Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

domingo, 17 de janeiro de 2021

Os cinocéfalos: a lenda dos homens-cachorros

Da Idade Antiga até o começo da Idade Moderna, lendas sobre homens-cachorros foram reportadas por autores europeus, africanos e asiáticos. Em alguns casos os relatos eram copiados de outros autores, mas outro apresentavam novas informações e diferenças. Os tais homens-cachorros ora apareciam como um povo rústico, vivendo nu, morando em cavernas e praticando o canibalismo, mas em outros relatos eles usariam roupas, viveriam em casas, saberiam falar e entenderiam de agricultura e comércio. Tais estranhas criaturas foram normalmente reportadas vivendo na Índia, apesar que alguns relatos sugerissem que eles viveriam no Oriente Médio, no noroeste da África ou em ilhas. 

O presente texto decidiu abordar essa curiosa lenda que perdurou por séculos, e até influenciou autores cristãos, muçulmanos e budistas a se referirem a personagens de suas religiões que tiveram contato com este povo bárbaro e exótico. Ou a condição de homens pertencentes a estas religiões terem sido amaldiçoados e se transformarem em homens-cães.

Existem vários autores que escreveram sobre os cinocéfalos, porém, mencionarei alguns dos mais conhecidos, para podermos ter noção das características básicas desta lenda e depois mencionarei autores medievais, para depois comentar alguns aspectos mais específicos. 

Um cinocéfalo representado na Crônica de Nuremberg, 1493. 

Relatos antigos

a) Heródoto (485-425/420 a.C): o chamado "Pai da História" em seu relato sobre a Líbia, nação que vivia ao oeste do Egito e que hoje compreende a atual Líbia, no século V a.C, era considerada uma terra exótica e habitada por animais estranhos e até monstros. Enquanto outros autores relataram que os cinocéfalos viviam na Ásia, Heródoto escreveu que eles viveriam no norte da África. 

“Seguindo para o ocidente, após esse rio [lago Tritonis], encontramos a região ocupada pelos Líbios lavradores; é montanhosa, coberta de florestas e cheia de animais selvagens. Na região ocupada pelos Líbios lavradores encontram-se serpentes de tamanho descomunal, leões, elefantes, ursos, áspides, asnos com chifres, cinocéfalos e acéfalos, que possuem, segundo afirmam os Líbios, olhos no peito. Vêem-se também ali homens e mulheres selvagens, e uma multidão de monstros fabulosos”. (HERÓDOTO, 2006, p. 384). 

No relato de Heródoto, o historiador não entrou em detalhe sobre os cinocéfalos, apenas dizendo que eles seriam uma das raças bárbaras que viveriam na Líbia. Agora vejamos outro relato. 

b) Ctésias de Cnido (V-IV a.C): este historiador e médico grego, viveu sob a guarda do rei Artaxerxes II da Pérsia. Durante os vários anos que serviu na corte persa, ele teve acesso as suas bibliotecas, redigindo livros sobre a história da Pérsia, Assíria e Índia. Dos autores antigos, o relato de Ctésias é o que mais possui detalhes sobre os cinocéfalos. 

Em seu livro sobre a Índia, intitulado Indica, Ctésias diz que nas montanhas indianas viveriam os cinocéfalos, conhecidos localmente como kalystrioi. Eram seres humanoides com cabeça de cachorro e possuíam caudas (o relato de Ctésias é um dos poucos a afirmar a presença de caudas nestes seres), os quais usavam roupas feitas de peles de animais, eram de cor escura como os indianos, não sabiam falar, mas latiam e uivavam. No entanto, Ctésias diz que os cinocéfalos teriam algum grau de "civilidade", pois sabiam usar roupas e se comunicavam fazendo uso de linguagem de sinais, já que não falavam com os homens. O autor diz que essa raça era abundante nas montanhas indianas, havendo 120 mil deles, além de que eles teriam uma longa longevidade, podendo viver até os 200 anos. 

Em seguida, Ctésia disse que os cinocéfalos sabiam caçar e conheciam a pecuária, criando cabras e ovelhas. A riqueza entre eles era medida de acordo com o tamanho do rebanho de cada família. No entanto, eles não cultivavam a terra, pois onde habitavam nas altas montanhas, o solo era pouco fértil. No entanto, eles comercializavam uma rara fruta que ali crescia, da qual se fazia corante. Com isso eles construíam jangadas e caixas, carregavam as frutas e desciam os rios até os reinos dos indianos e faziam escambo, trocando as frutas por pão, farinha, armas de ferro e roupas de tecidos, pois seus trajes eram feitos de fibras de couro, sendo bastante rústicos. 

Eles não viveriam em casas, mas habitariam cavernas. Apesar deste aspecto primitivo, Ctésias diz que os cinocéfalos eram valentes e hábeis caçadores, mas pouco afeitos a guerra, pois eram um povo pacífico. O autor também diz que eles eram poucos afeitos a higiene; as mulheres tomavam banho apenas uma vez, na época da menstruação, e os homens não se banhavam com água, mas com leite de cabra, fazendo isso três vezes ao mês. 

c) Diodoro Sículo (c. 90 - c. 30 a.C): foi um historiador grego, o qual pouco se sabe sobre sua vida, mas viajou pelo Egito e viveu em Roma. Sua única obra conhecida é Biblioteca Histórica. Neste livro o qual se encontra hoje incompleto, Diodoro escreveu sobre os romanos, gregos, egípcios, líbios, fenícios e outros povos e seres. No livro 3, capítulo 5, ele redigiu sobre os cinocéfalos, escrevendo: 

"Os animais que levam o nome de cinocéfalos têm o corpo de homens deformados e emitem um som semelhante ao choramingo de seres humanos. Esses animais são muito selvagens e indomáveis, e suas sobrancelhas dão a eles uma expressão um tanto ranzinza. A característica mais peculiar da fêmea é que ela carrega o útero do lado de fora do corpo durante toda a sua existência". (DIODORO SICULO, tradução nossa). 

A menção aos cinocéfalos na obra de Diodoro é curta, mas o interessante é que ele diz se tratarem de animais, não de seres humanoides como outros autores se referem. Além disso, o autor diz que a fêmea teria uma característica de marsupial, pois o útero ficaria do lado de fora, apesar de ele não entrar em detalhes. No entanto, Diodoro sugere em sua obra que os cinocéfalos habitariam em algum lugar da península Arábica

d) Estrabão (63-24 a.C): foi um historiador e geógrafo grego, conhecido por ter escrito a coleção sobre história natural e geografia, intitulada Geografia. Infelizmente parte de sua obra não chegou até nós, tendo se perdido. No entanto, no livro 7, capítulo 3, Estrabão comentou sobre os cinocéfalos, mas em tom de crítica. Ele criticou os poetas Hesíodo e Ésquilo por falarem que existiriam homens com cabeça de cachorro. Aqui temos um dado interessante. Estrabão diferente de outros autores aqui citados, não estava concordando com eles, pelo contrário, ele dizia que essas histórias sobre cinocéfalos, acéfalos e outros monstros humanoides eram falsas, não correspondiam a realidade. Mas esses autores diziam que eram seres reais. 

e) Plínio, o Velho (23-79 d.C): foi um erudito romano que escreveu sobre a natureza, tendo redigido uma enciclopédia intitulada História Natural. Assim como Heródoto que atribuiu os cinocéfalos como sendo habitantes da África, Plínio também fez o mesmo, mas alterando o lugar onde essa suposta estranha raça viveria. Enquanto Heródoto atribuiu a Líbia como morada deles, Plínio escreveu no livro VI, capítulo 35, que os homens de cabeça de cachorro, viveriam na Etiópia, próximo de Tergedus. No mesmo capítulo, mais adiante ele diz que naquela terra estranha havia um povo que se alimentava do leite dos cinocéfalos. Aqui saliento que o relato de Plínio, como de outros autores da época nem sempre era claro de ser lido, em muitos casos esses autores reuniam muitas informações num mesmo parágrafo. 

Porém, enquanto no capítulo 35, Plínio apenas cita que os cinocéfalos habitariam em algum lugar da Etiópia, no livro VIII, capítulo 80, ele nos forneceu mais informações sobre essas criaturas humanoides. Nesse capítulo ele comentou brevemente sobre os macacos e escreveu que na Etiópia havia macacos com cabeça de cachorro, os quais seriam os cinocéfalos. Criatura que inclusive ele chegou a comparar aos sátiros (ou faunos) devido a terem parte dos corpos cobertos por pelos grossos. Adiante neste texto falarei desta questão dos "macacos com cara de cachorro".  

