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Leandro Vilar

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O Escolhido: Dragão do Mar

O Escolhido: Dragão do Mar

Dr. Thsombe Miles

 

Este artigo investigou como Francisco Nascimento, mulato de descendência africana, conceituou o significado de liberdade no contexto da liderança orgânica, bem como se tornou o símbolo mais proeminente do movimento abolicionista no Ceará. Também conhecido popularmente como “Dragão do Mar”, Francisco Nascimento veio a ser figura notável no movimento contra a escravatura, conquistando até os dias atuais o eminente status de herói. Como um homem de descendência africana fez-se herói de seu tempo? Ao contextualizarmos a sua história de luta tentaremos compreender as expectativas complexas dos afro-brasileiros e da elite cearense no fim do século XIX.

Litogravura de Francisco Nascimento para a Revista Ilustrada de 1884. 

Dragão do Mar enquanto abolicionista negro desempenhou papel importante no projeto reformista brasileiro sem ameaçar a ordem estabelecida em defesa dos interesses da elite. Isso se deve ao fato dele ter sido abolicionista quando no Brasil a escravatura não era mais aceita pelas elites. Como ela estava, de fato, sendo contestada por diversos grupos sociais da sociedade brasileira, somos suscitados a explorar a autenticidade da imagem do herói além das meras representações históricas.

Francisco do Nascimento foi um homem bastante respeitado, tanto pelos abolicionistas de sua época, como pelo governo brasileiro. Seu papel no movimento abolicionista foi honrado em artigo publicado no quinquagésimo aniversário da abolição da escravatura no Ceará e outros tantos abolicionistas de todas as regiões do Brasil reconheciam como era importante o papel desempenhado na luta contra a escravidão. Antônio Bezerra, por exemplo, descreve com detalhes no livro O Ceará e os Cearenses (1906), a extraordinária participação de Francisco no movimento abolicionista. Foi também membro fundamental da Sociedade Cearense Libertadora (SCL) e após greve dos jangadeiros tornou-se finalmente presidente da organização.

Embora Dragão do Mar tenha sido aceito e louvado por abolicionistas brancos, sua reputação foi por vezes debatida e impugnada, em grande parte devido à diferença entre ele e os demais membros da SCL, no que diz respeito à formação acadêmica, política e intelectual. A maioria deles era ou famosos escritores ou influentes intelectuais. Sua “celebridade” foi bem mais discutida fora do Estado. Com relação a outros grandes abolicionistas distintos de cor, como André Rebouças, José do Patrocínio e Luís Gama, ele foi o que recebeu tratamento diferente nos escritos publicados. Ainda que bem conhecido e envolvido com muitos membros do movimento nacional, Nascimento não era nem intelectual, nem escritor profissional como os outros. Ele foi principalmente um abolicionista local. Outros também abolicionistas conhecidos tornaram-se famosos porque literalmente inscreveram-se na história. José do Patrocínio, que mais tarde se reuniria a Nascimento e ao movimento abolicionista, foi um prolífico jornalista e romancista. André Rebouças, intelectual e engenheiro foi também escritor fecundo. Luís Gama, advogado, libertou tantos escravos que adquiriu respeito inclusive dos seus próprios inimigos; também foi talentoso poeta e escritor. Oque se sabe na verdade sobre Nascimento não está na sua própria voz, mas na voz de outros abolicionistas do seu tempo.

Francisco nasceu em 1839 na pequena vila de pescadores de Canoa Quebrada. De família humilde de mulatos jangadeiros livres, ele também aprendeu o ofício de pescador. Nessa época, a ocupação de jangadeiro era aberta principalmente a homens de cor livres. Na pirâmide social brasileira a atividade da pesca em jangada estava ligada à classe baixa e jangadeiros eram considerados ignorantes.2

Como a grande maioria dos jangadeiros não possuía suas próprias embarcações realizavam o trabalho de forma terceirizada e eram, portanto, todos mal remunerados. Segundo dados biográficos de Nascimento, ele foi basicamente analfabeto até a idade adulta e nunca foi formalmente educado. É impressionante o fato de que ele aprendeu a ler quando muitos de sua classe não o fizeram. É claro que Nascimento possuía capacidade de liderança e era altamente inteligente. Logo se destacou como jangadeiro, pois possuía duas jangadas e isso era bastante incomum naquela época. Ao longo dos tempos tornou-se líder entre os companheiros de jangada e ganhou posição de destaque nas docas do porto.3

Nascimento sempre alimentou forte o ódio da escravidão. Quando jovem, ouviu a história de uma revolta de escravos em um barco chamado Laura Segunda e isso o marcou profundamente. A história conta que dezesseis homens de cor e um homem branco mataram um capitão de navio porque ele os tratou mal. Tais homens foram capturados em Aracati e condenados à prisão com exceção do líder que foi assassinado. De acordo com Morel, essa história teria impressionado Nascimento de forma duradoura, muito embora ele fosse um homem livre e nem um de seus pais fossem escravos. No entanto, não está claro que sua família era contra a escravidão. Não é a cor ou a condição de liberdade que determinará posições ideológicas ou sociais. Antônio Rebouças, por exemplo, famoso abolicionista, apesar de mulato foi membro do Parlamento e possuiu escravos. Um dos mais fervorosos defensores do regime escravista, o Barão de Cotegipe, era mulato. No entanto, podemos afirmar que de um modo geral as pessoas de ascendência africana, livres ou escravas, sentiam enorme ansiedade sobre o lugar ocupado por eles na sociedade, assim como os homens livres que combateram no movimento Balaiada. Como aponta Morel, apesar de Nascimento ser livre dentro de uma família livre, ele era mulato e isso seria suficiente para assegurar sua vulnerabilidade diante de humilhações de todos os tipos.

O frequentemente esquecido abolicionista José Napoleão, colega de Nascimento, também alimentou seu ódio da escravidão. Parece que é mais fácil entendê-lo do que Nascimento, pois Napoleão nasceu escravo dentro de uma família de escravos. Esse ganhou sua liberdade bem como a liberdade de três membros de sua família. Atendendo uma solicitação de Dragão, participou da primeira greve dos jangadeiros, mais tarde desaparecendo do movimento.

Depois de liderar a segunda greve dos jangadeiros, Dragão do Mar foi escolhido pela elite abolicionista para ser o símbolo do movimento. De muitas maneiras os abolicionistas viram Dragão do Mar como a personificação de sua causa. Perguntamo-nos em que medida a ascensão de Nascimento como líder no movimento deveu-se a sua classe e ao seu passado étnico. Afinal de contas, por que José Napoleão não se tornou líder? Talvez tenha rejeitado o papel de liderança em favor de Dragão do Mar? Napoleão era um liberto (escravo libertado), discriminado pelas leis brasileiras estava mais sujeito ao racismo do que Dragão do Mar. Aquele liderou com outros dois abolicionistas, José Vasconcelos e Isaac Amaral, o primeiro golpe contra o Estado do Espírito Santo no final de janeiro de 1881. O próximo golpe abolicionista, em agosto desse mesmo ano, foi marcado pelo surgimento do Dragão do Mar, que ficou famoso ganhando papel ativo no movimento abolicionista.

Após a greve dos jangadeiros, Nascimento fortaleceu-se como ativista do principal grupo abolicionista do Estado do Ceará, a Sociedade Cearense Libertadora. Foi recebido em audiência pública pela corte real no Rio de Janeiro e tornou-se tão famoso que uma multidão de curiosos e repórteres quiseram conhecê-lo. Apesar de não ter sido recebido por Dom Pedro ou pela Princesa Isabel, foi presenteado pela família real com uma medalha de ouro, por ter fechado os portos do Ceará. A corte real era contra a escravidão e, em muitos aspectos, apoiou a causa da abolição, mas não teve vontade política ou poder de realmente acabar com ela. No entanto, os monarcas fizeram muitos gestos simbólicos em favorecimento da causa abolicionista. Libertaram, por exemplo,

todos os escravos ligados diretamente à monarquia e apoiaram a aprovação de todos os tipos de reformas. A realeza não viu a necessidade de realmente conhecer Nascimento, mas validar sua causa e em certo grau, as suas ações.

Compreendendo o Significado Dragão do Mar

A validação de Nascimento pelas elites deve ser questionada. Quem se beneficiou da relação entre Nascimento e seus patrocinadores? Qual foi a natureza dessas relações? O que fez ele do que esperava realizar? Pouco ou quase nada poderá ficar muito claro devido à falta de documentação. Não obstante, algumas ideias podem ser adquiridas a partir dos escritos de Morel, biógrafo de Nascimento, além de artigos e jornais da época.

Nascimento foi um reformador que se opunha à escravidão. Embora ele tivesse consciência das suas posições ou até mesmo laços de amizade com outros abolicionistas negros mais radicais, faltava nele vontade de derrubar a ordem social. De fato, como outros abolicionistas de cor, ele particularmente prosperou dentro do movimento. Não há dúvidas de que Nascimento se beneficiou das ações de outras pessoas e acabou por ser recompensado com a fama e com o respeito.

Os comerciantes e as classes profissionais encontravam em Nascimento o mulato da camada popular que havia superado o baixo estatuto sócio-econômico e se tornado respeitado no Ceará e no seio do movimento abolicionista. Ele era um poderoso símbolo da nova geração de brasileiros que almejava a reforma e a modernização.

É importante ressaltar que, embora Nascimento tenha sido em muitos aspectos o símbolo de um Brasil novo, nunca se beneficiou da mesma forma que outros abolicionistas brancos. Sua fama não se traduziu em riquezas, nem ele se tornou politicamente poderoso. Morel observa que por causa de sua cor e classe, Nascimento foi incapaz de traduzir sua fama em uma carreira lucrativa.

A elite predominantemente branca foi quem patrocinou Nascimento e a ela ele foi extremamente leal. Esse tipo de relacionamento era normal no Brasil.

