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segunda-feira, 23 de março de 2020

Fósseis: Mito e Folclore


Fósseis: Mito e Folclore


Antônio Carlos Sequeira Campos


Obs: As imagens aqui apresentadas, foram escolhidas por mim para ilustrar o  trabalho do autor. Pois o texto original não contem imagens. 

1 Introdução

Os fósseis, em sua conceituação mais moderna, compreendem os restos e vestígios de organismos do passado geológico preservados naturalmente nas rochas. Apesar de sua conceituação como “objetos” de origem biológica só ter sido admitida de fato pelos estudiosos a partir dos dois últimos séculos, sua presença na natureza sempre foi conhecida pelo homem, desde bem antes da Antiguidade clássica. Sua utilização teve inúmeras conotações: como simples adornos, como amuletos, como objetos de superstição ou mesmo como objetos de interesse para propósitos medicinais. Em grande parte os fósseis são abordados na literatura em citações isoladas de fatos curiosos relacionados a grupos específicos; mais do que uma simples curiosidade, entretanto, o conhecimento de sua existência pelo homem e as conotações que lhe são atribuídas trazem revelações surpreendentes que nos permitem compreender melhor a História, em grande parte devido a sua ligação com o comportamento e religiosidade dos povos antigos.

O seu papel nas diversas sociedades tem se revelado principalmente nos textos de Bassett (1982), Edwards (1967), Kennedy (1976), Kerney (1982), Mayor (2000 e 2005), Mayor & Sarjeant (2001), Oakley (1965, 1971, 1973 e 1975), Rudkin & Barnett (1979) e Wendt (1968), onde a relação dos fósseis com as populações pré-históricas, a mitologia na Antiguidade, as crendices religiosas, bem como a sua utilização na medicina popular, tiveram uma abordagem destacada.

Este texto descreve resumidamente alguns dos principais enfoques desses autores, apresentados na conferência proferida sobre o tema durante a II Jornada Fluminense de Paleontologia, realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

2 Os Fósseis entre os Povos Pré-históricos

Quem teria sido o primeiro coletor de fósseis e que interesse ele poderia ter tido nesse tipo de objeto? É uma pergunta de resposta difícil, apesar do conhecimento de sua presença desde os tempos do Paleolítico inferior, conforme revelou a sua presença entre os pertences das primeiras culturas do período. Qualquer tentativa de resposta seria pura especulação, já que da antiga Idade da Pedra não ficaram documentos escritos que nos permitissem respostas adequadas (Rudkin & Barnett, 1979). Mesmo assim, sua ocorrência entre o homem paleolítico pode lançar alguma luz sobre o comportamento de nossos ancestrais.

Uma expressiva variedade de fósseis foi utilizada pelo homem paleolítico, embora nunca se tenha conhecido qual o seu verdadeiro valor prático. Conchas de gastrópodes, biválvios, amonitas e braquiópodes, carapaças de equinoides (ouriços do mar) e dentes de tubarão eram as formas mais utilizadas no Paleolítico superior. Seu valor poderia estar relacionado ao simples uso decorativo ou mesmo como elementos convenientes na composição de um colar (Oakley, 1971).

O exemplo mais antigo data de cerca de 100.000 anos atrás (Oakley, 1971) pertencente à cultura acheulense (designação proveniente de Saint-Acheul, próximo a Amiens, no norte da França), caracterizada pela produção de peças finamente talhadas (Giordani, 2001). Trata-se de um raspador produzido com uma carapaça silicificada de um equinóide cretácico (Micraster), cuidadosamente trabalhado de modo que sua área central, onde se encontram os cinco ambulacros, permaneceu intacta. Se o produtor da peça teve ou não preocupação com a preservação da área referida, alertado e impressionado pelas marcas dos ambulacros, é uma questão que permanece em dúvida.