Relatos medievais

a) Paulo, o Diácono (c. 720-790): foi um monge beneditino, lembrando principalmente por sua crônica sobre a história dos Lombardos, intitulada Historia gentis Langobardorum. Nesta obra, no livro 1, capítulo 11, Paulo escreveu brevemente sobre uma batalha travada entre os francos e os lombardos, e estando os lombardos em desvantagem, eles tiveram a artimanha de lançar uma mentira, dizendo que como reforço, possuíam vários cinocéfalos, homens-cachorros que eram conhecidos por sua ferocidade, coragem e por bebere sangue dos inimigos. Segundo Paulo, a mentira deu certo, e a vantagem ficou ao lado dos lombardos. Entretanto, o autor não fornece mais informações a respeito desta raça. 

b) Ratramo de Corbie (?-c.870): foi um monge beneditino e teólogo franco que viveu no Império Carolíngio, tendo escrito sobre a eucaristia, a predestinação e outros assuntos teológicos, além de escrever alguns sermões e epístolas. Porém, uma das suas obras mais curiosas é intitulada Epístola aos Cinocéfalos. Nesta breve epístola, Ratramo comenta se os cinocéfalos seriam seres reais ou lendas, mas ele chega a conclusão de que eles seriam reais, no entanto, ele se indaga se seles seriam animais ou alguma raça selvagem de homens, porém, ele diz que como os cinocéfalos usavam roupas, significava que tinham vergonha de sua nudez, logo, eles também foram atingidos pelo Pecado Original, então eram descendentes de Adão. Assim, tendo contastado que os cinocéfalos eram reais e tinham características humanas, Ratramo defendia que eles deveriam ser evangelizados, pois eram pagãos. 

Pintura do Saltério de Kiev, c. 1397, representado cinocéfalos diante de Jesus Cristo. Tais seres eram pagãos e deveriam ser evangelizados. A ideia de Ratramo encontrou adeptos. 

c) Adão de Bremen (10??-108?): foi um clérigo e cronista germânico, secretário do bispo de Bremen. Pouco se sabe de sua vida, mas sua obra mais conhecida é uma crônica intitulada Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum (Atos dos Bispos da Igreja de Hamburgo). Nesta crônica ele redigiu sobre assuntos de distintas épocas e lugares, e no livro 4, capítulo 19, ele comenta sobre os cinocéfalos, dizendo que leu a respeito deles, os quais seriam oriundos das amazonas. Adão escreveu que os filhos varões gerados por amazonas eram os cinocéfalos e estes homens com cabeça de cão, eram hostis e bárbaros, e viveriam no leste, nas terras dos russos, inclusive atuando como cães de guarda deste povo. 

d) Marco Polo (c. 1254-1324): este famoso mercador e viajante veneziano, pariu em companhia de seu pai e tio, rumo à China. Ali, Marco serviu o imperador Kublai Khan pelos quinze anos seguintes. Marco atuou como embaixador e exerceu outras funções, tendo viajado pela China e possível pela Índia, Myanmar, Vietnã, Cingapura, Indonésia e outros territórios. Em 1295 ele retornou para Veneza, participou de uma rebelião e foi preso. Na cadeia ele conheceu um escritor chamado Rusticiano de Pisa, e este redigiu as memórias de Marco Polo, dando origem ao Livro das Maravilhas

Nessa obra que mescla fatos, boatos e lendas, Polo conta que existia uma ilha chamada Angamã (atual Andaman, pertencente a Índia), e ali viveria uma estranha e selvagem raça de homens-cachorros. Ele comentou brevemente sobre eles, escrevendo: 

"Nessa ilha, os homens têm a cabeça e dentes de cão, e a sua cara parece-se com a dos mastins. São muito cruéis e comem quantos homens possam apanhar e que não sejam da sua tribo". (POLO, 2009, p. 212).

Gravura do século XV, para uma edição francesa do Livro das Maravilhas, retratando os cinocéfalos. A imagem informa que estes seres viveriam em Angamã, a ilha citada por Marco Polo, no entanto, enquanto Polo dizia que eram criaturas selvagens, nota-se na imagem, que os cinocéfalos estão vestidos e fazem negócios. Talvez, uma referência a descrição de Ctésias. 

Embora haja outros autores que tenham mencionado os cinocéfalos, vamos encerrar por aqui a menção aos principais deles. Apesar que citaremos outros mais adiante, mas de forma mais sucinta. Agora vamos tratar de um estudo de caso, a lenda envolvendo um santo conhecido.

São Cristóvão, o cinocéfalo

Pouco se sabe sobre a vida de São Cristóvão, inclusive não se tem certeza se realmente ele existiu. De acordo com a Legenda Áurea, popular hagiografia medieval, Cristóvão era filho de um rei pagão em Canaã, sendo chamado de Reprobus. Ele era descrito como sendo arrogante e soberbo, negando-se a se converter ao cristianismo, mas em certa ocasião, ele decidiu ajudar uma criança a atravessar um rio, colocando-a sobre as costas. No entanto, a criança era muito pesada e Reprobus teve dificuldades para atravessar o rio, já que carregava o menino sobre os ombros, mas concluindo a tarefa, a criança se revelou ser Jesus Cristo. Com isso ele decidiu se tornar um cristão, adotando o nome de Cristóvão (aquele que carrega Cristo)Cristóvão teria passado a pregar sobre Jesus e isso revoltou o rei daquela região, mandando prender e executá-lo, o qual foi decapitado. Tempos depois ele foi tornado santo mártir. 

Entretanto, existe uma outra história bem peculiar envolvendo esse misterioso santo que é associado como padroeiro dos viajantes. Em dado momento da Idade Média, surgiu a história de que São Cristóvão teria sido um cinocéfalo. Não se sabe exatamente como isso começou, mas os estudiosos tendem apontar algumas hipóteses, sendo a mais aceita que possa se tratar de um erro de tradução. 

Ícone ortodoxo do século XVII, retratando São Cristóvão como um cinocéfalo. 

Cristóvão teria nascido em Canaã, cujo gentílico em latim era cananita, palavra que se parece como caninita, que remete a canis = cachorro. Além disso, em alguns relatos sobre o futuro santo, ele era descrito ora como um homem feio como um animal ou um feroz guerreiro. Tais características teriam influenciado na hora de se elaborar a fisionomia deste santo mártir, retratando-o como um homem-cachorro. Além disso, soma-se a condição de que as lendas sobre os cinocéfalos eram conhecidas naquele tempo, e no medievo, começou-se cada vez mais a associar a Ásia como local de morada daquela raça. Desta forma, surgiu a ideia de que São Cristóvão teria sido um cinocéfalo que converteu-se ao cristianismo, tendo recebido a forma humana para poder pregar e morreu como mártir. 

Gkounis (2011, p. 107-110) comenta que embora o santo tenha supostamente vivido no século III, somente séculos depois foi que ele ganhou fama. Por exemplo, a Legenda Áurea foi escrita no século XIII, todavia, o dia litúrgico do santo foi oficializado no século XVI, condição essa que o autor diz que curiosamente nos países ortodoxos, encontra-se até o século XVIII, representações de ícones retratando São Cristóvão como cinocéfalo, representando-o ele assim no intuito de elucidar que ele foi alvo de um milagre, mas também evocando o simbolismo animal do cachorro, especialmente as ideias de que o santo era fiel e leal a Cristo. 

Outras representações de São Cristóvão com cabeça de cachorro. 

O mistério por trás da lenda dos cinocéfalos

Definir a origem de um mito ou uma lenda na maior parte das vezes é algo impossível de ser feito, por se tratar de narrativas transmitidas, que eram compartilhadas pelas pessoas, com amigos, familiares, conhecidos ou viajantes, e dessa forma, essas narrativas iam se espalhando. No caso da lenda dos cinocéfalos, não é possível traçar uma origem para ela. Embora que alguns apontem Heródoto como sendo o autor mais antigo conhecido a mencioná-la, no entanto, ele ouviu ou leu essa história em algum lugar. Onde e quando foi isso? Não se sabe. 

No entanto, alguns estudiosos entre mitólogos, folcloristas, historiadores, literatos, etc. tentaram buscar alguma evidência para a inspiração dessa lenda. Atualmente existem algumas hipóteses que sugerem isso, duas delas estão relacionadas com o Egito. 

A primeira hipótese sugere que os antigos gregos e persas quando passaram a frequentar mais regularmente o Egito, viam as estátuas e representações dos deuses daquele país, e dois deuses em particular, Anúbis e Seth, possuem cabeças caninas. Dessa forma, diante destes dois deuses, poderia ter surgido a lenda dos cinocéfalos. Entretanto, há outra teoria ligada ao Egito, da qual falaremos a seguir.

Os deuses Anúbis e Seth poderiam ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. 