Mecenato foi um movimento político organizado. Fazendo uma leitura do órgão abolicionista, O Libertador, que era a organização mais progressista da abolição na época, podemos perceber que ele defendia a liberdade e a fraternidade entre todos os homens. O grupo rival abolicionista O Centro era retratado como radical por causa de sua linguagem, mas não o foi. De um modo geral os reformistas estavam engajados em um projeto de modernização, mas não se interessavam pelas ideias que o liberalismo escreveu.

Vale lembrar que os balaios foram principalmente homens livres de cor como Dragão do Mar, também de origem humilde e procedentes de grupos marginalizados. Mesmo que no início da revolta tenham excluído os escravos e baseado suas convicções em uma filosofia liberal, tentaram criar uma sociedade radicalmente diferente. É inegável que as implicações de tal revolta foram revolucionárias, sobretudo o domínio que mantiveram em grande parte dos três estados do Nordeste, além da libertação de muitos escravos em seu governo.

O grupo de quilombolas liderado por Cosme estava educando seu povo. Os dois principais líderes do movimento, Cosme e Raimundo, foram homens de herança africana. Raimundo Gomes, por exemplo, era frequentemente citado em documentos do governo como “Cabra”, um termo pejorativo referente a pessoas de ascendência africana. Cosme e seu grupo de quilombolas formavam a facção mais importante do movimento. Embora houvesse pessoas de herança africana no movimento, dominado mais tarde pelas elites, eles não foram radicais. Os abolicionistas escreveram sinceramente sobre uma sociedade que abraçava as ideias liberais, mas não agiram. Uma evidência disso é que após a abolição da escravatura, as pessoas de ascendência indígena e africana continuaram sendo excluídas do poder, com raras exceções. Mesmo quando homens de ascendência africana atingiam posições de poder, como o Barão do Cotegipe, eles não se identificavam como homens de cor, pois desejavam esconder esse fato. Quando se sentiram forçados a reconhecerem suas raças criaram uma distância entre si mesmos e as massas. Durante o Império e também mais tarde, muitos mulatos influentes, como Machado de Assis e outros, foram acusados de negar sua cor e origens. No período pós- escravo, Nina Rodrigues, Oliveira Viana e Nilo Peçanha mantiveram silêncio sobre seu patrimônio étnico ou o minimizaram. Pelos padrões modernos, muitos deles seriam considerados racistas.4

Nina Rodrigues e Oliveira, dois intelectuais mulatos claros, escreveram livros de rigor intelectual excepcional para a época, mas imbuídos de todos os tipos de ideias de raça superior e inferior. De certa forma isso não deveria ser surpreendente, pois o racismo científico foi amplamente aceito na Europa e nos Estados Unidos.5 Nilo Peçanha era de origem humilde e mulato claro, mas calou sobre sua origem africana diante de seus adversários que o atacavam. Ainda assim, não demonstrou nenhum compromisso sério no esgotamento das noções de superioridade branca.6

Está claro que muitas pessoas de pele branca distanciaram-se das outras pessoas de cor no movimento abolicionista. Por volta de 1870 no Brasil, não havia uma ligação orgânica entre pessoas de ascendência africana, muito menos entre a elite e as classes populares. Outro fator que desencorajou a solidariedade racial no Brasil do século XIX foi o caminho da mobilidade social ter sido baseado no patrocínio de pessoas; muitos de ascendência africana atingiram uma quantidade razoável de sucesso e fama desta maneira. Durante a Monarquia no Brasil, a maioria dos abolicionistas famosos como André Rebouças e José do Patrocínio, estava ligada à Monarquia ou a outros clientes; Nascimento ligou-se a seus patronos cearenses, abolicionistas esses com fortes tendências republicanas.

Podemos obter algumas ideias sobre o poder do patronato através da análise de um episódio envolvendo José do Patrocínio e Nascimento. Vários anos após o final da escravidão, o velho amigo de Nascimento o convidou para prestar serviços novamente. Patrocínio queria que Nascimento tomasse uma posição contra a ditadura e contra Floriano Peixoto (o primeiro líder da República Velha disfarçado de republicano), mas Nascimento recusou o pedido e afirmou: “Eu estou com o governo e eu estou com João Cordeiro”.7 Cordeiro foi governador da província e um dos principais abolicionistas do Ceará. Apesar de concordar provavelmente com Patrocínio, era altamente improvável que ele tomasse parte contra Cordeiro, seu patrono.

Depois da escravatura ter se tornado ilegal no país, toda aquela geração de abolicionistas cearenses se converteram em novas lideranças políticas. Por extensão, Nascimento teve acesso a esse novo grupo, mas de forma limitada, visto que nunca se beneficiou como muitos dos seus colegas brancos.8

As políticas públicas da República Velha, ofereceu poucos benefícios as pessoas de origem africana e da classe sócio-econômica de Nascimento; tampouco ofereceu oportunidade para a mobilização social na forma que a Monarquia parecia ter feito, pelo menos para homens educados, libertos de cor como José do Patrocínio e André Rebouças (que deixou o Brasil após a queda do Império). Questiona-se muito que Nascimento tenha pensado profundamente sobre os princípios de uma sociedade republicana ou sobre semelhantes sociedades pós-escravistas. Questiona-se que ele tenha pensado abordagens teórico-políticas para melhorar a vida dos ex-escravos e das pessoas de ascendência africana. Patrocínio, pelo contrário, seguiu a vida intelectual, foi editor de periódicos diverso, e bastante sincero sobre o que pensava do liberalismo. Embora tenha sido aliado da Monarquia e amigo de Dom Pedro II, foi favorável ao abolicionismo como seu colega André Rebouças. Enquanto Dragão do Mar foi leal apenas ao seu benfeitor João Cordeiro. No final das contas, nenhum desses homens de cor teve dos colegas brancos de solidariedade recíproca. Na verdade, foram intimamente influenciados por seus benfeitores.

Nascimento estava ligado aos colegas abolicionistas inclusive financeiramente. Afinal, seu negócio como jangadeiro tinha ligações com os comerciantes que formaram as fileiras no movimento abolicionista. Depois da escravatura, não fica claro se Nascimento se preocupou com as políticas nacionais, nem há evidências disso. A ditadura claramente não teve efeitos positivos em sua vida nem com as de seus companheiros jangadeiros. Seus patronos o respeitaram e brigaram com ele contra a escravatura. Isso era mais do que muitos patronos já haviam feito. Os abolicionistas rivais como Barão de Studart e sua organização, O Centro Abolicionista, não o respeitaram. De fato, eles pareciam alarmados quando perceberam radicalismos na Sociedade Cearense Libertadora. Studart foi membro fundador do O Centro e também escritor. Em nenhum de seus principais escritos ele menciona Dragão do Mar, nem parece reconhecer a contribuição do mesmo para o movimento abolicionista. Na verdade, ele o ignora sistematicamente e ainda repreende seus patronos como o fez com João Cordeiro. Os espaços e oportunidades para Nascimento eram limitados, uma vez que quebrando o dever de obediência e lealdade devida aos patronos, fechavam-se as portas de entrada na elite. Apesar de Nascimento ser respeitado por alguns grupos abolicionistas e de ser conhecido pelas classes populares, não há vestígios de que ele fosse amplamente bem aceito pelas elites.

Dragão do Mar, o Abolicionista e outros Abolicionistas do seu tempo

Veremos adiante que Nascimento não “conhecia o seu lugar”. Ele nem sempre respeitou os ideais de seus patronos. Sobre o fim da escravidão e da criação de uma sociedade não racista, ele pareceu especialmente destemido e sincero como o foram André Rebouças, José do Patrocínio e Luís Gama. Ainda assim não está claro como Dragão do Mar lidava com sua identidade racial. Para entendê-lo enquanto abolicionista é importante relacioná-lo a outros abolicionistas de ascendência africana. Machado de Assis, por exemplo, se posicionou fora da negritude e viu sua própria ascendência africana como fonte de vergonha. Pelo contrário, Gama enxergava sua raça e etnia com orgulho. Em esboço autobiográfico, Gama identifica orgulhosamente a mãe como de origem africana.9 Ele a descreve como uma mulher negra, baixa, mas muito bonita, natural da Costa da Mina, ela se recusou a ser batizada e não aceitou o Cristianismo. Em um poema, Gama debocha da expressão pejorativa “cabra” e, por vezes, assume o termo com orgulho:

Se negro sou, ou sou bode/Pouco importa. O que isto pode?/Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta./Há cinzentos, há rajado-Baios, pampas e malhados/ Bodes negros, bodes brancos/E, sejamos todos francos/Uns plebeus, e outros nobres/ Bodes ricos, bodes pobres/Bodes sábios, importantes/E também alguns tratantes/Aqui, nesta boa terra/Marram todos, tudo berra/Nobres Condes e Duquesas/Ricas Damas e Marquesas/Deputados, senadores/Gentis-homens, vereadores; Belas Damas emproadas/ De nobreza empantufadas;Repimpados principotes/Orgulhosos fidalgotes/Frades, Bispos, Cardeais/Fanfarrões imperiais/Gentes pobres, nobres gentes/Em todos há meus parentes.10

Gama se encaixa perfeitamente na tradição afro-diáspora e na luta contra a escravidão que estava ocorrendo em todo o mundo novo. Sua visão intelectual estava firmemente focada nas convicções de luta contra a opressão racial de Alexander Crummel, Fredrick Douglasse muitos outros ascendentes africanos. André Rebouças era da tradição filosófica de elevação da raça. Ele acreditava que os negros poderiam ser ajudados se recebessem da sociedade oportunidades apropriadas.11

José do Patrocínio parecia ser mais ambivalente sobre sua identidade racial. Apesar de ser contra a escravatura, ele apoiava a ideia da imigração européia como estratégia de embranquecimento da raça negra, visão que predominava entre as elites brancas. Ele fez comentários depreciativos contra os escravos, chamando-os de estúpidos e feios.12

Ainda assim, tais homens desejaram acabar com a escravatura e esperavam integrar os ex-escravos à sociedade. Gama e Rebouças, particularmente, enxergaram o Brasil como uma sociedade multi-racial e lutaram intensamente para incorporação social de pessoas de descendência africana.

