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Leandro Vilar

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Animais fantásticos e onde habitam: a literatura dos bestiários

Me valendo desse trocadilho com o título de um dos livros de J. K. Rowling, aproveitei para falar sobre o verdadeiro livro dos "animais fantásticos", chamados na Europa de bestiários. Obras que foram produzidas entre os séculos XI ao XV, mas cujo legado remonta a Antiguidade Clássica, com trabalhos de autores gregos e romanos sobre os animais. No presente texto comentei sobre esse peculiar gênero literário que não pode ser considerado um estudo zoológico propriamente, pois como veremos adiante, a maioria dos bestiários não se preocupava em fornecer informações biológicas e fisiológicas sobre os animais, mas explicar seus simbolismos. 

Antecedentes: 

Na Antiguidade Clássica, três livros que abordavam os animais se destacaram: Da História dos Animais (Ton peri ta zoia historion), escrito pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C), consistindo numa obra de caráter zoológico, que descreve aspectos biológicos, fisiológicos e comportamentais de diversas espécies animais da Europa, África e Ásia, as quais os gregos antigos possuíam contato. Apesar de ser um trabalho denso, dividido em dez partes, hoje se reconhece que várias descrições são equivocadas e imprecisas. Ainda assim, a obra de Aristóteles teve o mérito de ser um dos poucos estudos voltado para os animais, em seu tempo. 

Edição bizantina do século XII, Da história dos animais. 

O estudo de Aristóteles influenciou outros trabalhos como o História Natural (77-79 d.C) de Plínio, o Velho (23-79 d.C), o qual consistiu numa enciclopédia sobre a natureza, abordando os animais, plantas, minerais, geografia, antropologia, matemática, física, etc. Os livros VIII ao XI, e XXVIII a XXXII, versam especificamente sobre os animais, reais e fantásticos, inclusive recitando até mesmo medicamentos feitos com partes destes animais. Algumas das descrições neste livro, são baseadas na obra de Aristóteles e de outros autores gregos e romanos. A obra de Plínio influenciou outros autores romanos, gregos e estudiosos de outras nacionalidades, pelos séculos seguintes, incluindo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), que também escreveu uma enciclopédia intitulada Etimologia (Etymologiae), dedicando um dos livros a abordar sobre os animais. 

Frontispício da História Natural, em uma edição de 1669
Frontispício da História Natural, em edição de 1669. 

No século II d.C. foi escrito o livro Fisiólogo (Physiologus), redigido em grego e de autoria desconhecida, talvez escrito em Alexandria. Neste livro, ele já apresentava diferenças em relação as obras de Aristóteles e Plínio, pois no Fisiólogo o foco era menos o intuito zoológico, prezando mais por um intuito de curiosidade sobre os animais reais e fantásticos, além de apresentar anedotas e simbolismos. Apesar dessa mudança, o Fisiólogo tornou-se um livro relativamente popular no final da Antiguidade e durante a Alta Idade Média (V-IX), recebendo novas versões por outros autores, incluindo edições ilustradas. Além disso, seu estilo em mesclar elementos físicos, com descrições simbólicas, tornou-se modelo para os bestiários. 

Uma página com ilustrações de uma edição do Fisiólogo datada do século X. 

Os bestiários: 

Angelica Varandas (2006, p. 1) comenta que os bestiários surgiram por volta do século XII, em países como França e Inglaterra, depois havendo edições alemães e italianas, apesar de que eles fossem redigidos na maioria das vezes em latim. Os bestiários ou livro das bestas eram um tipo específico de literatura europeia da Idade Média, identificados a partir de três características básicas: 1) descrição breve de animais reais e fantásticos; 2) a descrição era baseada em elementos alegóricos e simbólicos, com intuitos didáticos e moralistas; 3) eram livros ilustrados. 

A maioria dos bestiários não possuem autoria definida, além disso, não se sabe quem foram os ilustradores, porém, alguns bestiários apresentam nomes de possíveis autores, os quais costumavam serem clérigos. 

Varandas (2006, p. 2-3) também comenta que os textos dos bestiários costumavam serem curtos, tendo de uma a duas páginas, o que incluiria uma ou mais ilustrações. Esses textos eram divididos em dois momentos: a descrição física do animal, o que apresentava também informações sobre seu comportamento e hábitat, cujas informações eram chamadas de proprietas ou naturas. O segundo momento era intitulado moralistas ou figuras, que consistia numa interpretação alegórica e simbólica dos animais, tendo como base a moralidade da religião cristã. 

Ilustração de um leopardo caçando um cervo, na presença de dois camelos. Página do Bestiário de Rochester, século XIII. 

