Zé Carioca: um papagaio na periferia do Capitalismo
Ma. Camila Manduca Ferreira
Obs: as imagens a seguir foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho da autora, o qual originalmente não conta com imagens.
Era
no tempo de Vargas. Em 1943, durante o Estado Novo, a Segunda
Guerra Mundial, e por meio da chamada política de boa vizinhança, foi
criado pelos estúdios Walt Disney o
papagaio brasileiro que representaria a América
Latina no filme Alô amigos.2 Como esclarece a abertura do filme3, Disney envia uma
expedição de desenhistas,
artistas, músicos e escritores para
a América do Sul em busca de músicas, danças e talvez um novo companheiro para o camundongo Mickey e o Pato Donald.
“Saíram e encaminharam-se
para o seu destino” (Cf. ALMEIDA,
2010, p.44) rumo à atraente América do Sul.
José "Zé" Carioca |
Foram pelo Brasil, Argentina, Bolívia, Peru e Chile. Admiraram
“a vida animada, as roupas coloridas e os chapéus
esquisitos, são detalhes como estes que sempre interessam ao artista”.4 No caminho, de
avião, entre o Chile e a Argentina, os visitantes criam o desenho de um
aviãozinho chamado Pedro. Ao cruzar os pampas
argentinos, percebem a semelhança entre o gaúcho e o vaqueiro sulino dos EUA, o cowboy do Velho Oeste; por isso, no coração do Texas foram buscar o
vaqueiro Pateta e levá-lo para a
terra do gaúcho. Malgrado as semelhanças, Pateta não se adaptou muito bem.
“Colher material de inspiração foi um verdadeiro prazer”. Depois
foram para o Rio de Janeiro, “a cidade maravilhosa, que ultrapassa tudo quanto
se tem dito e escrito sobre ela”. Viram Copacabana,
o Pão de Açúcar, as calçadas de mosaicos,
o Corcovado com a estátua do Cristo. Tudo isso os levou a
descobrir um ator de futuro: “o gozadíssimo papagaio das anedotas do Rio”.
“Sem
demora nós o trouxemos para Hollywood e lhe demos o nome de Zé Carioca (Joe Carioca). O samba nos
fascinou, com seu ritmo admirável, esse ritmo que ilumina o Carnaval. (...) Durante esses dias a cidade canta e dança de
alegria, e como eles dizem, todo mundo se desmilingua.
Ary Barroso, com sua Aquarela do Brasil (Watercolor of Brazil) descreve bem essa terra
tão linda”. (Alô amigos, 1943).
Depois
de uma animação tendo como fundo e tema a Aquarela de Ari Barroso, acontece o
primeiro encontro entre o recém-nascido Zé
Carioca e o Pato Donald. Zé reconhece o famoso pato, este estende a mão,
mas Zé o surpreende com um forte abraço, “um mesmo daqueles, um quebra
costelas, um bem carioca, um amigo”. Zé promete levá-lo para conhecer vários
lugares. Donald não entende o brasileiro; então Zé, papagaio sabido, convida-o:
“Or that´s american say: let’s go city! I show you the land of the samba”. Donald diz “Samba? What’s samba?” O nativo
responde: “Samba…” (só o batuque explica e, para Zé fazer samba, qualquer coisa,
como seu inseparável guarda-chuva, serve, ele toca Tico-tico no fubá).
Depois,
Zé leva Donald para um bar. O ingênuo pato pergunta, ao ver a garrafa: “Ah,
refreshment?” “Não, cachaça”. Donald termina a noite dançando com uma baiana. E
o filme se encerra com o mesmo hino com que começou: “Saudamos a todos da
América do Sul, a terra onde o céu sempre é azul. Saudamos a todos, amigos de
coração, que lá deixamos e de quem lembramos ao cantar essa canção”.
