Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

sábado, 25 de dezembro de 2021

O Papai Noel vestido de vermelho foi inventado pela Coca-Cola?

É comum no período natalino essa velha história vir a tona, onde alguém metido a sabichão diz que a Coca-Cola inventou o Papai Noel trajado de vermelho, pois antes disso, ele usaria roupas verdes ou de outras cores. O problema é que essa informação equivocada acabou gerando um Efeito Mandela até hoje difundido, em que pessoas realmente acham que a cor vermelha foi atribuída pela Coca-Cola e não existia antes de ela ter feito isso. Todavia, neste breve texto mostro que realmente houve uma influência da empresa de bebidas, mas não da forma como as pessoas pensam.

De qualquer forma, é preciso remontar na História para saber algumas informações sobre o personagem do Papai Noel. Primeiro, ele foi inspirado em São Nicolau de Mira (?-350), o qual tornou-se com o tempo um santo bastante venerado em alguns países do leste europeu. Todavia, não se sabe exatamente quando surgiu a história de que Nicolau em determinada época do ano, dava presentes para crianças, já que o santo ficou mais conhecido no medievo como um taumaturgo - um fazedor de milagres. No entanto, durante o século XVI, em países de origem germânica como Alemanha, Bélgica, Países Baixos, Áustria e Suíça, surgiu em alguns lugares a Festa de São Nicolau, celebrada entre os dias 5 e 6 de dezembro

Nestas datas alguns homens vestiam-se como o santo, usando longas capas, mira, cajados e barbas postiças as vezes. Os trajes eram nas cores marrom, preto, cinza e depois vermelho. Tais homens eram chamados de Sinterklaas, um acrônimo do nome São Nicolau. Em algumas localidades o santo que dava presentes para crianças, ganhou companheiros como Pedro Preto, anjos, duendes e o demônio Krampus. Posto isso, ainda hoje essa tradição de Sinterklaas é realizada em algumas cidades neerlandesas, alemães, suíças e austríacas. E tais tradições influenciaram diretamente a ideia que temos hoje do Papei Noel, pois por volta do século XVII, Sinterklaas chegou à Inglaterra, sendo renomeado como Santa Claus ou Father Christmas. 

Ilustração de Sinterklaas para o livro The Children's Friend, number III (1821).

A imagem acima já responde a pergunta se a Coca-Cola inventou o Papai Noel vestido de vermelho. No caso, a ilustração que postei, data de 1821, porém, a Coca-Cola somente foi fundada em 1886. No entanto, seria demasiadamente simples encerrar o texto por aqui, logo, vou continuar minha explanação. 

A figura de Santa Claus ou Papai Noel como é conhecido no Brasil, não teve grande impacto na Inglaterra entre os séculos XVII e XVIII devido a onda conservadora protestante. Todavia, no século XIX, Santa Claus começou a ganhar destaque, e o mesmo ocorreu nos Estados Unidos, os quais herdaram a tradição do bom velhinho que no dia de Natal levava presentes para as crianças. No caso, salienta-se que a versão atual do Papai Noel com seu trenó puxado com renas, vivendo no Polo Norte, tendo elfos ou duendes fazendo os brinquedos e viajando nos dias 24 e 25 de dezembro, é algo desenvolvido ao longo dos séculos XIX e XX. 

No caso dos EUA, o ilustrador Thomas Nast (1840-1902) ficou famoso por suas ilustrações do Papai Noel. Nast concedeu algumas características marcantes ao personagem, como a forma física mais gorducha ou gorda, um rosto gentil, nariz redondo, bochechas avermelhadas, gorro, casaco e calças, já que outras representações do período, sobretudo, na Europa, representavam o personagem geralmente magro e alto, usando sobretudo ou túnica. 

Nast desenhava o Papai Noel desde 1863, mas a versão acima data de 1881, sendo uma das mais clássicas dele, que originalmente saiu em preto e branco e depois foi colorida. 

No entanto, enquanto isso era sendo moldado e consolidado, Papai Noel naquele período nem sempre usava roupas vermelhas. Existem ilustrações do século XIX mostrando o bom velhinho vestido de verde, azul, branco, cinza, marrom, roxo, etc. 

Cartões natalinos mostrando o Papai Noel usando trajes de outras cores. A datação é incerta, datando de entre 1870 e 1910. 

De qualquer forma, no começo do século XX, tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido havia se formalizado a preferência pela cor vermelha, já que tradicionalmente ela remetia ao Sinterklaas, mas também por ser uma cor associada com o Natal e Jesus Cristo. Por conta disso, a partir do século XX, as representações do Papai Noel começaram a dar preferência as vestes vermelhas, embora as outras cores ainda fossem encontradas, mas em menor uso. 

Mas finalmente para concluir essa breve exposição, de onde veio a ideia de que a Coca-Cola inventou a cor vermelha das roupas do Noel? Isso é algo que surgiu na década de 1930. Embora que dez anos antes, a empresa já fizesse anúncios natalinos usando Santa Claus trajados de vermelho, baseados no modelo vigente desde o século XIX. A diferença foi que em 1931, a Coca-Cola contratou o ilustrador Haddon Sundblom (1899-1976) para desenhar um novo Papai Noel para as propagandas natalinas. O artista inspirado numa descrição do personagem advinda de um poema natalino de 1822, concebeu um homem idoso, gordo, de nariz redondo, face gentil e alegre, bochechas vermelhas, vestido de vermelho, e que voava num trenó puxado por renas e ia entregar presentes na Véspera de Natal. Para completar, Papai Noel também aparecia bebendo o refrigerante da empresa. 

O famoso Papai Noel da Coca-Cola surgiu em 1931 e criou a falsa ideia de que a empresa inventou ele vestido de vermelho. 

Sundblom fez várias ilustrações do personagem pelos anos seguintes, e por conta de que a Coca-Cola era uma marca mundialmente conhecida, logo, surgiu a associação dela com o Papai Noel e em algum momento indeterminado e não se sabe o motivo, surgiu o Efeito Mandela de que a empresa teria sido a responsável por inventar os trajes vermelhos do personagem. 

NOTA: O farmacêutico John Pemberton (1831-1888) inventou em 1884 uma bebida energética e alcóolica a base de folhas de coca e noz-de-cola, no entanto, com o crescimento de movimentos antiálcool nos EUA, Pemberton para não ter problemas com as autoridades e perder clientes, mudou a fórmula em 1886, removendo o álcool e usando água gaseificada, e assim surgiu o refrigerante de cola. No entanto, o produto não foi um sucesso e Pemberton vendeu a fórmula. Anos depois em 1893, o empresário Asa Griggs Clander registrou a marca Coca-Cola, nome sugerido por Frank Robinson, amigo e sócio de Pemberton. Com algumas alterações na fórmula, o refrigerante começou a ficar conhecido aos poucos. 

Referências bibliográficas:

BOWLER, Gerry. Papai Noel: uma biografia. São Paulo, Planeta do Brasil, 2007. 

Referências da internet: 

Cinco coisas que você não sabia sobre o Papai Noel e a Coca-Cola

Links relacionados: 

Krampus e os festejos natalinos sombrios

Papai Noel supliciado

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O rei das serpentes: o basilisco

O basilisco é um animal fantástico citado por estudiosos e escritores desde a Antiguidade, e até mencionado em algumas traduções da Bíblia. Chamado por alguns de regulus (pequeno rei), o basilisco teve sua lenda alterada ao longo dos séculos, sendo retratado como uma serpente, um dragão-galo, um lagarto de muitas patas, entre outras formas. O presente texto procurou contar um pouco sobre esse animal fabuloso que teria um veneno mortal e um olhar que poderia transformar em pedra como a Medusa fazia de acordo com os mitos gregos. 

O basilisco como serpente

Não se sabe quando a lenda do basilisco surgiu, todavia, ela é bastante antiga, sendo conhecida na Roma Antiga e na Grécia Antiga. Naquele tempo esse animal era considerado como uma espécie de cobra, sendo uma das mais perigosas conhecidas. 

