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domingo, 4 de agosto de 2019

Uma história não contada: o campo de concentração para flagelados de 1915 em Fortaleza-Ceará


Uma história não contada: o campo de concentração para flagelados de 1915 em Fortaleza-Ceará


Lidiany Soares Mota Travassos

A SECA NO CEARÁ

O longo período de estiagem no Ceará desde o ano de 1913 fazia com que a chegada dos retirantes à capital cearense afetasse e alterasse o cotidiano dos habitantes locais. Os espaços urbanos, como ruas e praças, tornavam-se moradias para esses desabrigados. A cidade que, para alguns, deveria ser distinta da imagem de pobreza trazida pelos retirantes transforma-se, segundo jornalistas e memorialistas, em caos e desordem. O centro, a cada dia, recebia novos integrantes, que vinham em busca de auxílios e das frentes de trabalhos.

Alguns proprietários de terras, políticos, membros ilustres da sociedade, jornalistas e médicos e que traziam debates sobre a seca, em sua maioria, como fenômeno natural e que precisava ver essa multidão de famintos contida. Jornais de oposição como o – O Cearense – traziam manchetes que exigiam uma atitude capaz de manter a ordem e de afastar os retirantes das principais áreas de contato com a população citadina. Os indícios dos debates deixados ao longo da história do Ceará nos levam a crer que os estudos e a compreensão do papel da multidão de retirantes flagelados é relevante para analisar como o poder público estava organizando a cidade e quais as mobilidades e tensões que essas pessoas consideradas por muitos representantes da elite local como indesejáveis, estavam provocando no espaço urbano de Fortaleza, tendo a seca de 1915 como estopim.

O medo de saques, violência gerada pela loucura da fome e a propagação de doenças, eram fatores que pressionavam o poder público a buscar nos campos de concentração uma alternativa para conter a leva de famintos que dia após dia, mais se aproximava da cidade. O medo das autoridades diante dos flagelados da seca tinha um precedente. Em 1877, uma leva de cerca de 110 mil famintos saiu dos sertões e tomou as ruas de Fortaleza, assombrando os moradores. No livro A Fome, o mais consistente relato sobre o cenário de 1877 nas ruas da capital, o farmacêutico, cientista social e escritor Rodolfo Teófilo assim descreve o que viu:

 “A peste e a fome matam mais de 400 por dia! O que te afirmo é que, durante o tempo em que estive parado em uma esquina, vi passar 20 cadáveres: e como seguem para a vala! Faz horror! Os que têm rede vão nela, suja, rota, como se acha; os que não a têm, são amarrados de pés e mãos em um comprido pau e assim são levados para a sepultura. E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco; e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”. (TEÓFILO, 1890)

O objetivo do campo de concentração era evitar que os retirantes alcançassem Fortaleza, trazendo “o caos, a miséria, a moléstia e a sujeira”, como informavam os boletins do poder público à época. Em 1915 criou-se o Campo de Concentração do Alagadiço, nos arredores da capital cearense, cenário do livro O Quinze de Rachel de Queiroz (1930). Ele chegou a juntar oito mil esfarrapados, que recebiam alguma comida e permaneciam vigiados por soldados. À medida que a vida urbana tornava-se mais complexa e afeita às influências exteriores a exemplo das alterações feitas pelo governo francês, com suas remodelações em busca do aformoseamento da cidade, maior era a exigência de implementar a higiene dos espaços e a busca por uma higiene também para os corpos como uma norma de distinção social e decência.

Já no século XVIII muitas cidades européias, a exemplo de Paris e Inglaterra passaram por grandes mudanças no rural e principalmente no urbano. Mudanças estas profundamente geradas pelas relações entre a burguesia e o operariado, o que refletia as disparidades entre ricos e pobres. A vida sócio-econômica passa a ser influenciada pelos grandes núcleos populacionais, por epidemias, situações de violência e revoltas urbanas passaram a ser mais freqüentes. A cidade representava um espaço de desigualdades e de tensão entre classes sociais.

Tornou-se necessário alterar o espaço urbano para que este se adequasse a estas transformações sociais. A cidade e seu grande número de habitantes necessitavam de uma melhor organização quanto ao lixo produzido, à sujeira, à contenção de epidemias enfim, a tudo que pudesse gerar doenças que se proliferassem pela água, ar e terra. As intervenções nas cidades passaram a fazer parte das preocupações de médicos e sanitaristas.