No entanto, para além dessas características alegóricas e simbólicas, os bestiários não eram obras de zoologia como foram os livros de Aristóteles e Plínio, pois a maioria das informações sobre os animais eram imprecisas e baseadas até mesmo em lendas. Michel Pastoureau (2012, p. 5) cita que em alguns bestiários falavam que os cervos viveriam mil anos, os javalis teriam chifres na boca, as doninhas gerariam seus filhotes pelas orelhas, os touros perderiam suas forças se fossem amarrados a uma figueira, o sangue da cabra era tão quente que derreteria o diamante, e o avestruz seria um tipo de camelo com penas, patas e asas. 

Observa-se por essas descrições fantasiosas, como os bestiários não possuíam nada de científico. Inclusive devem ser encarados mais como livros de entretenimento e curiosidade, pois mesmo para época que foram escritos, não significava que todo mundo leva-se a sério o que estava escrito neles. Por outro lado, Varandas (2006, p. 1) salienta que os bestiários deveriam ter sido interpretados como obras de moralidade (exempla), algo visto nas fábulas gregas, as quais muitas usavam animais em suas narrativas. Neste ponto, o bestiário tornava os animais em personagens alegóricos para explicar ideias cristãs, para falar sobre virtudes e pecados. 

Quanto a tais alegorias, o rugido do leão era associado com o sopro da vida de Deus, o unicórnio personificava a pureza cristã, o cervo era símbolo de virtude, o macaco e o bode representavam luxúria, o lobo representava raiva e perigo, a pomba personificava humildade, a serpente poderia simbolizar o pecado, a prudência, a sabedoria, a renovação, etc. Neste ponto, sublinha-se que as interpretações simbólicas nos bestiários variavam de livro para livro, onde alguns exemplares conteriam certas descrições que não existiam em outros, o que incluía mudanças na quantidade e tipos de animais retratados. No entanto, havia casos em que as interpretações simbólicas eram padronizadas, sendo repetidas em vários bestiários. (PASTOUREAU, 2012). 

Quanto aos animais retratados nesses livros, se o leitor espera encontrar uma coletânea de animais fantásticos, provavelmente irá se decepcionar. A maioria dos animais retratados nos bestiários eram bichos reais, oriundos da fauna europeia, norte africana e do Oriente Médio. 

Sobre isso, Pastoureau (2012) comenta que os animais mais comumente retratados nos bestiários eram: o leão, o lobo, a pantera, o leopardo, o cervo, o javali, o urso, o macaco, o elefante, a cabra/bode, a águia, coruja, raposa, serpente, javali, cervo, pomba, abutre, hiena, etc. Alguns animais que apareciam em outras versões eram o coelho/lebre, tartaruga, tigre, crocodilo, hipopótamo, falcão, corvo, cisne, galo, cegonha, salamandra, lagarto, etc. 

A maioria dos bestiários prezavam por descrever animais selvagens, já que eram menos familiares as pessoas, pois animais domésticos eram vistos diariamente. Fato esse que a presença de cavalos, touros, gatos, cães, burros, gansos, porcos, variava de bestiário para bestiário. 

Ilustração de um bestiário do século XIII, mostrando três elefantes, um dragão e uma mandrágora. Nos bestiários, dragões e elefantes eram descritos como sendo espécies inimigas. 

Pastoureau (2012) também salienta que animais aquáticos eram poucas vezes abordados nos bestiários, havendo breves menções a peixes (de forma genérica), ostras, baleias, focas, crocodilos e hipopótamos. Porém, menções a outros tipos de animais marinhos ficavam de fora. Além disso, alguns bestiários citavam várias espécies de serpentes, algumas inclusive inexistentes como serpentes de duas cabeça, serpentes com asas, serpentes coloridas, etc. 

Quanto aos animais fantásticos representados nos bestiários, os mais comumente retratados eram os dragões, salamandras (aqui na ideia de salamandra de fogo), fênix, unicórnio, basilisco e as vezes apresentavam sereias e grifos. Neste ponto é interessante citar que muitos bestiários não abordavam os seres antropomórficos, ou seja, aquelas criaturas com partes humanas. O motivo disso provavelmente se deve por se tratarem de monstros e não de animais, pois o bestiário medieval era um livro que comentava a respeito de animais, não de monstros como alguns pensam. Logo, somente alguns poucos bestiários traziam menções a seres mitológicos como sereias, centauros, faunos, etc. 

Apesar dos bestiários focarem principalmente nos animais selvagens reais, não significa que os relatos sobre os mesmos fossem precisos. No caso, vimos anteriormente que muitas das descrições eram de teor alegórico, simbólico e até baseadas em lendas. Porém, a representação destes animais selvagens em alguns bestiários eram bem estranhas, sendo imprecisas quanto as dimensões de seus tamanhos, coloração, mas principalmente em sua fisionomia. Em muitos casos os ilustradores eram homens que nunca viram uma hiena, leopardo, crocodilo, elefante, etc. logo, eles se baseavam nas descrições desses bichos para desenhá-los, e sendo as descrições imprecisas, o resultado ia do bizarro ao esdruxulo. 