Já a segunda hipótese associada com o Egito, diz respeito aos babuínos. No caso, eles consistem num tipo de primata de médio porte, natural da África, existindo cinco espécies. Todavia, uma das características que solta aos olhos é sua pelagem de tom mais claro, o focinho alongado e as nádegas vermelhas. No caso, nos interessa o fato do focinho, o qual lembra a cara de um cachorro (embora existam cães com focinho curto, no passado os de focinho longo e normal era os mais comuns). 

Neste ponto, os estudiosos sobre cinocéfalos acreditam que o babuíno-anúbis (Papio anubis), que era um animal existente no Egito, Líbia e Etiópia naquela época, pode ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. Sobre isso é preciso salientar que a ideia de que homens e macacos seriam seres próximos não é uma invenção de Charles Darwin no século XIX, alguns povos antigos já falavam disso. Por exemplo, Marco Polo escreveu que os pigmeus de Java, não seria uma raça de anões como diziam, mas seriam macacos, que tinham os pelos raspados, mas deixava-se uma espécie de barba e eles eram vendidos como sendo os tais pigmeus das lendas. Escritores gregos e romanos chegaram a confundir espécies de primatas como sendo homens-peludos ou homens-selvagens. 

Um espécime de babuíno-anúbis (Papio anubis), o qual pode ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. 

Mas voltando ao caso dos babuínos, algumas características deles chamam a atenção. 

  • Eles são primatas que vivem em bandos que podem passar de dezenas de indivíduos, o que facilmente seria confundido com a ideia de tribo. Pois geralmente os cinocéfalos são tratados como vivendo em tribos. 
  • Os babuínos são territoriais, os machos tendem a serem violentos por conta disso e durante o cio. Eles também são onívoros. Tais características podem ter inspirado a ideia dos cinocéfalos serem criaturas selvagens e comedoras de carne. 
  • Outro aspecto é que alguns sons emitidos pelos babuínos lembram rosnados e latidos, o que também poderia ter servido de inspiração. 
  • Babuínos conseguem ficar sobre duas patas e darem alguns passos. 
  • Eles também se sentam para comer, são caçadores e coletores. Alguns relatos diziam que os cinocéfalos eram hábeis caçadores. 

As hipóteses associadas com o Egito são bem interessantes, ainda mais quando lemos os relatos de alguns autores gregos e romanos, os quais atribuíam o lar dos cinocéfalos sendo na África, como a Líbia, segundo dito por Heródoto, ou na Etiópia como apontado por Plínio. Porém, essas hipóteses não esclarecem todo o mistério por trás dessas lendas. White (1993) lembra que existem relatos de origem indiana, chinesa, persa e de outros povos asiáticos que falam dos cinocéfalos, porém, não existem babuínos na Ásia, além disso, alguns destes povos não tinham contato com os egípcios. 

Gordon White (1993, p. 71-73, 115) salienta que a presença de homens-cães em relatos indianos é quase inexistente, algo curioso, já que autores como Ctésias e vários outros durante o medievo e a modernidade, diziam que os cinocéfalos viveriam na Índia. No entanto, o autor sublinha que o termo Índia era usado desde a Idade Média de forma genérica, e tal emprego continuou até o século XVIII, fato esse que falava-se de Índias, como forma de se referir ao Extremo Oriente. Sendo assim, quando tais autores antigos se referiam a Índia, nem sempre eles estariam pensando necessariamente no atual país conhecido por este nome. Além disso, a Ásia para além do Oriente Médio, era pensada de forma exótica e fantástica pelos gregos, romanos e outros povos europeus, sendo o lar de vários monstros e povos estranhos. E no caso da Índia, há deuses zoomórficos e o culto a animais sagrados, algo visto também no Egito, e que pode ter inspirado esse imaginário dos monstros, transmitidos pelos gregos, romanos, bizantinos, árabes e persas. 

White (1993, p. 72) informa que na Índia existe o termo svapaka, cuja tradução é complicada e pode ter gerado confusão entre os estrangeiros. A palavra svapaka pode ser traduzida como "alimentado por um cachorro", "nutrido por um cão" ou "cão que cozinha". Para White isso seria uma referência ao emprego de cães de caça. No entanto, haja vista que o termo tenha gerado a ideia de que se trataria de uma raça de cinocéfalos (svamukhas), onde se pensou que ao ser alimentado por cães, não teria correspondência a caça, mas a algum ser que daria comida as pessoas, até porque paka também significa cozinhar, o que sugeriria a ideia de cachorros que sabiam cozinhar, logo, não seria cães comuns. 

Gordon White (1993, p. 73-77) cita outra hipótese para a confusão gerada com o termo svapaka. Ele menciona que no famoso poema épico Mahabaratha, há a menção aos Svapaka, como sendo um povo bruto, que viveria na floresta e eram conhecidos por sua selvageria e criariam muitos cães de caça. Eles federiam a cães e até usariam as peles deles e comeriam a carne dos animais. Tais ideias podem ter sido trocadas e informadas pelos estrangeiros como se tratando de uma raça de homens-cachorros e não um povo que criava cães. 

White também cita outros estudos de caso com base na literatura indiana, envolvendo homens e cachorros, dessa vez referindo-se a narrativas que falavam de homens que foram amaldiçoados a serem transformados em cachorros, algo que inclusive lembraria algumas lendas referentes aos lobisomens. Entretanto, tais narrativas em nada teriam uma ligação direta com os cinocéfalos referidos pelos europeus. 

Se por tal explicação encontramos pistas indianas sobre uma das possíveis influências para a lenda dos cinocéfalos, agora vejamos o que os chineses tem a nos informar. 

White (1993, p. 140-142) conta que no capítulo 116 do livro Hou Han Shu (História do Último Han), narra o mito de P'an Hu, um cachorro colorido que pertencia ao imperador Kao-shin. Na época, as fronteiras sulistas eram invadidas e aterrorizada por bandidos liderados pelo general Wu. O imperador cansado dos fracassos de seus homens, ofereceu uma recompensa em ouro e a mão em casamento de sua filha caçula, para o homem que matasse Wu e lhe trouxesse a cabeça dele. Certo dia, o cão P'an Hu chegou a sala do trono, carregando uma cabeça humana, que se tratava do general traidor. O imperador e a corte ficaram surpresos, e o monarca não sabia como recompensar o fiel cachorro. 

Porém, a princesa disse que o pai teria que cumprir com o prometido, então ele deu o dinheiro para ela e a casou com P'an Hu, eles viajaram para as províncias ocidentais, até uma montanha e ali passaram a viver. Três anos depois, o cão faleceu, mas do casamento com a princesa, eles tiveram seis filhos e seis filhas, os quais deram origem a um povo de bárbaros chamado Man-i, os quais viviam de forma rústica, mas usavam roupas coloridas, baseadas nas cores de seu antepassado. No caso, os Man-i não eram cinocéfalos, apesar de terem um pai cachorro. Além disso, eles viveriam da agricultura, pecuária e praticariam o comércio, mas estavam isentos de cobrança de tributos, por descenderem de uma princesa. 

Para Gordon White, esse mito de P'an Hu que levou a origem de um povo bárbaro, pode ter influenciado outras histórias, inclusive relatos sobre os cinocéfalos, pois nos séculos XIII e XIV, viajantes europeus que visitaram a China, reportaram terem ouvido histórias sobre cinocéfalos vivendo naquele país ou na Mongólia. Para o autor, aqui novamente seria uma confusão de ideias, pois o tal povo "descendente de um cachorro", seria uma alusão aos bárbaros, como forma de se referir a eles como sendo selvagens e por isso teriam uma "origem bestial", não que eles estivessem dizendo que havia homens com cabeça de cachorro. Inclusive White (1993, p. 142-143) cita outro caso envolvendo o povo bárbaro que descendia de "Cão Jung", o qual diziam ser filho de um cachorro branco. Aqui nota-se que comparar os bárbaros com cães era uma forma chinesa para menosprezá-los. E de fato, ainda hoje em alguns países, uma pessoa ser chamada de cachorro/cachorra/cadela é um insulto. 

Considerações finais

O imaginário medieval sobre maravilhas (mirabillia) foi rico e diverso, permeando povos da Europa, África e Ásia, por séculos. No entanto, a lenda dos cinocéfalos parece ter uma conexão mais com os europeus do que os africanos e asiáticos, apesar de que era nos continentes deles em que os cinocéfalos supostamente viveriam. Neste ponto, os europeus em muitos casos tratavam a África e a Ásia como terras exóticas e fantásticas, habitadas por estranhos povos e monstros, mas embora entre os povos europeus antigos, monstros habitariam aquele continente, mas a medida que eles tomavam conhecimento de outras civilizações e sociedades, o monstruoso passou a ser afastado, a ser visto no estrangeiro, no desconhecido, no estranho. 