O erudito romano Plínio, o Velho (23-79) em seu volumoso estudo sobre a natureza, intitulado História Natural, escreveu sobre o basilisco no livro VIII, capítulo 33. Ele inicia o capítulo dizendo que o basilisco conteria o mesmo olhar mortífero encontrado no catopeblas, uma espécie de búfalo ou antílope horripilante, que matava apenas em olhar a vítima. Segundo Plínio, a criatura viveria na África. Contudo, informando essa comparação com o catopeblas, ele escreveu o seguinte sobre o basilisco:

"Há o mesmo poder também na serpente chamada basilisco. É produzida na província de Cirene, tendo não mais do que doze dedos de comprimento. Possui uma mancha branca na cabeça, lembrando fortemente uma espécie de diadema. Quando sibila, todas as outras serpentes fogem dela: e ela não avança seu corpo, como as outras, por uma sucessão de dobras, mas se move ao longo da vertical e ereto no meio. Ele destrói todos os arbustos, não apenas por seu contato, mas até mesmo aqueles sobre os quais soprou; queima toda a grama também e quebra as pedras, tão tremenda é sua influência nociva. Antigamente, era uma crença geral que se um homem a cavalo matasse um desses animais com uma lança, o veneno iria subir na arma e matar, não apenas o cavaleiro, mas também o cavalo. Para esse monstro terrível, o eflúvio da doninha é fatal, algo que foi tentado com sucesso, pois os reis muitas vezes desejaram ver seu corpo quando morto; tão verdade é que agradou à natureza que nada houvesse sem seu antídoto. O animal é jogado no buraco do basilisco, que é facilmente conhecido pelo solo ao seu redor estar infectado. A doninha destrói o basilisco com seu odor, mas morre nessa luta da natureza contra si mesma". (PLÍNIO, liv. VIII, cap. 33, tradução minha). 

A descrição de Plínio nos fornece alguns dados interessantes: ele informa que o basilisco seria uma serpente, mas diferente do que normalmente vemos retratado nas mídias atualmente, em que esse animal é representado como uma colossal serpente, Plínio escreveu que se tratava de uma cobra pequena que possuiria uma marca branca na cabeça, que lembraria um diadema. Ele também comenta que o basilisco viveria em Cirene, uma antiga colônia grega situada na Líbia, no continente africano. 

Não obstante, Plínio relatou que o basilisco se locomovia de forma peculiar, tendo metade do corpo sempre ereta. Além disso, sua presença nociva fazia a terra ficar ruim e as plantas morrerem. Apesar de ser uma cobra perigosa que mataria com um olhar - nota-se que ele não falou em olhar petrificante - no entanto, o basilisco era vulnerável a doninha, animal resistente ao mortífero olhar da criatura e que poderia abatê-la. Realmente doninhas caçam alguns tipos de cobra, e sendo o basilisco descrito por Plínio como uma pequena serpente, logo, por tal lógica, uma doninha conseguiria abatê-lo. 

A descrição de Plínio influenciou poetas, escritores e estudiosos romanos e gregos nos séculos seguintes, os quais escreveram sobre o basilisco tomando algumas informações dadas por Plínio, mas as vezes acrescentando novos dados sobre essa fantástica serpente. 

Ilustrações do basilisco para o livro Icones animalivm qvadrvpedvm viviparorvm et oviparorvm, 1560. 

O arcebispo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) um dos doutores da Igreja, redigiu uma enciclopédia natural intitulada Etimologias. No capítulo dedicado a abordar as serpentes, Isidoro escreveu o seguinte sobre o basilisco:

“6. ‘Basilisco’ (basiliscus) é uma palavra grega traduzida para o latim como "pequeno rei" (regulus) [...], porque é o rei das cobras, fazendo que elas fujam quando o veem, porque ele os mata com seu odor - também mata um humano se olhar para um. Na verdade, nem um pássaro voando pode passar ileso pela face do basilisco, pois por mais distante que esteja, ele é queimado e devorado pela boca deste animal. 7. No entanto, o basilisco pode ser derrotado por doninhas. Por esta razão as pessoas pegam doninhas e as colocam em cavernas onde o basilisco está escondido; e enquanto o basilisco a observa, a doninha o persegue, o abate e o mata. Assim, o Criador da natureza estabelece nada sem remédio. Tem meio pé de comprimento e marcado com manchas brancas. 8. Basiliscos, como escorpiões, procuram por lugares secos, e quando vão para a água, passam a serem hidrofóbicos. 9. O sibilo (lit. "o sibilante) é o mesmo que o basilisco, e mata por meio de um assovio, antes de morder e queimar”. (ISIDORO, 2006, p. 255, tradução e adaptação minha). 

O relato de Isidoro, redigido no século VII, ainda conserva alguns aspectos vistos na descrição de Plínio, em se referir ao basilisco como uma pequena serpente, que exalaria um odor forte e mortífero; embora que neste caso, Isidoro não informou que esse mal cheiro seria prejudicial as plantas, mas seria mortal para outras cobras. No entanto, ele confirmou a condição de o basilisco possuir um olhar mortífero que mataria animais e pessoas, e novamente a doninha seria imune a isso. Entretanto, Isidoro trouxe três dados novos: basiliscos teriam um hálito quente, embora ele não diga que eles cuspiriam fogo, mas nota-se uma aproximação com os dragões; segundo, ele informou que tais serpentes eram hidrofóbicas, ou seja, temiam a água; terceiro, o sibilo era outro nome para o basilisco. 

O filósofo, teólogo e professor Alexander Neckam (1157-1217) em seu livro enciclopédico intitulado De Rerum Naturis, obra que reunia vários conhecimentos sobre história natural, o autor comenta sobre o basilisco. No caso, Neckam o redigiu em latim e de forma poética, sendo difícil compreender algumas de suas passagens. 

Na seção sobre as plantas, no capítulo LXV, Neckam escreveu que existia uma planta chamada "planta basilisco", a qual brotaria em locais onde tais criaturas viveriam, resistindo a seu mau odor e veneno. O autor pouco comenta a respeito, mas disse que essa planta poderia ser usada para manter o animal afastado. (NECKAM, 1863, p. 168). A menção a tal informação é um dado novo comparado aos outros autores aqui apresentados, e sendo raramente comentada em outras obras. 

“Basilisco é um mal singular na terra. A serpente possui quase um pé de comprimento; ela aflige o homem consagrado, outros animais, mas também a terra; contaminando-a e queimando-a. Finalmente ela queima a grama, mata as árvores, também destrói o próprio ar, de modo que não há outro alimento no ar, ela parte impunemente. Ao se mover, a parte do meio do corpo fica erguida. Quando ela assovia outras serpentes se apavoram, e quando elas a escutam, aceleram sua fuga o mais rápido que podem. Qualquer quem seja, ela mata com sua mordida, não se alimenta de animal selvagem, não é importunada por pássaros. Uma doninha adianta, conquistando o inimigo, fazendo o seu caminho para as cavernas em que ele se esconde [...]”. (NECKHAM, 1863, p. 198, tradução e adaptação minha).

Além dessas informações, Neckham (1863, p. 120) também relatou acerca da origem do basilisco. No capítulo LXXV, em que ela aborda sobre o galo, o autor redigiu que um galo velho colocava um ovo e se esse fosse chocado por um sapo, nasceria um basilisco. Tal ideia já existia anteriormente, embora nem todo estudioso a citasse, pois a considerava demasiadamente fabulosa, mesmo para a época. 

Séculos depois, outro doutor da Igreja, Alberto Magno (c. 1193-1280) em seu bestiário intitulado De Animalibus, no capítulo dedicado a abordar as várias espécies de serpentes, Alberto escreveu a respeito do basilisco. Por conta da descrição ser extensa, optei não em trazê-la integralmente. De qualquer forma, ele começou explicando o significado etimológico da palavra basilisco, dizendo que esse se devia pelo fato de aquela cobra possuir uma formação em sua cabeça que lembraria um tipo de coroa, por isso ser chamada de regulus (pequeno rei) em latim.

