Dando segmento ao debate sobre a tragédia flamejante que acometeu no dai 02 de setembro desse ano, o Museu Nacional do Brasil, trago outro artigo, dessa vez debatendo a importância da museologia e dos museus, não apenas como guardiões da história, artes e ciências, mas também como preservadores do patrimônio, e locais para interação social e cultural.
Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda inovadora
Prof. Dra. Alícia Duarte
1 Introdução
Em maio de 1968, um grupo
de profissionais de museus organizava-se espontaneamente, em Paris, para
contestar os museus, considerados “instituições burguesas”. Os estudantes
chegam a reclamar a supressão de todos os museus e a dispersão das suas
coleções por espaços da vida quotidiana. O seu slogan é: “La Jaconde au métro”1. Pela mesma
altura, nos Estados Unidos da América, alguns artistas organizavam-se para
rejeitar a arte e os museus. As novas linguagens e expressões artísticas
demonstravam uma não-empatia pela instituição e recorriam à utilização de
espaços alternativos, como grandes armazéns vazios, numa aproximação a um
modelo de anti-museu. Em simultâneo, em diversos países europeus, os índices de
visitantes dos museus caiam e tornava-se evidente que a instituição se tinha
transformado em pouco mais do que um depósito lúgubre de objetos.
O contexto social de forte
questionamento e mudança que marcou a década de1960 não permitirá que o museu
passe incólume por esse período. Mas, por outro lado, a inserção do museu
nesses movimentos sociais e a exploração dinâmica das suas coleções exigia uma
verdadeira metamorfose da instituição. A letargia dominante será removida
através de duas linhas de renovação distintas: 1) o projeto e o ideal político
de democratização cultural com a ajuda do museu, e 2) a eleição do museu e suas
práticas como campo de reflexão teórica e epistemológica. Em ambas os casos será
importante o contributo dos museus etnográficos e da antropologia. De cada uma dessas
linhas de renovação resultarão, todavia, nos anos de 1980, conjuntos de desenvolvimentos
que se constituirão como a vertente mais francófona e a vertente mais
anglo-saxónica, respetivamente, da designada Nova Museologia.
Neste texto, insisto na
vantagem de reconhecer a Nova Museologia como um movimento de larga abrangência
teórica e metodológica, cujas raízes radicam nas duas linhas de rutura a que
chamei vertente francófona e vertente anglo-saxónica, mas cujos desenvolvimentos
posteriores aconselham a olhá-los como sobrepostos e compondo um único
movimento renovador. Essas mudanças foram centrais para a renovação da instituição
museológica no final do século XX, como o serão ainda no século XXI.
2 O Museu e o
Desenvolvimento Comunitário
A temática da democratização
cultural (ou “educação popular”) surge
especialmente relevante em
França2. Da apreciação crítica de que, até aí, o museu tinha sido um
instrumento ao serviço das elites sociais e intelectuais, é entendido que a
continuação da sua existência deve passar pela sua transformação em instituição
ao serviço de todos e utilizada por todos. O museu pode e deve ser um
instrumento privilegiado de educação permanente e um centro cultural acessível
a todos. Em função de tais posicionamentos, é defendido um conjunto de
reformulações que, de forma mais ou menos lenta, será adotado dentro e fora do
território francês.
No interior desta linha de
renovação, é incontornável a personagem de George
Henri Rivière (1897-1985) e as suas teorias museológicas defendidas e aplicadas
no Musée National des Arts et Traditions
Populaires3, em Paris. A possibilidade do museu cumprir as novas funções
que lhe são atribuídas passa, entre outras coisas, pela introdução de alguma
experimentação museográfica orientada pela intenção de fazer chegar a mensagem
do museu ao maior número possível de pessoas4.
Nas palavras de G. H.
Rivière, “[…] o sucesso de um museu não se mede pelo número de visitantes que
recebe, mas pelo número de visitantes aos quais ensinou alguma coisa. Não se mede
pelo número de objetos que mostra, mas pelo número de objetos que puderam ser
percebidos pelos visitantes no seu ambiente humano” (apud SCHLUMBERGER, 1989,
p. 7).
O seu trabalho pioneiro
traduz-se, nomeadamente na recusa do mero
deleite visual de
observação de objetos isolados e na procura de um itinerário expositivo ou
linguagem museográfica. Esta concretiza-se através de diversas técnicas entre
as quais sobressai a reconstituição realista de cenários, as “unidades ecológicas”,
que recriam um determinado contexto social aí inserindo e fazendo reviver os
objetos em exposição5. A reconstituição de processos operatórios completos para
ilustrar um determinado processo de produção material é outra possibilidade.
Ao nível das vitrinas, o
uso sistemático do fio de nylon, através do qual os artefactos eram mantidos
em posição realista de uso, permitiu a Rivière o título de “o mágico das vitrinas”
(GORGUS, 2003). E pode ainda ser referido o recurso a vários complementos
expositivos como textos explicativos adaptados a diferentes públicos, suportes
gráficose audiovisuais ou a permissão de tocar alguns dos objetos expostos.
A outros níveis, a
percepção do museu como instrumento educativo e auxiliar na maior
consciencialização dos cidadãos traduz-se igualmente na defesa de outras inovações.
De forma abrangente, é defendida a abertura do museu ao exterior, podendo isso
significar, quer a divulgação da instituição fora de portas e em lugares tão
inabituais como feiras, quer a realização de conferências ou concertos nas instalações
do museu. O intuito da proximidade às populações e a preocupação com o acesso
destas à instituição sustentam igualmente a criação dos primeiros serviços educativos
para públicos escolares e dos serviços de ação cultural destinados a públicos
mais vastos, bem assim como a criação, em 1971, do primeiro musée bus6, no Musée Savoisien de Chambéry. Importa
compreender que o conjunto de inovações museológicas referido alcança alguma
difusão na década de 1970, mas não, de modo nenhum, a sua generalizada aplicação.