O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO DO ALAGADIÇO

No contexto de 1915, o Campo de Concentração do Alagadiço deixava muito a desejar quanto aos cuidados no tocante à higiene dos flagelados que ali permaneceram. Rodolfo Teófilo, farmacêutico e escritor, figura atuante na secas de 1877 e de 1915 assim descreveu sua primeira visita ao campo de concentração dizendo estar diante de em breve um “Campo Santo”:

“Em um quadrilátero de quinhentos metros de face estavam encurralados cerca de sete mil retirantes. Percorri todos os departamentos daquele depósito de seres humanos. Abrigavam-se à sombra de velhos cajueiros. Via-se aqui e ali, uma ou outra barraquinha coberta de esteira ou de estopa, mas tão miserável era a coberta que não impedia que a atravessassem os raios de sol. A cozinha era também ao tempo. Em algumas dúzias de latas, que haviam sido de querosene, ferviam em trempes de pedra grandes nacos de carne de boi, misturados a maxixes, quiabos e tomates. Achei esquisitas as verduras e mais ainda os tomates. Pendia de um galho de cajueiro um quarto de boi. Pude então avaliar a péssima qualidade da carne, só digna de urubus. Informaram-me que aquela era boa, comparada a outras que mandara o fornecedor. Disse-me pessoa idônea que as reses que morriam de magras ou do mal, eram mandadas para o ‘campo de concentração’”. (TEÓFILO, 1980).

Percebemos que não existem acomodações apropriadas para os desvalidos, que ficavam expostos ao sol e dependendo da caridade das senhoras da Igreja Católica que visitavam o campo e levavam ajuda em alimentos e roupas para muitos que nem mais as tinham. O local onde eram depositadas as matérias fecais dos flagelados também era bastante preocupante ficando a sotavento (lado oposto ao lado do qual sopra o vento) no fundo do cercado, ao poente. Vale destacarmos que esta área era coberta apenas por pequenos arbustos, onde os famintos, conforme destacado por Teófilo ficavam numa promiscuidade de bestas e defecavam, ficando as fezes expostas às moscas.

Os locais de provisão de água doce, as chamada aguadas, também eram preocupantes, visto que ficavam em buracos à flor da terra. Expostos desse modo, a todo tipo de doenças causadas pela falta de higiene. Localizado a oeste da cidade, por meio do governo provincial de Benjamim Liberato Barroso (militar e engenheiro), de modo a deixar os retirantes concentrados mais distante dos bairros de famílias mais abastadas da cidade. Desse modo, o processo era o de segregar à pobreza e as doenças a este espaço. A então Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS, aliada ao governo provincial era a instituição responsável pela criação e administração do campo de concentração. Inicialmente apenas um local cercado por arame farpado, com algumas árvores que davam alguma sombra, para onde os retirantes eram levados quando desciam dos trens que chegavam às estações mais próximas de Fortaleza, como a do Alagadiço. Estas pessoas eram encaminhadas para estes locais e lá poderiam construir seus barracos com o material que dispusessem ou que encontrassem.

O papel do interventor (normalmente um engenheiro da própria IOCS) era ser responsável pela gerência do campo, ou seja, organizar aqueles que iriam para as frentes de trabalhos (construção de açudes, praças, estradas, calçadas, etc.), distribuição da ração (como era chamada a comida), manutenção da ordem dentro do campo, garantida por soldados que patrulhavam a área de modo a manter a ordem e a moral.

Nossa hipótese é de que, apoiados nos indícios advindos das fontes pesquisadas, o Higienismo teria ditado as decisões para a criação do abarracamento para os inúmeros flagelados da seca de 1877. Baseados em relatórios como o Relatório do Inspector de saúde pública Antonio Domingues da Silva de 31 de maio de 1876 e Relatório do Inspector de saúde pública Dr. João da Rocha Moreira de 29 de maio de 1877, nos mostram a preocupação dos sanitaristas quanto à proximidade com esta população de famintos e doentes e da necessidade de mantê-los num local separado do restante da população de Fortaleza.

Já em 1915, o Higienismo, fortemente atrelado a Eugenia teria incentivado a criação do campo de concentração do Alagadiço em 1915, visto que já não era mais possível a livre circulação pela cidade por parte dos flagelados. Estes passaram a ser vigiados por soldados e tinham suas vidas controladas pelos inspetores do campo. Estes, amparados pela autoridade dos guardas, ditavam as regras de convivência, a alimentação, ou seja, a chamada ração; assim como a distribuição dos remédios aos doentes. Muitos se recusavam a tomar as vacinas e o medo da propagação das doenças a exemplo do que ocorreu em 1877, com a epidemia de varíola, fez com que muitos flagelados, sem o tratamento adequado aliado as debilidades físicas e todos os sofrimentos causados pela seca chegassem ao óbito.

