No ano de 1832, o jovem Charles Robert Darwin (1809-1882), partiu numa viagem de volta ao mundo abordo do HMS Beagle, em uma expedição naturalista. Com então 23 anos, Darwin ainda estava longe de ser o mundialmente conhecido naturalista que escreveu A origem das espécies (1859), no entanto, foi nessa viagem que ele coletou suas primeiras amostras e dados para os estudos que realizaria nas décadas seguintes. E nos primeiros meses de 1832, o primeiro país que Darwin visitou nas Américas, foi o Brasil, terra pela qual ele ficou deslumbrado pela riqueza natural e cultural, mas também ficou assombrado pela escravidão e a corrupção. Neste texto, utilizei passagens do diário de viagem de Darwin, para apresentar as impressões que ele teve acerca da escravidão no Brasil, algo que o marcou.
O jovem Charles Darwin visitou o Brasil duas vezes, em 1832 e 1836, permanecendo quase seis meses no país. |
No dia 16 de fevereiro, Darwin avistou os Rochedos de São Pedro e São Paulo, o primeiro contato com terras brasileiras. Quatro dias depois o Beagle chegou ao arquipélago de Fernando de Noronha, o primeiro lugar do Brasil que Darwin teve contato, e achou deslumbrante a paisagem. Nove dias depois a expedição aportou em Salvador, na Bahia, onde permaneceram 18 dias. Nesse tempo, Darwin aproveitou para visitar as florestas, conhecer a cidade, observar seus costumes, vivenciar o Carnaval, festa que ele disse ser bastante animada, barulhenta e até inconveniente, pois havia foliões que pregavam travessuras, atirando balões de água e jogando farinha nos transeuntes. Em Salvador ele relatou suas impressões quanto a grande concentração de pessoas negras naquela cidade, e que elas eram escravizadas. Todavia, em sua estadia na Bahia, Darwin não deu muita atenção a escravidão, pois estava interessado em sua pesquisa. Somente quando ele chegou ao Rio de Janeiro é que seus comentários se tornam mais nítidos.
O Beagle aportou no Rio de Janeiro em 4 de abril, Darwin permaneceu naquela província por 93 dias. Ele se hospedou numa casa alugada no bairro do Botafogo, próximo ao Corcovado. Darwin relatou sua primeira má impressão quanto a burocracia brasileira, dizendo que os funcionários eram desatenciosos, lerdos e mal-educados. Mas foi no dia 8 de abril, enquanto ele visitava a Fazenda de Itaocaia em Maricá, Darwin relatou sua primeira impressão negativa sobre a escravidão. No dia seguinte ele e seus companheiros avistaram um grupo de capitães-do-mato que se dirigiam para reaver escravos fugidos, pois naquelas terras havia um quilombo. Darwin avistou parte do ocorrido, em que um grupo de escravos foi encurralado próximo a um precipício, no qual uma idosa preferiu pular para a morte do que voltar a ser escrava. Aquilo o chocou, inclusive ele disse que se fosse uma nobre senhora romana que cometesse suicídio, seria ovacionada por seu "amor à liberdade", mas no caso daquela idosa, era um ato de desespero. (DARWIN, 1839, p. 20).
Em 13 de abril, em visita a Fazenda do Sossego, em Conceição de Macabu, Darwin relatou novos testemunhos. Ele ficou três dias hospedado naquela fazenda que pertencia ao senhor Manuel Figueiredo. Darwin escreveu que as refeições durante sua estadia ali eram bastantes fartas, porém, durante o almoço e o jantar, não era incomum ver cães e crianças negras mendigando sobras de comida. E quando aquilo se tornava bastante inconveniente, o senhor Figueiredo mandava algum empregado afastar aqueles cães e crianças. Nesse ponto, Darwin diz que enquanto a escravidão perdurasse, cenas como aquela seriam consideradas comuns. (DARWIN, 1839, p. 24).
Apesar dessa reprovação quanto ao trato dado aos escravizados, Charles Darwin ainda se mostrava um homem ingênuo naquela época. Ele chegou a escrever que achava que os escravos levassem uma vida feliz em algumas fazendas, pois nos sábados e domingos, seria seu "dia de folga", em que eles trabalhavam para si e suas famílias. E como a terra era fértil, bastava apenas aqueles dois dias de trabalho, para conseguir o sustento pelo resto da semana. (DARWIN, 1839, p. 24).
Ainda em visita na Fazenda Sossego, Darwin relatou que o senhor Figueiredo estava com dívidas, ele não sabia exatamente os detalhes, mas teve um dia que ele pediu para reunir mulheres e crianças de trinta famílias, pois esses seriam vendidos no Rio de Janeiro, para quitar tais dívidas. Filhos seriam separados de suas mães e vendidos individualmente. Darwin diz que aquela cena era infame, era um ato sem compaixão, desumano, de puro interesse egoísta. (DARWIN, 1839, p. 25).
Posteriormente, ele comentou outra surpresa que o chateou. Ele estava conversando com um escravo numa balsa, o qual não entendia inglês, então Darwin diz que gesticulou para ele e ao aproximar sua mão do rosto do homem, esse se encolheu como se estivesse prestes a ser surrado. Darwin disse que ficou surpreso com aquilo, pois era um homem grande, mas que segundo ele, "havia sido domesticado" para se acovardar diante da mão de seu senhor. Ato que ele comparou aos animais quando eram treinados para se amedrontarem diante de seus donos. (DARWIN, 1839, p. 25).
