História da Epilepsia: um ponto de vista epistemológico
Marleide da Mota Gomes
INTRODUÇÃO
Poucas doenças chamaram tanta atenção e geraram tanto debate
quanto a epilepsia. A sua literatura é extensa e precursora das neurociências,
da diferenciação explícita entre práticas culturais religiosas, mágicas e
científicas(1). Ela demonstra como a exposição à história dos cuidados médicos
é importante pedagogicamente. Os estudiosos da medicina reconhecem que todos os
conhecimentos médicos são sujeitos à mudança e adquiridos em contextos
específicos. Isso pode ser inferido ao longo do presente texto, a partir de uma
revisão narrativa, que procura fazer uso da filosofia das neurociências para
entender a construção do conhecimento sobre a epilepsia, o que se pensa sobre
ela e porque se pensa desta forma. Assim, a autora além de expor fatos
históricos principais também procura explorar criticamente a construção do
conhecimento sobre a epilepsia ao longo do tempo, especialmente por John Hughlings Jackson (1834-1911).
MARCOS HISTÓRICOS ATÉ O INÍCIO DA EPILEPTOLOGIA MODERNA
Etiologia
As crenças predominam na história da epilepsia. As pessoas com
epilepsia (PCE) da Roma antiga eram evitadas
por medo de contágio(2). Na Idade Média, elas foram perseguidas como bruxas(2). Em 1496, foi lançado o manual de caçar
bruxas, Malleus maleficarum, escrito por dois frades dominicanos vinculados à famigerada
Inquisição Católica. Nesse tratado, a presença de crises epilépticas (CE) era
uma característica de feitiçaria(2). A orientação do mencionado tratado levou à
perseguição, tortura e morte a mais de milhares de mulheres(2), conclui-se que
várias delas eram PCE. Na primeira metade do século passado nos EUA, essas
pessoas eram rotuladas como desviantes e o seu matrimônio e reprodução eram
restringidas através de legislação e médicos eugenicistas, como Gordon Lennox (1884-1960)(2,3). Existem
também relatos de conversão religiosa relacionada temporalmente à CE, assim
como o acometimento de epilepsia de vários líderes religiosos(2).
A visão da epilepsia como devida a influências ocultas ou más teve
partidários até mesmo na Medicina durante os tempos antigos. Conseqüentemente,
foram prescritos tratamentos mágicos ou
religiosos, algumas práticas que persistem até hoje em parte da população
leiga. No Renascimento, houve a tentativa de se ver a epilepsia como uma
manifestação de doença física em lugar de uma mais obscura. No entanto, foi
durante o Iluminismo que a epilepsia começou a ser considerada de forma mais
moderna, com a ajuda de avanços da anatomia, patologia, química, farmácia e
fisiologia(2). A evolução do conhecimento sobre o transtorno é pontificado por
nomes como Hipócrates, Galeno, Arateus,
Avicena, Paracelsus, Willis, Boerhaave e Tissot.
Nas seções seguintes, mencionamos outros personagens e aquisições
nesta saga para entender este complexo sintomatológico e os cuidados às CE e às
PCE. O Corpus
Hipocraticum, conceitos médicos de Hipócrates e de sua
escola, com abordagem holística, se fez valer até meados dos anos de 1700.
Esses conceitos se apoiavam em variados aforismos sendo que alguns ainda norteiam
a Medicina e a ética médica. Vários dos textos a seguir apresentados e
transcritos por Pearce (1998)(4) demonstram como ao longo do tempo teorias
fisiopatogênicas das CE se somaram escalarmente. Andréas Vesalius (1514-1564) reconheceu a epilepsia focal. Brown-Séquard (1858) teve um papel
importante na teoria da irritabilidade de nervo aferente periférico, sendo a
medula o componente central do mecanismo reflexo. Robert Bentley Todd acreditou que as CE eram conseqüentes ao
acometimento inicial dos lobos hemisféricos, logo seguido pelo corpo
quadrigêmino, sendo a intensidade da perturbação dependente do comprometimento
da medula oblongata e da espinha dorsal. Nothnagel gerou a hipótese do “centro
convulsivo” adjacente ao do da respiração.