A renovação tende a
aparecer com alguma recorrência em exposições temporárias, mas, nas
permanentes, os materiais museográficos tendem a manter-se não renovados. E
mesmo esta adesão parcial surge bastante variável segundo as áreas
disciplinares: menos efetiva entre os historiadores de arte e mais regular
entre os antropólogos. A este propósito deve ficar assinalado o contributo que os
museus etnográficos e a antropologia deram para a sustentação das renovações propostas.
Por um lado, os museus etnográficos corporizam em si mesmo uma ampliação da
noção de objeto de museu, já que os artefactos com que lidam são objetos
quotidianos de toda a espécie que não cabem na categoria tradicional de “obra de
arte”. Por outro lado, o entendimento dos objetos etnográficos como destituídos
de valor intrínseco, já que o seu significado só pode ser compreendido pelo
respectivo enquadramento sociocultural em que são produzidos e/ou utilizados,
reforça a necessidade da sua contextualização e, portanto, de os situar no
interior de um discurso expositivo.
Num tempo ainda longínquo
relativamente ao atual paradigma patrimonial que proclama a indissolução das
suas dimensões material e imaterial, a antropologia fazia ressaltar de modo
claro a impossibilidade de ser de outro modo. Na década de 1970, a manutenção
do ideal de democratização cultural e a simultânea constatação da insuficiente
aplicação das necessárias renovações museológicas para alcançar tal objetivo,
conduzem ao questionar se a instituição existente será capaz de cumprir as
novas finalidades que lhe são atribuídas: a de ser um instrumento de
aprendizagem e animação sociocultural permanente, em articulação estreita com
as pessoas.
É desse questionamento que
emergirá a proposta inovadora de outros tipos de museu – o ecomuseu e/ou o museu de comunidade. Na nova tipologia, “a inovação
decisiva tem que ver com a lógica comunitária do projeto, definida pela
territorialidade do campo de intervenção e pela participação da população”
(POULOT, 2008, p.178). Reconhecendo a importância das dimensões sociais e
políticas do museu, defende-se a promoção de um “museu integral” (VARINE-BOHAN,
1976) que leve em consideração a totalidade dos problemas da comunidade que o
abriga, desempenhando ele mesmo um papel pivot como instrumento de uma
animação participativa e de um desenvolvimento sustentado.
O termo “ecomuseu” foi cunhado em 1971, pelo então Director do ICOM, Hugues de Varine-Bohan, no contexto da IX Conferência Geral de Museus do ICOM
– realizada em Grenoble (França) e dedicada
à discussão das funções do museu ao serviço do ser humano. A sua ideia e modelo
de “museu integral” ganha consistência em 1972, no decorrer da Mesa Redonda de Santiago do Chile
(realizada por iniciativa da Unesco para debater o papel do museu na América
Latina), em simultâneo com a tomada de consciência dos profissionais presentes
de que desconhecem as respetivas comunidades onde trabalham e os museus
existem. Contudo, o conjunto de práticas que virão a ser referidas como
museologia: “ativa”, “popular” “participativa”, “comunitária”, “experimental”
“antropológica”, e outras similares, encontra novamente os seus antecedentes na
década de 1960.
Em setembro de 1966,
realizaram-se em França as famosas Jornadas
de Lursen-Provence com a finalidade de discutir a constituição dos Parques
Naturais enquanto estruturas capazes de promover a defesa do património
cultural e natural7. Nesse contexto de debate, G. H. Rivière aparece defendendo
que os Parques deveriam incluir “recintos explorados museograficamente”, onde
se localizariam construções deslocadas dos seus ambientes originais, segundo o
modelo do museu
de plein air escandinavo.
Os Parques acabam por ser criados em 1967, surgindo neles inseridas as chamadas
“casas de parque” que devem ser entendidas como os antecessores imediatos do
ecomuseu.
O Parque Natural fornece ao
ecomuseu uma oportunidade decisiva de desenvolvimento na medida em que no seu
seio é facilitada a ligação entre o desenvolvimento sustentado, a animação
sociocultural e as referências identitárias. Pela mesma altura, a prática
também emergente, nomeadamente nas grandes cidades, de alguns dos museus
existentes procederem à criação de antenas dispersas pelos bairros periféricos,
prefigura a mesma ideia do “musée eclaté” de que falava Varine-Bohan (1973) como o protótipo do ecomuseu8, i.e., um museu
pluridisciplinar e deslocalizado que se espraia entre diferentes locais
dispersos de exposição. Os exemplos, ainda hoje emblemáticos, do movimento
pioneiro de aproximação à comunidade em grandes centros urbanos são o Anacostia Neighbourhood Museum (1967),
localizado em Washington D.C. e
extensão da Smithsonian Institution,
e a Casa del Museo (1968), situada
na cidade do México e ligada ao Museo
Nacional de Antropología.
Entretanto, o Ecomuseu da Comunidade Urbana Le
Creusot/Montceau-les-Mines (França), cuja constituição é oficializada em
abril de 1974, torna-se um marco referencial pelo que significou de
ultrapassagem da ligação do projeto ecomuseológico ao mundo dos Parques e de
efetiva aproximação ao ideal do “museu integral” formulado na Mesa Redonda de Santiago (UNESCO,
1972)9. A “aventura do Creusot” foi significativa desde logo porque se tratava
de uma comunidade urbana fortemente marcada por actividades industriais, onde
foi concretizado o primeiro exercício de arqueologia industrial10.