A Luta de Dragão do Mar contra o Racismo

Não é claro quão profundamente Dragão pensou sobre raça. Além de possuir rico conhecimento do mundo negro, como jangadeiro e velejador, ele teve contato com pessoas do mundo todo e trocou experiências. Daí, esteve inteirado sobre várias outras revoltas escravas, como a de Laura Segunda que viera antes dele.13 Ele foi simpático à causa abolicionista, mas não um revolucionário ativo da maneira que foi Cosme. Dragão também experimentou o racismo em sua vida. Ele relata em seu diário que foi insultado por um grupo de homens que o desprezaram por causa de sua cor. Mas o desprezo experimentado por ele não comprometeu totalmente o seu lugar na sociedade. Embora não tenha se tornado extremamente rico, foi bastante respeitado socialmente. Seu segundo casamento, inclusive, foi com uma mulher de família proeminente, a filha de um grande escritor e intelectual cearense, João Brígido. Vale lembrar também que em 1881, ele foi nacionalmente apoiado e recebeu da família real uma solidária medalha de honra ao mérito. No final das contas, Dragão do Mar teve apoio das principais elites brancas na luta contra a escravidão, mas o fez em seu próprio benefício.14 Podemos argumentar ainda, que as elites brancas só aceitaram bem a presença de Nascimento porque o mesmo ocupou determinados espaços políticos.

Após a escravidão a vida das pessoas da classe popular não se alterou fundamentalmente, nem os ascendentes africanos foram inseridos na sociedade. A escravidão terminou, mas o racismo não. Nem Nascimento abordou este problema diretamente, nem seus patronos.15

Líderes abolicionistas como Joaquim Nabuco acreditaram que o Brasil era uma sociedade multi-racial, sem conflitos radicais sérios, apesar de reconhecerem que a noção de brancura foi adotada pela elite branca. Com o final da escravatura todos os homens foram libertados, mas a abolição não acabou com a ideia da supremacia branca, muito menos produziu oportunidades de ascensão econômica para a grande maioria dos afro-brasileiros. A ordem econômica no Brasil pós-escravatura manteve, pelo contrário, a maior parte da população em estado de miséria, em particular os afro-brasileiros. Como não houve restituição ou plano para assimilar a comunidade de ex-escravos ou pessoas de ascendência africana no fluxo principal; redistribuição de terras, reformas educacionais e finalmente nenhuma proteção legal contra práticas discriminatórias; o fim da escravidão apenas perpetuou a supremacia branca.

O espírito de luta não se perdeu totalmente em Dragão do Mar. Cerca de vinte anos depois de sua primeira greve, ele liderou outra muito diferente. Agora não protestava contra a escravidão, mas contra o recrutamento forçado de homens pobres e de cor para o serviço militar. Curioso notar que Nascimento não teve nenhum apoio da elite, nem muito menos do governador antes abolicionista. No protesto Nascimento viu mais de 90 pessoas serem feridas e/ou mutiladas. Sem dúvidas, como a maioria dos jangadeiros era de homens de cor, isso contribuiu para que Dragão colocasse a greve em termos raciais. Ele não entendia por que apenas homens de cor, casados, muitos deles até avôs, seriam sacrificados em detrimento dos meninos brancos.16 De algum modo, essa greve demonstra a inocência de Nascimento. Ela foi francamente planejada, mas não contou como na campanha contra a escravatura, com nenhum suporte das elites.17

É sabido que Dragão do Mar ajudou a promover a justiça social e racial, mas diferente de André Rebouças e José do Patrocínio, ele não articulou um plano específico para o que poderia ser uma sociedade pós-escravista. Não podemos, no entanto, desprezar sua raiva sincera contra a injustiça. Na batalha em Catraeiros, por exemplo, ele mostrou trazer no coração os interesses das classes populares; também demonstrou ser um destemido advogado popular. Ele foi tão consciente da discriminação racial, como foram os Balaios algumas gerações antes. De fato, ele não era um elitista como foi José do Patrocínio e André Rebouças. Na verdade ele estava muito confortável com as classes populares e ajudou a organizá-las. Não tinha medo de ir contra as elites em apoio à causa que julgasse correta. Foi Nascimento quem ajudou a organizar a greve dos jangadeiros e forçou o governo a barrar oficialmente a entrada de escravos pelos portos do Ceará. É evidente que Dragão do Mar foi um organizador brilhante e corajoso, mas ele não baseou suas estratégias em qualquer filosofia em particular. Embora fosse contra o racismo e contra escravidão ele parecia não dispor de qualquer plano para reorganizar o Brasil numa verdadeira democracia racial. Aceitou a liderança da SCL, mas raramente questionou suas próprias ações. Apesar de ter ajudado a acabar com a escravidão não pensou em como incluir pessoas de ancestralidade africana e indígena no seio da sociedade.

Para a Balaiada, as ideias de igualdade racial estavam no centro de seus principais programas. Paradoxalmente, isso foi mais importante que a abolição da escravatura. Raimundo Gomes, um dos representantes, foi um homem livre de ancestrais africanos. Ele percebeu que para que conseguisse trabalhar para o movimento, os escravos também deveriam ser libertados. Já Cosme tornou-se o centro do movimento porque os seus soldados tinham mais razões para lutar e, portanto, seriam mais confiáveis.

A grande maioria dos Balaiadas e os potenciais simpatizantes do movimento, como os Bem-te-vis, foram cooptados e só a classe escrava se manteve fiel até o fim. Julga-se que isso foi a chave para que Gomes controlasse a revolta por tanto tempo. Uns quatro anos mais tarde, Alves Lima transformou Cosme e Gomes nos símbolos em torno dos quais deveria ocorrer a manifestação das elites contra o movimento Balaiada. Ele percebeu que os dois formavam imagens contraditórias aos interesses das classes de elite.18

Como a escravidão representava naquele momento a salvação econômica, o fato de uma comunidade quilombola formar aliança com homens livres de cor tornara-se uma ameaça. Isso poderia ter sido semelhante a outro Haiti. Cosme tinha que ser morto publicamente. Ele violava todos os códigos da sociedade brasileira. Ele minava todos os aspectos de ordem brasileira. Raimundo Gomes também foi um radical que ameaçou derrubar a ordem sócio-econômica brasileira, mas ele não começou da mesma forma que Cosme. Principiou por defender as reformas com que muitas elites brancas poderiam simpatizar, pois muitos deles também queriam as reformas, incluindo os benefícios econômicos e sociais que consideravam ser monopolizados pela classe política-Cabano. No entanto, a simpatia com os escravos não era parte dessa negociação.

Por outro lado, depois de duas gerações da revolta da Balaiada, Dragão do Mar fora aceito por uma grande maioria, como a voz contra a escravidão. A essa altura, a escravidão já era inaceitável em todo o mundo ocidental, de forma que as elites do Ceará estavam praticamente todas dispostas a aceitar o final da escravidão como a saída para seus problemas econômicos. De certa forma, o Ceará nunca foi dependente da escravidão, podendo assim ser abolida sem nenhum ônus real à sua economia. Além disso, para os abolicionistas de vertente mais progressista, ser liderado por um homem de ascendência africana era mais um ponto de orgulho e não fonte de vergonha. Ele sequer representaria ameaça para a elite. É bem verdade que Nascimento era tão dependente das elites que quando tentou agir de forma independente, como na greve com os Catraeiros, foi violentamente esmagado. Ele não teve nem poder de barganha, nem independência filosófica ou política como teve Cosme, que foi capaz de comandar um grupo de três mil escravos. Dragão do Mar era um líder e teve o apoio das classes populares, mas nunca teve o apoio da sociedade organizada a reorientá-lo verdadeiramente.

As Balaiadas foram também muito dependentes da linguagem do liberalismo. Todos os seus manifestos reconheciam as ideias da elite branca dos Bem-ti-vis. Ao contrário dos irmãos do Haiti, não expropriaram a linguagem da Revolução Francesa. Eles não se tornaram “Black jacobinos”. 19 No final, radicalizaram e estavam lutando por justiça social. Eles não apenas queriam acabar com a escravatura, mas também queriam mudar a hierarquia e a opressão racial, mas quando se afastaram do projeto elitista já era tarde.

A geração de elite do tempo de Dragão do Mar era uma geração de reformadores. O investimento na Balaiada para acabar com a escravidão não tinha mais o mesmo significado no tempo dele. Dragão do Mar representava um novo, higienizado líder negro que era contra a escravatura, mas não tinha alguns dos pontos radicais. Ele não era mais chamado de Cabra, havia se tornado um pardo respeitado que ajudou a solidificar os ideais da democracia racial e o progresso para uma nova geração de brasileiros.

O “Progresso” estava acontecendo lentamente no Brasil, mas não lidava com a desigualdade tampouco com os ideais da Balaiada, apesar da ilusão de justiça social estar embutida em sua linguagem de igualdade.20 Na lei havia progresso, mas os ideais proferidos pela Libertadora não foram realizados. O final da escravatura permitiu ao Brasil criar um mito de liberdade e igualdade, como aconteceu no resto das Américas. Todavia terminar a escravidão nunca significou igualdade racial em lugar algum da diáspora-afro. No Ceará, especificamente, podemos ver que depois da escravatura a greve de Dragão do Mar foi dirigida contra as mesmas elites que defendiam a abolição, mas nunca a igualdade racial.

NOTAS: 

2 Morel, Edmar. Dragão do Mar: O Jangadeiro da Abolição. (Rio, 1949), 35-38. A Jangada é um pequeno barco de pesca encontrado unicamente no nordeste do Brasil. O Jangadeiro é aquele que usa a jangada como forma de subsistência.