Gigantes, anões, dragões, amazonas, grifos, centauros, sereias, faunos, etc. os quais apareciam em mitos e lendas antigos, deixaram de povoar a Europa e foram sendo jogados para terras distantes, pois a Europa se tornara um território civilizado e cristão, e tais criaturas bestiais não poderiam viver ali (embora que tempos depois o folclore resgatou algumas dessas criaturas como duendes, gnomos, fadas, elfos, trolls, vampiros, lobisomens, etc.). Além disso, havia o fato de que elas não eram visíveis, logo, não deveriam ter existido ou não existiam, por isso, que deveriam agora habitar outros territórios, povoados por animais fantásticos e povos primitivos. 

Ilustração para o Cosmographia: relato de todas as terras (1544), feito por Sebastian Munster. Aqui temos a representação de supostos monstros que viveriam na Ásia, como o monopé, o cíclope, o anão de duas cabeças, o acéfalo e o cinocéfalo. 

Neste ponto, a lenda dos cinocéfalos como a história de monstros como os acéfalos, os ciclopes, centauros, as amazonas, os canibais, etc. eram fruto desse imaginário que concedia ao estrangeiro a ideia de estranheza, do exótico e do fantástico, mas também do bárbaro. Os relatos sobre os cinocéfalos apresentam diferentes características, onde ora eles são descritos como tendo uma "civilidade" ou sendo seres bestiais que andariam nus e comeriam carne humana. 

Os cinocéfalos foram tão populares que um santo católico, no caso, São Cristóvão tornou-se um cinocéfalo, o qual foi cristianizado, mostrando que até mesmo os monstros possuíam alma e poderiam ser salvos. Apesar que o "santo-cachorro" também tivesse um sentido simbólico por conta dessa aparência, sendo ele vítima de uma maldição gerada por seus pecados, recobrava a forma humana graças a sua conversão e a bendita misericórdia de Deus. 

Além disso é preciso salientar que descrições de viajantes se tornaram populares entre os séculos XIV ao XVI, e dependendo para onde a pessoa viajou ou disse ter viajado, era comum ela citar que viu coisas fantásticas, seres exóticos, costumes estranhos e monstros. Em muitos casos, tais viajantes copiavam ideias de outros autores do período ou de autores mais antigos, especialmente para se referir a ideias populares os quais eles sabiam que estavam em evidência. O próprio Marco Polo foi acusado de ter inventado seu relato (de fato, ele fez isso em algumas partes, mas outras são baseadas em sua experiência e observação). 

Aqui temos o fabuloso e o maravilhoso como elementos para se referir ao outro, algo visto entre os gregos, romanos, árabes, persas, indianos, chineses, entre outros povos. Os próprios europeus quando começam a explorar as Américas (ou Índias Ocidentais), nos primeiros dois séculos, se referem a feras, monstros, cidades maravilhosas e tribos canibais. Isso tudo era reflexo do imaginário sobre o outro, o estrangeiro, o distante. Desta forma, a lenda dos cinocéfalos provavelmente foi uma invenção europeia baseada em elementos mitológicos e lendários advindos da África e da Ásia. 

NOTA: O geógrafo  grego, Megástenes (c. 350 - c. 290 a.C), o qual atuou como embaixador na Índia, para o rei Seleuco I Nicator, viajou por aquela terra e escreveu um livro chamado Indika. Em seu relato ele menciona brevemente os cinocéfalos, porém, pela descrição e informações que ele utilizou, hoje considera-se que ele tenha as copiado de Ctésias. Além disso, em vários outros momentos ele cita poucos monstros vivendo na Índia, mas descreve bastante os animais e localidades, inclusive é creditado a ele o nome Taprobana para se referir ao Sri Lanka

NOTA 2: O Liber monstrorum de diversis generibus, datado do século VIII e de autoria anônima, cita brevemente os cinocéfalos, dizendo que eles viveriam na Índia. 

NOTA 3: Um relato sobre o reino de Preste João, datado do século XII, diz que nas Índias haveria vários tipos de monstros, incluindo cinocéfalos. 

NOTA 4: Em 1766 o famoso naturalista sueco, Carlos Lineu nomeou uma das espécies de babuíno com o nome de Papio cynochepalus. Utilizando a hipótese de que os cinocéfalos seriam baseados nestes animais. 

NOTA 5: A lenda do lobisomem não necessariamente apresenta paralelo com a dos cinocéfalos, ambas desde a Antiguidade já mostravam diferenças. Os lobisomens eram homens amaldiçoados e que transformavam-se em lobos, mas os cinocéfalos eram um povo bárbaro. E embora haja menções a lobisomens na Grécia e Roma Antiga, somente na Idade Moderna é que tais lendas se popularizaram pela Europa. Surgindo termos e narrativas em diferentes países. 

Fontes: 

ADAM of Bremen. History of the Archbishops of Hamburg-Bremen. Translated  with an introduction and notes by Francis J. Tschan. New York, Columbia University Press, 1959. 

DIODORUS Siculus. Bibliotheca historica. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Diodorus_Siculus/home.html

HERÓDOTO de Halicarnasso. Histórias. S.l, Editora EbooksBrasil, 2006. 

NICHOLS, Andrew. The complete fragments of Ctesias of Cnidus: translatation and commentary with an introduction. Dissertation of Doctor of Philosophy, University of Flordia, 2008. 

PAUL the Diacon. History of Langobards. Disponível em: https://web.archive.org/web/20070212074645/http://www.northvegr.org/lore/langobard/index.php

PLINY, the Elder. The Natural History. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0137%3Abook%3D8%3Achapter%3D80

POLO, Marco. O Livro das Maravilhas: a descrição do mundo. Tradução de Elói Braga Júnior. Porto Alegre, L&PM Pocket, 2009. 

RATRAMMI. Epistola de Cynochepalis. Disponível em: https://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0800-0868,_Ratramnus_Corbeiensis,_Epistola_De_Cynocephalis,_MLT.pdf

STRABO. Geography. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0198:book=7:chapter=3&highlight=dog


Referências bibliográficas: 

GKOUNIS, Spyridon. A "monster" in holy grounds: Saint Christopher the Cynochepalus in the Taxiarches Churchs at melies of Pelies in Greece. Troianalexandrina, v. 11, 2011, p. 105-114. 

WHITE, David Gordon. Myths of Dog-Man. Chicago, The University Chicago Press, 1993. 



terça-feira, 12 de janeiro de 2021

A face de Cleópatra: as polêmicas sobre sua aparência

Após o anúncio de que um novo filme sobre a última rainha do Egito, será produzido em breve, e contará com a atriz Gal Gadot no papel principal, uma série de polêmicas vieram a tona. Alguns defendem que Cleópatra seria negra, pois nasceu no Egito; outros alegam que ela não seria egípcia, pois descenderia de gregos; outros apontaram que Hollywood deveria ter escalado uma atriz grega ou egípcia para o papel; alguns alegaram que o filme será fiasco, pois Gal é israelita, e atualmente o Egito é predominantemente de vertente árabe e islâmica, havendo problemas diplomáticos entre os dois países. O filme acabou sendo cancelado. 

Mas apesar dessas polêmicas atuais, outras vieram a tona: Cleópatra seria bela ou feia? Ela era realmente branca como uma europeia? Ou seria uma branca mais escura ou até mesmo com bronzeado? Ela poderia ser parda? A proposta deste texto foi comentar brevemente sobre o visual de Cleópatra.

Introdução:

Cleópatra VII Filópator (69-30 a.C) é envolta em polêmicas, controvérsias e escândalos. Ora referida como uma mulher inteligente, bela, sedutora, controladora e ardilosa, a qual com sua beleza e lábia, conseguiu encantar os generais romanos Júlio César (100-44 a.C) e Marco Antônio (83-30 a.C), conseguindo usar esses relacionamentos para conquistar poder, ludibriando seus irmãos e tomando o trono egípcio para si. Porém, Cleópatra já foi considerada uma mulher feia, inculta, mas ardilosa, que soube ainda assim, enganar César e Antônio. 

Escritores e pintores a retrataram como uma rainha exótica, formosa, sensual, megalomaníaca, inclusive boatos sobre excentricidades como encontrar César escondida dentro de um tapete, cujo escravo o desenrolou, revelando a rainha nua, ou tomar banho com leite de jumenta para hidratar a pele, ou fazer orgias, ou sempre andar com muitas joias, ou ter cobras de estimação, etc. foram divulgados, incluindo a condição de ela ser cruel, mandando executar os irmãos, matar escravos e outros desafetos. No meio político, uma visão negativa de Cleópatra perdurou por algum tempo, retratando-a como uma oportunista, a qual se valeu do sexo para poder conquistar poder e autoridade. E depois a retrataram como uma louca, que decidiu cometer suicídio, usando uma cobra para picá-la. 