Nosso objetivo é identificar os debates que consubstanciaram a criação os campos de concentração para flagelados da seca no Ceará em 1915, buscando ter uma interface entre os debates presentes nos âmbitos das teorias sanitaristas e a teoria de evolução social. Buscamos ainda compreender a seca da forma como está era vista pela maioria das personalidades da época e os indícios que demonstram que o higienismo esteve presente no cenário da seca de 1877 e esteve aliado aos ideais da eugenia em 1915, fortalecendo o cenário que criaria o Campo de Concentração do Alagadiço.

PRINCIPAIS FONTES ANALISADAS

Temos por base a análise dos debates de personalidades importantes para a formação das idéias que se faziam circular sobre a seca no período estudado (1915), a opinião de intelectuais, proprietários de terras e/ou fazendeiros (cartas aos jornais), políticos (discursos e atas), engenheiros que foram interventores da IOCS nos campos de concentração do Ceará (relatórios de obras e funcionamentos do campo de concentração do Alagadiço - 1915), escritores, médicos e/ou sanitaristas, revistas e jornais, presentes em pastas como a das Obras da IOCS e Socorros públicos catalogadas pelo acervo documental do Arquivo Público de Fortaleza. Usamos ainda dissertações, teses e obras literárias.

Para tratarmos do pensamento dos principais atores que participaram do contexto das secas de 1877 e 1915 no Ceará destacamos Capanema (engenheiro da época do 2º Reinado enviado para uma expedição de reconhecimento da situação de seca do sertão, das possibilidades de solução e de dados como solo, vegetação etc.), José do Patrocínio (jornalista enviado pelo imperador D. Pedro II para saber a realidade da seca no Ceará - 1879), Nogueira Acioly (político que representava uma tradicional família cearense, que na época da seca de 1901 fazia oposição as investidas de Rodolfo Teófilo para tentar sanar problemas com vacinação contra a varíola), Rodolfo Teófilo (cientista, romancista, poeta, farmacêutico, investigador incansável e benfeitor da comunidade.), Tomás Pompeu de Sousa Brasil (Senador cearense que publicou o 1º livro sobre o clima e as seca em 1877) e Miguel Arrojado Lisboa (Interventor da IOCS).

Para entendermos melhor o papel da imprensa no Ceará a respeito da seca temos, os Jornais: O Retirante. Período: anos de 1877 e 1878, que se posicionou a favor dos retirantes que chegavam a então capital da província do Ceará, adotando, por um viés literário, um discurso contestatório e de denúncia; outro seria o A Lucta. Que em outubro de 1915 A Lucta noticiou a chegada dos engenheiros chefes responsáveis pela tomada do início das construções da Comissão de Obras Novas Contra as Secas. Período: jan a dez/1915. Ambos encontrados na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Cearense.

A TEORIA SANITARISTA E A TEORIA DE EVOLUÇÃO SOCIAL

Para proporcionarmos uma interface entre os debates presentes nos âmbitos das teorias sanitaristas e a teoria de evolução social, fizemos uso de análises dos artigos que retrataram o debate nacional em torno da teoria higienista. Importante salientar que a palavra “higiene” não só significava polir os espaços urbanos, como a limpeza de ruas e praças; neste termo estavam embutidas ações constrangedoras e disciplinadoras, nas quais se revelavam a moral e a estética requerida pela elite.

O HIGIENISMO NO BRASIL

Vale destacarmos que o higienismo brasileiro só pode se definir, devido sua tensão constitutiva, ou seja, pelo que tinham de comum, por um objetivo central: o estabelecimento de normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual. É somente neste aspecto que podemos encontrar certa homogeneidade. Fora isto, podemos encontrar uma mentalidade higienista em uma generalidade difusa e heterogênea, tanto no âmbito político quanto no científico (Hochman; Lima, 1996; Hochman, 1993).

Deste modo, defendemos que o “movimento higienista” ou sanitarista do início do século XX no Brasil extrapola a periodização tradicional que lhe imputa o término nos anos 30 ou 40, e prossegue com suas tradições e ideais heterogêneos até o fim do século XX, e muito possivelmente, até hoje, no início do século XXI, não ganhando características que determinem uma diferenciação histórica absoluta entre as duas intervenções (Góis Junior, 2003).