A experiência foi
igualmente pioneira pela forma como conseguiu articular a proteção do
património material e imaterial, a adesão emotiva dos seus habitantes e a
criação artística, materializando uma abordagem da “cultura” no seu sentido
antropológico mais efetivo. Muito rapidamente, é possível referir: em 1972, é
definido o objetivo de criar um Musée de
l’Homme et de l’Industrie11 do Le Creusot,
cuja concepção e animação seria assegurada por um Centro de Artes Plásticas
local, criado em 197012. Da evolução desse projeto e consequente constituição
de uma Associação local, em 1974 é criado o Ecomuseu da Comunidade Urbana do Le
Creusot/Montceau-les-Mines, cuja organização procura ligar organicamente a
memória, a formação, a gestão colaborativa e a criação artística e industrial.
Durante a década de 1970, o
ecomuseu difunde-se dentro e fora do território francês, englobando uma grande
diversidade de fórmulas. Em termos de organização é, contudo, recorrente o
modelo de administração instituído no Le Creusot/Montceau-les-Mines e composto
por três comités: de gestores, de usuários e de investigadores, cujo desejável
equilíbrio tende a não ser alcançado. Ao longo da década de 1980 o polimorfismo
continuará crescente, mas os chamados ecomuseus de terceira geração tenderão a
reforçar a filosofia participativa da instituição, insistindo na sua dimensão social
(HUBERT, 1989).
3 O Museu como Objeto de
Estudo e Reflexão
A outra linha de renovação
da instituição museológica feita sentir a partir do fim da década de 1960
concretiza-se através da eleição do museu e suas práticas como campo de
reflexão teórica e epistemológica. Estes desenvolvimentos cruzam-se, em primeiro
lugar, com a emergência de uma nova postura epistemológica a que genericamente
é lícito chamar “pós-estruturalista” ou “pós-moderna”.
Se o Iluminismo do século
XVIII conduziu à afirmação de uma epistemologia positivista que proclamava o
carácter absoluto do conhecimento, a sua aplicabilidade universal e a certeza
da sua obtenção pelo cumprimento escrupuloso do método científico, a emergência
das críticas a esta concepção do conhecimento faz surgir a problemática da
crítica representacional.
A certeza e a confiança,
antes depositadas na superioridade do pensamento racional, são agora trocadas
pela percepção de que o conhecimento é sempre e inevitavelmente uma construção
histórica e social. A epistemologia emergente deixa de conceber o conhecimento
como absolutamente objetivo e desinteressado, passando a insistir na
necessidade de lhe
descortinar as implicações políticas e de poder, bem como a correspondente
relatividade e limitações. Ao produzirem conhecimento, as diferentes áreas
disciplinares produzem, em simultâneo, representações sobre a realidade que precisam
ser desmontadas e questionadas. As representações construídas não são inócuas,
antes, pelo contrário, suportam e comunicam significados que ajudam, ou não, a
reproduzir desigualdades e o status quo.
Dada esta nova postura
epistemológica pós-estruturalista, marcada por grande reflexividade e
sensibilidade acerca da natureza parcial do conhecimento e das suas implicações
políticas, o museu vê os seus próprios fundamentos e concepções tornarem-se
alvos de análise e questionamento. A instituição museológica, ela própria, emerge
como pertinente objeto de estudo para diversas áreas disciplinares, já que as “velhas”
narrativas por si veiculadas – representações sobre as culturas, a ciência, a arte,
o povo, a nação, o império, a classe, a raça – deixam de ser tidas como
“certas” ou “verdadeiras”, passando a ser entendidas como merecedoras de
escrutínio crítico e reavaliação.
A crítica representacional
atinge o próprio conceito de museu e os estudos museológicos13. Traduzindo a
introdução de novas abordagens no interior da temática museológica, é
instaurado a discussão sobre a natureza da instituição, sobre o caráter e
significado das suas coleções, das suas modalidades de representação cultural,
da sua identidade institucional, até da sua missão e do seu lugar na sociedade.
Ainda antes de referir
outros fatores igualmente intervenientes nesta linha de renovação museológica,
importa compreender que a nova atenção crítica dispensada ao museu o faz
emergir como lugar central duma discussão cujo âmbito é bastante mais alargado.
O museu torna-se um locus particular onde são discutidas e combatidas
algumas das grandes questões teóricas e epistemológicas da contemporaneidade.
Em resultado dos novos
níveis de reflexão e interesse suscitados, os profissionais do museu são
confrontados – embora nem sempre entrem em diálogo – com abordagens de outras
áreas disciplinares, sendo obrigados a constatar que os estudiosos do museu já
não são apenas eles próprios, mas também um conjunto bastante alargado de
académicos. Por outro lado, a insistência no facto da instituição museológica e
os significados dos seus conteúdos serem contextuais e
contingentes – e não fixos
– conduz à tomada de consciência da necessidade de fazer incluir nos discursos
museológicos outras “vozes”, até agora ausentes. Ou seja, vai crescendo a
consciencialização da necessidade de alargar o espaço representacional do
museu.
Esta segunda vertente
renovadora da museologia – centrada no estudo crítico do museu e suas práticas
representacionais – cruza-se igualmente com a introdução de perspectivas
teóricas, nomeadamente antropológicas, no estudo da instituição social que é o
museu. No âmbito desta dinâmica devem ser novamente realçados os contributos da
antropologia que, a partir dos anos de 1970, se manifestam através
quer da renovação dos
estudos de cultura material, quer da emergência do que se pode chamar uma
museologia antropológica (KAPLAN, 1994).