A
carreira cinematográfica de Zé Carioca teve ainda mais um episódio, ao estrelar
a parte brasileira – “Você já foi à
Bahia?” – na produção Os três
cavaleiros (1945), que contou também com a participação de Aurora Miranda. Donald está
desembrulhando os presentes de aniversário enviados por seus amigos da América
Latina. Assiste a um filme sobre um pingüim que migra para os trópicos, outro sobre
aves raras (os parentes de Donald do outro hemisfério). Há ainda uma história
sobre um gauchinho que fica amigo de um burrinho voador.
Pôster original de 1944 do filme Os Três Cavaleiros, o qual mostrava uma nova viagem do Pato Donald e do Zé Carioca pela América Latina, dessa vez acompanhados do galo mexicano Panchito Pistoles. |
Contudo,
o presente que nos interessa é um livro em que Donald encontra Zé Carioca,
desta vez disposto a levá-lo para um passeio à Bahia. “Você já foi à Bahia?”5
Donald responde que não. E Zé propagandeia: “Ah, a Bahia! Como eu me lembro da
Bahia! É uma canção de amor no meu coração. Uma canção de amor e belas
lembranças”. Carioca pergunta novamente: “Perdão, Donald, você já foi à Bahia?
Não? Então vá. Quem vai à Bahia, meu nego, nunca mais quer voltar”. Donald fica
irritadiço com as recorrentes perguntas de Zé: “E você, já foi à Bahia?” O
papagaio, encabulado, responde: “Eu? Não.” E Donald resolve: “Então vamos!”.
Chegados
à Bahia, pato e papagaio encontram a baiana
Iaiá (Aurora Miranda) a vender doces e cantar, chamando a atenção dos
malandros de plantão. Encantado com Iaiá, Donald fica enciumado ao ver um homem
se aproximar: “Quem é esse cara?” Seu guia responde: “Ele é um malandro,
Donald”. A excitação do pato é tamanha que Zé tem de refreá-lo: “Não afoba,
Donald”. Muito faceira, Iaiá dá atenção a todos e a nenhum. No entanto, quando chegam
outras Iaiás, ela fica sozinha e nota Donald, que lhe oferece um buquê de flores,
sendo recompensado com um grande beijo. É mais uma das aventuras amorosas de
Donald nos trópicos. “O que você achou da Bahia? Diga a verdade”. “Maravilhosa,
demais: romance, luar, lindas mulheres”. Donald faz muitas trapalhadas e Zé
diz: “Eu fico louco, you very funny!”.
O
outro presente é uma caixa de música do México
cujo anfitrião é Panchito Pistoles, um
papagaio vermelho que não só empunha, como dispara para todos os lados com suas
inseparáveis duas pistolas. Panchito presenteia-os com sombreiros e, junto com
Donald e Zé, eles formam a tríade que dá nome ao filme. Os três cavaleiros,
três mosqueteiros, só tem uma coisa em comum (as penas). Somos amigos, e nosso
lema é um por todos e todos por um. Vivemos unidos e bem protegidos, debaixo
dos nossos sombreiros. Mas bravos seremos, dinheiro teremos. Os três
cavaleiros. Cantamos o samba, gritamos ai caramba! (Zé pergunta: “Porque ai
caramba? Não sei”). Na chuva
ou tempestade, a nossa amizade irá resistir. E se uma morena quebrar nosso
lema, é cada um por si. (Os três cavaleiros, 1945).
O
que se segue é uma viagem ao México, conhecendo costumes e danças e visitando
os badalados pontos turísticos, entre eles Acapulco
(sobretudo as banhistas de Acapulco). Donald invariavelmente se encanta
pelas dançarinas e tem que ser controlado pelos companheiros calientes.
Ao encontrar na noite mexicana uma senhorita que canta em inglês especialmente para
ele, Donald mergulha num delírio luxurioso e só consegue repetir: “Que garotas!