No restante do mês de abril e ao longo de maio e junho, o diário de Charles Darwin quanto a sua estadia no Brasil, centra-se em seus comentários sobre seu trabalho como naturalista, e breves menções de cunho sociológico. No dia 5 julho o Beagle deixou o Rio de Janeiro partindo para o Uruguai. Darwin somente retornaria ao Brasil, quatro anos depois.
Em agosto de 1836 o capitão FitzRoy que comandava o Beagle, optou em fazer nova parada no Brasil, pois originalmente a rota prevista deveria seguir para Cabo Verde, mas os ventos não eram favoráveis, o que atrasaria não apenas a viagem, mas poderia levá-los a se afastarem bastante da costa africana, adentrando o Atlântico Sul, com isso, FitzRoy aproveitou para usar as correntes marítimas que vão da África a América do Sul, retornando a Salvador. Após cinco dias de estadia na capital baiana, o Beagle zarpou para Recife, em Pernambuco. A expedição chegou ao Recife no dia 7 de agosto e permaneceu ali até o dia 12, enquanto aguardava bons ventos para seguir viagem para Cabo Verde. Foi em Recife que Darwin teve seu último aborrecimento com a escravidão brasileira.
Além de visitar Recife, ele também passeou por Olinda, onde se encantou com belos jardins e até pediu permissão de visitar alguns para fazer anotações, mas os proprietários se negaram. Darwin relatou em seu diário que havia brasileiros muito rudes e pouco afeitos aos estudos, mas num país onde vigorava intensamente a escravidão por séculos, era de se esperar ser uma degradação moral. (DARWIN, 1839, p. 528).
No relato do dia 19 de agosto, já tendo deixado o Brasil, Darwin escrevia com lamento sobre alguns atos vis que testemunhou naquele país. Ele escreveu que certa vez em Pernambuco, passava ao lado de uma casa, onde ouvia os gritos de um negro que estava sendo espancado (ou torturado como ele escreveu), mas infelizmente ele lamentou que nada pudesse ter feito naquela ocasião, pois era comum num país escravocrata, bater nos escravos. Ele comentou que aquilo lhe gerou pesadelos, pois toda vez que despertava com alguém gritando à noite, lhe vinha a memória aquele ocorrido. Aquilo o fez lembrar de recordações de 1832, onde ele também relatou que uma casa vizinha na qual ele esteve hospedado em Botafogo, havia uma senhora que usava pregos para castigar suas escravas, fazendo-as pisar nos mesmos. Depois ele comentou que ficou numa casa, onde um jovem escravo era insultado e ameaçado todo o tempo, cena que dava pena. Em alguns momentos ele levava alguns tapas. Darwin diz que nem mesmo animal merecia isso. Ele também comentou que viu e ouviu outros relatos repulsivos, mas preferiu não escrevê-los, para não se aborrecer ainda mais, e mesmo que ele tenha reclamado algumas vezes, nada adiantava, pois a escravidão era legalmente aceita e considerada um "mal necessário". Darwin nesse ponto de seu diário agradece a Deus por estar indo embora do Brasil e prometeu que nunca mais voltaria a pisar num país escravocrata. (DARWIN, 1839, p. 530).
Apesar de sua péssima impressão sobre o Brasil quanto aos valores morais e éticos, em que Darwin condenou a escravidão, a corrupção, a imoralidade, a ignorância, a falta de educação, por outro lado, sua pesquisa foi bastante produtiva, pois ele coletou centenas de amostras e dados. No entanto, seu testemunho sobre a crueldade da escravidão, somente o fez ter mais convicção de manter suas ideias abolicionistas, algo já defendido por seu avô Erasmo Darwin.
NOTA: Darwin relatou um caso que ele testemunhou na colônia espanhola, a qual ele não nomeou. Disse que certa vez estava numa casa, onde um menino de seis ou sete anos, foi lhe levar um copo de água, mas o dono dele disse que o garoto pegou um copo sujo e começou a dar tapas na cabeça do menino. O pai da criança estava presente no recinto, mas estava acuado na parede, ele via seu filho ser espancado, mas não podia agir, pois seria pior. Darwin disse que não aguentou a cena e levantou-se, indo reclamar com o dono da casa. Ele não fornece mais detalhes sobre o que sucedeu.
NOTA 2: Charles Darwin prometeu que jamais pisaria em outro país escravocrata, de certa forma sua promessa foi cumprida. Ao retornar a Inglaterra, o governo havia abolido a escravidão em 1834. Após a volta ao mundo, Darwin passou o restante da sua vida na Inglaterra.
NOTA 3: No ano da visita dele em 1832, o imperador D. Pedro I havia abdicado do trono brasileiro e voltado para Portugal. As duas vezes que visitou o país, o Brasil se encontrava no período regencial (1831-1840), pois o infante Pedro II, era uma criança ainda.
NOTA 4: Embora Darwin critique os brasileiros, chamando-os de ignorantes e mal-educados, é preciso ter cuidado com a compreensão de tais comentários. Ele como um homem de seu tempo, era imbuído por uma visão eurocêntrica de superioridade, em que os europeus se consideravam melhores do que os demais povos. Então gestos simples poderiam ser mal interpretados por conta desse pensamento. Porém, Darwin estava certo quanto a burocracia morosa, a escravidão hipócrita e violenta, e a corrupção.
Referência bibliográfica:
DARWIN, Charles. A Naturalist's Voyage round the World. 1839. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/3704/3704-h/3704-h.htm#chi.
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