive o prazer de conhecer pessoalmente depois que escrevi a peça de teatro Ongira, Grito Africano, em parceria com o musicólogo afrobrasileiro (do Maranhão e da Universidade Federal da Bahia) Estêvão Maya, um musical sobre o negro na mineração em Minas Gerais e na raiz do povo brasileiro, que foi apresentado no Teatro Brigadeira em São Paulo com um grupo de atores e atrizes do Movimento Negro de Sampa. Para sempre na memória de nossa nação este Zum cultural, grande Abdias. ((Antônio de Pádua Silva Padinha)
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