Talvez precise ser lembrado
que a antropologia é a única das ciências sociais a ter tido relações estreitas
com a instituição museológica desde a sua instituição, no século XIX.
Posteriormente, nos anos de 1920, essas relações sofrem uma rutura bastante
radical relacionada com a adoção dos posicionamentos conceptuais e
metodológicos estruturo-funcionalistas, bem assim como com a criação dos
departamentos de antropologia na universidade. Essa dissociação entre
antropologia e museus será, contudo, ultrapassada a partir dos anos de 1970
(DUARTE, 1997). Tal reaproximação e correlativo ressurgimento de uma museologia
antropológica surgem estreitamente relacionadas à afirmação da abordagem
interpretativa na antropologia e correspondente percepção dos fenómenos sociais
como processos de construção de significados, na linha da proposta de Clifford Geertz
[1973].
Para dar conta desta nova
postura interpretativa, e, nomeadamente, dos efeitos de reorientação por ela
desencadeados nas múltiplas áreas dos estudos culturais, alguns autores
(MILNER; BROWITT, 2002; MASON, 2006; ANICO, 2006) utilizam a expressão “teoria
cultural contemporânea”, como se a “cultura” de que falam fosse um constructo
completamente novo. Contudo, os contornos do que seja essa “teoria
cultural” surgem muito
pouco compreensíveis se não for reconhecida a filiação antropológica da noção
de “cultura” utilizada, nem a sua ligação à abordagem interpretativa. Assim
sendo, fundamental é clarificar de que modo a perspectiva interpretativa, feita
sentir na antropologia a partir dos anos de 1970, ajudou a corroborar o sentido
da renovação museológica descrita.
Com a perspectiva interpretativa,
as culturas surgem entendidas como as “teias de significado” que os próprios
seres sociais tecem e a que estão amarrados, e a análise cultural como a “procura
do significado” (GEERTZ,1989, p. 4). A interpretação antropológica procura construir
uma leitura do que acontece através da análise do discurso social que se manifesta,
tanto por palavras, como por ações. Deve ser destacada, quer a natureza semiótica
do conceito de cultura formulado, quer a relevância atribuída à consideração dos
processos de produção e comunicação de significados.
Estes são entendidos como
ocorrendo em diferentes situações e espaços através de diversas práticas e comportamentos,
concretizados por múltiplos agentes. Inclusive os resultados analíticos produzidos
no interior das várias áreas disciplinares são interpretações de que interessa
descortinar as implicações sociais e políticas.
A importância acrescida que
passa a ser conferida aos processos de construção de significados reforça a
percepção do museu como objeto de estudo privilegiado. O museu é uma
instituição social que produz sistemas de significados e os comunica
publicamente. Por outro lado, as construções de valor e os discursos narrativos
concretizados no museu não têm nada de intemporais ou absolutos. São atribuições
de significados que, por envolverem a possibilidade de significados alternativos,
acarretam sempre a existência de lutas de poder. Considerado a esta luz, o
museu é redescoberto pela antropologia como locus de pesquisa e reflexão
(DUARTE, 1998).
Aceitar que a produção de
interpretações e o reconhecimento de significados dependem do contexto
considerado repercute-se de forma direta no entendimento de que o objeto de
museu e a sua exposição não têm significados intrínsecos. Pelo contrário, esses
significados são dependentes do respetivo contexto de exibição e interpretação.
Dito de outro modo, a viragem interpretativa na antropologia reforça o
reconhecimento de que o objeto de museu é polissémico e de que nenhuma
exposição é neutra. As atividades do museu e, em especial, as relacionadas com
o ordenamento dos seus objetos em exposição tornam-se merecedoras de atenção,
sustentando uma abordagem textual da instituição museológica. O museu é um
espaço discursivo, cujas estratégias e narrativas expositivas merecem análise
atenta por forma a descortinar, quer os significados construídos e comunicados,
quer as suas implicações ideológicas, políticas e éticas.
4 A “Nova Museologia” ou a
Chegada de uma Museologia Teórica
Os dois pontos anteriores
deste artigo procuraram tornar manifesta – ainda assim, com razoável
exaustividade – a multiplicidade de aspetos relativamente aos quais, a partir
de certa altura, a instituição museológica passa a estar sob escrutínio. Antes
de 1960, podemos falar de uma museologia tradicional (ou “moderna”) que se tinha
desenvolvido em estreita articulação com a formação do Estado-nação moderno e
impérios coloniais europeus e com a correspondente educação dos seus cidadãos (BENNETT,
1995), mas da qual estava ausente todo o auto-questionamento ou autocrítica
sobre os fundamentos e o papel social e político do museu.
Os anos de 1960/70 abrigam
uma transformação radical dessa situação pela multiplicação das áreas que
profissionais e académicos começam a considerar necessitadas e/ou merecedoras
de debate e renovação. Importa compreender que é em resultado desse movimento
que, nos anos de 1980, se falará em Nova Museologia, uma designação elaborada
para exatamente traduzir a viragem teórica e reflexiva concretizada – ou tida
como ainda necessário promover – na museologia contemporânea.
Compreendendo, portanto,
que as dinâmicas e vertentes de renovação
museológica, antes
enunciadas, constituem o centro das preocupações da Nova Museologia, é possível atender agora de modo mais aprofundado
aos seus contornos. Como já terá ficado claro pelo salientado no artigo até ao
momento, é fundamental que a designação “Nova Museologia” seja entendida como
abrangendo, quer os desenvolvimentos da vertente francófona, quer os da
vertente anglo-saxónica, que não são opostos, mas, antes, complementares.