3 Era Uma posição governamental.

4 É interessante que as pessoas de descendência africana como Oliveira Vianna e Nina Rodrigues tenham sido fortemente influenciados pela eugenia e repetido as obras de seus contemporâneos na Europa. No entanto, havia intelectuais como Manuel Querino, que eloquentemente articulou a participação dos afro-brasileiros e mostrou a insensatez de assumir déficits intelectuais dos negros bem antes de Gilberto Freyre nascer, mostrando que o racismo de escritores como Vianna e Rodrigues não era natural ou lógico, mas sim um caminho que eles escolheram. De muitas maneiras, pode-se argumentar que esses homens de cor escolheram este caminho, porque era desejável. Abraçar o racismo científico, de alguma forma perversa distanciava-nos de seu passado africano e os levava para a brancura. Veja o artigo de Thomas Skidmore“ RaceIdeas and Social Policy in Brazil, 1870-1930” em Richard Graham’s, The Idea of Race in Latin America, 1870-1940 (Austin: University of Texas Press, 1990), 7-36.Tambem- Thomas Skidmore, Black into White: Race and Nationality in Brazilian Thought (Durham: Duke University Press, 1993) .

5 É fascinante notar que foi um Europeu erudito nascido judeu, Franz Boas, professor na Columbia University,o grande responsável pela reavaliação das ideais brasileiras sobre o racismo científico. Seu trabalho contra o racismo científico, não só ajudou a minar a legitimidade de tais ideais, mas seus alunos também desempenharam um papel importante na divulgação de seus resultados. No Brasil, Gilberto Freyre abraçou o desafio de minar o racismo científico. Lee D. Baker “Columbia University’s Franz Boas: He Led the Undoing of Scientific Racism”, the Journal of Blacks in Higher Education, 1998, 89-96.

6 Em estudos recentes há uma tendência em minimizar o que Carl Degler chamou de “porta de escape do mulato.” Estudiosos mostraram que havia e ainda há diferenças socioeconômicas muito pequenas entre “negros” e “pardos” e que ambos os grupos enfrentam uma enorme desvantagem na força de trabalho estando muito atrás dos brancos emáreas como educação, saúde e moradia. Veja Nelson do Valle Silva, Updating the cost of not being white in Brazil” em Race, Class and Power in Brazil, ed. Pierre Michel Fontaine (Los Angeles: Center for Afro- American Studies, 1985) and see the more recent study por Edward Telles. Race in Another America: The Significance of Skin Color in Brazil (Princeton: Princeton University Press, 2004).

7 Edmar Morél, Dragão do Mar: O Jangadeiro da Abolição “Estou com o governo e com o João Cordeiro,” 200.

8 Se analisarmos as posições dos companheiros de Nascimento no SCL, torna-se claro que seu sucesso foi moderado. Muitos de seus colegas tornaram-se importantes funcionários do governo ou empresários bem sucedidos. Havia muito poucas oportunidades de mobilidade social na época do Império no Brasil.

9 “No livro Dragão do Mar: o jangadeiro da abolição” de Morel encontramos um apêndice sobre Luís Gama. Veja Vendaval da Liberdade, “Sou filho natural de negra livre, da Costa Mina, (Nago) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita; a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha, os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa” 219-220.

10 Para uma bela coleção de documentos primários sobre a escravidão e relações raciais veja Robert Edgar Conrad, Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil (Princeton: Princeton University Press, 1983), 229-231.

11 Veja Anthony Appiah, In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture (New York: Oxford University Press, 1992), Wilson J. Moses, The Golden Age of Black Nationalism, 1850-1925 (Hamden: Archon Books, 1978) e Kevin Gaines, Uplifting the Race: Black Leadership, Politics, and Culture in the twentieth Century (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996). Estes livros são bem diferentes em sua orientação teórica. Cada um, a sua maneira, conta a história de como os intelectuais de ancestralidade africana conceituaram liberdade, raça e identidade.

12 David Brookshaw mostra que apesar de Patrocínio ter sidoum feroz abolicionista, ele internalizou também muitas ideias eurocêntricas. Veja Race and Color in Brazil Literature (Metuchen: The Scarecrow Press, 1986) 30.

13 Morel, E. Dragão do Mar: O Jangadeiro da Abolição 35-38. Também sabemos que a mãe de Nascimento assumiu a identidade negra, pois Morel a cita denominando-se a si mesma de “preta”. Portanto havia consciência racial na família de Nascimento, e eles definitivamente se reconheciam como sendo de descendência africana.

14 O liberalismo clássico do século XIX não deve ser confundido com o liberalismo do New Deal. O liberalismo clássico promoveu um governo limitado, o livre comércio, e suas ideiasera em muitos casos uma reação às monarquias que atribuíam seu poder a Deus. Quando falo do liberalismo moderno refiro-me a uma ideologia que surgiu após a grande depressão, e abraçou a ideologia econômica Keysian e programas sociais do governo em grande parte para salvar o capitalismo. Veja Alan Brinkley para uma moderna discussão do liberalismo, Liberalismo and its Descontentes (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1998).

15 Para descrições da sociedade pós- escravidão veja Sam Adamo, “The Broken Promise: Race, Health and Justice in Rio de Janeiro, 1890-1940.” Ph. D. diss., University of Arizona, 1983, George Reid Andrews, Blacks and Whites in São Paulo, Brazil, 1888-1998 (Madison: University of Wisconsin Press, 1991) and Kim Butler, Freedoms Given Freedoms Won: Afro-Brazilians in Post-Abolition Sâo Paulo and Salvador (News Brunswick: Rutgers University Press, 1998).

16 Ibid. “Por que os moços brancos não são sorteados em detrimento do sacrifício de homens de idade, alguns até avós” 204.

17 Morel, Vendaval, 204-26.

18 Santos, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a Insurreição de Escravos no Maranhão (São Paulo: Ática, 1983).

19 Isto é uma referencia a C.L.R. James, The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution (New York: Vintage Books,

1989) que documenta como os escravos usaram a retorica da Revolução Francesa em seus próprios termos. A retórica do pensamento liberal, que era de fato a base para a revolução francesa, também se tornou a base para a revolução Haitiana.

20 A abolição da escravatura e a queda do império pareceu significar o triunfo da democracia e dos ideais do liberalismo, mas de fato para as pessoas de cor as circunstancias sócio-econômicas não mudaram significativamente.

Referências Bibliográficas

Adamo, Sam. “The Broken Promise: Race, Health and Justice in Rio de Janeiro, 1890-1940” Ph.D. diss., University of Arizona, 1983.

Andrews, George Reid. Blacks and Whites in São Paulo Brazil, 1888-1988. Madison: University of Wisconsin Press, 1991.

Appiah, Anthony. In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture. New York: Oxford University Press, 1992.

Araújo, Maria Raimundo. Documentos para a História da Balaiada. São Luís: Edições FUNCMA, 2001.

Baker, Lee. “Columbia University’s Franz Boas: He Led the Undoing of Scientific Racism”, Journal of Blacks in Higher Education, 1998, 89-96.

Brinkley, Alan. Liberalism and its Descontents. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1998.

Brookshaw, David. Race and Color in Brazilian Literature. Metuchen: The Scarecrow Press, 1986.

Butler, Kim. Freedoms Given, Freedoms Won: Afro-Brazilians in Post Abolition São Paulo and Salvador. New Brunswick: Rutgers University Press, 1998.

Conrad, Robert. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1983.

Fontaine, Pierre-Michel, ed. Race, Class, and Power in Brazil. Los Angeles: Center for Latin American Studies, UCLA, 1985.

Gaines, Kevin. Uplifting the Race: Black Leadership, Politics, and Culture in the Twentieth Century. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996.

Graham, Richard. The Idea of Race in Latin America, 1870-1940. Austin: University of Texas Press, 1990.

Haberly, David T. Three Sad Races: Racial Identity and National Consciousness in Brazilian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

James, C.L.R. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. New York :Vintage Books, 1989.

Morel, Edmar. Dragão do Mar: O Jangadeiro da Abolição. Edições do Povo: Rio, 1949.

Morel, Edmar. Vendaval da Liberdade: A Luta do Povo pela Abolição. Global Editora: Rio, 1967.

Moses, Wilson. The Golden Age of Black Nationalism, 1850-1925. Hamden: Archon Books, 1978.

Reis, João José. Slave Rebellion in Brazil: The Muslim Uprising 0f 1835 in Bahia. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1995.

Santos, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a Insurreição de Escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983.

Skidmore, Thomas. Black into White: Race and Nationality in Brazilian Thought. Durham: Duke University Press, 1993.

Spitzer, Leo. Lives in Between: Assimilation and Marginality in Austria, Brazil, and West Africa, 1780-1945. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

Telles, Edward. Race in Another America: The Significance of Skin Color in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2004.

Fonte: MILES, Tshombe. O Escolhido: Dragão do Mar. Revista Caderno de Estudos e Pesquisas do Sertão, Quixadá, v. 1, n. 1, 2013, p. 51-60. 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Colônia Penal: o início da colonização da Austrália (1788-1794)

Oficialmente a Austrália foi "descoberta" e reivindicada em 21 de junho de 1770 na expedição do famoso capitão James Cook (1728-1779), que nomeou aquela ilha como Nova Gales do Sul, reivindicando seu território para a Coroa Britânica. No entanto, a Austrália já era habitada pelos povos aborígenes há milhares de anos, além disso, no século XVI, navegadores portugueses como Gomes da Siqueira, Diogo da Rocha, Antônio de Mendonça, Cristóvão de Mendonça e Diogo Lopes de Siqueira, teriam visitado a costa norte da ilha entre 1520 e 1526, e tais relatos foram até mencionados por cartógrafos espanhóis e franceses. No entanto, os portugueses os quais estavam mais interessados nas especiarias da Índia, Malásia, Indonésia e China, não deram atenção aquela pequena ilha que julgavam na época. (SERRÃO, 1992, p. 281-282). 