Todavia, não foi o intuito desta postagem apresentar uma biografia sobre Cleópatra, mas sim debater a questão da sua aparência, que ainda hoje suscita polêmicas e controvérsias, embora deve-se ser algo que nem deveria mais causar tanto alarde assim. 

Dinastia Ptolomaica

Cleópatra VII nasceu no ano de 69 a.C em lugar não definido, apesar que os historiadores acreditem que o mais provável tenha sido em Alexandria, uma cidade fundada três séculos antes por Alexandre, o Grande (356-323 a.C), e que tornou-se a capital da Dinastia Ptolomaica em 303 a.C, sob o governo de Ptolomeu I Sóter (366-283 a.C), um dos generais de Alexandre. Mas na época que Cleópatra nasceu, Alexandria era uma cidade bem maior e cosmopolita, sendo um dos centros culturais do mundo antigo, afamada pela Biblioteca de Alexandria e o Museu

Neste caso, Ptolomeu I quando deu início ao seu governo sobre o Egito, ele tomou algumas atitudes como se vestir como os faraós, adotar títulos reais e alguns costumes da realeza egípcia. Porém, um erro que comumente alguns dizem, é que atribuem a Ptolomeu I a adoção do incesto real, mas isso não é verdade. Os primeiros reis ptolomaicos casaram com nobres de origem macedônica, grega, persa e síria, eles não praticaram o incesto, exceto Ptolomeu II Filadefo (309-246 a.C) que casou-se com sua irmã Arsinoe II, mas o herdeiro do trono, foi um filho que ele teve com outra esposa. 

Entretanto, a prática do incesto real entre os ptolomaicos começou a se estabelecer com Ptolomeu VI Filómetor (180-145 a.C), o qual casou-se com sua irmã Cleópatra II, gerando um filho chamado Ptolomeu VII (?-145 a.C). Porém, o jovem monarca apenas governou por algumas semanas, quando foi traído por seu tio e foi assassinado. O novo rei adotou o título de Ptolomeu VIII Fiscão (182-116 a.C), e casou-se com Cleópatra II, que era sua irmã também. (BURSTEIN, 2010, p. 10). 

Ptolomeu VIII deu continuidade a prática do incesto real, após a morte da esposa, ele casou-se com sua sobrinha, Cleópatra III, com quem teve Ptolomeu IX. As gerações seguintes mantiveram o incesto real entre irmãos, primos e sobrinhos. 

Posteriormente no século I a.C, o rei Ptolomeu XII (c. 117-51 a.C) assumiu o trono em 80 a.C, após uma disputa com seu irmão Ptolomeu XI. Neste caso, sublinha-se que o novo monarca era também fruto de incesto e, por sua vez, ele casou-se com Cleópatra V Trifena, que era uma prima próxima. Desse relacionamento eles tiveram alguns filhos, sendo os primeiros Berenice IV e Cleópatra VI, as quais governaram brevemente o Egito, no exílio de seu pai, o qual ameaçado em ser destronado, exilou-se em Roma em 58 a.C, retornando alguns anos depois. (BURSTEIN, 2010, p. 155). 

Neste ponto, a história fica bastante confusa. Ptolomeu XII teve outros filhos também, os quais foram Arsinoe IV, Cleópatra VII, Ptolomeu XIII e Ptolomeu XIV, entretanto, não se sabe exatamente quem foram as mães deles, pois Cleópatra V teria morrido em algum momento entre 68 e 57 a.C. Com isso, a História não registra com certeza se Cleópatra V foi mãe desses quatro filhos, ou seu marido os teria tido com concubinas ou outra esposa, cujo nome foi esquecido ou até mesmo apagado. 

Diante dessa indeterminação se Cleópatra V foi ou não a mãe de Cleópatra VII, surgiram hipóteses alegando que a mãe de Cleópatra VII poderia ter sido de origem grega, romana, egípcia ou até mesmo persa ou síria. 

Posto essa problemática em pauta, vamos retomar a questão da aparência da rainha. Dizer que Cleópatra VII seria negra porque nasceu no Egito, não é uma afirmação correta. No século I a.C, o Egito era um país já miscigenado, possuindo contato com gregos, romanos, trácios, sírios, líbios, etíopes, persas, citas, hebreus e outros povos. O que concede a condição de haver distintas etnias, além de pessoas brancas, pardas e negras vivendo em seu território. 

Um segundo ponto a ser considerado é que desde Ptolomeu VI, o incesto real começou a ser praticado. Logo, possuímos mais de cem anos de gerações frutos de incestos. E sobre isso, aqueles que dizem que Cleópatra VII seria "puramente" descendente de gregos ou macedônios, também estão equivocados, pois os reis Ptolomeu II ao V, casaram-se com sírias e persas, logo, o elemento grego não era único. Além da condição que alguns reis ptolomaicos desposaram primas, que eram filhas de estrangeiras. 

Terceiro ponto a ser considerado é que não se sabe se Cleópatra V foi mãe de Cleópatra VII, havendo a possibilidade de que Ptolomeu XII possa ter se casado ou ter tido filhos com alguma amante, pois sabe-se que os reis Ptolomeu II ao V, tiveram mais de uma esposa, e o rei Ptolomeu X era conhecido por ser bastardo. 

Um quarto ponto é que Ptolomeu XII poderia ter se casado com sua filha Cleópatra VI, porém, escritores antigos como Estrabão, Porfírio e Eusébio de Cesareia, apresentam relatos contraditórios, ora dizendo que Cleópatra V e Cleópatra VI seriam mãe e filha, ou dizendo que ambas seriam a mesma pessoa. (ROLLER, 2010, p. 165-166). Essa confusão não foi a única, outros monarcas egípcios também foram confundidos com irmãos, filhos e primos. Os reis Ptolomeu IX, X e XI também chegaram a serem confundidos. 

Diante dessas condições, afirmar que Cleópatra seria negra, é impreciso, pois se desconhece quem teria sido sua mãe. E levando em consideração a prática do incesto real, tudo indica que ela era branca como os gregos e macedônios da época. No entanto, existe o fator de mestiçagem, o que poderia conceder a ela uma pele até mesmo parda. Mas esse fator também é hipotético, devido a falta de mais evidências a respeito. 

Outro aspecto a ser considerado é que Cleópatra V que é cogitada como sua possível mãe, também não possui uma origem precisa. Os documentos da época pouco falam sobre essa rainha, e ora se referem a ela como filha legítima ou bastarda de Ptolomeu IX ou Ptolomeu X. Além de não se saber quem seria a mãe dela, o que abre espaço para a possibilidade de que Cleópatra V poderia ser filha até mesmo de uma egípcia. Ainda mais se ela fosse fruto do relacionamento com uma amante. (GRANT, 1972, p. 4-5).

No ano de 2009 um esqueleto encontrado na cidade de Éfeso, atualmente na Turquia, foi considerado como sendo pertencente a princesa Arsinoe IV, irmã caçula de Cleópatra VII. A qual na época foi exilada do Egito, ao tentar dar um golpe de estado na irmã. Porém, embora a tumba tenha sido descoberta em 1926, somente décadas depois é que alguns estudiosos como a arqueóloga Hilke Thuer, defenderam que aqueles restos mortais pertenceram a Arsinoe IV, e ao se realizar a análise do esqueleto, constatou que ele conteria traços africanos e europeus, o que sugeriu ser uma mulher mestiça. Isso foi bem recebido na época pelos defensores que alegavam que Cleópatra VII seria fruto de mestiçagem. O problema é que outros arqueólogos contestaram não o exame do esqueleto, mas se realmente ele pertenceu a princesa Arsinoe, como afirmado por Thuer. A contestação se deve a condição de que não existem evidências nenhuma que corroborem que aquela tumba pertenceu a essa princesa. (QUEIRÓS, 2009). 

Esclarecido esses vários problemas que envolvem a origem de Cleópatra, passaremos agora para analisar algumas imagens produzidas sobre ela em vida. 

A iconografia egípcia e romana sobre Cleópatra

Cleópatra foi rainha do Egito ao longo de quase três décadas, atuando a contragosto como consorte de seus irmãos Ptolomeu XIII (62-47 a.C) e Ptolomeu XIV (60-44 a.C), nesse período, Cleópatra tornou-se amante de Júlio César, tendo conspirado contra seus irmãos, levando a morte de ambos, e dessa forma, ela passou a governar sozinha. Posteriormente seu filho com César, chamado Cesarião (47-30 a.C), foi eleito novo rei com o nome de Ptolomeu XV, em 44 a.C, mas por ter apenas três anos de idade, Cleópatra agiu como rainha-mãe e regente, educando o garoto para dar continuidade ao domínio ptolomaico. 