Que garotas!”. Os penados encerram juntos o filme, cantando: “Os três
cavalheiros para sempre seremos”. É a “despedida às travessuras” latinas de
Donald. (Cf. ALMEIDA, 2010, p.08).
Pato Donald se exibindo para as mexicanas em Acapulco, em cena do filme Os Três Cavaleiros (1944). |
Cumprida
sua missão em Hollywood, o papagaio
ainda tem approach para engatar uma carreira nas histórias em quadrinhos. Sua
primeira aparição nesse veículo data de
1950, pela editora Abril, junto
com a revista do Pato Donald. Em meados de 1960,
as histórias de Zé Carioca consistiam, por escassez de material, em adaptações
dos quadrinhos norte-americanos. Assim, Zé Carioca aparecia em aventuras ao
lado de Tio Patinhas e Professor Pardal, por exemplo, sem
diferenciações entre a cidade em que nosso papagaio morava e Patópolis.
Posteriormente,
conforme o papagaio é situado claramente no Brasil, é que se evidencia sua
condição malandra: avesso ao trabalho e apreciador do samba, das mulheres, da
praia e do futebol. O seu layout, entretanto, não acompanhou o abrasileiramento
dos quadrinhos – Zé Carioca continuava a ter como referência, desde seu
nascimento nos "filmes, a alta sociedade norte-americana: paletó, gravata
borboleta, chapéu panamá, charuto e guarda-chuva. Esse "no trato faz Zé
Carioca destoar de seus maltrapilhos companheiros de aventuras (Nestor e Pedrão): Zé era como os
meirinhos daquele tempo do rei, “não se confundiam com ninguém; eram originais,
eram tipos”. (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 01).
Algumas
evidências – os olhos azuis, a fácil aceitação de sua presença na high society,
o namoro com uma penada branca e rica – nos levam a suspeitar da cor de Zé
Carioca, isto é: ele é inegavelmente verde mas, em correspondência humana,
seria branco. Afinal, os "filmes podem até falar dos índios do Chile, mas
em toda a América Latina não há um negro (sendo destacada a pele alva das
dançarinas baianas e mexicanas). Quando ganha um núcleo brasileiro de
interlocutores, a questão da cor do papagaio verde se impõe: é possível
discriminar entre ele, Nestor (um urubu preto) e Pedrão (um mulato). Partindo
da premissa da existência de uma teoria crítica brasileira, com intérpretes que
descobriram a originalidade estrutural do Brasil, caberia perguntar o quanto um
personagem de desenho animado criado por estrangeiros como emblema do Brasil
fala de nós, brasileiros. O atributo fundamental de Zé Carioca é a malandragem.
Acontece
que o atributo malandro é amplo o bastante para constituir-se em uma linha
interpretativa do Brasil – “O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero
mais amplo de aventureiro astucioso, comum:
a
todos os folclores” (CANDIDO, 1993, p. 23): “uma "figura historicamente
original, que sintetiza (a) uma dimensão folclórica e pré-moderna – o trickster; (b) um clima cômico datado –
a produção satírica do período regencial; e (c) uma intuição profunda do
movimento da sociedade brasileira” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 02). É este último
elemento apontado por Schwarz, o que nos interessa particularmente.
Vale
a pena (as penas verdes do papagaio em questão), portanto, cotejar esse
malandro tipo exportação com o primeiro grande malandro da novelística
brasileira, revelado por Candido no “primeiro estudo literário brasileiro
propriamente dialético” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 01), rara exceção no pensamento
brasileiro a conseguir alcançar a dialética entre forma literária e processo
social, o que lhe permitiu “identificar, batizar e colocar em análise uma linha
de força inédita até então para a teoria, a linha da malandragem” (Cf. SCHWARZ,
2010, p. 01).