Segundo Oakley (1971), a presença de sílex na região onde o raspador foi encontrado, Saint-Just-des-Marais, é bastante freqüente e as marcas enfileiradas numa das faces do artefato não teriam necessariamente induzido o "artífice" acheulense a escolher esta peça para produzir seu raspador. Entretanto, pode-se admitir que o estranho padrão das marcas em sua superfície tenha provavelmente influenciado em sua escolha.

Mas se este exemplo deixou dúvidas quanto à possível escolha peça por parte do homem pré-histórico, muitas outras ocorrências demonstram o seu interesse por esses objetos naturais, seja para seu emprego como simples adorno ou mesmo pela possível atribuição de uma interpretação mística. E, ao contrário do registro de Saint-Just-des-Marais, muitos fósseis viajaram com seus donos por grandes distâncias, desde seus pontos originais de coleta aos locais onde finalmente ficaram preservados e encontrados pelos arqueólogos. Rudkin & Barnett (1979) citaram alguns casos e a hipótese de que poderia ter ocorrido um comércio geograficamente amplo e regular de fósseis entre as culturas paleolíticas da Europa.

Os habitantes das cavernas de Grimaldi (situadas próximo à localidade de Menton, no litoral sudeste da França e nas proximidades do Principado de Mônaco), por exemplo, praticamente se “vestiam” com conchas em certas ocasiões; em um único sítio, arqueólogos encontraram cerca de 8.000 conchas pequenas, as quais aparentemente teriam sido utilizadas na fabricação de colares, braceletes e capuzes, normalmente perfuradas e enfileiras junto com outras peças como vértebras de salmão e caninos de veados machos.

Entre as conchas encontrava-se a de um gastrópode de idade eocênica somente conhecido na França em rochas situadas em Cherbourg, região localizada a mais de 1.000 km de distância das cavernas de Grimaldi. Outros exemplos são citados por Rudkin & Barnett (1979): dois gastrópodes encontrados em Laugerie Basse, na França, somente podem ser coletados em depósitos eocênicos da Ilha de Wight, no litoral sul da Inglaterra; na caverna de Lascaux, situada próximo à cidade de Montignac, a sudoeste da França, e famosa pelas suas pinturas rupestres, foi encontrado um gastrópode da espécie Sipho menapiae, a qual é conhecida somente das camadas pliocênicas presentes na Ilha de Man, situada no Mar da Irlanda, a noroeste da Inglaterra, e de Wexford, no litoral sudeste da República da Irlanda. Um dos exemplos mais impressionantes, entretanto, é o de um exemplar do trilobita de idade siluriana Dalmanites hawley, encontrado nas camadas magdelianas de Arcy-sur-Cure, na França, com a presença de uma perfuração indicando sua utilização como ornamento; sua origem, entretanto, estaria em camadas situadas na Alemanha, a mais de 2.000 km à leste da localidade francesa.

De qualquer forma, utilizados como ornamentos ou como símbolos místicos, a presença de   provenientes de localidades situadas a grandes distâncias veio demonstrar uma grande utilidade dos fósseis na arqueologia, auxiliando nos estudos das migrações ocorridas entre os povos pré-históricos.

3 Gigantes e Heróis

Nos antigos textos históricos, como os de Heródoto (c. de 430 a.C.; Heródoto, 2001), Estrabão (c. de 64 a.C.), Plínio O Velho (c. de 77 A.D.) e Pausânias (c. de 150 A.D.), encontram-se citações sobre a ocorrência de fósseis marinhos e de grandes restos ósseos, estes últimos com freqüência atribuídos a personagens mitológicos (Mayor, 2000). As associações com a mitologia ocorriam por serem a única forma de explicação para a existência desses achados extraordinários.