No século XVII, navegantes holandeses também avistaram partes da Austrália, como na expedição de William Jansz (1606). Com base no relato de Jansz, sobre um cabo existente ao sul da Nova Guiné, anos depois o navegador Pedro Fernandes de Queirós (1563-1614), que trabalhava mapeando ilhas no Pacífico para a Coroa Espanhola, referiu-se aquela ilha ainda inexplorada, pelo nome de "Austrália do Espírito Santo". Mais tarde, a partir de 1616, o navegador holandês Dirk Hartog avistou terras no que hoje é a costa oriental da Austrália, referindo-se aquele local como Eendraschtsland, termo que passou a ser usado pelos holandeses nos trinta anos seguintes. As visitas esporádicas dos holandeses à costa australiana, levaram o mercador e explorador Abel Tasman (1603-1659) a desenhar um mapa reivindicando a Austrália e a Nova Zelândia como sendo territórios holandeses. Inclusive em seu mapa datado de 1644, ele se referia a Austrália como ilha da "Nova Holanda". (DAY, 2009, p. xx-xxi). 

Apesar da reinvindicação de Tasman em associar a Austrália como território holandês, a ilha nunca foi propriamente explorada, tampouco colonizada. A Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC), esteve mais interessada em seus negócios no Sri Lanka, Java, Japão e outros territórios, do que investir no reconhecimento de uma ilha com clima bastante quente e desértico no interior.

Assim, observa-se que ao longo de mais de duzentos anos a Austrália foi ignorada pelos europeus, mesmo tendo havido vários avistamentos, cabendo apenas em 1770 ao capitão James Cook reclamar aquela terra ao rei da Inglaterra. No entanto, mesmo a reinvindicação de Cook não surtiu efeito imediato. A colonização da ilha somente se iniciaria dezoito anos depois. 

Crise penal na Inglaterra:

No século XVIII, a Inglaterra vivenciou um problema grave: para além da pirataria que assolava as colônias britânicas, espanholas e francesas no Caribe, o nível de criminalidade nesse século foi bastante elevado. Não sendo incomum haver muita deserção de marinheiros, oficiais da Marinha, mercadores, etc. para se tornarem piratas nas Américas ou mercenários na África e Ásia. 

Alan Frost (2019, p. 16) comenta que entre 1715 a 1775, 50 mil criminosos entre homens e mulheres foram deportados para as Treze Colônias, principalmente Virgínia e Maryland para trabalho forçado em fazendas. 

A prática de enviar presos para trabalho forçado é bastante velha, retomando a Antiguidade inclusive. No entanto, na Idade Moderna, países como Portugal, Espanha e França também adotaram essa medida. Por exemplo, Portugal no século XVI enviou prisioneiros para o Brasil e a Índia, tais homens na maioria das vezes, eram enviados para servirem em fazendas ou outros ofícios menores, trabalhando no artesanato, em minas, pecuária, transportadores, etc. como parte de cumprir suas penas. 

Entretanto, a Inglaterra sofreu um duro revés, pois em 1776 as Treze Colônias se uniram e formaram os Estados Unidos, proclamando independência e iniciando uma guerra que se estendeu até 1783. Sendo assim, o depósito de presidiários do qual o reino inglês dispôs ao longo de seis décadas, estava fechado. Os criminosos ali enviados, inclusive receberam o perdão ou escaparam, podendo recomeçar suas vidas. A Inglaterra agora não dispunha mais de treze colônias para suprir sua demanda por alimento e outros recursos, tampouco não poderia mais enviar sua população presidiária para ali trabalhar. 

Para compensar esse problema, o governo decretou que os presos passassem a trabalhar nos portos do próprio país, enquanto o pessoal que antes exercia essas funções portuárias, foi realocado para servir na guerra contra os Estados Unidos, no intuito e reaver aquele território. Todavia, passado sete anos, a guerra chegou ao fim e a Inglaterra a contragosto reconheceu definitivamente a independência dos estadunidenses. Porém, era o ano de 1783, o reino estava desmoralizado por ter sido derrotado por seus colonos rebeldes, os gastos com a guerra afetavam os cofres públicos, a Revolução Industrial apesar de estar se desenvolvendo, não significava que fosse uma solução para sanar problemas como a pobreza, baixos salários, subempregos, o que levou pessoas, principalmente homens entre seus 15 a 30 anos, a continuar a recorrer ao crime e negócios ilícitos. Além disso, com o retorno das tropas, parte dos trabalhadores portuários quiseram reassumir seus empregos, até então ocupados por presidiários, e isso gerou novos problemas. (FROST, 2019, p. 16). 

Em agosto de 1786, o então primeiro-ministro William Pitt, o Jovem (1759-1806), na época com seus 24 anos, apresentou ao Parlamento um plano para resolver alguns dos problemas que acometiam o país naquele período, como o excesso de população carcerária, falta de recursos advindos das antigas colônias na América do Norte. Pitt que anteriormente havia assumido o cargo de Ministro da Economia, sugeriu criar uma nova colônia, ele recomendou o território de Nova Gales do Sul, descoberto dezesseis anos antes por James Cook e sob posse da coroa britânica, mas até então nunca explorado. 

Retrato do primeiro-ministro William Pitt, o Jovem, o responsável por sugerir a colonização da Austrália. 

Como Pitt gozava de apoio do rei George III, de importantes nobres e políticos, a ideia foi bem recebida. A Austrália era uma terra ali inutilizada, e apesar de estar no outro lado do mundo, no entanto, poderia ser explorada com a mão de obra dos presos. Além disso, naquela ilha habitavam populações indígenas que poderiam ser utilizadas também para o trabalho. 

A primeira frota (1787-1788):

Após a votação que confirmou sinal verde para o plano de Pitt, o Parlamento se mobilizou para juntar recursos, navios, tripulação e escolher os presos que iriam na primeira expedição para à Austrália. A chamada Primeira Frota (First Fleet) foi posta sob o comando do experiente Arthur Phillip (1738-1814), posteriormente recebeu o título de governador da Austrália e depois o de almirante. Mas na ocasião, Phillip comandaria 11 embarcações dividida em três tipos.

Retrato de Arthur Phillip, o primeiro governador da Austrália. 

Os navios de escolta chamados HMS Supply, sob comando do tenente Henry Lidgbird Ball, e o navio HMS Sirius sob comando do capitão John Hunter. Em seguida vinham cinco navios de transporte dos presidiários, chamados Alexander, Charlotte, Friendship, Lady Penryhn, Prince of Wales e Scarabough. Por fim, seguiam três navios de suprimentos o Golden Grove, Fishburn e Borrowdayle. (MACLEAY, 2012, p. 3). 

A frota era composta por cerca de 1.420 pessoas, entre a tripulação, oficiais, colonos, suas esposas e filhos, e os presidiários que eram em torno de 775, sendo 583 homens e 192 mulheres. (MUNDLE, 2012, p. 14). Embora que outros autores comentem que o total de passageiros teria sido de 1.030 pessoas, incluindo 211 marines, 736 presos e os demais seriam os tripulantes e colonos. (MACLEAY, 2012, p. 3). 

Além dessa divergência quanto ao total de pessoas que participaram dessa missão de colonização, sabe-se que os navios levaram alguns animais como cavalos, cabras, ovelhas, porcos, vaca, galinhas, patos, gansos, perus e coelhos também foram levados. (MACLEAY, 2012, p. 3). 

A expedição deixou a Inglaterra em 13 de maio de 1787, levando 250 a 252 dias para chegar a Botany Bay na costa oriental da Austrália, localidade primeiramente avistada por James Cook, dezessete anos antes. Os primeiros navios chegaram em 18 de janeiro de 1788, e o restante chegou nos dois dias seguintes. Estando todos ali, o governador Arthur Phillip começou a deliberar onde se iniciaria o núcleo colonizador. 

Gravura retratando alguns navios da Primeira Frota, ancorados na Botany Bay em janeiro de 1788. 

O primeiro assentamento: 

A partir do dia 22 de janeiro de 1788, o governador Phillip e o capitão Hunter começaram a fazer reconhecimento na Botany Bay, no entanto, o governador não gostou daquelas praias, achando o terreno pouco vantajoso para construção, o solo não parecia ser fértil, havia ausência de fonte de água doce por perto e de madeira também. Com isso, o governador decidiu seguir para outro ponto da costa, ao norte, chamado de Port Jackson, tendo sido nomeado durante a expedição de Cook. A nova localidade ficava situada na Baía de Syndey, local que Phillip julgou ser mais convidativo para dar início ao assentamento. Com isso ele retornou para Botany Bay, ordenando o deslocamento da frota para a nova baía. 

No dia 26 de janeiro, uma bandeira britânica foi hasteada naquele lugar, demarcando o início da colonização da Austrália. No dia 3 de fevereiro o reverendo Richard Johnson rezou a primeira missa da nova colônia. E quatro dias depois, em 7 de fevereiro, o advogado capitão David Collins, redigiu o documento oficial que confirmava a criação da Colônia Penal de Nova Gales do Sul, sob comando do capitão-general e governador Arthur Phillip. (MACLEAY, 2012, p. 3). 

Litogravura representando a Primeira Frota na baía de Sydney, onde se daria início a colônia. 

A colônia penal: 

Com o estabelecimento oficial da colônia penal no dia 7 de fevereiro, o governador Phillip começou a cuidar da parte burocrática, delegando cargos e atribuições, enquanto madeira era coletada para se fazer as obras como currais, armazéns e depois as casas. No caso, por semanas os colonos permaneceram abrigados nos navios ou em tendas improvisadas em terra firme. 