Em seguida, Alberto fornece uma descrição física do animal, novamente dizendo que seria uma pequena cobra que mediria dois palmos de comprimento, sua cabeça seria pontiaguda, ela teria olhos na cor vermelha, mas as vezes poderia ser nas cores preto ou cinza. O basilisco exalaria um fétido e mortífero odor que mataria plantas e animais. Para saber onde ficava a toca de um deles, bastava ver se a vegetação em torno não estava morta ou seca. No entanto, a doninha era o único bicho a resistir a isso. O basilisco mataria não apenas pelo seu odor característico, mas também por seu veneno, podendo inclusive cuspi-lo. Embora que Alberto fale também num "hálito venenoso" capaz de matar um homem mesmo a certa distância do animal. (ALBERTO MAGNO, 1987, p. 397). 

No entanto, um dado interessante é que Alberto Magno disse discordar de Plínio, o Velho dizendo que duvidava que o basilisco matasse alguém apenas com seu olhar mortal. Para ele isso seria um erro de interpretação, pois a causa da morte seria por conta do fedor da criatura e de seu veneno que era tão potente que mataria quase instantaneamente. (ALBERTO MAGNO, 1987, p. 397).

Adiante, o autor escreveu que os basiliscos seriam naturais da Núbia, na África. A doninha seria seu predador, pois era imune a seu fedor e veneno. Em lugares onde havia ninhos de basiliscos, os habitantes jogavam doninhas para se livrar deles. Neste ponto o autor comentou uma novidade, dizendo que alguns povos queimavam os corpos dos basiliscos e usavam suas cinzas para manter afastadas aranhas e outros bichos peçonhentos. E isso era usado em templos. (ALBERTO MAGNO, 1987, p. 398).

Já próximo de concluir seu comentário sobre o basilisco, Alberto Magno que era alquimista, diz que na alquimia as cinzas do animal teriam propriedades alquímicas significativas, embora ele não entre em detalhe. Não obstante, ele também disse ter ouvido que havia espécies de basiliscos alados, mas disse que nenhum estudioso sério que ele consultou falava disso. Além disso, Alberto Magno também recusou a hipótese de que basiliscos nasceriam de ovos colocados por galos, dizendo que isso era impossível. (ALBERTO MAGNO, 1987, p. 398).

Doninhas confrontando um basilisco. Gravura do bestiário MS. Douce 167, folio 8r, c. século XIV. 

O basilisco como um galo-dragão (cocatrice)

Embora atualmente a versão do basilisco como serpente gigante seja a mais comum nas representações artísticas, no entanto, durante a Baixa Idade Média e a Idade Moderna, sua versão como galo-dragão ou cocatrice foi a mais difundida iconograficamente. Fato esse que é muito mais fácil encontrar representações em estátuas, pinturas, desenhos, brasões, gravuras, etc. de cocatrices do que de basiliscos como serpentes.

As descrições de Isidoro de Sevilha (VIII) e Alberto Magno (XIII) influenciaram o relato do estudioso franciscano Bartolomeu da Inglaterra (c. 1200-1272), o qual redigiu uma enciclopédia natural intitulada De proprietatibus rerum. No livro XVIII ele abordou várias espécies animais e uma delas foi o basilisco. Basicamente seu relato é uma mistura das descrições de Isidoro e Alberto, no entanto, eu decidi citá-lo aqui, por conta da condição de que Bartolomeu disse que o basilisco também era conhecido pelo nomes de cocatrice ou cocatriz. Essa palavra era usada para se referir ao basilisco, principalmente em sua forma de galo-dragão ou galo-quimera.

Um cocatrice numa ilustração do bestiário lat. 6838B, folio 31r, Biblioteca Nacional da França, séc. XIV?

A palavra cocatrice vem do francês antigo cocatris, sendo usada para se referir a um monstro com corpo de galo e cauda de dragão ou de serpente. Não se sabe ao certo quando essa palavra surgiu, mas seu emprego para associá-la ao basilisco é algo referente a Baixa Idade Média, como visto no livro de Bartolomeu da Inglaterra, escrito no século XIII. Posteriormente outros autores passaram a usar cocatrice também como sinônimo de basilisco ou a se referir como um monstro próprio, embora que a cocatrix tivesse algumas características em comum com o basilisco, como o olhar mortífero, ser venenosa, exalar um odor mortífero, ser vulnerável a doninhas. 

Uma das possíveis interpretações para a bizarra aparência da cocatrix, advém da própria lenda do basilisco, especialmente das versões em que informavam que essa criatura nasceria do ovo de um galo chocado por um sapo. Por tal condição, nasceria um ser híbrido, metade galo e metade cobra, o que o tornava um tipo de quimera. 

Embora a cocatrice tenha asas, não se sabe se ela realmente podia voar, pois nem todo autor deixa isso claro. Além disso, o animal geralmente é descrito novamente como sendo pequeno, provavelmente do tamanho de um galo comum ou um pouco maior do que ele. Apesar que em representações visuais existam cocatrices de tamanhos variados. 

Um cocatrix sendo atacado por uma doninha com ramo de arruda. Desenho de Marcus Gheeraerts I, 1567. 

O basilisco como um lagarto

A terceira forma na qual o basilisco podia ser retratada e a menos usual de todas, em que ele era representado como um lagarto com quatro, seis ou oito patas, tendo uma corcunda, cabeça de galo e uma coroa. As vezes nas representações a coroa era literal, pois indicava seus suposto status de "rei das serpentes". A representação como um lagarto de várias patas parece ter surgido em algum período da Idade Moderna, sendo incerto o motivo para sua origem, pois não se sabe por qual motivo os estudiosos abandonaram a forma serpentiforme e a de galo. 

O basilisco. Melchior Lorck, 1548. 

O filósofo natural e notório Ulisse Aldrovandi (1522-1605), escreveu vários livros sobre a natureza, e um deles é dedicado as serpentes e dragões, cuja obra intitulada Serpentum et draconum historiae (1640), na qual ele abordava sobre o basilisco. Neste livro com linguajar confuso, Aldrovandi diz que o basilisco nasceria de um ovo colocado por um galo e chocado por um sapo, até aí, nenhuma novidade, ele apenas repetiu essa origem já citada séculos antes. Todavia, para o autor, o basilisco seria uma criatura mais parecida com um lagarto ou um dragão não alado, do que uma serpente ou galo. Fato esse que dentre as ilustrações feitas para sua obra, encontra-se um basilisco com oito patas. 

Aldrovandi também diz que o basilisco era uma espécie rara, oriunda da África, e que seria parecida com um pequeno dragão. Ele citou o caso de antiquaristas que alegavam possuírem fósseis ou exemplares empalhados desse animal. De fato, na época de Aldrovandi a falsificação de animais fantásticos ocorria, sendo principalmente motivada pela condição de que os europeus estavam explorando as Américas, África e Ásia, logo, viajantes, caçadores e antiquaristas alegavam possuírem exemplares de espécimes exóticas e raras. Em alguns casos tratavam-se de falsificações de unicórnios, dragões, grifos, entre outras criaturas. 

O basilisco como um lagarto com oito patas e cabeça de galo. Ilustração para o livro Serpentum et draconum historiae (1640) de Ulisse Aldrovandi. 

A ideia do basilisco como um lagarto inspirou o famoso médico, botânico e zoólogo sueco Carlos Lineu (1707-1778), o qual criou a taxinomia, a qual classifica os seres vivos em classes, famílias, espécies, etc. No caso, Lineu ao classificar uma espécie de pequeno lagarto nativo das Américas o nomeou de Basiliscus basiliscus

Fotografia de um lagarto basilisco comum, tirada na Costa Rica. Essa espécie teve seu nome dada em homenagem a lendária criatura. 

O basilisco citado na Bíblia?

A presença do basilisco nas páginas da Bíblia é real, porém, é fruto de alterações no texto. Apesar de na Bíblia mencionar outros monstros como dragões, gigantes, lâmia, leviatã, beemote, escorpiões com cara de leão, bestas com várias cabeças, etc., no entanto, as menções ao basilisco não são genuínas, pois os tradutores em alguns idiomas optaram em fazer essa substituição. No caso, substituíram palavras como víbora e áspide por basilisco. Vejamos os exemplos a seguir.