De acordo com Mayor (2000) o mito grego consiste numa mistura complexa de contos sobre a origem do mundo natural e a história de seus primeiros habitantes. Essas associações mitológicas com o inexplicável resultaram na criação do termo “geomitologia”, proposto por Vitaliano (1968, 1973), o qual se refere às lendas que explicam através de metáforas poéticas e do imaginário mitológico, a existência de eventos geológicos como terremotos e grandes atividades vulcânicas. O termo também se aplicaria, assim, aos fósseis, e negar que estes textos históricos possam fornecer informações de cunho geológico e paleontológico seria um equívoco certamente a ser evitado, utilizando-o para a interpretação do conteúdo de vários textos antigos. E é exatamente no contexto do imaginário mitológico grego que encontramos muitas das interpretações a respeito das ossadas encontradas em seu território.

Os achados eram normalmente considerados pelos gregos como os ossos de dragões, ciclopes ou centauros, mas também atribuídos a gigantes e aos esqueletos de seus heróis, os quais os gregos imaginavam serem dotados de uma maior estatura (Mayor, 2000). Em grande parte eram ossos de várias espécies de mamíferos provenientes de terrenos do Neógeno, principalmente de proboscídeos como os mastodontes do Mioceno/Plioceno e os grandes mamutes e elefantes do Pleistoceno e do Holoceno. Quando por volta dos séculos VIII e VII a.C. começou o culto às relíquias dos heróis, vários ossos de mamíferos foram encontrados e muitos enterrados em grandes túmulos representando os restos mortais dos heróis, num processo que se alongou também pelos séculos VI e V a.C. Ao longo desse período, por todo o mundo grego as cidades-estado procuravam recuperar os restos de seus heróis, buscando assim o glamour peculiar que lhes seria conferido pela sua posse: a consagração religiosa e o poder político (Mayor, 2000). É desta fase talvez a mais extraordinária história da procura dos restos de um herói no mundo grego: a do herói Orestes, de Esparta.

Por volta de 560 a.C. Esparta disputava com Tegéia a liderança no Peloponeso. Sem poder vencer Tegéia pela força, não restou outra alternativa aos espartanos do que empregar a propaganda e a diplomacia e, para atingir seu objetivo hegemônico, procuraram descobrir e recuperar os ossos de Orestes, que se “encontravam” em Tegéia (Cartledge, 2003). Filho de Agamenon e da espartana Clytemnestra, e sobrinho do rei espartano Menelau, Orestes era um espartano nato e a descoberta de seus ossos ressaltaria a importância da reivindicação de Esparta, demonstrando sua superioridade hereditária sobre Tegéia. Para reforçar esta interpretação, a procura dos ossos do alegado filho de Orestes, Tisamenus, na região mais ao norte do Peloponeso, também se revelou importante, pois sua descoberta e posterior sepultamento enfatizaria ainda mais a reivindicação dos espartanos de governar todo o Peloponeso por direito de hereditariedade (Cartledge, 2003).

Heródoto, por volta de 430 a.C., relatou a descoberta, que pode ser assim resumida (Mayor, 2000): incapazes de derrotar Tegéia em batalha, os espartanos recorreram ao oráculo de Delfos que os aconselhou a trazer Orestes para sua cidade. Seus restos estariam em uma ferraria, mas as diversas buscas realizadas haviam se revelado infrutíferas. Na ocasião, Licas, um espartano que se encontrava na região de Tegéia durante um intervalo entre as hostilidades, foi informado por um ferreiro sobre um espantoso achado no jardim de sua ferraria, um túmulo contendo um caixão com três metros de comprimento e que, após ter seu interior examinado, voltou a ser enterrado.

Passando-se por um exilado de Esparta, Licas alugou um quarto na ferraria e, secretamente, escavou a sepultura e fugiu com os grandes ossos. Esparta então noticiou a recuperação dos restos mortais de Orestes, sepultando-os em sua cidade com grandes honras, obtendo, assim, a tão esperada hegemonia sobre Tegéia. É interessante assinalar que Tegéia situa-se sobre depósitos sedimentares de origem lacustre que contêm os restos de mamutes e outros mamíferos pleistocênicos; face à informação de Heródoto sobre as dimensões do esquife, é de se supor que os ossos encontrados pertencessem a um dos inúmeros mamíferos pleistocênicos presentes na região. Infelizmente, o túmulo e os ossos de Orestes há muito se perderam, dificultando assim a identificação do animal que, com seus ossos, evitou a continuação de uma guerra e permitiu que Esparta, através de propaganda e diplomacia, obtivesse a hegemonia e a condução da conhecida Liga do Peloponeso.