Cena da revista Zé Carioca: A maior corrida do século (1971). Na cena em questão vemos o tom irônico do protagonista, ao falar sobre seus credores. |
Em
“Dialética da malandragem”, Antonio Candido analisa o romance Memórias
de um sargento de milícias, de Manuel
Antônio de Almeida. Seria Leonardinho
herdeiro dos pícaros espanhóis? Candido investiga o problema da "filiação
das Memórias, ligando-o, não à tradição picaresca espanhola, mas a “uma
tradição quase folclórica” (CANDIDO, 1993, p.25): o protagonista seria antes um
herói popular (um herói sem nenhum caráter, ancestral de Macunaíma) do que um anti-herói. Candido
compara as características de Leonardo Filho e do típico herói picaresco: Na
origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai
tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem
abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma
qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias. (CANDIDO, 1993, p. 22).
Nesse
ponto, talvez Zé Carioca se distancie do protagonista de Memórias. Sem padrinho que o amparasse, o papagaio, nascido pobre,
só viu piorar seu destino ao perder-se da mãe no centro da cidade. Colocando em
linha de conta que se trata do Brasil, “sua história tem pouca coisa de
notável” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 02): depois de sobreviver durante anos às
intempéries próprias de, para empregar a retórica em voga, uma criança em
situação de risco social, Zé, ao empregar seus dotes espoliadores, conquista definitivamente
a amizade dos dois animais que a partir de então serão fator crucial para sua
reprodução: Nestor e Pedrão. Foi o “arranjei-me” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 20) de
Zé Carioca.
Nestor e Pedrão, os dois melhores amigos de Zé Carioca. |
Por
outro lado, talvez a malandragem de Zé trace uma qualidade essencial e mesmo hereditária
(prova disso é que ele narra aos sobrinhos crônicas de seus ancestrais que já
eram malandros, como o Zé do Tejo, verdadeiro descobridor do Brasil). É certo
que a infância infausta pode ser evocada como catalisadora de sua malandragem, mas
não podemos afirmar que, amparado como foi Leonardo pelo Padrinho, Zé Carioca
fugisse à “malsinação” (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 77) malandra.
Leonardo
Filho, “semelhante aos pícaros, é amável e risonho, espontâneo nos atos e
estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolando pela vida” (CANDIDO, 1993,
p. 23). Zé é risonho e, embora esse lado amável e encantador seja mais diluído
no gibi (nos filmes a lhaneza dele para com Donald é adorável), não deixa de
existir. Se assim não fosse, o que mais justificaria a afeição que Nestor,
Pedrão e Rosinha lhe devotam?
Zé Carioca e sua namorada Rosinha. |
Sempre
levado pelas circunstâncias – as histórias do gibi começam expondo sua ociosidade
descarada até que algo o leva a agir, mesmo volens
nolens – Zé, como Leonardo, tem vocação para títere6. Enquanto Leonardo
pratica a “astúcia pela astúcia, manifestando um amor pelo jogoem- si”, Zé é
levado pelo “pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito
ou a um problema concreto” (CANDIDO, 1993, p. 26). Assim é quando, procurado para
realizar um trabalho de investigação (e daí sua condição de títere: nunca é ele
quem procura, a vida é que o leva) na “Agência
Moleza de Detetives – Resolvemos o caso sem criar caso”, se declara
detetive aposentado. O aceno de um bom pagamento por uma tarefa aparentemente fácil,
contudo, faz com que Zé Carioca recue e aceite trabalhar, sobretudo se a
proposta de emprego vier acompanhada da possibilidade de onerar um de seus
amigos.
O
pícaro “traindo os amigos, enganando os patrões, não tem linha de conduta, não ama
e, se vier a casar, casará por interesse” (CANDIDO, 1993, p. 24). Para Zé
Carioca, trair os amigos é uma constante, embora se aproxime mais do malandro
que dos pícaros ao demonstrar, embora superficialmente, amor por Rosinha, ainda
que, convenientemente, a amada seja a herdeira do rico Rocha Vaz (o que seria
um “remédio aos males”). (Cf. ALMEIDA, p. 68).