"Não olhes para o vinho, quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo e ecoa e se ecoa suavemente. No fim picará como a cobra e como o basilisco morderá". (Provérbios 23:31-32), Versão Almeida Atualizada em língua portuguesa. 

"Não olhes para o vinho: como é vermelho, como brilha na taça, como escorre suave. No fim ele morde como a cobra e fere como a víbora". (Provérbios 23:31-32), Versão da Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa.

"E brincará a criança de peito sobre a toca da áspide, e a já desmamada colocará a sua mão na cova do basilisco." (Isaías 11:8), Versão Almeida Atualizada em língua portuguesa. 

"A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da víbora". (Isaías 11:8), Versão da Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa.

"Porque eis que envio entre vós serpentes e basiliscos, contra os quais não há encantamento, e vos morderão, diz o SENHOR." (Jeremias 8:17), Versão Almeida Atualizada em língua portuguesa.

"Sim, eis que envio contra vós serpentes venenosas, contra as quais não há encantamento, e elas vos morderão, oráculo de Iahweh". (Jeremias 8:17), Versão da Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa.

Outras traduções mais recentes para o português, inglês, espanhol e outros idiomas, já retiraram a menção ao basilisco, a qual constava em versões mais antigas. 

NOTA: No livro Harry Potter e a Câmara Secreta (1998), um basilisco guarda a câmara. A criatura não é tão gigantesca como retratada no filme, além disso, nesta versão, o monstro possui um veneno mortífero, pode matar com um olhar ou transformar em pedra quem o veja de forma indireta. Também é dito que o basilisco temia o canto dos galos, por conta disso, tais animais aparecem mortos. 

NOTA 2: No jogo The Witcher 3: Wild Hunter (2015), basiliscos e cocatrices são animais parecidos, mudando apenas a coloração. Ambos são retratados como galos-dragões. Já na série The Witcher, o basilisco se parece com um dinossauro. 

NOTA 3: No jogo God of War: Chains of Olympus (2008), o basilisco é um grande dragão, não tendo aparência de serpente, galo ou lagarto de várias patas. 

NOTA 4: Em vários jogos de RPG ou de aventura, basiliscos aparecem de diferentes formas, e geralmente estão associados como tendo uma picada bastante venenosa ou petrificando as pessoas com o olhar. 

NOTA 5: A ideia de que o basilisco transformaria em pedra com seu olhar, é uma invenção literária, não constando nos autores antigos, medievais e modernos que descreveram esse monstro. 

Referências bibliográficas: 

ALBERT the Great. Man and Beasts: De animalibus (books 22-26). Translated by James J. Scanlan, M.D. New York, Medieval & Renaissance texts & studies, 1987. 

ALDROVANDI, Ulisse. Serpentum et draconum historiae. [s.l], M. Antonij Berniae bibliopolae Bononiensis, 1640. 

ISIDORE of Seville. The Etymologies. Cambridge, Cambridge University Press, 2006. 

NECKHAM, Alexander. De Naturis Rerum, book II. Edited by Thomas Wright. London, Longman, Roberts and Green, 1863. 2v

Referências da internet:

Pliny the Elder. The Natural History

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A invenção do Futebol

A história da origem ou invenção do Futebol é marcada por equívocos. Ao longo da História houve jogos nos quais pessoas chutavam bolas, mas não se pode afirmar que isso fosse futebol, logo, dizer que o esporte surgiu a partir de jogos chineses, japoneses, romanos, gregos e italianos é errado, pois tais jogos eram outra coisa. É como dizer que um jogo em que se joga uma bola com as mãos seria basquete, ou handebol, ou vôlei. Não faz sentido afirmar isso, pois a forma como se movimenta uma bola, não necessariamente a define como uma modalidade esportiva específica.  

Por outro lado, há quem diga que o futebol foi criado na Inglaterra, tendo surgido durante o período medieval, em data incerta, pois os ingleses jogavam jogos em que chutavam bolas, mas essa afirmação também é problemática, pois não se trataria de futebol propriamente como será visto adiante. Mas adiantando uma resposta, o futebol realmente surgiu na Inglaterra, mas no século XIX. 

Antecedentes: 

Não se sabe quando surgiram os primeiros jogos ingleses os quais utilizavam bolas, porém, registros do século XII já mencionam brincadeiras em que homens chutavam bolas, formando equipes para disputar um jogo com poucas regras, e até mesmo jogado de forma indisciplinada, suja e violenta. Durante o reinado de Eduardo III da Inglaterra (1312-1377), no ano de 1331, o monarca expediu um decreto proibindo jogos com bolas, pois estavam gerando problemas públicos em que times aproveitavam para competir e brigarem entre si. Além disso, os jogos também eram utilizados para se fazer apostas, insultar ou atacar inimizades, levar o confronto de "grupos rivais". Por conta disso, o monarca proibiu o "futebol primitivo" em seus domínios. 

No século XIV os jogos de bola careciam de regras específicas, em geral elas determinavam que apenas homens pudessem disputar, e deveriam chutar ou arremessar uma bola de couro até o lado do campo adversário. Todavia, os jogos não possuíam limites de tempo, não haviam faltas de ataque ou de defesa, já que não era incomum os jogadores agredirem seus oponentes com chutes, socos, tapas e cotoveladas, embora fosse vedado o uso de armas, além de ser proibido tentativas de assassinato; além disso, não havia uma regulamentação para o campo, o qual possuía limites variáveis, geralmente sendo jogado na terra. A quantidade de jogadores por equipe e suas funções, também não era definidas com clareza, mudando de lugar para lugar.

Apesar do rei Eduardo III ter proibido o "futebol", esse ainda era jogado de forma clandestina pela Inglaterra e Escócia, mas jogado até normalmente no País de Gales e na Irlanda, com outras regras. Nos séculos seguintes algumas autoridades voltaram a criticar o jogos de bola por serem considerado incentivadores de violência, maus hábitos, vadiagem, apostas, etc. Por outro lado, poetas e escritores escreveram sobre tais jogos, elogiando sua energia, ação e diversão, apesar das confusões e brigas. 

Entretanto, no século XVIII, esses jogos realizados em campos, terrenos e ruas, dariam origem ao rúgbi e ao futebol como conhecemos. Naquele século já se usava tais termos para se referir a esses dois jogos, que possuíam algumas variações entre si, porém, não existia uma norma unificada, fato esse que em cada cidade, escola, universidade, clube, havia suas próprias regras. Os times eram informais, geralmente formado por amigos, colegas e moradores de um bairro, ou membros de uma escola, universidade, fábrica, clube, etc. Não existia uma entidade desportiva que regulamentasse esses esportes, algo que somente veio a surgir no século seguinte. 

Uma partida de "futebol" entre os Thames e os Townsend, em Londres no ano de 1846. 

A regulamentação do futebol e sua oficialização: 

A palavra futebol, do inglês football, antecede a oficialização do jogo, embora nem sempre foi utilizada para se referir a um único tipo de jogo, fato esse, que o rúgbi antigo também era referido como futebol (condição essa que os americanos mantiveram até hoje com o chamado futebol americano que se originou do rúgbi). Sendo assim, usar a palavra para dizer que o futebol surgiu na Idade Média é problemático, pois o termo tinha mais de uma aplicação, apesar disso, a palavra acabou sendo bem aceita na língua inglesa, mas causava problemas de identificação, por conta disso, na década de 1840 decidiu-se criar dois tipos de futebol para delimitar suas diferenças. 

Dessa forma surgiu o futebol rúgbi, tendo como referência os colégios de Rugby e Cheltenham. No caso do Colégio de Rugby, o qual concedeu o nome ao esporte, em 1846, foram criadas regras específicas para melhor normalizar aquele desporto. Outros colégios, universidades, clubes e instituições passaram a seguir a Regra de Rugby, porém, os que não apreciavam jogar o "futebol com mãos" como era ferido o rúgbi, decidiram idealizar regras para o "futebol com os pés". Colégios como Charterhouse, Westminster, Eton, Harrow, Winchester e Shrewsbury passaram a reconhecer o chamado futebol de associação, como sendo o nome oficial da modalidade jogada com os pés. 