A terra foi arada e semeada, mas o solo pobre se mostrou um grande entrave para o início do plantio. Além disso, não havia caça nos arredores, levando a colônia a ter que adotar racionamento de alimentos. Condição essa que enfureceu os ânimos da população. No dia 27 de fevereiro o prisioneiro Thomas Barret foi condenado a pena de morte por ter roubado comida do estoque dos colonos. Foi a primeira pena capital a ser executada na nova colônia. (MACLEAY, 2012, p. 4). 

Enquanto o governador dividia as terras para os colonos estabelecerem suas fazendas, construções eram erguidas, Arthur Phillip autorizou que novas expedições de reconhecimento do território fossem realizadas nas semanas seguintes, durante março e abril. Em 2 de março um assentamento foi fundado na ilha de Norfolk, posteriormente explorou-se a Broken Bay, Pittwater e parte das Montanhas Azuis ao longo dos meses de março e abril. Finalmente em 5 de maio os navios Lady Penrhyn, Charlotte e Scarborough partiram de volta para a Inglaterra, levando as notícias sobre a colônia, mas solicitando o envio de grãos, animais, ferramentas, armas, munição, colonos e outros produtos. Em julho e novembro outros navios foram enviados para buscar para à Inglaterra. (MACLEAY, 2012, p. 5). 

Ainda no mês de abril o Supervisor Colonial de Terras, August Alt sugeriu ao governador Philip a criação da cidade de Sydney. O governador concordou e ordenou que Alt cuidasse da papelada necessária para isso, além de solicitar recursos e mão de obra. A mensagem foi despachada naquele ano

Ao longo de 1788 a colônia se desenvolvia a passos morosos. Embora várias fazendas foram fundadas, as plantações ainda não haviam rendido resultado e o gado era pouco, ao ponto que no mês de outubro, o governador ordenou que o capitão John Hunter viajasse até a Cidade do Cabo para conseguir mais alimento, incluindo trazer animais e outros suprimentos. E essa situação envolvendo a falta de comida e escassez de recursos se manteve ainda em 1789, já que os navios enviados não tinham retornado ainda. Além disso, as tentativas de fazer amizade com os aborígenes seguiam falhando. Ao mesmo tempo em que problemas envolvendo roubo de comida, invasão de propriedade, brigas e indisciplina dos guardas e marinheiros, ocorriam regularmente, levando a detenção dos funcionários e colonos e até novas penas de morte. 

Mapa da cidade de Sydney em 1789, apresentando a localização dos principais locais da colônia penal. 

A Segunda Frota (1790): 

A crise de fome continuava na colônia australiana, levando o governador Philip no mês de abril, a enviar novamente John Hunter para comprar comida em outro lugar. Dessa vez, o capitão Hunter viajou até Batavia (atual Jacarta), capital da colônia holandesa em Java. Na ocasião um navio inglês se encontrava ali e lhe foi dada uma mensagem para ser entregue urgentemente ao Parlamento, pedindo que suprimentos e recursos para a colônia em Sydney, pois as pessoas passavam fome e novo racionamento de comida foi decretado. A frota enviada somente retornou em outubro daquele ano. 

No mês de março, o governador Phillip autorizou que o Major Ross levasse 200 prisioneiros para a Ilha de Norfolk, para dar continuidade ao assentamento ali estabelecido. A ilha se mostraria um assentamento promissor nos anos seguintes, servindo até de base para a marinha. 

No dia 3 de junho o navio Lady Juliana chegou a Port Jackson trazendo 221 prisioneiras e 11 crianças, mas nenhum suprimento. Somente no dia 20 daquele mês, um segundo navio chamado Justinian trazia recursos e alimentos, mas abaixo do esperado. Oito dias depois mais três navios, Neptune, Scarborough e Surprize, os quais eram navios de transporte de prisioneiros. Na época foi informado que a Segunda Frota não era uma missão de socorro enviada pelo governo, apenas uma missão para enviar mais prisioneiros. Ao todo os cinco navios transportavam 1.000 prisioneiros, sendo que 267 morreram durante a viagem, outros 50 faleceram nos dias seguintes a terem chegado. Parte das mortes foi causada pelo escorbuto, que afetou quase metade do contingente presidiário e membros da tripulação. (MACLEAY, 2012, p. 9). 

Ao centro o navio Lady Juliana, um dos navios que participaram da Segunda Frota. 

Posteriormente um navio contendo 100 soldados chegou a colônia, eles estavam sob comando do capitão Nicholas Nepean, e passaram a formar a Tropa de Nova Gales do Sul. A chegada dos oficiais da Marinha era necessária, pois o número de presos na colônia era dez vez maior para os poucos soldados e oficiais que haviam ali. Além de que a tropa também era responsável pela proteção da colônia e participar de missões de exploração e reconhecimento. 

A Terceira Frota (1791):

A vinda de mais detentos para a colônia penal, por um lado foi preocupante, pois era mais bocas para alimentar, mas de outro lado, era mais mão de obra. Inclusive nestes dois anos houve tentativas de presos que tentaram fugir ou iniciar uma revolta. Além desse problema envolvendo eles, problemas com abastecimento de comida ainda continuava. Além disso, a relação com os aborígenes das quais o governador e outras autoridades esperavam tirar proveito não se mostravam promissoras. Os aborígenes não foram escravizados, mas também não cooperavam com os ingleses. 

No dia 9 de julho o navio Mary Ann chegou ao porto trazendo 141 prisioneiras. Foi o primeiro de onze navios a chegar naquele ano. A Terceira Frota como alguns se referem, consistiu basicamente em navios que transportavam prisioneiros, sendo que pouco levavam suprimentos e tropas para a colônia. Estima-se que quase 2 mil prisioneiros chegaram apenas em 1791, sendo que quase metade pereceu durante o trajeto. Parte destes novos prisioneiros era formada por irlandeses, os quais foram os primeiros de seu país a chegarem à Austrália. 

O governador Phillip escreveu uma carta as autoridades reclamando da grande quantidade de prisioneiros enviada, a falta de recursos, e a falta de cuidados com os presos e a tripulação. Estima-se que pelo menos 400 pessoas morreram durante essas viagens, feitas naquele ano. Porém, em setembro o HMS Gorgon chegou trazendo poucos prisioneiros e pequena tripulação, mas muitos suprimentos. (MACLEAY, 2012, p. 13). 

Mapa da cidade de Sydney por volta de 1789. 

Um novo governador (1792-1794): 

No ano de 1792 após quatro anos no cargo, Arthur Phillip solicitou que pudesse deixar o cargo, pois estava exausto pela dureza de comandar uma colônia penal surgida do zero. As solicitações de Phillip foram negadas algumas vezes, somente em dezembro daquele ano lhe foi autorizado retornar para a Inglaterra. Enquanto um novo governador não era designado, o major Francis Grose (1758-1814), que era responsável pela Tropa de Nova Gales do Sul, assumiu o governo interino, inclusive foi criticado por abuso de poder e uso da força para coagir outros militares e autoridades civis. Um novo governador somente foi nomeado em 1794, que era o capitão John Hunter, veterano da colônia, que assumiu o cargo em 1795. (MACLEAY, 2012, p. 14). 

Neste tempo mais prisioneiros continuavam a chegar a colônia penal. Além disso, expedições de reconhecimento no território eram realizadas e novas fazendas e pequenas comunidades agrícolas eram fundadas como Parramatta, localizada no subúrbio de Sydeny, onde o governador Phillip possuía uma propriedade. Nesta comunidade o militar, arquiteto e empresário John Macarthur (1767-1834) fundou uma serralheria, que se tornou a mais importante da colônia. 

Outros ricos fazendeiros também começaram a se estabelecer na área com James Ruse (1759-1837), ex-presidiário que recebeu o perdão e se dedicou a agricultura. Fez fortuna na colônia australiana. Ruse não foi o único ex-presidiário a ganhar terras, pois pela lei da época, os presos enviados para Nova Gales do Sul após cumprirem sete anos de detenção, eram libertos e recebiam um lote de terra, passando a trabalhar pelo próprio sustento. Muitos prisioneiros após cumprirem penas de sete anos, optaram em permanecer na colônia, pois não tinham dinheiro para voltar a Inglaterra ou se retornassem poderiam ter que se deparar com inimigos ou dívidas. No caso, Ruse soube se valer disso, criando uma equipe de ex-presidiários para trabalhar para ele. 

Considerações finais:

Sob o governo de John Hunter (1795-1800) a colônia penal continuou a crescer e a colonização a se expandir pelo leste australiano. Graças ao aumento das fazendas, pastos e do gado, surtos de fome como vistos entre 1788 e 1791 já não ocorriam na mesma intensidade. Além disso, pequenas revoltas e tentativas de fuga foram contidas, e o governo colonial começou a se estabilizar. A partir de 1825 o governo inglês começou a enviar novas missões de colonização para outras regiões da ilha, e em trinta anos, a Austrália já contava com dezenas de milhares de colonos habitando ela, além dos aborígenes. 

Nesse tempo a cidade de Sydney já estava urbanamente estabelecida, parecendo com várias outras pequenas cidades coloniais vistas nas Américas. Mas além de Sydney, Norfolk, Parramata e outras localidades despontavam com fazendas e vilas. Além disso, prisioneiros continuaram a serem enviados anualmente para a colônia. Em 1840 estima-se que pelo menos 130 mil prisioneiros foram enviados para a Austrália. Sendo que o uso da ilha como colônia penal somente terminou em 1868

NOTA: A lista de integrantes da Primeira Frota pode ser achada na internet, tendo sido bem documentada, dando quase todos os nomes das pessoas que partiram, inclusive o nome dos presos, tempo de suas penas e os crimes que cometeram. 

NOTA 2: Alan Frost em seu livro explora em maiores detalhes o contexto da Inglaterra que levou ao plano de colonização da Austrália. 

NOTA 3: 26 de janeiro é celebrado como o Dia da Austrália, em referência ao reconhecimento das terras que abrigariam o início da colonização. 