Começando pela história da
construção da designação, não há como fugir nem à referência da Declaração do Quebec, em 1984, e da
criação do Mouvement Internationale pour
la Nouvelle Museologie (MINOM)14, em 1985, nem à publicação do livro The New Museology, editado por Peter Vergo, em 1989. O documento
internacional conhecido
como a Declaração do Quebec tem como subtítulo “princípios de base de uma nova
museologia” e foi produzido no contexto do I
Atelier Internacional Ecomuseu/Nova Museologia. Este, dedicado a G. H.
Rivière e realizado em estreita ligação com o Ecomusée de Haute Beauce, no
Quebec (Canadá), reunia a parte dos membros do ICOFOM15 que defendiam o
reconhecimento internacional e a promoção de novas formas museais e que tinham,
portanto, discordado da tomada de posição da XIII Conferência Geral do ICOM – realizada em Londres, em julho de
1983 – na qual tinha sido formalmente rejeitado o reconhecimento de todas as
práticas que não se enquadrassem no quadro museológico instituído.
A Declaração do Quebec
começa por estabelecer relação entre o movimento da nova museologia e a Mesa
Redonda de Santiago do Chile, destacando a importância da afirmação da função
social do museu. Prossegue depois com a sistematização dos princípios do
movimento, afirmando a necessidade de ampliar as tradicionais atribuições do
museu e de integrar as populações nas suas ações, especificando também que a
nova museologia abrange a “ecomuseologia, a museologia comunitária e todas as
outras formas de museologia ativa”.
Em termos de resoluções, o
documento termina convidando a comunidade internacional a reconhecer o
movimento e a aceitar todas as novas tipologias existentes de museu, apelando à
criação de estruturas internacionais permanentes que possam assegurar o seu
desenvolvimento. A proposta feita de criação de um Comité Internacional “Ecomuseus/Museus
Comunitários” nunca se concretizará, mas a da criação de uma Federação Internacional da Nova Museologia
será efetivada através do MINOM, cuja constituição se concretiza em 1985,
em Lisboa, durante a realização do II Atelier Internacional. Nesse encontro é
igualmente reconhecido o conjunto de posições subscritas na Declaração do
Quebec, não restando dúvidas quanto ao seu papel de documento fundador do
MINOM, a nova instituição filiada ao ICOM.
A propósito da afirmação
desta vertente do movimento da Nova Museologia, devem ser retidos alguns
aspetos. Por um lado, convém notar a abrangência da renovação defendida,
explicitada no claro reconhecimento de várias novas formas museais que não
apenas o ecomuseu. A museologia ativa que se defende é claramente um movimento
museológico múltiplo que abrange, não só o ecomuseu, mas também o museu de
comunidade, o museu de vizinhança, o museu local. Por outro lado, a prioridade
atribuída à participação e desenvolvimento integrado das populações exige da
parte dos profissionais a adoção de um renovado aparato conceptual que os
auxilie a concretizar a mudança de um museu centrado nas suas coleções para
outro, centrado nas suas funções sociais. A ampliação dos instrumentos conceptuais
e o recurso a mecanismos como a interdisciplinaridade ou novos métodos de
gestão e comunicação são a outra face das experiências inovadoras defendidas e da
nova exigência do museu como instituição implicada na vida das populações.
Quanto ao outro marco
incontornável na construção da designação Nova Museologia – a publicação do
livro coletivo The New Museology, editado pelo historiador de arte Peter
Vergo, em 1989 – ele comporta outras especificidades. Pode-se dizer que a
emergência da obra foi motivada por idêntica apreciação quanto à necessidade de
renovar o quadro museológico instituído, o que nas palavras do seu editor é
expresso de modo bastante corrosivo:
“contemplando a história e
o desenvolvimento da profissão museológica […] a comparação que
irresistivelmente salta à mente é com o celacanto, essa extraordinária criatura
cujo cérebro, no curso do seu desenvolvimento de embrião a adulto, diminui em
relação ao seu tamanho, de modo que no final ocupa apenas uma fração do espaço
disponível para ele”. (VERGO, 1989, p. 3).
Para lá desse ponto central
coincidente, há, porém, algumas diferenças a assinalar. Desde logo, trata-se
apenas de uma publicação composta por nove capítulos, uma introdução e
respetiva bibliografia selecionada, cujos autores em termos profissionais
aparecem equitativamente divididos entre a instituição museológica e a
universidade. Embora se possa, portanto, dizer que também traduz a existência
de um movimento coletivo, a produção do livro não é motivada pelo objetivo de
ver as análises feitas ou as posições tomadas serem reconhecidas por um
organismo internacional com papel regulador na área da museologia.
Essa dimensão institucional
e internacional está aqui ausente, sendo, aliás, expressamente referido na Introdução
que o âmbito do volume se restringe ao espaço do Reino Unido, com pontuais
incursões aos contextos australiano e norte-americano. A outra diferença
substancial
liga-se ao facto das
reflexões estarem voltadas, não para as funções sociais do museu e seu potencial
transformador do meio circundante, mas para as “escolhas” que, sem apelo, o museu
tem de fazer para adquirir e publicamente apresentar as suas coleções. Os
impactos produzidos pelo museu concretizam-se também dentro da própria
instituição, através das suas exposições e das opções que lhes estão
subjacentes. Esta é a problemática central das considerações produzidas no
livro sob a designação de Nova Museologia.