A Universidade de Cambridge em 1848, propôs algumas regras para isso, determinando que o futebol seria jogado apenas com os pés, sendo o uso das mãos para arremessar a bola fora de campo ou permitido ao goleiro; as equipes deveriam ter um número fixo e igual de jogadores, um árbitro deveria coordenar a partida para evitar agressões, desentendimentos e trapaças, etc. 

Regras de Futebol de Cambridge, em versão de 1856.

A Regra de Cambridge foi aceita por algumas instituições, mas não por outras. O Colégio Sheffield, em 1857, criou o primeiro time de futebol de associação, o chamado Sheffield Football Club, e em 1859 foi lançado a Regra de Sheffield, que influenciou outras instituições e times a seguirem elas nos jogos do futebol de associação. 

O brasão do Sheffield F. C, o mais antigo clube de futebol do mundo, fundado em 1857. 

A Associação de Futebol: 

Em 26 de novembro de 1863 foi criada em Londres, no The Freemanson's Tavern (um estabelecimento da elite londrina), a Associação de Futebol (Football Association), a primeira entidade esportiva de futebol do mundo, incumbida de organizar os times de futebol (na época em Londres havia 11 times reconhecidos), além de definir regras, normas técnicas e passar a propor os campeonatos oficiais, embora que anteriormente já houvessem partidas e campeonatos que ocorreram desde 1848. 

Não obstante, a AF decidiu unificar as regras de Cambridge e Sheffield,  para se tornarem a base legal de como o futebol de associação deveria ser jogado na Inglaterra. Nessa época instituiu-se que as equipes seriam formadas por 11 jogadores, as dimensões do campo teriam que ter 180x90 metros ou 200x100 jardas; criou-se as regras do impedimento, cobrança de faltas, duração da partida em 1h30min, etc. 

Nos anos seguintes a Associação de Futebol passou a ganhar novos membros, novos times, e ir atualizando e aperfeiçoando as regras, e realizar partidas. Suas regras influenciaram os clubes escoceses, galeses, irlandeses e franceses. 

Em 1871, a AF reconhecia 50 clubes ingleses e com isso foi decidido realizar eliminatórias para se disputar o primeiro campeonato nacional, que foi realizado em 1872, contendo 15 clubes que participaram da competição. Na ocasião o clube dos Royals Engineers, foi o campeão. 

O time dos Royals Engineers, o qual venceu a copa inglesa de 1872. 

Com o sucesso da Copa Inglesa de 1872, novos torneios foram sendo realizados nos anos seguintes, e associações de futebol surgiram na Escócia, País de Gales, Irlanda e França, além de que o futebol ganhou bastante entusiastas, sendo levado para outros países fora da Europa. No começo do século XX, o futebol de associação, ou simplesmente chamado de futebol, já era um esporte bastante popular em vários países.

NOTA: A regra do pênalti surgiu em 1891, a partir do futebol irlandês, passando a ser oficializada como regra geral. 

NOTA 2: O primeiro time oficial de futebol no Brasil foi o São Paulo Athletic Club, fundado em 1888. No começo do século XX surgiram vários times de futebol no país como o Sport Club Rio Grande (1900), o Ponte Preta (1900), o Náutico (1901), o Fluminense (1902), o Grêmio (1903), o Botafogo (1904), o Sport (1905), o Atlético Mineiro (1906), o Internacional (1909), o Coritiba (1909), Corinthians (1910), o Santos (1912) etc. 

NOTA 3: Salienta-se que o Flamengo embora surgido em 1895 como grupo de remo, somente em 1913 criou seu time oficial de futebol, antes disso houve times informais. O mesmo vale para o Vasco, que surgiu em 1898, mas somente em 1915 criou seu time oficial. O Náutico surgiu em 1898, mas em 1909 fundou seu time de futebol. 

NOTA 4: O British Ladie's Football Club surgiu em 1895, sendo o primeiro time inglês de futebol feminino. Na época, ainda era raro mulheres jogarem futebol, e mesmo após a criação do time, a liga feminina demorou para ser aceita e normalizada, fato esse que o time foi dissolvido em 1897, pois era considerado impróprio que mulheres jogassem futebol, esporte considerado sendo exclusivamente para homens. A realidade começou a mudar durante a Grande Guerra (1914-1918), em que o público feminino nos estádios tornou-se a maioria e times de mulheres passaram a serem mais comuns, o motivo devia-se que muito homens estavam servindo na guerra, e os clubes para não perderem público e receita, investiram nos times femininos. 

NOTA 5: Em 1904 foi criada a Federação Internacional de Futebol (FIFA), em Paris. Passando a ser a entidade mundial que rege campeonatos e regras. Condição essa que a FIFA tornou-se responsável por unificar toda as regras futebolísticas, resultando nas 16 regras que até hoje são utilizadas. Atualmente a FIFA reconhece 211 times internacionais, os quais representam países ou territórios. 

NOTA 6: A primeira Copa do Mundo foi realizada em 1930, no Uruguai, em que o país sede foi o vencedor. Por sua vez, a primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino somente surgiu em 1991

NOTA 7: A palavra soccer, usada principalmente nos Estados Unidos, surgiu na Inglaterra na década de 1880, sendo uma gíria para association football. Os estadunidenses adotaram soccer para diferenciar esse esporte do seu football, que é uma variação do rúgbi. 

NOTA 8: O futebol de salão ou futsal, teria surgido em 1934 no Uruguai, embora somente em 1949 foi oficializado com um conjunto de regras e normas. 

Referências bibliográficas:

CARTER, Neil. The Football Manager. London, Routledge, 2006. 

HURTADO, Alfredo Velarde. Futból: las primeras reglas. 2006.

Referências da internet:

The History of English Football

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

O rei de São Paulo

 O rei de São Paulo

Dr. Rodrigo Bentes Monteiro

Em 1823, o imperador do Brasil, D. Pedro I, comentou os motivos que o levaram a São Paulo em setembro do ano anterior, quando declarou a Independência às margens do Ipiranga: “Foi na pátria do fidelíssimo, e nunca assaz louvado Amador Bueno de Ribeira, onde pela primeira vez fui aclamado Imperador”. No discurso de D. Pedro, São Paulo foi valorizada como cenário do importante momento histórico por ter sido também a terra de Amador Bueno. Pouco mais tarde, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, o “pai” da História no Brasil, escreveria uma peça de teatro evocando o nome de Amador Bueno e seu “dignificante” exemplo. Mas que história é essa, lembrada nos tempos do Império do Brasil, mais de dois séculos depois de acontecida?

Litografia de Amador Bueno (c. 1584 - c. 1645). 

No cenário de meados do século XVII, os espanhóis que estavam no Brasil achavam que a capitania de São Vicente “e quase todo o sertão brasílico” poderiam ficar sob posse da Espanha se os paulistas se desmembrassem de Portugal. Propuseram então aos amigos, parentes e aliados que elegessem um rei paulista, indicando Amador Bueno de Ribeira. Os espanhóis usaram então todos os argumentos para convencer os “paulistas e europeus pouco instruídos” de que eles podiam não reconhecer por soberano um príncipe português a quem ainda não tinham jurado obediência: D. João IV, que acabara de ser aclamado, em 1640. Lembravam ainda, nessa investida, os milhares de índios e escravos que controlavam, podendo formar “exércitos formidáveis”, ajudados pela localização de São Paulo, isolada do mar pela serra. Amador Bueno vinha de próspera família com raízes hispânicas, com participação na Câmara da vila de Piratininga; possuía uma grande fazenda de trigo na qual trabalhavam muitos índios guaranis. Ele ficou pasmo ao ouvir a proposta e lembrou que todos deviam aceitar o destino do reino de Portugal. Mas a recusa do eleito aumentou a vontade do “povo ignorante”, que o ameaçou de morte caso não empunhasse o cetro.