4 Dragões: das Lendas Chinesas ao Combate de Siegfried

Enquanto os gregos da Antiguidade associavam os fósseis de vertebrados a heróis e personagens mitológicos clássicos, por milhares de anos os chineses os consideravam como os restos de dragões, sendo regularmente coletados e reunidos para serem empregados como remédios (Wendt, 1968). Os ossos de dragões tinham como fonte principal o distrito de Pao Te Hsien, em Shansi, no noroeste da China, compreendendo ossos e dentes de mamíferos fósseis coletados em camadas argilosas do Plioceno inferior, as quais eram exploradas pela população local complementando assim o trabalho sazonal na agricultura. Como os dragões eram considerados guardiões do imperador, os homens mais abastados utilizavam os ossos convencidos que assim teriam a ajuda do dragão.

A interpretação relacionada à figura do dragão também ocorreu na Europa, podendo ainda ser observada através das inúmeras esculturas existentes em construções do século XVI ao século XVIII. Uma das esculturas mais extraordinárias e freqüentemente citada na literatura corresponde ao monumento Lindwurm, datada do século XVI e exposta em Klagenfurt, cidade situada ao sul da Áustria. Wendt (1968) descreveu brevemente sua interessante história: em 1335, em uma pedreira situada próximo à referida cidade, foi encontrado um crânio de um rinoceronte lanoso da Idade do Gelo. Considerado como um crânio de dragão, permaneceu em exibição em uma loja de curiosidades. Em 1590 foi então utilizado como modelo por um escultor, Ulrich Vogelsang, quando criou o famoso monumento do dragão que se tornou um marco da cidade. O crânio, atualmente, se encontra no Museu de Klagenfurt.

Em vez de ossos, pegadas preservadas nas rochas também foram associadas aos dragões. Kirchner (1941 apud Sarjeant, 1975) sugeriu que a observação de pegadas triássicas de répteis em Siegfriedsburg, na Alemanha, poderia ter sido o ponto de partida para a origem da lenda de Siegfried e o dragão, a qual ficou imortalizada através da ópera “Canção dos Nibelungos”, de Richard Wagner (1813-1883), famoso compositor alemão. É interessante lembrar que a existência de dragões era uma realidade para os estudiosos dos séculos XVI e XVII na Europa, incluindo-se mesmo a crença em batalhas sangrentas com esses grandes lagartos (ou serpentes) alados (Wellnhofer, 1996). 

Sua existência baseava-se também nos achados de esqueletos fossilizados como os de répteis fósseis marinhos mesozóicos. Não seria de se estranhar, portanto, a idéia de um ponto de ligação entre as referidas pegadas e a tradicional lenda alemã. Lessertisseur (1955 apud Sarjeant, 1975), entretanto, discordou da sugestão de H. Kirchner, assinalando de forma sarcástica de que esta seria tão somente uma incursão curiosa de um paleontólogo no folclore medieval, nada convincente. Lenda e pegadas, mesmo que reais, não teriam deste modo nenhuma relação entre elas.

5 As Pegadas da Mula de Nossa Senhora

Se a relação entre as pegadas em Siegfriedsburg e a lenda de Siegfried pode suscitar dúvidas no imaginário popular, o mesmo não se pode dizer quanto à presença de pegadas relacionadas a aspectos mais profundos de religiosidade regional, como as famosas pegadas da mula de Nossa Senhora, em Portugal.