Hammond no seu tratado On the diseases of the nervous system (1871) pensou que a
localização da epilepsia era na medula
e as lesões no córtex a excitariam para produzir a convulsão. No entanto, várias teorias patofisiológicas da epilepsia identificaram corretamente o
cérebro como a origem do problema,
mas enfatizando causas incorretas. Galeno
(130-200) deduziu que a epilepsia era um transtorno do cérebro devido ao acúmulo de humores espessos, sendo que Paracelsus reconhecia uma ebulição para cima dos espíritos vitais (spiritus animalis). Thomas Willis (1621-1675) indicou que a
predisposição do cérebro para ter CE era
hereditária ou adquirida. De acordo com Brown-Séquard,
o vasospasmo cerebral reflexo, em lugar de congestão venosa cerebral, seria a causa da perda de consciência. Jacobus Schroeder van der Kolk
(1797-1862) realizou autópsias e
caracterizou: “dilatação das veias que apareceram
cheias de sangue no córtex, medula e espinha dorsal.”
Assim, no decorrer desses 2.400 anos passamos da hipótese do supernatural, com
denominações de “doença sagrada” e
“lunáticos”, para uma natural orientada por
Hipócrates e texto védico Charaka Samhita(5) até as idéias mais modernas. Como poderemos
concluir mais a seguir, na seção
sobre as Escolas precursoras, as concepções
mais modernas sobre as raízes do transtorno começaram a ocorrer apenas a partir dos séculos XVIII e XIX.
Terapêutica
O relato das tentativas malsucedidas terapêuticas é extenso.
Muitas não somente eram aleatórias e ineficazes como poderiam também ser
cruéis, a considerar algumas como: consumo de sangue de ser humano recentemente
morto, pó de crânio humano, digitalis ou nitrato de prata, além de sangria,
purgação, emese, diurese, sudorese e recomendação para exercer ou coibir
atividade sexual ou trepanação craniana, p. ex.(2). Como as CE estavam muitas vezes
relacionadas a causas sobrenaturais, a elas se recorriam para neutralizá-las:
amuletos e santos tais como São Valentim.
Conclui-se que esses tratamentos eram usualmente ineficazes, mas comumente
baseados nas hipóteses fisiopatogênicas em curso das CE recorrentes.
EPILEPSIA EM PERSONALIDADES DESTACADAS E NA ARTE
Ressalta-se que a maioria das PCE era vista com preconceito, mas
alguns tiveram sucesso e ficaram famosas, sendo várias estadistas, santos,
cientistas, artistas, havendo notório viés masculino(2). No entanto, Hughes (2005)(6) alerta sobre o exagero
de imputar a várias personalidades a condição de epiléptico tendo ao contrário
outros problemas de saúde como os que mais freqüentemente também confundem o
diagnóstico na prática clínica como as crises psicogênicas, de angústia,
nervosas, de medo, de agitação, de fraqueza ou de abstinência ao álcool.
Em alguns casos, o autor não encontrou nenhuma evidência de
qualquer sintoma episódico. Ele considera
pouco provável ou mesmo inadequado o diagnóstico de epilepsia, ou apenas de
epilepsia, para Pitágoras (582-500
a.C), Aristóteles (384-322 a.C), Aníbal (247-183 a.C), Dante Alighiere (1265-1321), Joana D’Arc (1412-1431), Leonardo da Vinci (1452-1519), por
exemplo. No Brasil, algumas personalidades brasileiras de mais a menos famosas
eram notoriamente epilépticas, como Dom
Pedro I (1798-1834)(7), ícone da independência do Brasil, célebre pela sua impulsividade
e sexualidade, com epilepsia de incidência familiar, que gerou muitos filhos, a
independência do Brasil e a reconquista de Portugal para os liberais; Antônio Moreira César (1850-1897)(8),
desastrado e feroz comandante da 3ª tropa contra os jagunços de Antonio
Conselheiro em Canudos e Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)(9),
o mundialmente consagrado elegante e discreto
escritor brasileiro.