O principal relato da aclamação de Amador Bueno é o de frei Gaspar da Madre de Deus (17151800), um padre que viveu entre Santos, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo chegado ao cargo de abade no Rio em 1766. Frei Gaspar foi autor das Memórias para a história da capitania de São Vicente, em que narrou a aclamação de 1641. A narrativa começa quando chega a São Paulo a notícia de que o duque de Bragança tinha sido aclamado rei de Portugal, com o nome de D. João IV. Segundo frei Gaspar, essa novidade foi um duro golpe para os espanhóis que moravam na vila de São Paulo e que queriam que aquelas povoações ficassem obedientes a Castela, e resolveram entre si usar do artifício da nomeação de Amador Bueno.

Amador Bueno teria saído de sua casa escondido, com a espada na mão, caminhando apressado para o Mosteiro de São Bento. Mas todos corriam atrás gritando: “Viva Amador Bueno, nosso rei!”. Ao que ele respondeu muitas vezes, em voz alta: “Viva o senhor D. João IV, nosso rei e senhor, pelo qual darei a vida!” Chegando ao mosteiro, fechou as portas e mandou chamar os padres mais respeitáveis. Juntos, convenceram os rebeldes de que o reino pertencia à dinastia Bragança. E todos, “arrependidos do seu desacordo”, foram aclamar D. João IV, “com mágoa dos espanhóis”, que também prestaram juramento de fidelidade ao novo rei.

Frei Gaspar exaltava nas Memórias o heroísmo dos primeiros povoadores, ligados às principais famílias da capitania de São Vicente. Dessa forma, foi contado o episódio da aclamação de Amador Bueno no século XVIII: obra dos espanhóis que tramaram para iludir os “paulistas e europeus pouco instruídos”. Estes, mesmo apoiando a aclamação rebelde, foram considerados pelo memorialista “honrados e fiéis vassalos”.

Frei Gaspar se correspondia com o amigo e primo Pedro Taques de Almeida Leme (17141777), que escreveu a Nobiliarquia paulistana a partir de informações de cartórios na capitania de São Paulo e suas vizinhas. Como parte desta genealogia, compôs, em 1742, a história dos Bueno, narrando também o feito da aclamação. Os documentos que comprovam os relatos são os mesmos: uma patente militar concedida a Manoel Bueno da Fonseca, neto do aclamado, em 1700, na qual se declara a lealdade de Amador Bueno. A patente foi confirmada pelo rei D. Pedro II de Portugal: “por ser neto de Amador Bueno que, sendo chamado pelo povo para o aclamarem Rei, obrando como leal e verdadeiro vassalo com evidente perigo de vida, exclamou dizendo que vivesse ElRei Dom João o quarto seu Rei e Senhor.

Os dois escritores foram contestados em seus relatos sobre Amador. Mais tarde, Moreira de Azevedo escreveria um artigo afirmando que frei Gaspar falsificou a patente passada ao neto do aclamado, concluindo que “não há documento algum que prove a aclamação e recusa da coroa por Amador Bueno, sendo este fato apenas uma tradição”. Mas por volta de 1926, Afonso Taunay defendeu a validade dos escritos de frei Gaspar, destacando a confusão feita por Moreira de Azevedo ao pesquisar no arquivo da Câmara de São Paulo, quando deveria ter pesquisado em São Vicente.

No entanto, para desvendar melhor toda essa questão que cerca a aclamação de Amador Bueno, é preciso conhecer o contexto paulista no século XVII: desde meados do século XVI, a capitania de São Vicente era a mais próspera das “capitanias de baixo”, que incluía as que se situavam ao sul da capitania do Rio de Janeiro e a própria São Vicente. Os habitantes das capitanias de baixo, principalmente os de São Vicente, eram os maiores caçadores de índios. A fim de conseguirem mãodeobra para suas plantações e casas, os paulistas organizavam expedições que entravam centenas de milhas pelo interior do continente, às vezes ao longo de anos.

Entre 1630 e 1680, época áurea da produção de trigo em São Paulo, o número de escravos índios aumentou, formando uma economia voltada para a população do litoral e para as frotas portuguesas. Amador Bueno, ele próprio, possuía centenas de índios cativos, que trabalhavam em culturas de trigo, milho, feijão e algodão, e também na criação de porcos, gado, cavalos e ovelhas. Eram os jesuítas que, desde o século XVI, se colocavam como intermediários nas negociações entre os índios e os colonos de São Paulo, por meio de um projeto de aldeamentos missionários. Mas era comum que os indígenas se recusassem a trabalhar ou que voltassem para as aldeias assim que recebiam o pagamento, sem terminar os serviços. Além disso, uma série de doenças comprometia o sucesso das missões na região. Os paulistas, portanto, resolveram assumir a gestão do trabalho indígena e começaram a acusar os padres de atrapalharem suas atividades.

A reação dos jesuítas foi imediata: enviaram procuradores a Roma e a Madri e conseguiram a publicação na América, em 1639, de uma antiga bula feita em 1537 a favor dos índios do Peru, que declarava que seriam excomungados os que cativassem, vendessem ou usassem o serviço dos índios. Depois da sua divulgação em São Paulo, os conselhos municipais daquela vila e do Rio resolveram expulsar os jesuítas da capitania de São Vicente. Naquele ano de 1640, na “botada dos padres fora”, as propriedades dos jesuítas foram confiscadas e a administração das aldeias foi transferida para o poder público.

No Rio, com o auxílio do governador Salvador Correia, os jesuítas propuseram uma conciliação, em que cada lado cedesse um pouco. Os habitantes da vila de São Vicente, também por intervenção de Salvador Correia, fizeram como os do Rio: negociaram. Mas em São Paulo, apesar dos esforços do governador, os paulistas enfrentaram suas ameaças, fazendo bloqueios nos caminhos e impedindo sua chegada ao planalto. Os paulistas elaboraram então, em 1642, um longo memorial, enviado por seus procuradores à corte portuguesa. Entre eles estava Amador Bueno.

No documento, queixavamse da “amizade muito especial do governador Salvador Correia pelos reverendos padres” e finalizavam pedindo que o governador fosse substituído, prometendo a descoberta de “outro Peru” dentro dos limites da América portuguesa, caso fosse nomeado um sucessor de maior valia. A aclamação de Amador Bueno como rei de São Paulo juntase, assim, ao episódio da expulsão dos jesuítas em 1640 e aos conflitos com o governador Salvador Correia de Sá. No Rio, com o auxílio do governador Salvador Correia, os jesuítas propuseram uma conciliação, em que cada lado cedesse um pouco.

Os habitantes da vila de São Vicente, também por intervenção de Salvador Correia, fizeram como os do Rio: negociaram. Mas em São Paulo, apesar dos esforços do governador, os paulistas enfrentaram suas ameaças, fazendo bloqueios nos caminhos e impedindo sua chegada ao planalto. Os paulistas elaboraram então, em 1642, um longo memorial, enviado por seus procuradores à corte portuguesa. Entre eles estava Amador Bueno.

No documento, queixavamse da “amizade muito especial do governador Salvador Correia pelos reverendos padres” e finalizavam pedindo que o governador fosse substituído, prometendo a descoberta de “outro Peru” dentro dos limites da América portuguesa, caso fosse nomeado um sucessor de maior valia. A aclamação de Amador Bueno como rei de São Paulo juntase, assim, ao episódio da expulsão dos jesuítas em 1640 e aos conflitos com o governador Salvador Correia de Sá.

No entanto, os estudos de historiadores que mencionam o episódio não consideram que, nessa época, o poder monárquico português era de fato muito fraco, por conta dos conflitos com a Espanha. O Conselho Ultramarino, órgão criado em Lisboa em 1640, logo após a declaração de independência, só contou com sua primeira equipe de trabalho em 1643. Desse modo, a aclamação de Amador Bueno não foi mencionada nas atas daquele Conselho. O conflito já estava resolvido e Portugal tinha problemas mais sérios na Europa, como a sua própria sobrevivência política.