Se
“pai e filho [nas Memórias] materializam as duas faces do trickster: a tolice,
que afinal se revela salvadora, e a esperteza, que muitas vezes redunda em
desastre, ao menos provisório” (CANDIDO, 1993, p. 27), Zé, como não teve pai,
funde essas duas faces. Ora é ingênuo, porém sempre no afã de esperteza; ora
sua esperteza (sempre maior em intenção que em efetividade) o embaraça. Muitas
vezes também a ingenuidade o embaraça. “Para ele não havia fortuna que não se
transformasse em desdita, e desdita que não lhe resultasse fortuna” (Cf.
ALMEIDA, 2010, p. 94).
No
fim das contas, ele sempre se enrola. Tome-se como exemplo o episódio em que, enquanto
o papagaio pensava burlar o serviço para o qual havia sido remunerado,
descobre-se que o cliente era na verdade um ladrão internacional que o estava
usando. Ao prender Zé e Nestor, o policial diz: “Vocês vão entrar em cana,
malandros!”. Porém, desfeita a confusão, o policial conclui: “Quanto a esses
dois, não passam de dois otários”. Talvez essa seja a moral dos quadrinhos de
um personagem por natureza sem caráter: não importa o que ele faça, por suas segundas
intenções, sempre se dá mal. Zé Carioca não tem, como Leonardinho, fadas boas
que lhe entreteçam uma “conclusão feliz”. (Cf. ALMEIDA, 2010, p. 109).
Nesse
ponto, esbarramos na pedra de tropeço da interpretação disneyniana do Brasil. Candido
analisou brilhantemente uma obra de arte que conseguiu realizar a redução
estrutural “de um dado social externo à literatura e pertencente à história”
Longe de ser obra de arte, a interpretação do Brasil encarnada em Zé Carioca
não apanha a “figuração de uma dinâmica histórica profunda”. (Cf. SCHWARZ,
2010, p. 03).
A
suspensão do juízo moral é a principal característica atribuída por Antonio
Candido a Memórias, decorre daí a dialética entre ordem e desordem: “O seu
caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido
à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas
como modos de existência”. (CANDIDO, 1993, p. 36).
Ordem
e desordem existem em qualquer lugar, o que Manuel Antonio de Almeida intui – e Antonio Candido desnuda – é a originalidade estrutural brasileira
da dialética entre ordem e desordem. A dialética da malandragem seria, então,
além de categoria – modo de ser – interpretativa, categoria ontológica7. O
cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na
aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia que
mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e da
desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal [...]
[os momentos de ordem e desordem] acabam igualmente nivelados ante um leitor
incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isto
[...] Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por
caminhos inumeráveis. (CANDIDO, 1993, p. 39 e 41).
Candido
traça com Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, uma linha equatorial: acima deles
estão aqueles que vivem segundo as normas estabelecidas e abaixo os que:
“vivem
em oposição ou pelo menos integração duvidosa em relação a elas. Poderíamos
dizer que há, deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um negativo da
desordem, funcionando como dois imãs que atraem Leonardo depois de ter atraído
seus pais”. (CANDIDO, 1993, p. 37).
Em
Zé Carioca, esses hemisférios se apresentam de modo bem mais claro na
tradicional divisão entre acima e abaixo do equador. No filme
essa linha não é apenas imaginária, ela é
palpável: cruzar a linha do equador dá a possibilidade a um pingüim friorento
de esbaldar-se na praia,
enquanto solícitas tartarugas lhe servem margueritas, e permite ao fiel
e puritano Donald perseguir as belas banhistas da praia de Acapulco. Em suma,
não existe pecado do lado de baixo do equador, onde tanto turistas quanto
nativos podem se embevecer num “mundo sem culpa” (Cf. CANDIDO, 1993, p. 37). E,
por isso, somente aqui Donald realiza aqueles desejos reprimidos pela venal Margarida.