A comentar que a Faculdade de
Medicina da UFRJ foi fundada pela família real portuguesa, dentre outros marcos desenvolvimentistas do Brasil por ela lançados. Essa família tinha
entre os seus familiares, muitos
sofredores de epilepsia de natureza familiar, dentre eles o já mencionado Pedro I. Quanto à literatura, ela é pródiga nos relatos a PCE e ou
CE. Wolf (2006)(10) lembra que
textos literários são uma parte importante da história cultural de muitos campos de medicina. Segundo esse autor, relatos sobre epilepsia e
sua semiologia são freqüentemente
descritas: por escritores que sofreram CE,
sendo que alguns provêem relatos perspicazes notáveis e modernos sobre os sintomas subjetivos e experiências ictale
periictal; outros que observam com objetividade que pode ser clínica de CE em parentes íntimos ou estranhos fortuitos; e o último grupo de
escritores que relatam crises não
observadas por eles próprios mas reconhecidas de outros tipos de testemunhos.
O livro mais famoso, a Bíblia,
no seu novo testamento, como no evangelho segundo São Marcos – 9:14-29, apresenta um pai que relata as CE de seu filho. O mais prolífico dos
escritores a escrever sobre a epilepsia
foi Fiodor Mikhailovitch Dostoievski
(1821-1881), ele próprio uma PCE. Em contrapartida, um dos mais discretos a
lidar com o transtorno e também PCE, foi
José Maria Machado de Assis (1839-1908). Algumas passagens de sua obra são mais textual quanto a
essa relação, como as sugestivas
crises de automatismo, outras bem menos.
Essas descrições se atêm ao estilo literário sutil do escritor e têm seu
significado apenas sugerido, mas nunca ostentado.
Wolf (2006)(10) lembra que Machado de Assis
fez uso literário de sua experiência com CE parciais complexas, possivelmente por epilepsia do lobo
temporal direito(9) em uma época que
a sua semiologia era virtualmente desconhecida.
LIVROS MÉDICOS SOBRE EPILEPSIA E PERIÓDICOS PRECURSORES
A epilepsia induziu a literatura médica a privilegiar esta área do
conhecimento humano. Existe mesmo um livro clássico (1945, 1971)(11) sobre a
sua história produzido por Owsei Temkin
(1902-2002), que aborda dos primórdios da história da medicina ocidental até
John Hugling Jackson. Várias obras ressaltam a importância da epilepsia em
estudos pioneiros. Dentre elas, destacamos algumas a seguir. Do conjunto de
setenta escritos atribuído à escola de Hipócrates denominado de Corpus hippocraticum(12),
apenas um é referente a um complexo sintomatológico:
Da Doença Sagrada. Nele se lê: “Parece-me que ela não é mais
divina ou sagrada do que qualquer outra doença; mas ela tem causa natural como
as outras doenças”. Várias das obras a seguir apresentadas
favoreceram/sistematizaram o conhecimento da época e a classificação da
epilepsia(13,14): Samuel-Auguste Tissot,
Traité
de l’epilepsie (1770);
Jean Baumes, Traité
des convulsions de l’enfance (1787 e 1805); Theodore
Herpin (postumamente), Des accès incomplets
d’épilepsie, (1867); William Richard Gowers, Epilepsy and other chronic
convulsive diseases; their cause etc. (1881); Russel R Reynolds, Epilepsy: its symptoms,
treatment, and relation to other chronic convulsive diseases (1861); Frederic e Erna Gibbs publicaram Atlas of electroencephalography (1941, 1951); William Gordon Lennox e Margaret
Lennox, Epilepsy and Related Disorders (1960).
Ressaltamos dois periódicos, um internacional e outro nacional.