Portanto, a aclamação de Amador Bueno é um símbolo do momento histórico vivido no planalto paulista por volta de 1640. Mas não somente de São Paulo. A restauração da independência portuguesa significava também o surgimento, nos cenários europeu e mundial, de uma nova dinastia régia, cujo poder, no reino e no ultramar, estava longe de se afirmar. O evento paulista de abril de 1641 é o contraponto para o acontecido em dezembro de 1640 em Portugal, considerando as características das duas partes envolvidas, dinastia Bragança e vassalos vicentinos: o rei frágil, os vassalos revoltosos. A presença do próprio Amador Bueno da Ribeira em Lisboa, apresentando o memorial dos paulistas em 1642, e o silêncio sobre o episódio, só lembrado no século seguinte, reforçam este raciocínio.

Assim, na conjugação desses aspectos, devese buscar o sentido da aclamação de Amador Bueno, não com a intenção de avaliar sua importância para a história política do Brasil, como foi sugerido por D. Pedro I e por Varnhagen no século XIX, mas como algo capaz de expressar um contexto histórico. Os conflitos ou insubordinações mencionados aconteceram numa capitania mal dominada pelo poder régio, na verdade nunca controlada, sequer visitada, por seus donatários. E numa região onde o modo de vida dos habitantes mais diferia da lógica assumida pelos portugueses em sua colonização na América. Desse modo, é possível que a primeira sublevação desafiadora do poder monárquico português tenha ocorrido na capitania de São Vicente, justamente a mais frontal, por substituir o corpo régio na figura de um outro personagem. Parece então que os paulistas se mostraram decididos em sua posição, e na aclamação de seu próprio rei.

FONTE: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O rei de São Paulo. Revista de História, 2007. 


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A lenda da Serra das Esmeraldas no Brasil

Apesar de realmente existirem jazidas de esmeralda no Brasil, no entanto, no passado, no período Colonial (1500-1816), demorou-se para descobrir jazidas e minas dessa preciosa joia, fato esse que os poucos exemplares encontrados atiçavam a cobiça e expectativas de exploradores, os quais na ausência de ouro e prata, empreendiam expedições pelas selvas e sertões atrás das pequenas pedras verdes. Todavia, essa busca levou ao surgimento de lendas sobre serras que seriam recheadas por minas de esmeraldas a tal ponto que quem as descobrisse, tornar-se-ia o homem mais rico do mundo. 

Desde que os portugueses chegaram em 1500 nas terras que se tornaram o Brasil, havia o interesse de saber se existiriam metais preciosos ou joias naquele território. Os franceses, espanhóis e holandeses também procuraram por jazidas e minas. Mas na maior parte das vezes consistiam de meros boatos, e somente quantidades ínfimas de ouro, esmeraldas e diamantes eram encontradas, já que os povos indígenas do Brasil não tinham o hábito de praticar a mineração, tampouco apresentavam grande interesse por tais bens preciosos; diferente de povos como os Incas, Astecas e Maias. 

Por conta disso, muitos anos se passaram e lendas sobre minas de ouro, prata, esmeraldas e diamantes foram surgindo, além de histórias de cidades perdidas que lembravam a fabulosa El Dorado da tradição difundida pelos espanhóis. No entanto, algumas capitanias ganharam mais destaques do que outras por supostamente serem a localização da lendária serra das esmeraldas. Dessa forma, arrisco a dizer que o Brasil vivenciou uma "corrida das esmeraldas" que durou quase 150 anos, e somente findou-se quando descobriu-se as minas de ouro. Embora que posteriormente jazidas de esmeraldas foram finalmente encontradas, mas o interesse por essa gema já tinha diminuído. 

Assim, o presente texto comentou a respeito desse sonho verde em encontrar a lendária Serra das Esmeraldas, a qual supostamente estaria situada nos sertões da Bahia, do Espírito Santo ou em Minas Gerais. 

A Serra da Piedade, em Caeté, no estado de Minas Gerais, foi considerada no século XVII como podendo ser a lendária serra das esmeraldas. 

Em busca das esmeraldas na Bahia

As menções mais antigas sobre a existência de esmeraldas ainda datam da primeira metade do século XVI. Os capitães donatários de Pernambuco e Bahia, em 1538, ainda nos primórdios da colonização portuguesa, apresentaram interesse em desbravar os sertões atrás de esmeraldas, ouro e prata. Tentou-se solicitar do rei, direito de promover entradas sob patrocínio real, mas D. João III recusou as propostas. Além disso, não se sabe se expedições foram realizadas por outros homens nesse período. (MAGALHÃES, 1978, p. 30). 

Durante as décadas de 1550 e 1560 os governadores-gerais do Brasil ordenaram entradas para desbravar os sertões baianos, mas a maioria foi abortada devido a ataques de indígenas, doenças, acidentes e falta de alimentos; as que tiveram sucesso em explorar o território, não descobriram nenhuma mina ou jazida. 

Todavia, em 1571 ou 1572 ocorreu a entrada comandada por Sebastião Fernandes Tourinho, a qual partiu de Porto Seguro e passou meses em campo. Tourinho e seus homens teriam percorrido os sertões baianos e alcançado o que hoje são terras de Minas Gerais. Nessa longa expedição ele e seus homens acharam pedras verdes e retornaram para Porto Seguro, apresentando o relativo sucesso obtido. A ideia de que poderia haver uma mina de esmeraldas em algum lugar no interior das Capitanias da Bahia ou de Porto Seguro, levou o governador enviar Antônio Dias Adorno para realizar nova missão a fim de encontrar possíveis minas, no entanto, Adorno retornou em 1574, não obtendo sucesso, apesar que localizou jazidas de cobre e ferro. (DELVAUX, 2009, p. 117-118). 

A entrada de Tourinho repercutiu consideravelmente na época, fato esse que o cronista Pero de Magalhães Gândavo (c. 1540 - c. 1580) comentou a respeito da existência de uma serra de esmeraldas nos sertões da Capitania de Porto Seguro. Seu livro foi publicado em 1576 e dizia o seguinte: 

"A esta Capitania de Porto Seguro chegaram certos índios do sertão a dar novas dumas pedras verdes que havia numa serra muitas léguas pela terra dentro, e traziam algumas delas por amostra, as quais eram esmeraldas, mas não de muito preço. E os mesmos índios diziam que daquelas havia muitas, e que esta serra era muito formosa e resplandecente. Tanto que os moradores desta capitania disto foram certificados, fizeram-se prestes cinqüenta ou sessenta portugueses com alguns índios da terra e partiram pelo sertão dentro com determinação de chegar a esta serra onde estas pedras estavam". (GÂNDAVO, 2008, p. 75). 

Os governadores da Bahia e de Porto Seguro continuariam a enviar entradas para os sertões atrás de minas de esmeraldas, ouro e prata, inclusive nessa época a lenda da serra de Sabarabuçu passou a ser difundida, em que alguns diziam ser uma serra com minas de prata, situada em Sergipe del Rey ou no interior da Bahia, mas outros falavam que era uma serra com minas de esmeraldas, situada no Espírito Santo

A serra das esmeraldas no Espírito Santo

Ainda no século XVI a lenda de que haveria minas de esmeraldas no Espírito Santo passou a ser difundida, embora não se saiba exatamente quando ela começou. Fato esse que entradas e expedições particulares foram realizadas pelos sertões daquela capitania. Em alguns casosm alguns exemplares foram encontrados, atestando em parte a veracidade da lenda, até porque como foi visto posteriormente, alguns exploradores mentiram a respeito de terem achado esmeraldas no intuito de ganharem patrocinadore; também ocorreu a condição de alguns homens confundirem cristais e outras gemas verdes como sendo esmeraldas. 

Apesar disso, as tentativas de buscar essas gemas preciosas não pararam. Exemplo esse que no Espírito Santo, a família Coutinho que detinha controle daquela capitania, alguns de seus membros dedicaram-se a caça de esmeraldas por até três gerações consecutivas como o caso de Marcos de Azeredo Coutinho, o Velho, seu filho Domingos de Azeredo Coutinho (1596-1664) e o neto Marcos de Azeredo Coutinho (1619-1680), foram alguns membros dessa família que dedicaram-se as bandeiras em busca de esmeraldas. 