Contudo existem análises mais tradicionais e restritas em relação ao movimento higienista. Na publicação da obra História da Vida Privada no Brasil, em volume dirigido por Fernando Novais (1997) e organizado por Nicolau Sevcenko, Paulo César Garcez Marins, no capítulo “Habitação e Vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras” atribuiu uma homogeneidade ao discurso higienista, caracterizando-o como um movimento social orientado pelos interesses das classes dirigentes. Nos seus estudos sobre a urbanização, o autor considera o discurso higienista um reflexo do pensamento das elites, que pretendiam perseguir o povo em suas próprias habitações. Em suas palavras as populações pobres seriam:

“Acusadas de atrasadas, inferiores e pestilentas, essas populações seriam perseguidas na ocupação que faziam das ruas, mas sobretudo ficariam fustigadas em suas habitações”. (Marins, 1998, p.133).

Nesta posição de análise o “movimento higienista” seria um aliado das elites econômicas em todas suas manifestações, como se reflete na passagem abaixo:

“A ambição de arrancar do seio da capital as habitações e moradores indesejados pelas elites dirigentes começou a se materializar com as medidas visando à demolição dos numerosos cortiços e estalagens, espalhados por todas as freguesias centrais do Rio de Janeiro, o que se procedeu sob a legitimação conferida pelo sanitarismo.” (Marins, 1998, p.141).

Usamos ainda artigos de autores do cenário local cearense tais como o artigo de Maria Clélia Lustosa Costa, intitulado Teorias médicas e gestão urbana: a seca de 1877-79 em Fortaleza. Neste artigo publicado na Revista Scielo de 2004 percebemos uma remontagem das novas teorias médicas sobre a origem das doenças que influenciaram normas e regulamentos de controle do comportamento da população e do espaço urbano. Neste trabalho, apresentaram-se e discutiram-se as idéias, práticas médicas e ações administrativas adotadas durante a seca de 1877-79 em Fortaleza, capital da província do Ceará. Já no artigo A cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano, publicado na Revista Mercator - Revista de Geografia da UFC, ano 01, número 02, 2002, a autora argumenta que os médicos, fundamentados em teorias que localizam a doença no meio ambiente, elaboram discurso que se propõe a medicalizar o espaço e a sociedade, influenciando as práticas e as políticas urbanas.

Tratados de Higiene Pública sugerem normas de construção, repercutindo nos Códigos de Posturas e legislações. Uma nova concepção de cidade emerge e um novo espaço urbano se estrutura com base no discurso médico neo-hipocrático dominante no século XIX. Normas que sugerem localizações de espaços que remontem perigo a saúde da população fossem redirecionados, de modo a se instalarem na direção oeste de Fortaleza, o que faria com que as doenças, segundo concepções miasmáticas da época, fossem levadas com o vento para mar a dentro, não atingindo aos moradores da capital. Como ocorreu com a construção do Campo de Concentração do Alagadiço na tentativa de evitar, assim, novo surto de varíola.

A EUGENIA NO BRASIL

Para os debates acerca da teoria da evolução social usamos artigos tais como os de Maria Lúcia Boarini, intitulado Higienismo e Eugenia: discursos que não envelhecem, publicado em Psicologia Revista, vol. 13, n.1, SP. Educ. 2004. p. 59-72, que discute o fato de ser estranho aos olhos da autora atribuir o sucesso ou insucesso do indivíduo unicamente às suas características pessoais ou biológicas (cor da pele, gênero etc.), estranheza maior causa a constatação de que estes discursos são recorrentes há, no mínimo, um século. Outra obra de Boarini que merece destaque é seu livro Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil, de 2003. Nesta obra, Higienismo e eugenismo, apesar de, habitualmente, não fazerem parte dos conceitos mais abordados pelas teorias 'psi', fazem parte da inextrincável teia de complexas e polêmicas discussões que hoje permeiam os mais diversos temas ligados à bioética. Muitas discussões sobre os dois temas estão na ordem do dia, suscitadas pelo avanço das ciências e das biotecnologias.

