No final do século XIX, a região de Tsavo, no Quênia, tornou-se palco de uma história violenta, sangrenta e assustadora. Falava-se que leões devoradores de homens estavam mantando muitas pessoas naquele local. Realmente aquela história foi real, inclusive inspirou livros e filmes. E nesta postagem contarei um pouco dessa sinistra história, apontando as diferenças entre ficção e fato.
A ponte de Tsavo
Durante o período do neocolonialismo em África, países como Inglaterra, França e Bélgica, dominava várias colônias naquele continente. No caso dos ingleses, em 1895 eles deram início a Estrada de Ferro de Uganda, a qual iniciava-se no atual território de Uganda, mas adentrava as terras do Quênia, rumo a Mombaça e o litoral. A ideia daquela ferrovia era criar um caminho da costa até o interior do continente, facilitando o transporte e escoamento de produtos. A medida que esse caminho férreo era construído, ele chegou até o rio Tsavo no Quênia, onde se viu que era necessário construir uma ponte ali. Na época a Companhia Britânica da África Oriental, nomeou o capitão John Henry Patterson (1867-1947) para supervisionar as obras da ponte de Tsavo. Naquele tempo era comum os militares exercerem cargos nas companhias coloniais do Império Britânico, com isso Patterson seguiu para o Quênia. (PATTERSON, 1925, p. 91).
Fotografia da ponte de Tsavo, Quênia. A ponte ainda hoje existe, embora não seja com a mesma estrutura. |
As obras da ponte já estavam em andamento quando Patterson chegou por volta de março e 1898. Na ocasião empregavam-se trabalhadores locais, mas também havia indianos, recordando que a Índia naquele tempo também era colônia britânica. Com isso muitos indianos que passavam a trabalhar para as companhias coloniais inglesas, seguiam para outros países. Patterson comenta que poucos dias após ele ter chegado a Tsavo, algo de estranho aconteceu, dois trabalhadores sumiram misteriosamente. (PATTERSON, 1925, p. 98).
Sublinha-se que a região de Tsavo fica em meio as savanas quenianas, sendo um território hostil devido aos grandes predadores desse habitat. Além disso, o sumiço de trabalhadores não era incomum, pois alguns acabavam se perdendo, enquanto iam caçar, e outros também aproveitavam para fugir do trabalho degradante, e as vezes análogo a escravidão. Além disso, havia a ameaça de leões que viviam naquela região. Patterson (1925, p. 98-99) comentou em seu livro que quando soube do sumiço de dois trabalhadores durante à noite, e lhe foi informado que eles teriam sido levados por leões, ele disse que não acreditou naquilo, pois leões normalmente atacavam em bando, e não havia bandos daqueles felinos por vários quilômetros nos arredores. Além disso, o acampamento operário, moravam dezenas de trabalhadores. Seriam muito difícil ninguém conseguir ver tais animais saindo dali, arrastando dois homens adultos. Porém, os oficiais seguiam confirmando que aquilo foi ataque de leões, então Patterson disse que decidiu investigar. Dando início a quase dez meses de terror.
O relato de Patterson
Quase dez anos depois o ocorrido em Tsavo, Patterson escreveu o livro The man-eating lions of Tsavo (1907), cuja obra o deixou relativamente famoso na época. O livro conta a tensa e assustadora experiência dele em ter vivido aquele ano de 1898, sob a ameaça de dois ferozes leões devoradores de homens. De fato, muito da popularidade dessa história deve-se a publicação desse livro, mesmo que ele tenha saído alguns anos depois dos fatos ali narrados.
A obra embora tenha sido considerada como um genuíno relato real, hoje é encarada de forma diferente, sendo vista mais como um romanceamento daqueles acontecimentos. Algo perceptível no linguajar de Patterson, que escreveu aquele relato como se fosse um livro de aventura, além de que ele também provavelmente alterou determinados relatos, e um dos mais mais nítidos diz respeito ao número de mortos, onde ele sugeriu que entre 130 a 140 homens foram assassinados por aqueles dois leões.
Mas apesar do relato romanceado de Patterson, realmente os assassinatos ocorreram. Os leões somente foram abatidos em dezembro, após meses de ataques realizados à noite, onde eles de fato chegavam a invadir o território dos acampamentos, e atacando os empregados que ali andavam, ou estavam ocupados com algum afazer, ou até mesmo dormindo. Patterson também relata que ele e caçadores locais foram atrás daqueles animais em várias ocasiões, mas sempre perdiam seus rastros. Armadilhas foram montadas, mas os leões não caíram em nenhuma delas.
A medida que os meses passavam, alguns dos trabalhadores começaram a fugir e outros relutavam em trabalhar devido a insegurança. Histórias de assombração começaram a ser difundidas entre os nativos, os quais diziam que tais leões seriam "demônios", "monstros" ou "espíritos vingativos". E a condição de eles atacarem principalmente durante à noite, e de forma sorrateira, contribuía para deixar tais relatos ainda mais vívidos e aterrorizantes. (PATTERSON, 1925, p. 101, 106).