Epilepsia, órgão oficial da International
League against Epilepsy (ILAE). O seu 1o volume foi editado em 1909. No Brasil, a Liga Brasileira de Epilepsia (LBE) lançou pioneiramente um órgão de
divulgação de uma subespecialidade neurológica: Boletim da LBE, 1978-1981, após Jornal da LBE (1988) que se transformou em Brazilian Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology até a
designação atual de Journal of Epilepsy and
Clinical Neurophysiology.
MEDICINA MODERNA E EPILEPTOLOGIA
Escolas precursoras
Mencionaremos os berços da moderna epileptologia, a começar pelo Neurological
Institute – Londres, Hospital for the “paralyzed and epileptic” (1857). Outros
a reconhecer são: Harvard University
e Illinois University; Neurological Institute of Montreal; Hospital La Timone de Marselha e Hospital Saint-Anne de Paris. Do primeiro
Centro, três neurologistas ingleses se destacaram no início da era moderna da
epilepsia: além de Jackson, Russell Reynolds
e William Richard Gowers
(1845-1915).
Jackson favoreceu a localização funcional cerebral e a organização
hierárquica do sistema nervoso. Isso foi um grande avanço conceitual que tornou
possível o desenvolvimento da neurociência moderna no século XIX. Na base da
reconstrução histórica sobre a epilepsia, a heurística de Jackson gerou uma
transformação adicional que favoreceu o conhecimento da medicina atual. Ela
pôde responder aos
fenômenos da epileptogenicidade que seriam comprovados mais tarde
em bases experimentais. A definição de Jackson
(1873) de epilepsia como “uma descarga súbita, excessiva e rápida da substância
cinzenta” ainda hoje é acertada, precedendo os estudos sobre excitabilidade
elétrica cerebral de David Ferrier
(1874), na Inglaterra, e Gustav Fritsch
e Eduard Hitzig (1870), na Alemanha(5,15). Jackson postulou o mecanismo da
psicose pós-epiléptica considerando que o cérebro é um sistema hierárquico, com
a consciência no seu mais alto nível. Em vigência da CE, ela seria inibida
permitindo a expressão dos níveis mais primitivos(15). Isso conduziu à teoria
da: evolução-dissolução (na primeira referente ao níveis, na segunda, o nível mais
alto seria mais vulnerabilizado e o mais inferior, retido); sintomas
positivo-negativos, isto é lesões transitórias levariam tanto a fenômenos
negativos, como a paralisia, quanto positivos (irritativos), como a epilepsia.
Assim, esses fenômenos seriam liberados por perda da inibição ou modulação
dos níveis funcionais mais altos(2,15,16). A idéia sobre o “dreamy state”, de
“diplopia mental”, que levou ao conceito de epilepsia do lobo temporal também
tem essa base(15). Os princípios evolucionistas de Herbert Spencer influenciaram as teorias de Jackson sobre a
organização cerebral(15,16). Lembra-se que a Ciência moderna caminha principalmente
sobre os preceitos do racionalismo e empirismo e na Medicina há uma tendência
ao uso simultâneo e complementar dessas duas tendências epistemológicas.
Jackson usou esses recursos nas suas teorias e o racionalismo fundamentou
a sua teoria fisiopatogênico da epilepsia, a partir do método
hipotético-dedutivo(17). A ressaltar na escola francesa, Theodore Herpin (1799-1865), que se aproximou do requinte de
conhecimentos sobre epilepsia de Jackson, segundo Eadie (2002)(14). No seu
livro, Des
accès Incomplets d’épilepsie, publicado
postumamente (1867) ele relata uma gama pormenorizada e extensa
de possíveis manifestações não convulsivas das CE(14). Para Eadie
(2002)(14), ele pode ser considerado “um dos grandes documentos na história da
epileptologia”. Porém, o médico não notou a presença de CE de ausência em
quaisquer dos seus 300 pacientes(14). A palavra “epilepsia” se referia às CE
tônico-clônica generalizadas, sendo que as outras manifestações eram
consideradas como manifestações incompletas de epilepsia(14).