Nesse
ponto, é preciso diferenciar em Zé Carioca a perspectiva dos filmes
produzidos por estrangeiros e a dos gibis produzidos por brasileiros. No
primeiro caso, ordem e desordem correspondem aos hemisférios Norte e Sul
respectivamente. O pato tem uma posição confortável: como pertence ao mundo da
ordem – geográfica e monetariamente –
ele pode “baixar eventualmente ao mundo agradável da desordem” (CANDIDO,
1993, p. 43) na condição de turista. E Donald vai tão fundo na desordem que
precisa ser cerceado pelos amigos latinos.
Nos
gibis brasileiros, contudo, esses pólos se mostram nos estereótipos regionais e
na ótica de classe que veiculam. Candido evidencia que Manuel Antonio de
Almeida logra a suspensão do juízo moral por aderir ao ponto de vista do setor
intermédio da sociedade joanina, a massa de trabalhadores livres de que fala
Caio Prado Jr. As histórias de Zé Carioca, por outro lado, cumprem um papel
ideológico: a massa de pobres chafurda na desordem, enquanto os ricos desfilam
no painel da ordem. Apenas Zé Carioca, por sua
condição malandra, consegue circular entre os dois pólos, o que não o isenta,
todavia, de julgamento moral – não de sua parte: afinal,
“o remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita
segundo sua eficácia [...] a repressão
moral só pode existir, como ficou dito, fora das
consciências” (CANDIDO, 1993, p.
48 e 49).8
Em
suma, não existe “balanceio caprichoso entre ordem e desordem” (CANDIDO, 1993,
p. 44). Em Zé, ordem e desordem são nítidas e definidas. Sem a suspensão
do juízo moral, suas malandragens são tidas como reprováveis,
ao contrário das Memórias, que criam um universo que parece liberto do erro e
do pecado “[...] o sentimento do homem aparece
nele como uma espécie de curiosidade superficial, que põe em movimento o interesse dos personagens uns pelos
outros e do autor pelos personagens, formando a trama das relações vividas e
descritas. A esta curiosidade corresponde uma visão muito tolerante, quase
amena. As pessoas fazem coisas que poderiam ser classificadas como reprováveis,
mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos,
ninguém merece censura”. (CANDIDO, 1993, p. 47).
Quanto aos estereótipos regionais,
Zé Carioca tem um primo em cada região do país, que a sintetiza e da qual é
representante. Ao se abrasileirar, o malandro Zé continua sendo, de acordo com
essa interpretação, o típico brasileiro, contudo, agora os gibis abrem espaço
para as peculiaridades – estereotipadas – regionais. Se antes, porque os
destinatários dos filmes
eram estrangeiros, as exoticidades eram buscadas em nível internacional, nos
gibis essas são encontradas no contexto intranacional. Nosso papagaio faz
várias incursões para conhecer os primos, mostrando o que há de pitoresco em
cada canto: Zé paulista que, por
demasiado trabalhador, é seu oposto; Zé
Jandaia, o cearense irascível; Zé
Pampeiro, o gaúcho de facão dos pampas; Zé Queijinho, o caipira mineiro que come de tudo; e Zé Baiano, exageradamente preguiçoso.
Cada região apresenta afinidades
maiores ou menores com a ordem.
Alguns dos principais parentes de Zé Carioca. Na época eles foram criados nas décadas de 1960 e 1970, expressando estereotrópios regionais do brasileiro. |
A “certa ausência de juízo moral”
(CANDIDO, 1993, p. 39) de Memórias, proporciona relativa equivalência entre
ordem e desordem, a tonalidade do relato não se torna mais ou menos aprovativa
conforme os personagens circulam no âmbito da ordem ou da desordem, pois há
“confusões de hemisférios e esta subversão final de valores” (CANDIDO, 1993, p. 43): “Tutto nel mondo é burla’,
parece dizer o narrador das Memórias de um sargento de milícias”. (CANDIDO,
1993, p. 41).