NOTA 4: O nome Sydney foi uma homenagem ao político e nobre Thomas Townshend (1733-1800), 1o Visconde de Sydney, o qual era amigo do governador Arthur Phillip e até havia apoiado ele em outras ocasiões. 

Referências bibliográficas:

DAY, Alan. The A to Z of the Discovery and Exploration of Australia. Lanham: The Scarecrow Press Inc, 2009. 

FROST, Alan. Botany Bay and Firt Flee: The Real Story. Australia: Black Inc, 2019. 

MACLEAY, Victoria. 1788-1809: From First Flee to Rum Rebellion. Sydney, Trocadero Publishing, 2012. 

MUNDLE, Rob. The First Fleet. Springfield: ABC Books, 2012. 

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Portugal e o Mundo: Nos século XII a XVI. Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo, 1994.


terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

As crianças perfeitas: o programa Lebensborn

Durante o governo nazista (1933-1945) alguns planos para o crescimento da chamada "raça ariana" foram aplicados, o que incluiu desde ações funestas para se exterminar os judeus, ciganos, estrangeiros, negros, homossexuais, pessoas com deficiência física e mental, até passando por estudos de eugenia, no intuito de fomentar a reprodução entre jovens saudáveis escolhidos pelo governo para doarem seus filhos ao Estado, e as crianças seriam educadas para servirem o país, em distintas estâncias. E com isso, surgiu o programa Lebensborn, tema da postagem de hoje. 

Enfermeiras carregando crianças nascidas através do Lebensborn. 

Pensamento eugênico e o racismo científico

Antes de adentrar ao programa do Lebensborn se faz necessário contextualizar quais ideias e ideologias estavam por trás de sua criação. Neste caso, a ideologia de uma raça alemã ou germânica pura e superior, difundida pelo governo nazista sob liderança de Adolf Hitler, havia se baseado em dois conceitos preponderantes e em voga naquela época: a eugenia e o racismo científico. 

Ambos surgiram propriamente no século XIX na Europa, com biólogos, médicos, antropólogos, filósofos e outros estudiosos e interessados, os quais passaram a desenvolver, apoiar e difundir teorias nas quais diziam que a espécie humana seria dividida em várias raças, algumas mais superiores e outras inferiores. Essas ideias ganharam apoio e destaque após a publicação da Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin. Embora Darwin não tenha tratado do ser humano neste livro, somente abordando uma possível evolução humana em outro livro seu, no entanto, várias ideias de Darwin foram deturpadas para serem usadas pelos defensores do racismo científico. Isso originou o darwinismo social

O darwinismo social passou a englobar o racismo científico, que consistiu num conjunto de teorias biológicas e antropológicas que procuravam defender a existência dessas raças humanas através do uso de métodos e técnicas hoje tratados como pseudociências e até mesmo errados, como forma de legitimar o racismo, a escravidão, as diferenças sociais, culturais, morais e civilizatórias, tendo pressupostos biológicos para respaldar isso. 

Assim, alguns estudiosos motivados por esse pensamento racista que procurava legitimação científica, começaram a defender que a chamada miscigenação das raças era algo perigoso, pois afetaria as raças mais puras ao inserir elementos oriundos de pessoas ou grupos subdesenvolvidos ou oriundos de degeneração. E se isso não fosse impedido, em poucas gerações uma nação de uma raça saudável e superior, poderia estar geneticamente corrompida pela degeneração, gerando indivíduos fisicamente, mentalmente, intelectualmente e moralmente inferiores. 

Pensando neste problema racial de ter um país branco sendo "denegrido" por estrangeiros, fossem indígenas, africanos, ciganos, judeus, asiáticos, etc. O polímata britânico Francis Galton (1822-1911), cunhou o conceito de eugenia (bem nascido) em seu livro Inquires into Human Faculty and its Development (1883). Galton era conhecido por seus estudos com estatística social e econômica, demografia, geografia, meteorologia e mais tarde passou a se interessar por antropometria, psicometria e biologia. 

Em seu livro publicado em 1883, ele apresentou de forma mais elaborada, ideias que vinha desenvolvendo a pelo menos vinte anos, nas quais ele defendia que pessoas de "boa origem" deveriam casar com indivíduos equivalentes, para evitar a degeneração de seus descendentes. Galton também era crítico da imigração, de casamentos entre brancos, negros, judeus, ciganos e outros povos. Também era contrário que indivíduos socialmente de classes superiores se relacionassem com gente pobre ou de origem pobre ou miserável, pois era sabido que essas pessoas tinham tendência a serem frutos de famílias desajustadas e degeneradas. 

Influenciado pelos estudos de seu primo, Charles Darwin, Galton cunhou o termo eugenia para se referir a ideia do bem nascido, ou seja, um indivíduo que tivesse uma ascendência geneticamente e socialmente bem aceita. E com isso ele transmitiria valores genéticos para seus descendentes como saúde, aptidões físicas, inteligência, criatividade, e a própria fortuna e status social. Nesse ponto, as ideias de Galton foram bem longe na época, pois em artigos ele passou a defender que a seleção artificial fosse aplicada também em seres humanos. 

A seleção artificial é conhecida da humanidade desde os tempos antigos, tendo sido aplicada incontáveis vezes para domesticar plantas e animais. O conceito em si era baseado na ideia de seleção natural, defendida por Darwin e outros evolucionistas da época. Porém, enquanto essa seleção era guiada pelos fatores naturais, a seleção artificial era conduzida pelo ser humano. Embora seja uma prática comum, até hoje utilizada, nas últimas décadas do século XIX ela gerou opiniões contrárias, entre aqueles que defendiam usá-la apenas em plantas e animais, mas outros que se tornaram adeptos das ideias de Galton, defendendo experimentos com humanos. 

A eugenia e a seleção artificial com humanos se tornaram temas de artigos, entrevistas, congressos, pesquisas e livros nas décadas seguintes, até finalmente chegarmos ao período do governo nazista, onde tais ideias foram postas em prática. 

O mito da raça ariana 

Os arianos foram um povo indo-europeu que habitaria o planalto iraniano e se espalhou pela Pérsia em direção a Índia. Tais comunidades foram responsáveis pela difusão de algumas das línguas indo-europeias. De fato, o próprio conceito de ariano estava associado com a filologia, não tendo conexão com a biologia e antropologia. Foi no século XIX, que o conceito de ariano foi deturpado por adeptos do racismo científico, vindo a se tornar uma noção imprecisa de "raça ariana".

O escritor, diplomata e filósofo francês Arthur de Gobineau (1816-1882) em seu livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853), sugeriu que os indo-europeus eram os responsáveis por originar os povos europeus e do Oriente Médio. Além disso, neste ensaio ele defendia abertamente teorias do racismo científico. Seu trabalho influenciou outros estudiosos que usaram algumas de suas ideias, como o antropólogo alemão Theodor Poesche (1826-1899), defensor da raça ariana como sendo não de origem asiática, mas do nordeste europeu. Apesar de atribuir os arianos como tendo uma origem europeia oriental, Poesche dizia que os arianos seriam brancos, de traços belos e boa constituição física. Ele também defendeu que os alemães eram os únicos remanescentes desse povo, na Europa. 

A partir das ideias de Poesche, o etnólogo e linguista alemão Karl Penka (1847-1912), difundiu em seus livros sobre a raça ariana: Origines Ariacae (1883) e Die Herkunft der Aryer (1886), que os arianos teriam uma origem europeia nórdica, sendo brancos, de cabelos louros, olhos azuis e crânio levemente alongado, altos, belos e com boa constituição física. A obra de Penka teve forte impacto sobre Hitler e os adeptos desse mito racial. 

Retrato de Hessy Levunsons Taft, usado na propaganda nazista de 1935, sobre crianças arianas. Posteriormente foi descoberto que Taft era de descendência judia. 

A eugenia na Alemanha 

Em 1911 foi fundada a Sociedade Kaiser Guilherme, que reuniu faculdades e institutos de diferentes ramos científicos. Grandes nomes da ciência alemã ali trabalharam. Com o estabelecimento da sociedade, foi criado o Instituto de Antropologia, Genética Humana e Eugenia, o primeiro grande passo para a difusão oficial da eugenia no país. Aqui vale recordar que neste tempo o racismo científico ainda seguia em voga. 

Dentre os diretores deste instituto estiveram o médico Eugen Fischer (1874-1967), o psiquiatra e geneticista Ernst Rüdin (1874-1952) e o biólogo e geneticista Otmar von Verschuer (1896-1969), todos posteriormente se filiaram ao Partido Nazista, passando a comandar a política eugênica da época. Tais homens são alguns entre outros nomes que compartilhavam do ideário eugênico como prática de "purgar" o povo alemão da "contaminação" sofrida devido a miscigenação com outras "raças", sobretudo com os judeus. Os estudos destes homens influenciaram também Adolf Hitler apoiar o programa eugênico que viria a ser implementado em seu governo. 

Assim com a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, Adolf Hitler, inicialmente empossado como chanceler, depois deu um golpe de Estado, tornando-se o líder supremo da Alemanha. Neste mesmo ano, alguns decretos eugênicos começaram a vigorar. 

Sobre a eugenia alemã é preciso salientar alguns aspectos. Houve as leis de proteção a raça ariana, identificada como "raça nacional" (volksgmeinschaft), que consistiram em ações de promover o desenvolvimento dessa "raça", incentivando-se casamentos, combatendo-se o aborto, o infanticídio, o abandono, etc. 

Em segundo, temos as leis de eliminação (vernichtung), medidas austeras para se eliminar indivíduos julgados degenerados, doentes, inválidos e perigosos para o Estado e a sociedade. Isso incluiu distintos fatores como condições físicas, mentais, comportamentais (drogados, alcoólatras, depravados, maníacos, homossexuais, criminosos, etc.), raciais (judeus, ciganos, negros, etc.), ideológicos (comunistas, socialistas, antinazistas, etc.), religiosos (testemunhas de Jeová). 