Herpin reconheceu que todos as CE, completas ou incompletas, se originam
no mesmo lugar do cérebro o que pode ser depreendido a partir de um relato de
caso(14). As suas observações e interpretação parecem ter precedido o
desenvolvimento independente de Jackson sobre conceitos semelhantes, mas a
exploração intelectual mais extensa do inglês das implicações das suas
observações lhe fez uma figura mais importante do que Herpin na história da epileptologia(14).
No entanto, a obra de Herpin parece ter influenciado o trabalho de Jackson,
como lembra Eadie (2002)(14).
No outro lado do Canal da Mancha, vicejava a “doença” chamada de histero-epilepsia por Jean Martin Charcot (1825-1893)(18) que
combinava transtorno da mente e do cérebro, da histeria e da epilepsia(2). Na Salpêtrière,
o local de nascimento e epicentro de neurologia moderna, Charcot encontrou as
PCE ao lado dos oligofrênicos, pacientes com sífilis crônica, criminosos insanos
e histéricos. Sendo que esses últimos, vulneráveis à sugestão e persuasão,
começaram a imitar os ataques epilépticos que testemunhavam repetidamente.
Assim, a epileptologia francesa era derivada principalmente de PCE de asilos e
hospitais de pacientes mentalmente crônicos(14).
A diferenciar, ao contrário, a clientela de Herpin mais
representativa da comunidade(14). Charcot reconheceu a importância de Jackson e
é dele a designação da epilepsia Bravais-Jacksoniana,
inicialmente vinculada apenas à Bravais, por conta da sua tese (1824)(14).
Lembra-se que Jackson designava esse tipo de epilepsia a “convulsões epileptiformes”(15).
Voltando à escola inglesa pioneira, lembramos de Gowers claramente favorável a
ser no córtex a gênese das CE: “... todos os fenômenos das crises da epilepsia idiopática
podem ser explicados pela descarga da substância cinzenta; que a hipótese de
espasmo vascular é tão desnecessária quanto não está comprovada; ... que epilepsia
é uma doença da substância cinzenta, e não tem nenhum local uniforme”. Gowers
(1881) classificou epilepsia como grand mal, petit mal e histeróide(19).
J. Russell Reynolds (1861) classificou as convulsões associadas com
um transtorno estrutural do sistema nervosa de epilepsia sintomática,
as associadas com condições fora do sistema nervoso central (insuficiência
renal, por exemplo) de epilepsia simpática(19). Na Harvard University e
Illinois University, o EEG se desenvolveu e teve importante papel na clínica da
epilepsia: início dos anos de 1930, 1 canal EEG; 1935, 3 canais, com Albert
Grass e Frederic Andrews Gibbs (1903-1992), em Harvard; 1944, Erna e Frederic
se mudaram para a Universidade de Illinois. Gibbs também é considerado o
primeiro a enfatizar a associação da epilepsia do lobo temporal a transtornos
comportamentais(2).
Lennox, da Escola de Harvard, “o pai” do tratamento moderno da
epilepsia, ficou quatro anos como um médico missionário na China de lá
retornando para Boston quando sua filha mais nova desenvolveu epilepsia(3,20).
Ele trabalhou com Frederic Gibbs e estudou circulação e metabolismo cerebral,
enquanto localizava a doença em milhares de famílias e mantinha registros
cuidadosos de muitos gêmeos, tentando determinar se epilepsia era uma
característica herdada. Ele foi presidente da ILAE de 1935-1946, co-editor e
depois editor da Revista Epilepsia. Ele organizou a American Epilepsy League, Committee
for Public Understanding of Epilepsy, foi chefe da Divisão de Epilepsia Children’s Medical Center de Boston onde
estabeleceu um programa de
treinamento para médicos em epilepsia. Lennox
escreveu, com a sua filha Margaret um importante livro sobre epilepsia que contém a descrição da síndrome de Lennox-Gastaut. No Neurological
Institute de Montreal, pontificaram Herbert
Henri Jasper (1906-1999), Wilder
Penfield (1891-1976) e Theodore
Brown Rasmussem (1910-2002).