Embora que biologicamente leões costumam caçar durante à noite, e eles como outros felinos, tendem a ser silenciosos enquanto espreitam suas presas. Logo, isso não seria algo incomum, mas para aquele contexto o era, ainda mais pelo fato daqueles animais terem se especializado em atacar pessoas, sendo algo atípico, pois as presas dos leões nas savanas eram animais, não pessoas. Assim, começou a se dizer que eles tinham "apresso por carne humana".
As feras são abatidas
O primeiro leão foi abatido em 9 de dezembro. Patterson relata que o caçou sozinho durante à noite, tendo o matado com dois tiros e quase sendo morto por ele. Não se sabe exatamente ele fez isso tudo sozinho, ou vangloriou-se da façanha. De qualquer forma, no dia 10, o corpo do animal foi levado ao acampamento. Na ocasião ele tirou uma foto ao lado do animal. A morte daquele leão foi recebida como uma agradável notícia, pois um dos devoradores estava morto. (PATTERSON, 1925, p. 120-122).
A morte da segunda fera ocorreu quase no final daquele ano, no dia 29 de dezembro. Patterson relatou uma caçada ainda mais tensa e violenta, onde ele disparou várias vezes para acertar o animal e até consegui-lo matá-lo. Inclusive ele conta que montou um posto de caça numa árvore, e usou bodes como isca. De seu esconderijo ele atirou várias vezes contra a fera, a qual segundo ele, tentou escalar a árvore, mas acabou sendo morta, enquanto fazia isso. (PATTERSON, 1925, p. 125-126).
Uma história que ganhou fama
A ponte de Tsavo foi concluída em 1899, e Patterson foi dispensado dessa missão, deixando posteriormente o Quênia. Ao retornar a Inglaterra, foi parabenizado por sua façanha na África, sendo considerado um bravo caçador e até um herói. Na ocasião, John Patterson conservava consigo as peles e crânios dos dois leões, os quais exibiu para familiares, amigos e admiradores. Em 1907 como dito anteriormente, ele publicou seu livro sobre o ocorrido em Tsavo, e a obra foi bem recebida na Inglaterra. Posteriormente ele continuou a seguir com sua carreira militar.
No ano de 1924, já estando aposentado do Exército, e precisando de dinheiro, ele vendeu as peles e crânios dos leões, para o Museu Field de História Natural em Chicago, por 5 mil dólares. As peles estavam em péssimo estado naquela época, tendo que serem reconstruídas para serem empalhadas. No ano seguinte, Patterson publicou uma segunda edição do livro sobre sua caçada, obra inclusive bancada pelo Museu Field, como forma de atrair o público para exposição dos leões devoradores de homens de Tsavo. Após isso, John Patterson seguiu vivendo nos Estados Unidos com sua esposa Frances Helena, pelo resto da vida. O casal morreu na velhice, sem deixar herdeiros.
Sua história gerou três filmes: Bwana Devil (1952), Killers of Kilimanjaro (1956) e The Ghost and the Darkness (1996), sendo o terceiro filme o mais famoso dos três e o que levou alguns prêmios como um Oscar e três Globos de Ouro. Além disso, o terceiro filme é o mais fidedigno a história contada por Patterson em seu livro. E inspirou alguns livros de aventura e drama. (PETERHANS; GNOSKE, 2001, p. 2).
Pôster do filme A Sombra e a Escuridão (The Ghost and the Darkness), estrelando Val Kimer e Michael Douglas, 1996. |
Fatos sobre os leões devoradores de homens em Tsavo
Uma das primeiras coisas que chama atenção é o fato de estes leões não terem juba. Pois normalmente acreditamos que todo leão possui juba, e a ausência dessa seria algo das fêmeas, leões jovens ou doentes. Porém, já se sabe há vários anos que não é bem assim. Existem diferentes tipos de jubas, inclusive leões com pouca juba ou até mesmo "carecas". E isso necessariamente não seria por fator de doença, mas por questões ambientais. Logo, observou-se que leões de zonas quentes e de baixa altitude, tem disposição a terem jubas menores. E no caso de Tsavo, é comum isso acontecer lá.
Um segundo aspecto salientado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 4), diz respeito ao tamanho dos felinos. Patterson chegou a dizer que os dois teriam quase três metros de comprimento, mas em média os leões de Tsavo ficam entre 2,60 a 2,70 m de cumprimento. Ou Patterson errou na medição, ou deliberadamente ele escreveu que eram maiores, para fim de gerar mais impacto.
Um terceiro ponto questionável diz respeito do porque esses leões atacariam apenas pessoas. Aqui há uma série de casos atípicos. Primeiro, os dois felinos não são irmãos, mas talvez seriam do mesmo bando; segundo, leões não costumam caçar em dupla, geralmente um macho possui um bando e ele coloca as leoas e os leões jovens para caçar. Quando um macho não tem um bando, ele caça por conta própria, mas as vezes pode ocorrer de ele trabalhar ocasionalmente em parceria. Os dois leões de Tsavo eram uma dupla de assassinos que se especializou em caçar humanos, algo realmente incomum.