Depois de declarar que todo
o ato de coleta tem uma dimensão política,
ideológica ou estética
impossível de exagerar, e de frisar que “cada justaposição ou arranjo de um
objeto ou obra de arte, […] no contexto de uma exposição temporária ou exibição
de museu, significa colocar uma certa construção sobre a história” (VERGO, 1989,
p. 2), este autor define a “nova” museologia como um “estado generalizado de insatisfação”
com a “velha”. E especifica: “o que está errado com a «velha» museologia é que
ela é demasiado sobre métodos de museu, e demasiado pouco sobre os
propósitos dos museus” (VERGO, 1989, p. 3)16. É feita uma crítica severa ao facto
de até ao presente os profissionais do museu não terem reconhecido a sua área disciplinar
como disciplina teórica e inserida no quadro das ciências sociais, daí resultando
uma ostensiva ausência de atenção sobre tópicos absolutamente relevantes.
Por trás de todas as opções
ligadas à atividade expositiva do museu – seleção dos objetos, das legendas,
dos painéis informativos, do catálogo, das decisões de comunicação – há um
discurso ou “subtextos” que transmitem concepções, desejos, ambições,
posicionamentos veiculados por todas as pessoas intervenientes no processo e
que têm implicações intelectuais, políticas, sociais, educativas. Essas “considerações,
em vez de, digamos, a administração dos museus, os seus métodos e técnicas de
conservação, o seu bem-estar financeiro, o seu sucesso ou negligência
aos olhos do público, são o
assunto da nova museologia” (VERGO, 1989, p. 3).
Orientados e subscrevendo
as posições defendidas na Introdução do livro, todos os seus capítulos –
ainda que de modos muito diversos – se debruçam sobre processos de criação de
exposições. Todos os capítulos desmontam a construção dos “textos” e “contextos”
usados para comunicar significados e todos demonstram que os objetos exibidos
não detêm valor intrínseco.
Considerando esclarecidas
quais as linhas de força dominantes em cada uma das vertentes francófona e
anglo-saxónica da Nova Museologia, quero fazer notar como, para lá das
diferenças, as suas preocupações se sobrepõem e/ou complementam. Começando pelo
destaque conferido à dimensão social e política do museu, só numa abordagem
demasiada imediata seriamos tentados a considerar este
tópico como exclusivo da
vertente francófona. Numa análise menos precipitada teremos de reconhecer que a
questão é central também para a anglo-saxónica.
Na primeira ganha relevo a
dimensão do desenvolvimento sustentado, da animação sociocultural e da
participação das populações, mas a preocupação da segunda com o alargamento do
espaço representacional do museu e com a desconstrução dos seus discursos
expositivos, defendendo o aumento das “vozes” lá representadas, culminará na
abordagem de questões sociais e políticas muito idênticas17. Ainda que de
várias maneiras, é sempre a sensibilidade acerca do papel do museu como
instrumento de transformação social que ganha relevo.
O mesmo se pode dizer a
propósito da atenção dispensada à experimentação museográfica. Orientada pela
intenção de democratizar o acesso ao museu ou pela intenção de desconstruir os
discursos da ideologia dominante lá representada, em qualquer dos casos são
ensaiadas inovações assentes no reconhecimento de que o
significado dos objetos não
lhes é intrínseco, o que se traduz quer no seu menor uso em termos
exclusivamente estéticos, quer na ampliação da própria noção de objeto museológico
que passa a incluir objetos mais quotidianos, cuja manipulação pode inclusive
ser incentivada.
Considerando globalmente as
vertentes francófona e anglo-saxónica da Nova Museologia, as suas diferenças
revelam-se sobretudo ao nível das respetivas fontes teóricas de apoio, já que
na primeira surge mais relevante a presença dos profissionais de museu e a sua
ligação aos respetivos organismos internacionais, enquanto na segunda é mais
preponderante o peso de académicos e a sua ligação à instituição universitária.
5 Comentários Finais
Tendo presente a
diversidade de aspetos elencados, não devem restar dúvidas de que a Nova
Museologia é um movimento de larga abrangência teórica e metodológica, cujos
posicionamentos foram centrais para a renovação dos museus do século XX, como o
serão ainda para a renovação dos museus do século XXI. Esperando ter feito
compreender que através da expressão “Nova Museologia” se está a remeter para
um conjunto muito alargado de questões, de problemáticas e, até, de museologias,
para terminar esta abordagem faço um último esforço de sistematização das
grandes tendências de renovação por ela potenciadas.
De forma inequívoca, sob a
influência da Nova Museologia todas as atividades do museu se tornam objeto de
reflexão teórica e política. De muitos modos, o museu é uma instituição que
constrói definições de valor. O que decide pesquisar ou ignorar, os bens
culturais que seleciona para conservar e expor em detrimento de outros que
negligencia, o modo como concretiza essas tarefas e as justifica, com o auxílio
de quem, todas estas opções constituem um conjunto de decisões que se tornam matérias
merecedoras de interrogação. Os museus são espaços públicos que constroem
representações sociais e estas suportam regimes particulares de poder; mas tais
representações também podem ser desconstruídas e/ou contestadas e/ou diversificadas
(THOMSON, 2002; SPALDING, 2002; BERGERON, 2005). Não mais pode ser escamoteado
que o museu é uma instituição cultural e que os objetos que abriga devem,
necessariamente, ser equacionados em termos socioculturais. Os significados
produzidos e comunicados, não só podem como devem ser questionados.
Enquanto prática
museológica essencialmente reflexiva e crítica, a Nova Museologia apresenta-se
como capaz de conduzir uma agenda de pesquisa mais próxima e mais receptiva às
problemáticas contemporâneas das ciências sociais (ROLLAND; MUREUSKAYA, 2008).