A partir de 1939, Jasper colaborou com Penfield. O trabalho deles proveu bases para localização de foco de crises epilépticas pelo
EEG. A
estimulação cortical direta favoreceu a definição da anatomia funcional
do cérebro humano. Nesse Centro, foi reconhecida a esclerose mesial temporal e
epilepsia por Murray Falconer e o
grupo dele e William Feindel e a consequente
base cirúrgica mais comum da epilepsia focal tratável. Rasmussen sucedeu
Penfield como diretor do Instituto Neurológico
de Montreal. Realizou muitas cirurgiaspara epilepsia. Em Marselha, no Hospital La Timone, Henri Gastaut (1915-1995) foi
consagrado como grande epileptologista pelas suas bases anatomopatológicas,
neurofisiológicas em aliança ao seu intelecto arguto(21).
Ele foi chefe dos Laboratórios
de Neurobiologia do Hospital de
Marselha (1953) e diretor do centro regional para epilepsia em 1960(21).
De 1973 a 1984, assumiu a cadeira de neurofisiologia clínica(21). Ele promoveu
o estudo do EEG e epilepsia (1947-1987)(21). Foi secretário geral e presidente da
ILAE com várias contribuições ao desenvolvimento dos seus capítulos(21), a
destacar o brasileiro presidido por Paulo
Niemeyer. Com a sua esposa e parceira nos estudos de EEG, Ivete, reconheceu
padrões diversos do EEG tais como ondas lambda, ritmo mi, ritmo pi, ritmo teta
posterior e pontas rolândicas. Ele favoreceu o uso de vários métodos de
ativação dessa técnica, fez correlações fisiológicas das parassonias e uso em
vários estados de alteração de consciência natural ou artificial (meditação ou
biofeedback, por exemplo)(21).
Ele valorizou a semiologia da epilepsia e contribuiu com:
nosografia, classificação da epilepsia adotada pela ILAE, definição da síndrome
HHE (hemiplegia, hemiconvulsão e epilepsia), epilepsia do susto (startle epilepsy),
colaboração na definição das síndromes de
Lennox-Gastaut e West e epilepsia parcial benigna occipital (forma de
Gastaut), associação da epilepsia com o comportamento e diagnóstico diferencial
com os eventos não epilépticos(21). A sua abordagem reconhecia o valor da
integração biopsicossocial das PCE(21). Ele também procurou entender possíveis
vínculos entre epilepsia e genialidade artística. Não desconsiderava a
importância do estudo da arte e literatura.
Em Paris, no Hospital
Saint-Anne o trabalho consagrou o neurocirurgião Jean Tailarach e o neurofisiologista clínico Jean Bancaud (1921-1993). O início da era moderna da Epileptologia
no Brasil veio com Paulo Niemeyer
(1914-2004) que foi: fundador da LBE
(1949); promotor da 1a Jornada da LBE
(1957), uso pioneiro da eletrocorticografia e exploração eletrográfica com
eletrodos implantados no Brasil; inventor da amigdalahipocampectomia na
epilepsia do lobo temporal e descritor da anormalidade elétrica neocortical
pós-cirúrgica(22). Helio de Paiva Bello, Ilustre discípulo de Henri Gastaut, da
“Escola de Marselha”, foi o genial parceiro de Paulo Niemeyer(23) nas
mencionadas conquistas e líder de uma grande e clássica escola de
eletroencefalografia brasileira.
Neurofisiologia clínica
Após os descobrimentos iniciais da Eletroencefalografia em seres
humanos por Hans Berger (1873-1941) houve
sua aplicação clínica na epilepsia, nos anos de 1930(24): 1934, Fisher e Lowenback foram os primeiros a
demonstrar pontas epileptiformes; 1935, Gibbs, Davis e Lennox descreveram
ponta-onda interictal e padrões 3 Hz do complexo ponta-onda, na ausência
epiléptica dando alento ao campo da EEG clínica; 1936, Gibbs e Jasper definiram
as pontas interictais como assinatura focal da epilepsia.