A mediação proporcionada pela
dialética da ordem e da desordem impede que se estabeleçam os pares antitéticos
que podem “fazer da hipocrisia um pilar da civilização”. (CANDIDO, 1993, p. 48)
Tais princípios mediadores estão, segundo Candido, geralmente ocultos, daí a
necessidade de uma análise profunda, do “subsolo do discurso”, (CANDIDO, 1993,
p. 14) que só é possível porque o “referente não é o país-projeto, mas o país
verdadeiro (o das classes sociais)”, (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 07) cuja pauta é a
“realidade em sentido forte”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 10).
Não há expressão de equivalência
entre ordem e desordem em Zé Carioca. Sem apreender que “fora da racionalização
ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco” (CANDIDO, 1993, p.
48), seus criadores estacam na polarização superficial e não podem expressar a “formalização estética de um ritmo
geral da sociedade brasileira” (Cf. SCHWARZ, p. 3). Trata-se do mais central
dos países capitalistas procurando oferecer uma visada “amigável” à periferia
do capitalismo. É o Brasil de Ari Barroso, da nívea baiana Iaiá que vende quindim, das aves raras, da cachaça,
do samba (tanto que nos filmes
os termos exótico, esquisito
e afins
são mais que
recorrentes). É o Brasil pela
via da exoticidade e não da
originalidade estrutural: “os detalhes pitorescos oferecem ao leitor a identificação brasileira fácil e simpática, a qual nesta perspectiva é um …m em si mesmo. A função é mais ideológica do que artística” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 06).
A escolha da Disney pelo pitoresco
nos faz “parecer inferiores ante uma visão estupidamente nutrida de valores
puritanos, como a das sociedades capitalistas” (CANDIDO, 1993, p. 53) embora
seja a labilidade, em verdade, “uma das dimensões fecundas do nosso universo
cultural” (CANDIDO, 1993, p. 53), que pode, inclusive, facilitar “a nossa
inserção num mundo eventualmente mais aberto”. (CANDIDO, 1993, p. 53). Por um lado, Candido reabilita a
malandragem, “a generaliza para o país, sublinha os inconvenientes [...] de que
ela nos poupou, e especula sobre as suas afinidades com uma ordem mundial mais favorável, que pelo
contexto seria pós-burguesa”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 18).
Por outro, como “exprime a vasta acomodação
geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, criando uma espécie de
terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem
da norma e vai ao crime” (CANDIDO, 1993, p. 51), a dialética da malandragem –
além de sementeira do socialismo – pode plantear, como insinua Schwarz, também
a barbárie capitalista9. Em outras palavras, a malandragem brasileira pode
tanto conspirar para a derrota da barbárie quanto para seu contrário.
Se Leonardinho se sentiria muito à
vontade num mundo mais aberto, Zé Carioca seria um papagaio fora do lugar. O
que significa
que as potencialidades criativas do genuíno malandro brasileiro, que Candido perspectiva, fica castrada na criação da Disney, uma vez que o simpático
papagaio propende para a segunda possibilidade, “era, com efeito, ele” (Cf. ALMEIDA,
2010, p. 92).
Passados mais de trinta anos da
publicação de “Dialética da malandragem” e vinte de “Pressupostos, salvo
engano, de ‘Dialética da malandragem’”, a dupla potencialidade da dialética da
malandragem, tal como elucidada por Schwarz, se torna cabal instrumento
interpretativo quando o Brasil ensina o mundo a ser bárbaro. Talvez essa tenha
sido a perspicaz intuição dos estúdios Walt Disney ao empreenderem, em 1943,
essa incursão pela América Latina: as formas de espontaneidade social da
periferia do capitalismo revelam a verdade atual do capitalismo inclusive no
centro10. E nossa malandragem dá que falar ao mundo inteiro!