Ao sul de Lisboa, na extremidade ocidental da serra da Arrábida e próximo à cidade de Sesimbra, na Costa de Lisboa, ocorrem as falésias que compõem o cabo Espichel, junto às quais encontra-se uma pequena capela, a ermida de Nossa Senhora da Memória, construída no século XV, e o santuário de Nossa Senhora do Cabo ou de Santa Maria da Pedra da Mua (ou da Mula). Nas lajes calcárias que se encontram junto à baía de Lagosteiros e na laje posicionada na lateral da falésia sob a ermida, conhecida como “Pedra da Mua”, ocorrem pistas compostas por pegadas de dinossauros, as quais foram interpretadas pelos pescadores que as observaram desde o século XIII como tendo sido produzidas pela mula que levara Nossa Senhora e o Menino Jesus ao alto da colina, lenda que resultou no nome do santuário. No rastro dessa interpretação há imagens em murais de azulejos do século XVIII (Santos, 2000) e a veneração de Nossa Senhora da Mua com romaria anual ao santuário (Cachão et al., 1998).

Pegadas de dinossauros na Pedra da Mua, em Portugal. 
Descritas originalmente por Antunes (1976), as pegadas, objeto de estudos e referências mais recentes (Lockley et al., 1994; Santos, 1998, 2000; Lockley & Meyer, 2000), datam do Jurássico Superior (Portlandiano), encontrando-se em diferentes níveis de exposição. As pegadas da “mula gigante” (Galopim de Carvalho, 1998) foram produzidas principalmente por grande número de saurópodes e alguns terópodes que se deslocavam lentamente na região, por vezes em manadas (Santos, 2000).

O interesse pelas exposições do cabo Espichel, bem como de outros registros de pegadas de dinossauros no território português, tem se acentuado significativamente na última década resultando na indicação da necessidade de musealização das pistas (Galopim de Carvalho, 1998; Santos, 1998), estando associada ao forte sentimento de preservação do patrimônio geológico do país. Critérios específicos para a definição do patrimônio paleontológico (critérios científicos, pedagógicos e culturais) foram propostos por Cachão et al. (1998), Cachão & Silva (1999) e Cachão (2005). Deste modo, os jazimentos do cabo Espichel se enquadrariam dentro dos critérios culturais como de valor espiritual, os quais aplicam-se às jazidas relacionadas a cultos ou crenças de populações locais, motivo da necessidade de sua preservação.

6 Os Cornos de Amon e Seus Poderes

Muitos fósseis de invertebrados também tiveram um papel importante nas tradições folclóricas de diversas culturas, que lhes atribuíam poderes tanto mágicos como medicinais. Entre os que mais se destacaram estão os amonitas, cefalópodes extintos dotados de uma concha usualmente plano-espiralada que habitaram os mares jurássicos e cretácicos e estão presentes em rochas dessas idades por todos os continentes. No folclore popular são constantemente interpretados como serpentes petrificadas e vários são os mitos que os envolvem.

Segundo Basset (1982), as conchas dos amonitas são familiares ao homem desde provavelmente antes da Grécia antiga. Aos gregos, sua forma lhes lembrava os chifres ou cornos enrolados do carneiro, animal tratado como um símbolo sagrado e particularmente associado ao deus Júpiter Ammon. Os exemplares de amonitas tornaram-se então conhecidos como Cornu Ammonis (cornos de Amon) e somente denominados como amonitas na terminologia científica, numa fase posterior. Na China, os cefalópodes enrolados também eram comparados aos chifres e então denominados Jiao-shih, ou “chifres de pedra”; na Inglaterra eram associados à forma das serpentes e por isso mesmo conhecidos como “serpentes de pedra” (snakestones).

Na Índia, desde o século V os amonitas jurássicos da famíliaPerisphinctidae são reverenciados como a incorporação do deus Vishnu, sendo ainda hoje comercializados através do país como fetiches religiosos (Rudkin & Barnett, 1979). Acredita-se que um cálice de água em que estes fósseis tenham sido colocados seja suficiente para curar os pecados, assegurando o bem-estar religioso daqueles que a bebessem.