A localização de descargas epilépticas pela EEG ampliou as
possibilidades de tratamento cirúrgico, mais amplamente disponível a partir dos
anos de 1950. A análise quantitativa do EEG nos anos de 1940 e 1950 incrementou
a análise temporal e espacial do EEG(25). Mary
Brazier (1904-1995) foi a pioneira da utilização da função de coerência e
de fase para o estudo da propagação da atividade epiléptica crítica registrada
com eletrodos intracranianos (1968)(25).
Terapêutica medicamentosa e outras
A idéia de que a irritação focal podia causar CE apoiou o controle
das CE por sedativos, primeiro pelos brometos (Charles Locock em 1857) e
barbitúricos (Hauptmann em 1912), introduzidos na clínica sem avaliação
pré-clínica(26). Mais especificamente, o brometo foi inicialmente usado para
sedar mulheres jovens com histeria, após para as com epilepsia até chegar à
epilepsia catamenial e às PCE de modo geral(2). A introdução da fenitoína
(Merrit e Putnam em 1937) demonstrou que as drogas não sedativas também poderiam
ser efetivas no controle dessas crises, sendo que o modelo pré-clínico usado
foi a CE promovida por eletrochoque máximo(26).
Várias drogas foram experimentadas e aquelas demonstradas eficazes
levaram ao estudo de outras da mesma família farmacológica, muitas não referendando
a droga protótipo. Conclui-se que algumas dessas drogas usadas foram
conseqüentes a achados serendipiticos, como o valproato, ou avaliação
experimental de compostos usando modelos de epilepsia(26). O primeiro desses
modelos foi para testar o aumento do GABA no cérebro(26). Mais recentemente, o
crescimento da compreensão dos mecanismos da epileptogênese levaram a uma base
mais racional para essas descobertas, a partir da década de 1980(26). Apontamos
a terapêutica que teve mais êxito e permaneceu mais tempo no mercado: 1857, Brometo
(já há muito desconsiderada no tratamento humano das PCE); 1912, Fenobarbital;
1920, Dieta cetogênica (de uso clínico iniciado nos anos de 1920(27); 1938,
Fenitoína(26); 1963, Carbamazepina(26); 1958, Etosuximida(26); 1967, Valproato
de sódio(26); 1997, Estimulação nervo vago – CE focal adulto (usada
inicialmente no ser humano em 1988 e aprovada pela FDA em 1997(27)). Foram
lançadas no mercado várias DAE na década de 1990, a destacar as introduzidas no
Brasil tais como gabapentina, lamotrigina, topiramato e oxacarbazepina.
Cirurgia para epilepsia
A proximidade dos fundamentos da Escola de Jackson e de sua influência direta deram o impulso
necessário a Victor Horsley
(1857-1916) para os primórdios da cirurgia para epilepsia(28). Em 1886, dos
três pacientes operados descritos, dois eram pacientes de Jackson, sendo que em
um foi feita lesionectomia e no outro ressecção mais extensa de tumor(15).
Outros avanços permitiram a evolução desse procedimento, como o do mapeamento
cortical funcional cerebral. Fedor
Krause (1857-1937) e Otfrid Föster
(1878-1941) foram importantes nesse desenvolvimento(28).
Krause introduziu a estimulação farádica para mapear o córtex
motor humano(28). Isso foi continuado por Föster, usando anestesia local e
assim favorecendo a responsividade do paciente o que possibilitou excisão
cortical extensa das cicatrizes corticais sem lesão relevante das áreas eloqüentes(28).
No Neurological Institute of Montreal, houve a introdução do EEG complementar à
avaliação pré e per-cirúrgica com a colaboração Jasper. Penfield lá militou, mas
antes estagiou com Förster (1928), e expandiu os seus conhecimentos do
mapeamento das funções cerebrais corticais. Em princípios dos anos 1950,
Penfield/equipe (incluindo Falconer que estagiou no Instituto) definiu
características anatômicas e patológicas das CE do lobo temporal mesial o que
levou ao “procedimento de Montreal” que consiste na lobectomia temporal
anterior inclusive com remoção da amígdala e hipocampo(28).