Abordando a instituição museológica em termos da sua história e dos seus
propósitos, a Nova Museologia desdobra-se, nomeadamente, na consideração da sua
função social e das suas narrativas e estratégias expositivas. Como instituição
social que é, o museu tem responsabilidades sociais para com a comunidade em
que está inserido, cujo bem estar e satisfação de necessidades várias devem
fazer parte da sua missão (SANDELL, 2002, 2003).
Tensões e problemas
socioculturais de vária ordem, bem como flagrantes processos de exclusão não
são questões de que ele deva ficar alheado. Pelo contrário, o museu pode ser
agente de mudança social, de regeneração e de empowerment das populações,
na medida em que se torne mais consciente da comunidade que o rodeia e se torne
um efetivo espaço de congregação para essa comunidade (DUARTE, 2010; KEENE,
2005).
A consolidação da função
social do museu pressupõe, quer o abandono do seu tradicional isolamento em
relação a entidades como escolas, bibliotecas ou associações locais, com as quais
importa estabelecer parcerias tendo em mente o interesse das populações, quer a
redefinição da sua organização, que deixa de estar centrada nas coleções, para
passar a focar-se em temáticas e histórias que façam sentido para as respetivas
populações (MAIRESSE et al., 2010). Por sua vez, as novas narrativas
expositivas são cada vez mais materializadas através de objetos e muitos outros
suportes expositivos. Estes tendem a resultar da crescente ativação de metodologias
participativas, cujo grau de aplicação pode ir desde a simples escuta ou consulta
de diferentes subgrupos da comunidade até ao estabelecimento de acordos com
esses subgrupos, tendo em vista a cedência de materiais ou a sua efetiva
integração na equipa de curadores. Através dessas estratégias o museu evita o
seu encerramento discursivo e abre-se à inclusão de novas e mais diversificadas
“vozes” que passam a estar presentes nas suas narrativas museológicas.
Enquanto produto de síntese
de um movimento que inclui a introdução de perspectivas teóricas no estudo do
museu e a sua abordagem enquanto veículo de empowerment das comunidades,
a Nova Museologia traduz-se ainda na renovação de diversas outras dimensões da
instituição museológica. Por um lado, a ideia de que o museu deve representar a
sociedade na diversidade dos subgrupos que a compõem conduz e sustenta uma
ampliação da noção de objeto de museu. Este passa a incluir também uma cultura
material do quotidiano, de um passado mais recente e de classes e grupos
étnicos antes tendencialmente não contemplados. Por outro lado, a compreensão
alargada de que os significados dos objetos são situados – i.e., mutáveis
segundo os seus contextos de uso – justifica e reforça a crescente atenção dispensada
à contextualização das representações construídas no museu.
De forma compreensível, a
ênfase desloca-se da apresentação de objetos isolados e “únicos” para
representações que procuram atender e elucidar os contextos socioculturais nos quais
os significados dos objetos são gerados. Em continuidade com esta mesma lógica,
as tarefas de exposição e animação comunitária ganham relevância e desenvolvimento
em desfavor das tarefas dedicadas à conservação das coleções.
Como exemplo máximo da
revisão radical encetada sobre todas as atividades do museu é de referir a
questão dos pedidos de devolução lançados por vários países e grupos étnicos
sobre objetos detidos há muito por diversos museus. O ato de expor é sempre um
ato de definição e atribuição de valor que merece análise e discussão por forma
a lhe evidenciar os respetivos subtextos políticos e ideológicos. Mas se as representações
construídas se socorrem de objetos aos olhos de alguns entendidos como
“roubados” e obtidos por meios ilícitos que dão corpo a narrativas francamente redutoras
em termos culturais e reprováveis em termos éticos, então, a controvérsia pode
atingir níveis bastante críticos.
A utilização de objetos de
proveniência extraeuropeia e/ou indígena – normalmente coletados em contextos
de situação colonial e dominação política – tem suscitado acesa polémica. Por
um lado, não há como fugir ao debate sobre o estatuto legal destes objetos e
respetivas implicações éticas da sua utilização pelos atuais detentores. Por
outro lado, são cada vez mais numerosos os países e os grupos étnicos que
exigem a devolução dos “seus” objetos e, muitas vezes, o respetivo pedido
oficial de desculpas.
Proporcionar uma visão tão
panorâmica quanto possível das fontes de
influência iniciais e das
subsequentes dinâmicas da Nova Museologia constituiu-se como o derradeiro objetivo
deste artigo. O intuito e a ambição foram poder contribuir para a compreensão
da Nova Museologia enquanto movimento de larga abrangência teórica e
metodológica. Procurei demonstrar como a partir de duas vertentes
renovadoras iniciais se
atinge um produto de síntese que é a Nova Museologia. Fruto da fusão das duas
vertentes assinaladas, mas onde a partir de certa altura já não é lógico nem
possível distingui-las, a expressão Nova Museologia remete para um conjunto
muito alargado de questões e problemáticas que permanecem centrais para a
ambicionada renovação museológica contemporânea.
Hoje, a clareza da
expressão surge muitas vezes deficitária, até pela proliferação de outras
designações: museologia crítica, museologia pós-moderna, sociomuseologia… Reconhecendo
que aqui não há espaço suficiente para prestar a atenção devida a qualquer uma
dessas
designações e
correspondentes filosofias analíticas, permito-me, contudo, chamar a atenção
para a reduzida capacidade heurística que lhes é inerente em virtude, exatamente,
de corporizarem abordagens que pecam por serem parcelares. Pela mesma razão,
nenhuma dessas abordagens pode de modo pleno reivindicar ser a herdeira ou o
desenvolvimento lógico do movimento da Nova Museologia.