Mas a mais famosa lenda envolvendo os amonitas encontra-se no leste da Inglaterra, relacionada a uma santa cristã. Trata-se de Santa Hilda, fundadora e abadessa da Abadia de Whitby, uma pequena cidade litorânea situada a 70 km a nordeste de Yorkshire, no distrito de mesmo nome. Santa Hilda fundou a abadia em 658 A.D., a qual foi construída no alto das falésias situadas próximo à cidade; na base da falésia junto à abadia encontram-se os depósitos argilosos da Formação Whitby onde ocorrem restos de amonitas, belemnitas, biválvios, crinóides, crustáceos, vegetais e inclusive répteis marinhos. Os fósseis mais comuns, entretanto são os amonitas. Conta a lenda que a abadessa, querendo limpar o terreno para a construção de um novo convento, transformou as serpentes em pedra. Após uma série de orações, as serpentes se enrolaram, petrificando-se e caindo da borda da falésia depois de terem tido suas cabeças cortadas com um chicote.

Em outra interpretação, Santa Hilda, ao procurar paz na floresta próxima para rezar, foi incomodada pelas serpentes e, em sua reação, transformou-as em pedra. A ausência de cabeça nos fósseis também é algumas vezes atribuída à maldição lançada por São Cuthbert, outro santo do norte da Inglaterra. A lenda de Santa Hilda e as “serpentes de pedra” é tão forte na região que os amonitas se tornaram um marco na cidade: são vendidos em lojas que comerciam fósseis (alguns com cabeças esculpidas), foram construídas esculturas com a sua forma, presentes nas calçadas, e existem peças entalhadas em madeira, também dotadas de cabeça, uma tradição na cidade. Os amonitas chegam inclusive a constar do brasão da cidade e do emblema do time local de futebol. Os amonitas encontrados nas camadas da Formação Whitby pertencem principalmente aos gêneros Dactylioceras e Hildoceras, este último, seguindo a tradição, proposto em homenagem a Santa Hilda.

Brasão do time de futebol da cidade de Whitby, apresentando três amonitas no mar. 

Muitas outras culturas também acreditavam que os amonitas seriam serpentes petrificadas e, por associação a sua forma, os utilizavam como remédios ou amuletos contra as picadas de cobra. Os antigos gregos os utilizavam para a cura da cegueira, da impotência e da esterilidade (Rudkin & Barnett, 1979).

7 Do Tratamento da Artrose a Acidez Estomacal

Uma das mais curiosas associações entre forma e aplicação medicinal com os fósseis de invertebrados foi a utilização do ostreídeo Gryphaea arcuata, muito comum em rochas do Jurássico Inferior (Liássico) da Inglaterra e conhecido como “Unha do Dedo do Diabo” (Devil’s Toe Nail). Na Escócia, nos séculos XVII e XVIII, por associação a sua forma acentuadamente encurvada, era utilizado no tratamento de dores nas juntas (artrose) (Basset, 1982). Sua importância em algumas regiões ficou evidenciada quando, desde 1936, duas ilustrações de Griphaea passaram a fazer parte do brasão do município de Scunthorpe, do distrito de North Lincolnshire, no leste da Inglaterra.

Fóssil de um ostreídeo Gryphaea arcuata, conhecido popularmente como "unha do dedo do Diabo". 
Fósseis de equinóides cretácicos também foram muito utilizados na Inglaterra com fins medicinais. No início de 1700, por exemplo, exemplares do equinóide Echine marinae, conhecidos como chalk-eggs, eram coletados e recomendados para o tratamento da acidez estomacal: o fino carbonato de seu interior era considerado como um remédio excelente. Dois outros tipos de equinóides populares na Inglaterra, Micraster coranguinum (o equinóide com forma de coração) e Echinocorys scutata (com forma de capacete), comuns nos depósitos calcários, eram também utilizados com propósitos medicinais.