Frederic e Erna Gibbs, já transferidos de Boston para Chicago, se
associaram ao cirurgião Percival Bailey o que favoreceu a cirurgia da epilepsia
do lobo temporal sem lesão aparente, por orientação do EEG expresso na região temporal
anterior(28). No entanto, Bailey evitava ressecar nesses casos as estruturas mesiais
e inferiores do lobo temporal(28). No Hospital Saint- Anne de Paris houve o
desenvolvimento da estereoEEG e terminologia de zonas lesional, irritativa e
epileptogênica(29). Nesse Centro, pontificaram Tailarach e Bancaud. No final
dos anos de 1980 e 1990, o advento da neuroimagem moderna deu ímpeto novo ao
tratamento cirúrgico. A ressaltar que ela e o desenvolvimento da genética
favoreceram a melhor definição classificatória das crises e síndromes
epilépticas.
Abordagem mais ampla
Tentativas mais sistematizadas de humanizar o tratamento das PCE
ocorreram simultaneamente à inauguração do Hospital
for the “paralyzed and epileptic” (1857). Nessa época foram estabelecidas
colônias para o cuidado e emprego de PCE, em Dianalund na Dinamarca, Chalfont
na Inglaterra, Bielefeld – Bethel na
Alemanha, Heemstede na Holanda, Sandviakain na Noruega e Centro de Epilepsia em Zurique(5).
O mito da epilepsia como uma maldição foi largamente derrotado em
culturas modernas, mas o transtorno
ainda permanece com um estigma social para
muitos pacientes. Conseqüentemente, para real crescimento da epileptologia efetiva houve
necessidade de maior atenção às
necessidades psicológicas e sociais e qualidade de vida das pessoas com epilepsia, em contrapartida aos avanços tecnológicos. Ressalta-se que
eles são de pequena ou nenhuma
relevância para 80% das PCE dos países em
desenvolvimento(5).
Assim, Organizações se associaram para atendê-las, a saber a ILAE (fundada em 1909), International Bureau for Epilepsy – IBE
(fundada em 1961) e a Organização
Mundial de Saúde. Essas três instituições estabeleceram a Campanha Global Contra
Epilepsia, Saindo das sombras
(1997) que tem como objetivo melhorar a prevenção,
tratamento, cuidado e serviços para pessoas
com epilepsia e elevar consciência pública sobre o transtorno e promover ambiente encorajador no
qual as PCE possam viver melhor(5,30).
CONCLUSÃO
“Quanto mais distante para trás você puder olhar, mais distante à
frente é provável que você veja” Winston Churchill. Essa visão de Jano, deus da
mitologia romana, de reconhecer os términos e os começos, de ter a perspectiva do
futuro, mas conhecendo o passado é muito útil para o progresso criterioso da medicina.
Para o futuro não muito remoto, aventamos a possibilidade para as PCE com CE focais,
cirurgias não ablativas, mas aumentativas ou restauradoras, através da
liberação focal de DAE, enxerto neuronal, além do uso de células tronco e
implantação de estimuladores cerebrais(31).
A terapêutica medicamentosa poderá ter avanço significativo ao se
conhecerem os mecanismos intrínsicos específicos das CE e formulação de drogas
a eles relacionados, por exemplo. No entanto, sempre haverá espaço da idéia
hipocrática de primum non nocere e relevância da integração biopsicossocial que norteia a atual
campanha promovida pela OMS, ILAE e IBE. O pai da medicina criou uma abordagem
holística recomendando o uso de terapias disponíveis com o máximo de
parcimônia. Dele também vêm os conceitos ainda vigentes da ética médica a serem
considerados em contrapartida à pressão do mercado para o consumo de alternativas
tecnológicas novas e dispendiosas, mas não necessariamente efetivas. A
ressaltar a importância de metodologias científicas complementares para o
crescimento da epileptologia.
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