Com o assassinato de César em 44 a.C, posteriormente Cleópatra tornou-se amante de Marco Antônio, relação que manteve até o fim da vida, até que eles se casaram em 32 a.C. Do relacionamento com Antônio, Cleópatra deu à luz a três filhos: os gêmeos Alexandre Hélio e Ptolomeu Filadelfo, e uma filha chamada  Cleópatra Selene II. Vale ressalvar que nessa época, Marco Antônio era casado, tinha outros filhos, mas abandonou tudo, incluindo trair Roma, para ir morar no Egito. 

Durante o período que Cleópatra governou atuando como regente de seu filho, imagens foram produzidas dela, o que incluiu estátuas, altos-relevos e moedas. 

Cleópatra VII e Ptolomeu XV Cesarião, representados como os antigos faraós e rainhas, numa parede do Templo de Dendarah, século I a.C.

Os ptolomaicos chegaram a fazer representações suas de acordo com a arte egípcia de representar os faraós e rainhas. E por ser um padrão artístico, não é possível ter aspectos fisionômicos precisos na maioria dessas imagens. Mas citei esse exemplo para que o leitor saiba que existem representações egípcias de Cleópatra, pois alguns acham que somente houve representações de origem romana e grega da rainha. Já na imagem abaixo, temos um busto egípcio de Cleópatra, o qual mostra um rosto levemente arredondado, queixo curto, mas nariz, olhos e orelhas, padrão de outras estátuas egípcias. Além disso, a rainha usa uma peruca e uma tiara real. 

Busto de Cleópatra VII, séc. I a.C. Exibido no Museu Real de Ontario, Canadá. 

Enquanto as representações egípcias da face de Cleópatra suscitam dúvidas quanto a sua real aparência, a iconografia romana apresenta aspectos mais interessantes e detalhados sobre o rosto dessa dita formosa rainha. Entretanto, as representações romanas padecem também de uma problemática, pois existem diferentes estátuas e bustos creditados como sendo de Cleópatra, mas não há uma certeza se realmente seria o rosto da rainha ou de uma outra mulher qualquer. E por serem vários casos, decidi apenas abordar alguns deles. 

Busto romano que possivelmente seria uma representação de Cleópatra, feito durante a época que ela morou em Roma, entre os anos de 46-44 a.C. Atualmente está exposto no Museu Britânico. 

Embora haja dúvidas se esse busto seria uma retratação da rainha Cleópatra VII, no entanto, observa-se que ele apresenta traços em comum com o visual da monarca: o nariz adunco e o queixo curto e levemente pontudo, dois aspectos que voltaremos a ver em outras representações creditadas a ela. No entanto, nessa estátua, a mulher utiliza tranças em estilo romano, algo que seria apenas uma escolha artística do escultor ou uma referência a época que Cleópatra viveu em Roma, onde ela passou a se vestir e seguir à moda romana. Entretanto, a imagem abaixo é provavelmente a representação mais famosa que se tem de Cleópatra. 

Busto de Cleópatra VII, no Museu Altes, Berlim, Alemanha. 

O busto acima é creditado como sendo uma representação de Cleópatra. Se comparado a outras estátuas notamos a mesma curvatura do queixo, o nariz adunco, além da rainha esta usando cabelo preso em coque, e um diadema real. No caso, em algumas representações, Cleópatra costuma usar um diadema ou tiara, como forma de indicar seu status como governante do Egito. Todavia, alguns estudiosos suscitam indagações se as estátuas apresentadas acima pertenceriam a Cleópatra mesmo, porém, se compararmos a uma outra iconografia dela, encontramos mais pistas a respeito. 

Durante o período que Cleópatra governou o Egito, atuando como rainha-mãe e regente de Ptolomeu XV, e nessa época ela foi amante de Marco Antônio, alguns denários de prata foram cunhados para celebrar a união do casal e a vitória de Antônio na Armênia. Abaixo podemos ver uma dessas moedas, a qual num lado apresenta a efígie do general romano e do outro encontra-se a efígie da rainha egípcia. 

Denários de prata, representando Marco Antônio e Cleópatra VII.

Aqui temos novamente um questionamento quanto a famosa beleza da rainha. Nesses denários cunhados por volta do ano 34 a.C, observa-se Cleópatra retratada novamente com o nariz adunco, cabelos curtos, queixo curto, além de usar um diadema real. Alguns estudiosos chegaram a dizer que devido aos poucos detalhes presentes nessas moedas, não poderia se confirmar que Cleópatra teria essa fisionomia, porém, quando o comparamos com as possíveis estátuas que a representaria, observa-se as mesmas características em comum: o corte de cabelo, o diadema, o nariz e o queixo. 

No entanto, algumas pessoas poderão dizer que com base nessas imagens, Cleópatra não teria sido uma mulher bela como vemos em filmes, pinturas ou ouvimos falar. Aqui é preciso pensar um pouco. A beleza é algo que varia de acordo com a cultura e a época, logo, pensar a beleza de Cleópatra de acordo com padrões dos séculos XX e XXI, é anacronismo, pois são padrões distintos dos quais os egípcios, gregos e romanos tinham há mais de dois mil anos. Sendo assim, se Cleópatra pode parecer feia para os padrões atuais, mas em sua época ela poderia ser considerada uma mulher muito bela. 

Além disso, é preciso também considerar que o forte destaque a sua beleza, tenha sido algo proposital, surgido a partir de alguns autores que repudiavam a pessoa dela, e a consideravam apenas um "rostinho bonito" que se valeu de sua sexualidade para seduzir Júlio César e Marco Antônio. Mas esses autores viam isso como uma forma de rebaixar Cleópatra apenas como tendo sido uma rainha fútil e luxuriosa, algo citado no início desse texto e até comentado por historiadores. Mas se ela tivesse sido apenas uma mulher bela, então ela deveria ter tido uma boa equipe de governo, para poder governar por mais de vinte anos e sobreviver a tentativas de golpe de estado. 

Como alguns biógrafos atuais relatam, Cleópatra não teria sido apenas um "rostinho bonito", ela seria uma mulher sagaz, com uma boa assessoria e talvez até mesmo tivesse um nível considerado de governança, entendendo mais de política e diplomacia do que supomos. Fato esse que o biógrafo grego Plutarco não menciona Cleópatra VII como uma bela mulher, apesar que os relatos dele sobre a rainha são contraditórios em alguns aspectos, no entanto, é interessante ele não ter destacado ainda no século I d.C, este fator de beleza pelo qual a rainha é até hoje conhecida. (BALTHAZAR, 2013). 

Todavia, ainda resta uma questão a ser esclarecida e que normalmente gera muitas dúvidas e debates calorosos: qual seria a cor da pele dela? Ela seria branca como os gregos e romanos? Ou seria parda ou até mesmo negra? As fontes escritas da época não citam esse detalhe, apenas a descrevem como uma mulher que se vestia bem, seria bonita, elegante e portava-se como uma grega.  

A ideia de que somente o fato de ela ter nascido no Egito, a tornaria automaticamente negra, é um erro. Havia gente negra que nasceu na Grécia e na Itália, naquele tempo. Pois é preciso recordar que Roma embora ainda fosse uma república, possuía um território que se estendia em três continentes, logo, a migração de distintos povos pelo território romano era intensa. E isso era intensificado por conta do modelo escravocrata da época, onde os romanos escravizavam povos de distintas nacionalidades e etnias para diversas finalidades. Fato esse que há relatos de soldados pardos e negros servindo nas legiões romanas. 

Sendo assim, o local de nascimento de Cleópatra não seria uma determinante para sua cor. Aqui retomamos ao caso da sua família, a qual a partir de Ptolomeu VI começou a praticar regularmente o incesto real, todavia, antes de isso acontecer, houve reis dessa dinastia que se casaram com persas e sírias, além de reis que desposaram primas de primeiro ou segundo grau, as quais eram filhas de estrangeiras e de egípcias. A ideia de que os ptolomaicos sempre odiaram os egípcios e jamais teriam tido relações com eles, é exagerada. Houve animosidade, sim, mas o quão grande ela teria sido, isso é algo que não temos como informar. 


Nesta representação acima, vemos uma Cleópatra de pele de tom médio, podendo variar entre o chamado "moreno claro" e o "oliva" (a depender do padrão adotado, essa variação é considerada como sendo uma pele parda), cores de pele comum entre os europeus e africanos da região mediterrânica, ainda hoje presente em tais populações; além disso vemos, olhos pretos e cabelo cacheado. Aqui é importante salientar que a ideia de que todo grego e romano teriam cabelos lisos, não é bem assim, a predominância de cabelos cacheados era grande, algo inclusive vistas em estátuas e pinturas. No próprio Egito, os cabelos lisos que vemos rainhas e nobres usando, em muitas vezes se tratavam de perucas e não cabelos naturais. 