Destaque notável da relação de equinóides com tradição folclórica envolvendo picadas de cobras é a conhecida história do ovum anguinum. Segundo Basset (1982), Plínio O Velho, em sua “História Natural” (c. 77 A.D.), considerava que vários tipos de equinóides fósseis seriam fortes antídotos contra o veneno das cobras. De acordo com Plínio O Velho, uma antiga tradição celta relatada pelos druidas da Gália contava que certas pedras formavam-se inicialmente como bolas de espuma, produzidas por numerosas serpentes que se aglomeravam por ocasião do verão. Conhecida como ovum anguinum, a bola era lançada ao ar pelas cobras e, se capturada com um pedaço de pano antes que tocasse o solo, reteria nela seus poderes mágicos. O coletor, entretanto, só estaria salvo após cruzar um rio no qual as serpentes não poderiam nadar. Além de proteger seu portador do veneno das cobras e de outras doenças, sua posse lhe asseguraria sucesso nas batalhas e outras disputas. É interessante notar que os poros das áreas ambulacrais dos equinóides eram considerados como as marcas produzidas pelas picadas das serpentes em sua superfície.

8 Andorinhas de Pedra e Trilobitas Protetores

Os braquiópodes espiriferídeos sempre chamaram a atenção pela curiosidade de sua forma alada, particularmente entre os chineses do século IV, que os chamavam de “andorinhas de pedra”, as quais voavam perdidas durante as tempestades. Desde cerca de 660 A.D. que estes fósseis constavam de numerosos textos farmacêuticos chineses e o reconhecimento de seu valor e beleza era tão grande que chegavam a ser recolhidos como um tributo imperial. Sua principal utilização medicinal era o tratamento de problemas dentários e outras indisposições hoje conhecidas como decorrentes da falta de cálcio no organismo (Rudkin & Barnett, 1979), fruto da tradicional dieta chinesa. Dissolvidos em vinagre (em decorrência da composição carbonática das conchas e da acidez do vinagre), seriam então “ingeridos”, provendo um suplemento adicional de cálcio para o organismo.

Na América, do outro lado do mundo, outro fóssil de invertebrado também teve o seu destaque mítico: os índios Pahvant Ute das regiões desérticas do oeste do Estado de Utah utilizavam os exemplares do trilobita Elrathia kingii como amuletos protetores (Taylor & Robison, 1976). Espécimens bem preservados desse trilobita são encontrados em depósitos da Formação Wheeler, de idade cambriana, que afloram nesse estado, e sua grande abundância, excelente preservação e facilidade de coleta os tornaram bastante populares entre paleontólogos profissionais e amadores.

Fósseis de trilobita da espécie Elrathia kingii. 
Segundo Taylor & Robison (1976) o nome utilizado pelos índios Pahvant para os trilobitas presentes na matriz, “timpe khanitza pachavee”, significando “pequeno inseto aquático contido na rocha” (little water bug like stone housed in), leva a suposição de que eles reconheciam a origem orgânica dos fósseis. Até o início do século XX os índios Pahvant viviam da coleta de raízes e da caça de pássaros aquáticos em antigas áreas alagadas no vale Sevier, onde tinham a oportunidade de observar os insetos aquáticos; acredita-se que a semelhança entre alguns dos insetos e os exemplares de Elrathia tenha levado os índios a dar a referida denominação. Sobre o interesse dos índios pelos trilobitas, este seria a sua utilização para protegê-los de doenças e das balas dos homens brancos, utilizando-os em colares.