O terceiro aspecto foram as medidas de eutanásia (gnadendod), em que se autorizava a eutanásia em doentes mentais, físicos, idosos senis, pessoas inválidas, indivíduos com doenças degenerativas, câncer, coma, etc. Essas medidas nem sempre foram aplicadas e receberam resistência por parte de autoridades civis e religiosas. A ideia por trás da eutanásia incentivada, era eliminar o chamado "peso-morto" para o Estado, evitando que este gastasse dinheiro em manter cidadãos inválidos em asilos, hospícios e hospitais. 

Em quarto aspecto, as chamadas leis de incentivo a procriação (inzucht), as quais incentivavam os casais a terem mais filhos, proibia-se casamentos inter-raciais, a doação de filhos para orfanatos, e o próprio programa Lebensborn é resultado dessas leis. 

O programa Lebensborn

Em 12 de dezembro de 1935 o Programa Lebensborn ("Fonte da Vida") foi oficialmente iniciado, estando vinculado a Schutzstaffel (SS), importante agência do Reich, que congregava várias funções. De fato, a SS foi um aglomerado de departamentos e instituições que estava associada com o policiamento, combate, espionagem, inteligência, administração dos campos de concentração, prisões, pesquisas diversas, a política racial, entre outros objetivos. No caso do Lebensborn este estava subordinado ao Departamento Central de Reassentamento e Raça da SS (Rasse und Siedlungshauptamt SS), cuja sigla era RuSHA

Emblema do Programa Lebensborn e da SS. 

Em 16 de dezembro de 1936, um ano após o início do programa eugênico, o então chefe da SS, Heinrich Himmler (1900-1945), emitiu nota oficial explicando quais eram os quatro objetivos do Lebensborn. (OELHAFEN; TATE, 2017, p. 89). 

  1. Dar suporte as famílias numerosas de valor racial e genético.
  2. Prover de alojamento e cuidados a mulheres grávidas que tenham valor racial e genético para que, para depois de uma investigação familiar detalhada da feita pelo RuSHA, tanto delas quanto dos pais dos filhos que esperam, tenham a possibilidade de dar à luz a crianças igualmente valiosas.
  3. Cuidar dessas crianças.
  4. Cuidar das mães dessas crianças. 

Propaganda nazista de 1935, incentivando a maternidade. 

Apesar dessa explicação dada por Himmler, o Lebensborn não se limitou apenas a essas simples diretrizes. Sua missão principal era gerar, cuidar e educar as gerações futuras para o Reich, no intuito de fazer crescer membros da dita raça ariana. 

O Lebensborn administrou orfanatos, hospitais, escolas, institutos, além de incentivar a adoção de órfãos arianos; combater o aborto e o infanticídio, decretando como crimes e penas severas para esse, pois como a Alemanha ainda passava por problemas econômicos, apesar do crescimento da indústria bélica e tecnológica promovida pelo governo, as maravilhas que o governo nazista mostrava de uma Alemanha próspera, não eram tão reais assim. Em 1900 a taxa de natalidade era de 35,8 crianças para cada mil habitantes. Em 1932, o valor caiu para 14,7 crianças para cada mil habitantes. (OELHAFEN; TATE, 2017, p. 89). 

O resultado disso eram fatores associados a pobreza, crise financeira pós-guerra, falta de assistencialismo médico, receio das famílias em terem mais de dois filhos, o que levava em alguns casos a prática do aborto e do infanticídio. Todavia, o Estado nazista considerou que tais práticas era uma "sabotagem" aos desígnios do partido. Aqui é preciso salientar que o Estado não estava preocupado com todas as crianças que seriam abortadas ou abandonadas, pois se fossem frutos de indivíduos degenerados geneticamente ou moralmente, não eram importantes. O problema estava na morte de crianças arianas. Assim, usando-se da falsa demagogia de que o Estado nazista tinha como função proteger a família, a propaganda anti-aborto e abandono foi difundida. 

Crianças numa casa Lebensborn. 

O programa também incentivou que membros do alto escalão da SS tomassem amantes e gerassem filhos com estas. Após a invasão da Noruega em 1941, os soldados da SS e até de outras alas das Forças Armadas, também foram incentivados a engravidarem noruguesas, especialmente as de biótipo dito ariano. Por sua vez, essas mulheres eram conduzidas a casas Lebensborn ou hospitais nazistas para darem à luz e terem seus filhos "confiscados" pelo Estado ou enviados para doação. 

Além disso, foram conduzidos também a criação de iniciativas onde homens e mulheres saudáveis e com traços arianos, eram selecionados pelo programa, para se reproduzirem com a condição que seus filhos pertenceriam ao Estado. Esses homens e mulheres eram em termos menos belos, "gado de reprodução". 

Nem todas as crianças geradas no programa permaneceriam nos orfanatos e escolas, algumas eram dadas para doação, sendo adotadas por famílias ricas, geralmente membros do alto escalão político e militar do governo. 

A partir de 1939 com o início da Segunda Guerra (1939-1945), a Alemanha começou a invadir outros países como Polônia e Áustria, depois expandindo-se para França, Holanda, Bélgica, Noruega, Itália e outros territórios. Nessa época teve início uma nova fase do Lebensborn: o sequestro de crianças. Orfanatos, escolas, institutos ou simplesmente chamadas de "casas do Lebensborn" foram abertas em outros países ocupados durante a guerra e para ali eram enviadas crianças raptadas pelos soldados. 

A maioria dos sequestros se deu com poloneses, mas na lista incluiu-se tchecos, iugoslavos, noruegueses, letônios, lituanos, austríacos, franceses, belgas, russos, etc. qualquer criança que se encaixasse no biótipo da raça ariana. Essas crianças, algumas eram empregadas em experimentos médicos, outras eram usadas para trabalho forçado, algumas até eram postas para adoção ou eram enviadas para as escolas, para serem treinadas. Lembrando que a ideia do programa era gerar a próxima geração de arianos. E essa geração tinha como função ser fiel, leal, obediente, patriota, brava, educada, forte e inteligente, para servirem ao Reich da melhor forma possível. 

Crianças polonesas sequestradas pelos nazistas para o programa Lebensborn. 

O Lebensborn esteve em atividade por quase dez anos. Estima-se que 8 mil crianças foram oriundas do programa, apenas na Alemanha, e 12 mil na Noruega e outros países. Além disso, o número de crianças sequestradas passaria dos 200 mil (sem considerar as crianças enviadas para os campos de concentração). Todavia, com a derrocada da guerra, o programa nos últimos anos foi perdendo investimentos e entusiastas, pois do que adiantaria fomentar o crescimento da raça ariana, num momento de que o Reich estava em franco declínio. 

Com o término da guerra, alguns pais decidiram procurar por seus filhos desaparecidos, processo que levou anos para alguns, e outros jamais conseguiram encontrar seus filhos. Além disso, crianças alemãs que foram fruto do Lebensborn somente mais velhas descobriram a respeito ou nunca souberam disso. O Reich também em seus últimos meses tentou deportar parte das crianças e jovens para outros países, algo que faria parte do plano de sobrevivência do Reich. Assim, algumas dessas crianças foram enviadas para a América do Sul e a Austrália. 

Por fim, o programa até apresentou êxito em alguns aspectos, principalmente se considerar que conseguiu fomentar o desenvolvimento de milhares de "crianças perfeitas". Por outro lado, ele falhou e não conseguir aumentar esse número em valores desejados, assim como, não teve tempo para que essas geração pudesse crescer e se formar, começando a ingressar na sociedade e a serviço do Estado. Era um projeto de longa duração que não teve tempo para ser desenvolvido. Mas a consequência gerada, além de traumas, foi o sequestro de milhares de crianças, e até a morte de várias dessas. 

NOTA: Durante o governo nazista, foram realizadas expedições para descobrir as origens da raça ariana na Ásia. Além disso, difundiu-se a ideia de que os arianos seriam descendentes dos atlantes, ou seja, o mito de Atlântida também foi utilizado para sustentar a superioridade da Alemanha nazista. 

NOTA 2: O seriado O Homem do Castelo Alto (The Man in High Castle), cita o Lebensborn na segunda temporada. 

NOTA 3: O filme italiano Divisione Lebensborn (1960) aborda o tema. 

NOTA 4: Em 1932 o escritor britânico Aldous Huxley lançou o livro Admirável Mundo Novo. Nessa obra de ficção científica ele mostrava uma sociedade futurista onde a humanidade era gerada através de prática eugênica, onde as crianças eram geradas in vitro. A obra de Huxley foi publicada poucos anos antes do Lebensborn entrar em atividade. Se suas ideias eram consideradas demasiadamente fantasiosas por apresentar tecnologias e máquinas inexistentes, o programa nazista realizou essa seleção artificial da forma como a tecnologia permitia na época. 

Referências bibliográficas: 

BOLSANELLO, Maria Augusta. Darwinismo social, eugenia e racismo "científico": sua repercussão na sociedade e na educação brasileiras. Educar, Curitiba, n. 12, 1996, p. 153-165. 

GUIMARÃES, Márcio Renato. O termo ariano e a narrativa indo-europeia. Línguas & Letras, v. 19, n. 43, 2018, p. 40-58. 

MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo, Contexto, 2009. 

OELHAFEN, Ingrid von; TATE, Tim. As crianças esquecidas de Hitler: a verdadeira história do Programa Lebensborn. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo, Contexto, 2017. 

SALGADO NETO, Gilberto; SALGADO, Aquiléa. Sir Francis Galton e os extremos superiores da curva normal. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 45, n. 1, 2011, p. 223-239. 

Referências da internet: 

A política da morte do Nazismo

Vítimas esquecidas: as crianças polonesas raptadas pelos nazistas

What History Didn’t Tell Us about the Nazi “Super Baby” Breeding Program