Atualmente como no século
passado, o museu e a museologia continuam, quer precisados, quer merecedores de
atenção crítica. As análises a realizar devem ser, contudo, não apenas
cuidadosas e reflexivas, mas também abrangentes e questionadoras de todos os
âmbitos de ação do museu. Defendo por isso que não é preciso inventar novas
designações. Continuemos com a designação “Nova Museologia”, já que as suas
linhas orientadoras tanto foram capazes de dar suporte à renovação iniciada nos
anos 60 do século XX, como parece conseguirão apoiar a ainda faltante e
ambicionada renovação do museu do século XXI.
Como comentário final
gostaria apenas de reiterar a importância dos contributos da Nova Museologia.
Se hoje é possível confirmar que os estudos museológicos efetivamente “chegaram
à maioridade” (MACDONALD, 2006, p. 1), em simultâneo, não pode ser escamoteado
o quanto os desenvolvimentos alcançados são resultantes dos contributos
fornecidos pelas múltiplas dinâmicas de renovação cobertas pela Nova
Museologia. A crescente articulação entre museu e academia – e o correlativo
reforço das perspectivas teórica e crítica – que parece ser o selo da atual expansão
dos estudos museológicos, é ela própria uma marca indelével da inflexão teórica
e política desencadeada pelo movimento da Nova Museologia.
Muito graças a ela é que o
museu deixou de ser, pelo menos maioritariamente, o lúgubre depósito de objetos
que já foi. Se é verdade que a propósito de demasiadas instituições museológicas
e suas atividades continua a ser notória a necessidade de maior sofisticação
teórica e metodológica (DUARTE, 2012), mais uma razão para dar a conhecer a
profundidade e abrangência das renovações propostas pela Nova Museologia. Mas
recorrendo ou não a essa designação, os seus ensinamentos parecem ser um bom
meio para alcançar um tipo de museu que possa ser “um lugar onde a imaginação
dos visitantes é estimulada, onde lhes é feito ver as coisas a uma nova luz,
onde algum tipo de alargamento – consciente ou inconsciente – ocorre na maneira
como eles vêem o mundo” (HOUTMAN, 1987, p. 7).
NOTAS:
1 “A Jaconde/Gioconda ao metropolitano”. Este movimento estudantil fazia
eco de declarações proferidas por alguns diretores de “Casas de Cultura”
francesas que, depois de uma reunião conjunta, afirmavam a sua recusa pelo
“público”, declarando que em exclusivo reconheciam interesse pelo
“não-público”, i.e., aqueles que tradicionalmente não frequentavam os museus.
2 As suas raízes ideológicas podem ser encontradas nas posições
programáticas da Front Populaire – coligação de esquerda que chegou ao poder na
década de 1930, em França.
3 I.e., Museu Nacional das Artes e Tradições Populares.
4 Ainda que menos vezes referidos, são igualmente merecedores do rótulo
de pioneiros Duncan F. A. Cameron (1968), da Art Gallery of Ontario (Canadá) e
Jean Gabus que, dirigindo o Musée d’ Ethnographie de Neuchâtel (Museu de Etnografia
de Neuchâtel) (Suíça), se mostrava especialmente empenhado na realização de
exposições temporárias, procurando dar corpo ao que designava como “museu
dinâmico” e “museu espectáculo”.
5 Algo muito semelhante era iniciado em 1970, em Londres, no Museum of
Mankind (Museu da Humanidade, departamento etnográfico do British Museum,
existente até 1994), com as chamadas “exposições contextuais”, que se socorriam
de cenografias elaboradas para recriar os contextos sociais em que os objetos
etnográficos tinham sido usados.
6 ”museu ônibus”.
7 Journées Nationales d’Études sur Les Parcs Naturels Régionaux
(Jornadas Nacionais de Estudo sobre os Parques Naturais Regionais) realizadas
de 25 a 30 setembro de 1966.
8 “museu disperso”, com diversos polos ou antenas.
9 Kenneth Hudson (1987), na sua obra Museums of Influence, elege o
Ecomuseu do Le Creusot/Montceau-les-Mines como um dos 37 museus de 13 países
que influenciaram a museologia contemporânea.
10 Entre as cidades de Le Creusot e de Montceau-les-Mines é possível
referir como tendo peso significativo: as indústrias de metalurgia, de extração
de carvão, de produção de cerâmica e de vidro.
11 Museu do Homem e da Indústria.
12 Centre de Recherche, d’Animation et de Création en Arts Plástiques
(CRACAP) (Centro de Pesquisa, de Animação e de Criação de Artes Plásticas), do
qual G. H. Rivière é um dos fundadores.
13 É sob influência desta mesma postura epistemológica
pós-estruturalista que, segundo alguns autores, os estudos na área dos museus
devem preferir a designação de “museum studies” em substituição do termo
“museologia”, já que através dessa opção é o próprio carácter plural das
abordagens que surge explicitado (MACDONALD, 2006).
14 Movimento Internacional para a Nova Museologia.
15 Comité Internacional de Museologia do ICOM (International Councial of
Museums).
16 As designações “nova” e “velha” utilizadas aqui, bem como as aspas e
o itálico assinalados na citação, são de Vergo.
17 A abordagem de questões como as desigualdades étnicas, de género ou
de classe serão exemplos elucidativos.
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Fonte: DUARTE, Alicia. Nova Museologia: os pontapés de saída de uma abordagem ainda inovadora. Revista Museologia e Patrimônio, vol. 6, n. 1, 2013, p. 99-117.
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