9 Âmbar, um Remédio para Todas as Doenças

Entre todos os fósseis empregados com fins medicinais, o âmbar, a resina fossilizada de coníferas e outros vegetais, é o mais comum. Sua utilização remonta aos tempos da Idade da Pedra e interpretações sobre sua origem envolvem uma lenda romana com características românticas e simbólicas. Conta a lenda que o deus Júpiter, com inveja de Phaeton, atingiu o com um raio, ferindo e lançando-o ao rio Eridanus, onde se afogou. As Helíadas, as três irmãs de Phaeton, filhas do sol, ficaram intensamente sentidas com a perda do irmão; choraram tanto que, finalmente, os deuses, com pena delas, as transformaram em três pés de carvalho. Suas lágrimas, entretanto, continuaram a fluir e, quando caíam no rio, transformavam-se em âmbar. Em virtude da lenda, o âmbar tem sido há longo tempo considerado um símbolo do amor fraterno.

Uma pedra de âmbar
No campo medicinal, sempre foi muito utilizado no tratamento de doenças, sendo ainda empregado em muitas partes do mundo. Suas propriedades permitiam grande emprego (Rudkin & Barnett, 1979): por exemplo, segundo crendices da Antiguidade e da Idade Média, o âmbar, quando misturado a outros remédios, podia ser administrado às mulheres como uma prevenção ao aborto; durante o trabalho, quando queimado, liberaria vapores que teriam propriedades calmantes e, dissolvido em vinho, também atuaria como atenuante às depressões das mulheres no trabalho. Além disso, poderia ser empregado em diversos tratamentos, alguns dos quais atuariam na cura da dor de garganta, na remoção de “resíduos” dos olhos, no desenvolvimento da dentição das crianças e na cura da cegueira, além de interromper sangramentos no nariz. O óleo de âmbar, produzido inicialmente no século X, era então útil no tratamento da asma e da bronquite, do reumatismo, da tosse e, inclusive, histeria. Além disso, era utilizado também na confecção de colares e amuletos entre os povos pré-históricos.

10 Conclusão

Não há dúvida de que os fósseis desempenharam um papel importante no misticismo e no folclore de muitas culturas através dos tempos. Neste texto foi apresentada somente uma pequena parte de suas variadas aplicações, demonstrando a familiaridade do homem com estes objetos desde os tempos da Idade da Pedra aos séculos recentes da Idade Contemporânea. É uma relação por vezes obscura, recheada de crendices e superstições, trazendo à luz informações inestimáveis, por vezes não escritas, relacionadas à história dos povos que os usavam. 

Da sua utilização como ornamentos a objetos místicos, da identidade com os heróis e gigantes da Antiguidade ao reconhecimento da existência de dragões, de amuletos contra serpentes peçonhentas ao número considerável de aplicações medicinais, de uma forma ou de outra, os fósseis sempre foram reconhecidos como objetos de valor no curso da Humanidade.

Por último, para aqueles que desejarem, aqui vai uma antiga receita chinesa: primeiro, pulverize ossos e dentes de dragão, embalando-os em uma bolsa de seda; em seguida, coloque a bolsa no abdômen de uma andorinha morta, ali permanecendo por uma noite. Pela manhã, misture com outros ingredientes pastosos e aplique ao corpo como pomada. Como foi dito anteriormente, de acordo com o pensamento da época, os dragões eram considerados protetores dos imperadores, e a aplicação deste “remédio” poderá ajudá-lo. Quem sabe não dá certo?

Referências
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Bassett, M. G. 1982. Formed Stones, folklore and fossils. Cardiff, National Museum of Wales, Geological Series no 1. 32 p.
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Cachão, M. & Silva, C. M. 1999. Patrimônio paleontológico: entidade autônoma, multidimensional e pluricientífica. In: SEMINÁRIO SOBRE O PATRIMÓNIO GEOLÓGICO PORTUGUÊS, 1, Alfragide. 9p.Comunicações.
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Fonte: FERNANDES, Antonio Carlos Sequeira. Fósseis: Mito e Folclore. Anuário do Instituto de Geociências, vol. 28, n. 1, 2005, p. 101-115. 

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