Representação de um crocodilo no Bestiário de Rochester, século XIII. 

Varandas (2006, p. 24) comenta que a alteração das cores de alguns animais não seria por imprecisão do ilustrador, mas seguiria um propósito simbólico. Fato esse que a condição de se representar leões nas cores azul ou preto, atenderiam uma causa simbólica. Além disso, é comum ver dragões e serpentes de diferentes cores. Neste ponto, Pastoureau (2012) salienta que no medievo as cores possuíam simbolismos, logo, pintar ou destacar determinada cor, transmitia uma mensagem. 

No bestiário a imagem dos animais não era apenas algo "ilustrativo", pois além de mostrar como seria sua aparência, as cores, formas e a cena em que ele estivesse inserido, representava um texto visual. Condição essa que temos em alguns bestiários cenas de pesca, caça, confronto de animais, e até mesmo a presença de pessoas, de Jesus, dos Evangelistas (pois três deles eram comparados a animais) e de anjos. 

Cena da caça de um unicórnio, retratada no Bestiário Harley, século XIII. Segundo a lenda, os unicórnios são animais ariscos e difíceis de serem caçados. Para isso ser feito, ele deveria ser atraído numa armadilha, usando-se uma mulher virgem, pois enxergando a pureza daquela mulher, o unicórnio se aproximaria dela. 

A maioria dos bestiários conhecidos, são datados dos séculos XIII e XIV, sendo que alguns apenas se conhecem poucas páginas, apesar que algumas edições conseguiram chegar mais intactas como o bestiário de Rochester, o bestiário de Aberdeen, o bestiário do Amor, o bestiário de Theobaldo, o bestiário de São Alberto, entre outros. Essas obras apresentam animais em comum, mas com variações em sua fisionomia e descrições, apesar que em alguns casos, os autores e ilustradores copiassem ideias de outros bestiários. 

No final do século XIV, os bestiários começaram a entrar em declínio, os motivos não são precisos, talvez deveu-se a falta de interesse por estes livros, os quais eram caros de serem produzidos, condição essa que havia versões mais baratas, cujas ilustrações eram em preto e branco. Varandas e Pastoureau comentam que outra possibilidade tenha sido as mudanças de pensamento, pois com o advento do Renascimento, cresceu a racionalização, logo, artistas, literatos, filósofos e cientistas começaram a prezar por obras com menos moralismo religioso, e com mais precisão científica. Fato esse que no século XVI, começam a surgir ilustrações mais realistas dos animais. 

Mas não significa que esse gênero literário sumiu da Europa, ele somente perdeu espaço, pois nos séculos XV ao XVII, encontram-se alguns poucos bestiários inéditos, pois, geralmente os que eram publicados, consistiam em impressões de obras já existentes ou do Fisiólogo. Além disso, alguns bestiários novos, usados para estudos de alquimia, cabala, astrologia e magia, acrescentavam outros monstros não presentes nos bestiários medievais. 

Fontes:

ARISTOTÉLES. História dos Animais. Tradução e revisão Carlos Almaça. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. 

MORINI, Luigina (ed). Bestiari Medievali. Torino, Einaudi, 1996. 

PHSYOLOGUS. A Medieval Book of Nature Lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago, University Chicago Press, 2009. 

PLINY, the Elder. Natural History. Translated by Dr. Philemon Holland. London, The Club, 1847-1848. 

Referências bibliográficas: 

PASTOUREAU, Michel. Bestiari del Medieoevo. Torino, Einaudi, 2012. 

VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Revista Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

Links sugeridos: 

The Medieval Bestiary

The Aberdeen Bestiary

Revista Medievalista, dossiê Bestiário Medieval

2 comentários:

ZeBarreto disse...

Caro Leandro Vilar
Conhece algum animal fantástico denominado aldeno?
Num texto português do século XVIII li o seguinte: "Refere Alberto Magno que antigamente se via nas aulas públicas a imagem ou figura de certo animal chamado aldeno, o qual por extravagância ou por aborto da natureza tem veneno nos ouvidos."
Procurei em Alberto Magno, mas não consegui localizar essa referência.
Obrigado. Cordialmente,
José Barreto

Leandro Vilar disse...

Olá, Barreto. Eu também não conheço esse animal. O livro que tenho dele está em inglês. Se pelo menos eu soubesse o nome da criatura em inglês, ajudava tentar encontrar.