Na reconstituição abaixo, apresentada em 2017, com base no estudo da egiptóloga Sally-Ann Ashton, também baseada no busto de Altes, vemos uma Cleópatra de pele um pouco mais clara, mas mantendo os cabelos cacheados, o nariz adunco, olhos castanhos e lábios finos. Por essa imagem, algumas pessoas disseram que estaria errada, pois aqui não temos uma Cleópatra bela como vemos no cinema e em pinturas. Mas novamente recordo que a ideia de beleza é cultural e varia com o tempo. 


Diante disso, à guisa de conclusão, não é possível definir com segurança qual seria a cor de Cleópatra, todavia, pelas evidências arqueológicas e estudos realizados, a rainha teria tido uma cor que oscilaria entre o branco-amarelado ao pardo, isso por conta de não se conhecer a procedência de sua mãe. Além disso, a ideia de que ela seria "grega pura", também é equivocada. Aqui devemos considerar que a rainha teria um porte grego no sentido dos costumes e por falar essa língua, já que parte de seus antepassados eram também macedônios, persas e sírios. Além disso, Cleópatra também tinha costumes egípcios e romanos e até mesmo morou brevemente em Roma, na época que era amante de Júlio César. E quanto a ela ter sido uma sedutora fatal, isso também é questionável; ela até pode ter seduzido César e Antônio, mas tal condição foi exagerada por escritores e pintores. 

NOTA 1: A atriz britânica Elizabeth Taylor (1932-2011) interpretou a rainha no filme Cleópatra (1963), tornando-se ainda hoje a representação cinematográfica mais icônica da rainha, apesar que Taylor fosse bastante branca e tivesse olhos claros. 
NOTA 2: No filme Asterix e Obelix: Missão Cleópatra (2002), a rainha foi interpretada pela musa italiana, Monica Belucci, que representou uma Cleópatra bastante sensual e abobalhada. 
NOTA 3: Nos quadrinhos de Asterix, Cleópatra que aparece em algumas poucas histórias, sendo representada com um tom de pele que varia do branco-amarelado ao pardo. 
NOTA 4: No jogo Assassin's Creed: Origins (2017), Cleópatra é representada como sendo parda. 
NOTA 5: Na série de jogos Civilization, Cleópatra normalmente aparece como sendo branca. 
NOTA 6: No jogo Civilization Revolution (2008), Cleópatra é retratada como sendo negra e tendo cabelo crespo. 
NOTA 7: Em outros filmes onde a rainha aparece, ela também é retratada como sendo branca, segundo padrões estadunidenses e europeus. Essa tendência é inclusive vista nas pinturas sobre a rainha, onde algumas até mesmo a retrataram com olhos claros, e algumas poucas a representaram como loura ou ruiva. 
NOTA 8: O romance da rainha com Marco Antônio, inspirou uma das tragédias de William Shakespeare, intitulada Antônio e Cleópatra (1607). No caso, Shakespeare colheu informações nas Vidas Paralelas de Plutarco para escrever essa peça e a tragédia Júlio César (1599). 
NOTA 9: A ideia de que todos os europeus são brancos da mesma forma é equivocada. Os europeus do sul do continente possuem uma tonalidade mais escura em relação aos que vivem mais ao norte, os quais tem uma pele mais branca, podendo chegar a tonalidade do leite ou neve. Além disso, os europeus do sul costumam ser morenos e terem olhos escuros. Sendo o louro pouco comum, e o ruivo é raro. Já os europeus do norte também são morenos, mas há mais facilidade de achar pessoas com cabelos louros e ruivos, olhos azuis e verdes. 
NOTA 10: A série documental Rainha Cleópatra (2023) da Netflix gerou polêmica ao mostrar uma Cleopátra negra, o que levou a protestos no próprio Egito, acusando a produção de deturpar fatores históricos. 

Referências bibliográficas:

BALTHAZAR, Gregory da Silva. A(s) Cleópatra(s) de Plutarco: As múltiplas faces da última monarca do Antigo Egito nas Vidas Paralelas. Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. 

BURSTEIN, Stanley M. The Reign of Cleopatra. London, Greenwood Press, 2010. 

GRANT, Michael. Cleopatra. Edison, Barnes and Noble Books, 1972.

ROLLER, Duane W. Cleopatra: A Biography. Oxford, Oxford University Press, 2010. 

Referência da internet:

QUEIRÓS, Luís Miguel. Irmã de Cleópatra era africana. 2009. Disponível em: https://www.publico.pt/2009/03/17/jornal/irma-de-cleopatra-era-africana-299302

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Animais fantásticos e onde habitam: a literatura dos bestiários

Me valendo desse trocadilho com o título de um dos livros de J. K. Rowling, aproveitei para falar sobre o verdadeiro livro dos "animais fantásticos", chamados na Europa de bestiários. Obras que foram produzidas entre os séculos XI ao XV, mas cujo legado remonta a Antiguidade Clássica, com trabalhos de autores gregos e romanos sobre os animais. No presente texto comentei sobre esse peculiar gênero literário que não pode ser considerado um estudo zoológico propriamente, pois como veremos adiante, a maioria dos bestiários não se preocupava em fornecer informações biológicas e fisiológicas sobre os animais, mas explicar seus simbolismos. 

Antecedentes: 

Na Antiguidade Clássica, três livros que abordavam os animais se destacaram: Da História dos Animais (Ton peri ta zoia historion), escrito pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C), consistindo numa obra de caráter zoológico, que descreve aspectos biológicos, fisiológicos e comportamentais de diversas espécies animais da Europa, África e Ásia, as quais os gregos antigos possuíam contato. Apesar de ser um trabalho denso, dividido em dez partes, hoje se reconhece que várias descrições são equivocadas e imprecisas. Ainda assim, a obra de Aristóteles teve o mérito de ser um dos poucos estudos voltado para os animais, em seu tempo. 

Edição bizantina do século XII, Da história dos animais. 

O estudo de Aristóteles influenciou outros trabalhos como o História Natural (77-79 d.C) de Plínio, o Velho (23-79 d.C), o qual consistiu numa enciclopédia sobre a natureza, abordando os animais, plantas, minerais, geografia, antropologia, matemática, física, etc. Os livros VIII ao XI, e XXVIII a XXXII, versam especificamente sobre os animais, reais e fantásticos, inclusive recitando até mesmo medicamentos feitos com partes destes animais. Algumas das descrições neste livro, são baseadas na obra de Aristóteles e de outros autores gregos e romanos. A obra de Plínio influenciou outros autores romanos, gregos e estudiosos de outras nacionalidades, pelos séculos seguintes, incluindo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), que também escreveu uma enciclopédia intitulada Etimologia (Etymologiae), dedicando um dos livros a abordar sobre os animais. 

Frontispício da História Natural, em uma edição de 1669
Frontispício da História Natural, em edição de 1669. 

No século II d.C. foi escrito o livro Fisiólogo (Physiologus), redigido em grego e de autoria desconhecida, talvez escrito em Alexandria. Neste livro, ele já apresentava diferenças em relação as obras de Aristóteles e Plínio, pois no Fisiólogo o foco era menos o intuito zoológico, prezando mais por um intuito de curiosidade sobre os animais reais e fantásticos, além de apresentar anedotas e simbolismos. Apesar dessa mudança, o Fisiólogo tornou-se um livro relativamente popular no final da Antiguidade e durante a Alta Idade Média (V-IX), recebendo novas versões por outros autores, incluindo edições ilustradas. Além disso, seu estilo em mesclar elementos físicos, com descrições simbólicas, tornou-se modelo para os bestiários. 

Uma página com ilustrações de uma edição do Fisiólogo datada do século X. 

Os bestiários: 

Angelica Varandas (2006, p. 1) comenta que os bestiários surgiram por volta do século XII, em países como França e Inglaterra, depois havendo edições alemães e italianas, apesar de que eles fossem redigidos na maioria das vezes em latim. Os bestiários ou livro das bestas eram um tipo específico de literatura europeia da Idade Média, identificados a partir de três características básicas: 1) descrição breve de animais reais e fantásticos; 2) a descrição era baseada em elementos alegóricos e simbólicos, com intuitos didáticos e moralistas; 3) eram livros ilustrados. 

A maioria dos bestiários não possuem autoria definida, além disso, não se sabe quem foram os ilustradores, porém, alguns bestiários apresentam nomes de possíveis autores, os quais costumavam serem clérigos. 

Varandas (2006, p. 2-3) também comenta que os textos dos bestiários costumavam serem curtos, tendo de uma a duas páginas, o que incluiria uma ou mais ilustrações. Esses textos eram divididos em dois momentos: a descrição física do animal, o que apresentava também informações sobre seu comportamento e hábitat, cujas informações eram chamadas de proprietas ou naturas. O segundo momento era intitulado moralistas ou figuras, que consistia numa interpretação alegórica e simbólica dos animais, tendo como base a moralidade da religião cristã. 