REFERÊNCIAS
ALMEIDA,
Manuel Antonio de. Memórias de um
sargento de milícias. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em
2010.
CANDIDO,
Antonio. Dialética da malandragem.
In: O discurso e a cidade. São Paulo:
Duas cidades, 1993.
MENEGAT,
Marildo. Notas de aula – curso Teoria
Crítica no Brasil. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Serviço Social, UFRJ,
2008.
SCHWARZ,
Roberto. Pressupostos, salvo engano,
de ‘Dialética da malandragem” (disponível em www.pacc.ufrj.br/literaria/schwarz).
Acessado em 2010.
SODRÉ, Nelson
Werneck. Capitalismo e revolução burguesa
no Brasil. 2ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
NOTAS:
2. Convém lembrar
a tradição de dispersão e distanciamento entre o Brasil e os países
latino-americanos de origem espanhola desde os tempos coloniais: “tratados
separadamente cada um deles pelas metrópoles políticas ou econômicas e por
aquela que mais influiria em seus destinos, desde os fins do século XIX, os Estados Unidos. Os
referidos países jamais
alcançaram o nível mínimo de política comum, face àquelas metrópoles. O que se
convencionou conhecer como pan-americanismo, no século XX, não passou jamais de
fórmula diplomática de tutela de Washington sobre uma espécie de quintal”
(SODRÉ, 1997, p.118). Ademais, não é acidental ser um brasileiro a guiar Donald
em sua aventura nos trópicos, é histórico o “papel exercido pelo Brasil como
procurador dos interesses comerciais” metropolitanos, “tornando-o instrumento
de intervenção nos países vizinhos de origem espanhola” (SODRÉ, 1997, p.118).
3. Alô, amigos (Hello friends), 42’, Walt
Disney, 1943; Os três cavaleiros (The
Three Caballeros), Walt Disney, 1945.
4. As citações
sem referências são falas do filme Alô,
amigos.
5. A partir
deste trecho todas as citações sem referência são falas do filme Os três
cavaleiros.
6. Não se
confunda, todavia, títere com bajulador. Pois Zé afasta-se do malandro espanhol
ao não realizar sua meta suprema: “não procurar e não agradar os ‘superiores’”.
(CANDIDO, 1993, p. 24).
7. Tal
originalidade estrutural é condicionada historicamente, “a oposição de ordem e
desordem não faz parte de um quadro universalista, pelo contrário, ela é
esclarecida à luz do movimento e do momento sociais, onde os termos encontram a
sua dialética” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 16). Esse autor esclarece ainda que em
“Dialética da malandragem” Antonio Candido ora mostra a dialética da ordem e da
desordem “enquanto experiência e perspectiva de um setor social, num quadro de
antagonismo de classes historicamente determinado. Ao passo que noutro momento
ela é o modo de ser brasileiro, isto é, um traço cultural através do qual nos
comparamos a outros países e que em circunstâncias históricas favoráveis pode
nos ajudar” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 18).
8. Schwarz de.ne
a dialética da malandragem como “a suspensão de conflitos históricos precisos
através de uma sabedoria genérica da sobrevivência, que não os interioriza e
não conhece convicções nem remorsos”. (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 04).
9. O argumento de
Schwarz é o seguinte: “a repressão desencadeada a partir de 1969 – com seus
interesses clandestinos em faixa própria, sem definição de responsabilidades, e
sempre a bem daquela mesma modernização – não participava ela também da dialética
de ordem e desordem?” (Cf. SCHWARZ, 2010, p. 21). Isso indicaria, portanto, que
“só no plano dos traços culturais malandragem e capitalismo se opõem”. (Cf.
SCHWARZ, 2010, p. 21).
10. Cf. MENEGAT
(2008).
Fonte: FERREIRA, Camila Manduca. Zé Carioca: um papagaio na periferia do capitalismo. Novos Rumos, Marília, v. 49, n. 1, 2012, jan/jun, p. 159-168.