Várias teorias foram propostas para tentar responder por que aqueles dois machos se uniram para caçar humanos nas obras da ponte de Tsavo? As mais aceitas sugerem que havia escassez de presas naturais naquela localidade, e devido a abundância de pessoas ali, as quais eram tidas como alvos fáceis, os dois leões decidiram ir caçá-los. Porém, isso por si só não responde o mistério todo. Peterhans e Gnoske (2001, p. 6-8) apontam com base no estudo osteológico dos crânios e dentes dos dois leões, que eles possuíam problemas dentários de má formação, algo que poderia ter atrapalhado na hora de eles caçarem, não concedendo força suficiente para prender e executar animais de grande porte. Logo, eles procuraram por presas menores, e os humanos entraram para seu cardápio. Não obstante, os dois pesquisadores também salientam que ambos os leões não seriam tão velhos, teriam uma idade estimada entre 4 a 6 anos, fator que poderia indicar o porque eles não tivessem um bando, já que normalmente por essa idade leões jovens são expulsos de seus bandos, tendo que viver sozinhos ou procurar por outro grupo.
Por qual motivo tais felinos teriam escolhido Tsavo para ser seu território de caça, uma das pistas é dada pelo próprio John Patterson, o qual disse que não havia preocupação de se enterrar ou cremar os corpos dos operários que morriam. Seus cadáveres eram jogados em valas ou abandonados ao relento. Além disso, sabe-se que uma rota clandestina de escravos passava por aquela região, e os que morriam durante a viagem, também eram despejados ao relento. Logo, o cheiro de sangue e carne atraía carniceiros e provavelmente atraiu os dois leões. Os quais vendo a abundância de presas naquele território e como era fácil de caçá-los, se estabeleceram por ali. Condição essa plausível, pois os dois animais somente chegaram ali em 1898, antes disso não se sabe de onde vieram.
Outro ponto analisado por Peterhans e Gnoske (2001, p. 8), diz respeito ao número de vítimas desses leões. Na época a companhia férrea disse que apenas 28 trabalhadores teriam sido mortos por tais animais. Porém, Patterson relatou em seu livro, algo entre 135 a 140 mortes. Todavia, os autores ao analisar o consumo diário de carne que um leão adulto precisaria para sobreviver num ambiente de savana, constataram que o volume de carne gerado pelo abate de mais de cem pessoas seriam algo tremendamente desnecessário e até questionável, pois se um leão conseguisse se alimentar muito bem, ele inclusive nem precisaria comer todos os dias.
Nesse ponto, Patterson disse que na época que os nativos consideravam que aqueles leões matassem não para comer, mas por vingança ou pura maldade. Animais até podem matar por raiva e até cometem vingança, porém, quais motivos aqueles dois leões teriam para atacar aquelas pessoas, se desconhece, embora que na época dissessem que eles fossem assombrações. De qualquer forma, Peterhans e Gnoske (2001) sugeriram com base em seus dados, que os leões teriam matado entre 30 a 38 pessoas, um valor que se aproxima do sugerido pela companhia, mas bem abaixo apontado por John Patterson. Além disso, tal dado aponta uma média de 3 ataques por mês, o que indicaria que tais felinos não se alimentariam apenas de humanos, pois a carne fornecida por três pessoas não seria suficiente para sustentar tais animais por 30 dias. Sendo assim, os ataques não ocorreriam regularmente como Patterson sugeriu. Mas apesar de tais imprecisões, ainda assim, é uma história real e até incomum.
NOTA: Os leões de Tsavo não possuíam juba, mas nos filmes eles aparecem com juba, pois lhe concede uma aparência maior, mais bela e intimidadora.
NOTA 2: Os dois leões empalhados são menores do que realmente foram, o fato deve-se que como as peles estavam tão desgastadas, pois foram usadas como tapete por vários anos, os taxidermistas tiveram que reconstruir parte das peles, com isso, os leões em exposição tem porte menor.
NOTA 3: Os leões são catalogados como FMNH 23970 (para o primeiro) e FMNH 23969 (para o segundo). Tal numeração consiste no número pelos quais foram registrados no Museu Field.
NOTA 4: Sombra e Escuridão ou no original Ghost e Darkness, são nomes fictícios criados para o filme homônimo. Patterson historicamente não nomeou propriamente os leões que abateu.
NOTA 5: John Patterson escreveu outros três livros: um segundo sobre outra missão sua na África, intitulado In the grip of the nyika (1909), e os dois últimos sobre sua participação na Primeira Guerra Mundial ao lado de judeus, With Zionists in Gallopili (1916) e With the Judeans in the Palestine Campaign (1922).
NOTA 6: Patterson lutou na Primeira Guerra, inclusive comandando tropas de judeus, pois ele era defensor da causa sionista, defendendo a criação do Estado de Israel.
Referências bibliográficas:
PATTERSON, John H. The man-eating lions of Tsavo. Chicago, Field Museum Natural History, 1925.
PETERHANS, Julian C. Kerbis; GNOSKE, Thomas Patrick. The science of "Man-Eating" among lions Panthera leo with a Reconstruction of the Natural History of the "Man Eaters of Tsavo". Journal of East Africa Natural History, v. 90, n. 1, 2001, p. 1-40.
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