Segundo informações dadas pelo Conselho Ultramarino, em 1611, Marcos de Azeredo teria sido um dos descobridores da "terra das esmeraldas", o problema é que nem ele mesmo sabia onde exatamente ficava essa localidade, e as pedras verdes achadas eram turmalinas, que naquele tempo não era consideradas tão preciosas como hoje em dia. Na ocasião, Marcos foi com amigos, parentes e criados explorar os sertões da capitania da sua família. Apesar de não terem encontrado esmeraldas de verdade, ainda assim, seus filhos e neto dariam continuidade as expedições atrás desse lugar. Além de que outras pessoas também passariam a se interessar por isso.

Turmalinas verdes são facilmente confundidas com esmeraldas.

Na década de 1630 outras bandeiras foram armadas para explorar o sertão capixaba atrás das jazidas de esmeraldas que os Coutinho alegavam existir. E isso incluiu até mesmo os jesuítas como o padre Inácio de Siqueira que conseguiu da Coroa portuguesa um alvará de crédito de 4 mil cruzados para montar uma bandeira atrás das esmeraldas. A expedição se prolongou de 1634 a 1641, havendo várias viagens, as quais todas resultaram infrutíferas. No entanto, os Coutinho tentaram em 1644, encontrar definitivamente a tal serra lendária, na ocasião, Domingos, seu irmão Antônio e o filho Marcos de Azeredo, viajaram naquela época, mas também falharam em encontrar as esmeraldas. (REIS, 2010, p. 6). 

Apesar do fracasso, Domingos Coutinho não desistiu e recorreu ao patrocínio real, e em 1647, ele, seu irmão e filho realizaram nova entrada, seguindo com muitos indígenas na missão para desbravar o território e se proteger de tribos rebeldes. A expedição daquele ano encontrou algumas pedras verdes, possivelmente turmalinas, já que na prestação de contas com a Coroa, constatou-se não se tratarem de esmeraldas. 

Após novo fracasso, Domingos, Antônio e Marcos adiaram por muitos anos novas tentativas de buscar esmeraldas, fato esse que somente em 1660, pai e filho empreenderam nova tentativa, partindo de Vila Velha do Espírito Santo, navegando pelo Rio Doce, o Rio Coarici-Mirim, o Rio Veado e outras localidades. Na ocasião, gemas foram achadas o que teria incluído supostamente um diamante, embora haja dúvidas quanto a isso. No entanto, as gemas encontradas foram enviadas à Lisboa, atestando-se terem valor significativo, mesmo não sendo esmeraldas. 

Expedições atrás de esmeraldas continuaram através dos anos, mas sendo infrutíferas e com o tempo a família Coutinho desistiu da ideia. Fato esse que em 1674, o capitão donatário Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, vendeu a capitania para Francisco Gil de Araújo, embora que esse somente assumiu o cargo de governo em 1678, antes dele o capitão-mor João Gonçalves de Oliveira governou de forma interina. (REIS, 2012, p. 4-5). 

Durante o governo de Francisco Gil, o qual deu atenção a questões mais concretas e urgentes, como reformar a capital Vila Velha e realizar obras nas fortificações da capitania e até construir novos fortes, o capitão interino João Gonçalves passou a deter por decreto real, o direito de armar bandeiras para capturar indígenas e explorar os sertões capixabas, indo até mais além. No entanto, João Gonçalves também era homem que sonhava com a serra de esmeraldas, fato esse que numa carta redigida por ele, informava que em 1672 havia ouvido dizer as esmeraldas ficava na serra do Sabarabuçu, uma localização lendária que ficaria situada em território hoje correspondente a Minas Gerais, tendo sido confundida com a Serra da Piedade. Em 1675, ele organizou os preparativos para uma bandeira até essa serra, o que o levou a se desentender com o capitão donatário Francisco Gil, que conseguiu impedir a bandeira atrás de esmeraldas. (REIS, 2012, p. 7). 

Fernão Dias: o caçador de esmeraldas

Fernão Dias Paes (c. 1608-1681) foi um dos mais famosos bandeirantes da história brasileira, tendo dedicado sua vida a essa ocupação, participando de várias expedições por São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e talvez o Uruguai, para caçar indígenas, guerrear, mapear territórios e procurar por riquezas minerais. 

Em 1671 o governador-geral do Brasil, Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, recomendou ao bandeirante Fernão Dias que armasse bandeira para encontrar a lendária Sabarabuçu, a qual seria a serra das esmeraldas que os capixabas procuravam desde o começo do século XVII. Lisonjeado por ter sido a escolha principal do governador-geral (alguns historiadores apontam que na verdade, ele teria apresentado a ideia a Mendonça), Dias aceitou a proposta. Em 1672 o governador-geral nomeou o bandeirante como "governador das esmeraldas", caso ele obtivesse sucesso em sua bandeira, passando a deter posse sobre aquelas terras e sua exploração, e evidentemente tendo que negociar com o governo. (DELVAUX, 2009, p. 154). 

Estátua do bandeirante Fernão Dias Paes, alcunhado de o "caçador de esmeraldas". 

Em 1673 os bandeirantes Matias Cardoso de Almeida e Bartolomeu da Cunha Gago partiram na frente, para preparar rotas, postos de parada, hortas e estoques de suprimentos. Assim, em 1674 foi a vez de Fernão Dias iniciar a bandeira, no entanto, a empresa demorou mais do que imaginado. Até hoje não se tem certeza quais caminhos as três bandeiras realizaram pelo interior de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais, já que normalmente as bandeiras não costumavam serem registradas de forma regular e com detalhes. Além disso, pelo fato de não encontrarem minas de esmeraldas, nem de ouro e prata, com o tempo alguns bandeirantes abandonaram as expedições, o que levou Fernão Dias ter que retornar a São Paulo várias vezes e postergar novas expedições. Em 1675 o governador-geral Mendonça faleceu em Salvador, mas Dias estava confiante de que o novo governador manteria a palavra sobre os títulos e mercês caso a serra das esmeraldas fosse encontrada. 

Os anos se passaram e em 1681, Fernão Dias redigiu em carta que havia encontrado pedras verdes que ele julgava serem esmeraldas. Mas não havia sinal da tal serra ou jazidas, apesar de que ele estivesse confiante que Sabarabuçu estivesse por perto, no entanto, ele faleceu devido a uma forte febre, no meio da expedição, em território hoje pertencente a Minas Gerais, em data incerta. Na época ele já era um homem idoso e morreu tentando encontrar as esmeraldas que sonhava. (MAGALHÃES, 1978). 

Com a descoberta de jazidas de ouro na década de 1690, a busca por esmeraldas foi deixada de lado, pois no XVIII teve início a corrida do ouro. 

NOTA: Fernão Dias tornou-se popular nas artes, sendo tema de poemas, romances e filmes. Destaco: O poema O caçador de esmeraldas (1902) de Olavo Bilac; a peça O Governador das Esmeraldas (1911) de Carlos Góes; os romances A bandeira de Fernão Dias (1928) e O sonho das esmeraldas (1936), ambos de Paulo de Setúbal; o filme O Caçador de Esmeraldas (1979). 

Referências bibliográficas:

DELVAUX, Marcelo Motta. As minas imaginárias: o maravilhoso geográfico nas representações sobre o sertão da América Portuguesa - séculos XVI a XIX. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. 

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos de Brasil. Brasília, Senado Federal, 2008. 

MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil Colonial. 4a ed. São Paulo, Nacional, 1978. (Coleção Brasiliana, vol. 45). 

REIS, Fabio Paiva. O imaginário metalista luso-brasileiro colonial: a Serra das Esmeraldas na segunda metade do século XVII. Revista Cordis, n. 4, 2010, p. 1-12.

REIS, Fabio Paiva. Disputas administrativas na periferia do Império Português: o Espírito Santo nas buscas pela serra das esmeraldas. Revista Onis Ciência, Braga, v. 1, ano 1, n. 1, maio/agosto 2012, p. 5-17. 

Links relacionados: 

Uma breve história das Entradas e Bandeiras

Os bandeirantes