Mas um outro olhar, de cunho histórico-crítico, também tem se voltado para eles, no sentido de assinalar suas marcas e raízes, em nosso país. Trata-se, na verdade, de um olhar múltiplo e complexo, que percorre a linha do tempo, através da produção de pesquisadores de áreas diversas das ciências humanas e sociais, como a psicologia, a psicanálise, a história, a filosofia e a educação. Outro destaque é a dissertação de mestrado transformada em livro de Pietra Diwan, Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo (Contexto, 2007), nesta obra Diwan nos apresenta ao mundo moderno no qual temos o dever de sermos belos, magros, ter cabelos lisos e parecer "naturais" diante do espelho, de nós mesmos, diante dos outros. E, para conquistar mais saúde, juventude e beleza, os caminhos científicos e industriais não cessam de se multiplicar. 

A autora nos faz perceber que o Brasil atualmente é o segundo país no mundo em número de cirurgias plásticas, só perdendo para os Estados Unidos. Assim, evoluir a cada geração, se superar, ser saudável, ser belo, ser forte. A democratização da beleza, para alguns; ou a vulgarização dos corpos, para outros; todas essas afirmativas estão contidas na concepção de eugenia. Diwan (2007) destaca que com este status de disciplina científica, a eugenia pretendeu implantar um método de seleção humana baseado em premissas biológicas. E isso através da ciência que sempre se dizia neutra e analítica, segundo as explicações de seu mentor Francis Galton.

OS RESULTADOS DE 1877 E DE 1915

Os levantamentos parciais das mortes nas épocas de seca no sertão são assustadores. Somente entre 1877 (ano da grande seca em que morreram 5% da população brasileira (Segundo VILLA, 2001) e 1913, portanto ainda sem os números da seca de 1915 (ano de criação do Campo de Concentração do Alagadiço). O governo federal, por intermédio da Inspetoria de Obras Contra as Secas - IOCS estimava que dois milhões de pessoas houvessem morrido em conseqüência da miséria e fome da estiagem. As estatísticas oficiais, que não conseguiam abarcar todos os alistados nos “currais”, como eram chamados os campos de concentração pelos flagelados da seca, dão conta de que a população de Fortaleza, que somava em 1910, um número de 65.816 habitantes, aumentou em 1920, para 78.536 habitantes, isto é, cinco anos após a implantação do Campo do Alagadiço, o que pode vir a ser um indício de que alguns flagelados optaram por se estabelecer em Fortaleza após o fechamento do Campo do Alagadiço ainda em 1915.

ALGUMAS CONCLUSÕES

Alguns modelos e ações higienistas, aliados a antigas teorias sanitaristas que já apareceram em 1877 dentro da intervenção nos espaços urbanos com a criação dos abarracamentos para flagelados da seca, se repetiram entre 1914 e 1915. Nesse período teorias miasmáticas, ou seja, de que doenças eram transmitidas pelo ar, influenciaram na localização do que veio a ser o primeiro campo de concentração do Ceará, ou seja, o Alagadiço. Notamos que as grandes somas de dinheiro que eram destinadas ao campo de concentração no combate à seca não eram encaminhados de forma total para os desvalidos.

Não sendo observados na alimentação, na limpeza do local ou mesmo na construção de habitações melhores. Percebemos o descaso por parte da Inspetoria de Obras Contra as Secas no tocante ao local de depósito das matérias fecais, que deixava os flagelados expostos aos olhos de qualquer um assim como a exposição a inúmeras doenças, visto que ficavam às moscas. O evento da vacina em 1901, onde o próprio presidente da província, Nogueira Acioly, fez campanha contra a vacina produzida por Teófilo dizendo que esta vacina iria matar os flagelados ao invés de curar, pode ter sido o resultado por inúmeras mortes por parte dos que se negaram a ser vacinados.

A água também ficava a céu aberto, em buracos no chão. Isto demonstra que muitas das doenças que os mesmos vieram a ter e resultar em óbitos podem ter sido resultado direto do local e das péssimas condições de vida a que estavam sujeitos no campo de concentração, o que nos remete a péssimas condições sanitárias e nos fazem pensar sobre a teoria de evolução social que privilegiava os sãos, os bem-nascidos, bem alimentados, com boa capacidade física e mental. O que possibilitaria o desenvolvimento do local e não um possível fardo social, o que era fortemente combatido pelos teóricos da eugenia, como Francis Galton.

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Fonte: TRAVASSOS, Lidiany Soares Mota. Uma história não contada: o campo de concentração para flagelados de 1915 em Fortaleza-Ceará. V Colóquio de História: Perspectivas Históricas, 16 a 17 de novembro de 2011. 




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