Ilustração de um leopardo caçando um cervo, na presença de dois camelos. Página do Bestiário de Rochester, século XIII. 

No entanto, para além dessas características alegóricas e simbólicas, os bestiários não eram obras de zoologia como foram os livros de Aristóteles e Plínio, pois a maioria das informações sobre os animais eram imprecisas e baseadas até mesmo em lendas. Michel Pastoureau (2012, p. 5) cita que em alguns bestiários falavam que os cervos viveriam mil anos, os javalis teriam chifres na boca, as doninhas gerariam seus filhotes pelas orelhas, os touros perderiam suas forças se fossem amarrados a uma figueira, o sangue da cabra era tão quente que derreteria o diamante, e o avestruz seria um tipo de camelo com penas, patas e asas. 

Observa-se por essas descrições fantasiosas, como os bestiários não possuíam nada de científico. Inclusive devem ser encarados mais como livros de entretenimento e curiosidade, pois mesmo para época que foram escritos, não significava que todo mundo leva-se a sério o que estava escrito neles. Por outro lado, Varandas (2006, p. 1) salienta que os bestiários deveriam ter sido interpretados como obras de moralidade (exempla), algo visto nas fábulas gregas, as quais muitas usavam animais em suas narrativas. Neste ponto, o bestiário tornava os animais em personagens alegóricos para explicar ideias cristãs, para falar sobre virtudes e pecados. 

Quanto a tais alegorias, o rugido do leão era associado com o sopro da vida de Deus, o unicórnio personificava a pureza cristã, o cervo era símbolo de virtude, o macaco e o bode representavam luxúria, o lobo representava raiva e perigo, a pomba personificava humildade, a serpente poderia simbolizar o pecado, a prudência, a sabedoria, a renovação, etc. Neste ponto, sublinha-se que as interpretações simbólicas nos bestiários variavam de livro para livro, onde alguns exemplares conteriam certas descrições que não existiam em outros, o que incluía mudanças na quantidade e tipos de animais retratados. No entanto, havia casos em que as interpretações simbólicas eram padronizadas, sendo repetidas em vários bestiários. (PASTOUREAU, 2012). 

Quanto aos animais retratados nesses livros, se o leitor espera encontrar uma coletânea de animais fantásticos, provavelmente irá se decepcionar. A maioria dos animais retratados nos bestiários eram bichos reais, oriundos da fauna europeia, norte africana e do Oriente Médio. 

Sobre isso, Pastoureau (2012) comenta que os animais mais comumente retratados nos bestiários eram: o leão, o lobo, a pantera, o leopardo, o cervo, o javali, o urso, o macaco, o elefante, a cabra/bode, a águia, coruja, raposa, serpente, javali, cervo, pomba, abutre, hiena, etc. Alguns animais que apareciam em outras versões eram o coelho/lebre, tartaruga, tigre, crocodilo, hipopótamo, falcão, corvo, cisne, galo, cegonha, salamandra, lagarto, etc. 

A maioria dos bestiários prezavam por descrever animais selvagens, já que eram menos familiares as pessoas, pois animais domésticos eram vistos diariamente. Fato esse que a presença de cavalos, touros, gatos, cães, burros, gansos, porcos, variava de bestiário para bestiário. 

Ilustração de um bestiário do século XIII, mostrando três elefantes, um dragão e uma mandrágora. Nos bestiários, dragões e elefantes eram descritos como sendo espécies inimigas. 

Pastoureau (2012) também salienta que animais aquáticos eram poucas vezes abordados nos bestiários, havendo breves menções a peixes (de forma genérica), ostras, baleias, focas, crocodilos e hipopótamos. Porém, menções a outros tipos de animais marinhos ficavam de fora. Além disso, alguns bestiários citavam várias espécies de serpentes, algumas inclusive inexistentes como serpentes de duas cabeça, serpentes com asas, serpentes coloridas, etc. 

Quanto aos animais fantásticos representados nos bestiários, os mais comumente retratados eram os dragões, salamandras (aqui na ideia de salamandra de fogo), fênix, unicórnio, basilisco e as vezes apresentavam sereias e grifos. Neste ponto é interessante citar que muitos bestiários não abordavam os seres antropomórficos, ou seja, aquelas criaturas com partes humanas. O motivo disso provavelmente se deve por se tratarem de monstros e não de animais, pois o bestiário medieval era um livro que comentava a respeito de animais, não de monstros como alguns pensam. Logo, somente alguns poucos bestiários traziam menções a seres mitológicos como sereias, centauros, faunos, etc. 

Apesar dos bestiários focarem principalmente nos animais selvagens reais, não significa que os relatos sobre os mesmos fossem precisos. No caso, vimos anteriormente que muitas das descrições eram de teor alegórico, simbólico e até baseadas em lendas. Porém, a representação destes animais selvagens em alguns bestiários eram bem estranhas, sendo imprecisas quanto as dimensões de seus tamanhos, coloração, mas principalmente em sua fisionomia. Em muitos casos os ilustradores eram homens que nunca viram uma hiena, leopardo, crocodilo, elefante, etc. logo, eles se baseavam nas descrições desses bichos para desenhá-los, e sendo as descrições imprecisas, o resultado ia do bizarro ao esdruxulo. 

Representação de um crocodilo no Bestiário de Rochester, século XIII. 

Varandas (2006, p. 24) comenta que a alteração das cores de alguns animais não seria por imprecisão do ilustrador, mas seguiria um propósito simbólico. Fato esse que a condição de se representar leões nas cores azul ou preto, atenderiam uma causa simbólica. Além disso, é comum ver dragões e serpentes de diferentes cores. Neste ponto, Pastoureau (2012) salienta que no medievo as cores possuíam simbolismos, logo, pintar ou destacar determinada cor, transmitia uma mensagem. 

No bestiário a imagem dos animais não era apenas algo "ilustrativo", pois além de mostrar como seria sua aparência, as cores, formas e a cena em que ele estivesse inserido, representava um texto visual. Condição essa que temos em alguns bestiários cenas de pesca, caça, confronto de animais, e até mesmo a presença de pessoas, de Jesus, dos Evangelistas (pois três deles eram comparados a animais) e de anjos. 

Cena da caça de um unicórnio, retratada no Bestiário Harley, século XIII. Segundo a lenda, os unicórnios são animais ariscos e difíceis de serem caçados. Para isso ser feito, ele deveria ser atraído numa armadilha, usando-se uma mulher virgem, pois enxergando a pureza daquela mulher, o unicórnio se aproximaria dela. 

A maioria dos bestiários conhecidos, são datados dos séculos XIII e XIV, sendo que alguns apenas se conhecem poucas páginas, apesar que algumas edições conseguiram chegar mais intactas como o bestiário de Rochester, o bestiário de Aberdeen, o bestiário do Amor, o bestiário de Theobaldo, o bestiário de São Alberto, entre outros. Essas obras apresentam animais em comum, mas com variações em sua fisionomia e descrições, apesar que em alguns casos, os autores e ilustradores copiassem ideias de outros bestiários. 

No final do século XIV, os bestiários começaram a entrar em declínio, os motivos não são precisos, talvez deveu-se a falta de interesse por estes livros, os quais eram caros de serem produzidos, condição essa que havia versões mais baratas, cujas ilustrações eram em preto e branco. Varandas e Pastoureau comentam que outra possibilidade tenha sido as mudanças de pensamento, pois com o advento do Renascimento, cresceu a racionalização, logo, artistas, literatos, filósofos e cientistas começaram a prezar por obras com menos moralismo religioso, e com mais precisão científica. Fato esse que no século XVI, começam a surgir ilustrações mais realistas dos animais. 

Mas não significa que esse gênero literário sumiu da Europa, ele somente perdeu espaço, pois nos séculos XV ao XVII, encontram-se alguns poucos bestiários inéditos, pois, geralmente os que eram publicados, consistiam em impressões de obras já existentes ou do Fisiólogo. Além disso, alguns bestiários novos, usados para estudos de alquimia, cabala, astrologia e magia, acrescentavam outros monstros não presentes nos bestiários medievais. 

Fontes:

ARISTOTÉLES. História dos Animais. Tradução e revisão Carlos Almaça. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. 

MORINI, Luigina (ed). Bestiari Medievali. Torino, Einaudi, 1996. 

PHSYOLOGUS. A Medieval Book of Nature Lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago, University Chicago Press, 2009. 

PLINY, the Elder. Natural History. Translated by Dr. Philemon Holland. London, The Club, 1847-1848. 

Referências bibliográficas: 

PASTOUREAU, Michel. Bestiari del Medieoevo. Torino, Einaudi, 2012. 

VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Revista Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

Links sugeridos: 

The Medieval Bestiary

The Aberdeen Bestiary

Revista Medievalista, dossiê Bestiário Medieval