sexta-feira, 26 de março de 2021

Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569

 Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569


Giovanni Colossi Scotton

Ruth Emilia Nogueira

Introdução

Em pleno período renascentista de afloramento científico, político, econômico e cultural, surge um mapa com características distintas dos demais mapas até aquele momento produzidos. A grande obra de Gerardus Mercator, datada de 1569, intitulada de “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum navegatium emendate acommodata” ou “Nova aumentada descrição da terra com correções para o uso de navegação”, efetuada com objetivo de proporcionar uma maior segurança para a navegação marítima, fato que foi de fundamental importância para o desenvolvimento comercial Europeu, principalmente na mensuração de tempo, quanto ao estabelecimento das rotas comerciais mais curtas.

Naturalmente, quando analisamos um mapa histórico, buscamos obter como resultado uma análise objetiva, neutra ou independente, acerca dos símbolos e signos presentes e a representação gráfica usada. Para Harley (2005), em seu ensaio intitulado “Textos e Contextos na Interpretação dos Primeiros Mapas”, os mapas nunca são somente caracterizados por possuir unicamente o discurso cartográfico, convertido numa imagem que representa uma dada realidade, sob um determinado tempo num espaço específico. Os mapas usam uma linguagem que deve ser decodificada, eles são fruto de uma construção social, e, portanto, devem ser analisados como textos (discurso) e imagens (representação gráfica), ou seja, por meio de sua iconografia e iconologia caracterizando um novo paradigma para análise de mapas históricos. Neste sentido, foram aplicadas para a obra de Mercator, datada de 1569, as três categorias de análise propostas por Harley (2005), relacionadas aos estudos referentes aos mapas históricos: o contexto do cartógrafo, de outros mapas e da sociedade. Tal escolha foi efetuada para se executar uma análise crítica do mapa numa perspectiva social, ou seja, desconstruindo-o.

A primeira categoria, o contexto do cartógrafo, conforme Harley (2005) nos apresenta, é fundamental para o analista de mapas verificar o ofício de cartógrafo ao tempo da confecção do mapa, sua origem, aprendizado, escola, relações sociais, família, e outras variáveis. Assim, não se trata apenas de delegar autoria aos mapas, pois é necessário investigar os gravadores, pintores, artistas e outros profissionais que porventura tenham participado do processo de produção do mapa. É preciso lembrar que um mapa nunca está fechado em si e o indivíduo que o produziu está inserido no contexto social mais amplo de uma determinada sociedade. Assim, este exerce uma função nela, alterando às relações de poder, que estão presentes entre os indivíduos de uma dada sociedade como salienta Foucault (2014).

A segunda categoria, o contexto de outros mapas, se converte numa analogia, pois a produção de um mapa está intimamente ligada à sua relação com outros mapas e documentos históricos. Relatos e descrições documentais acerca de explorações são, por exemplo, convertidos em discurso para imagem gráfica, servindo de subsídio para confecção cartográfica. Como Harley (2005) afirma, as características cartográficas identificadas, por exemplo, por traços familiares de uma determinada escola cartográfica, permitem identificar alguns mapas anônimos. O estudo comparativo das características topográficas lineares (rios, caminhos), por exemplo, assim como os contornos da costa, somados à utilização da cartobibliografia (reunião de vários mapas impressos sobre uma mesma superfície) são fundamentais para o historiador de mapas analisa-los.

O contexto da sociedade é o último aspecto a ser considerado para se fazer uma leitura de mapas como imagens e textos. Devemos salientar que nenhum mapa é produzido fora de um contexto social mais amplo e o mesmo está intimamente ligado com a ordem social de um determinado período e um lugar específico. Assim, a análise se converte numa tentativa de identificar os agentes por trás da obra, como para quem o cartógrafo produziu o mapa, com quais objetivos, qual finalidade. Como Harley (2005) salienta, nenhum mapa é apolítico e isento de ideias, funções e objetivos. Um mapa é uma construção social na medida em que o mesmo apresenta informações ocultas, segredos e censuras que devem ser reveladas.

A análise do contexto da sociedade é deveras complexa e deve ser cuidadosamente trabalhada, pois não se trata apenas de identificar o contexto do cartógrafo, mas sim de analisar um conjunto de possibilidades presentes na sociedade. Cabe ao analista de mapas históricos imergir na sociedade estabelecida sob o período de elaboração do mapa para poder analisar de forma satisfatória todas as variáveis do contexto da sociedade daquela época. O mapa é um elemento retórico e por isso pode representar o poder de um indivíduo ou conjunto de indivíduos sobre a sociedade ou vice-versa.

Gerardus Mercator e sua obra

No período do século XVI, os Países Baixos vivenciavam o estabelecimento de um lucrativo comércio com a Europa, assim como salienta Koeman et al. (2007), mais efetivamente aos finais do século XVI, os comerciantes holandeses tornaram-se grandes transportadores de cargas para toda Europa, soma-se a este fator as viagens às índias orientais em busca de uma rica fonte de especiarias e outros produtos que ampliaram de sobremaneira o comércio holandês, principalmente na cidade portuária de Antuérpia ao norte dos Países Baixos. Nesta época, a escola cartográfica holandesa revelou grandes nomes que viraram a tornar-se referência para o rompimento da cartografia ptolomaica para o surgimento de uma cartografia mais precisa e científica. De acordo com Miceli (2012), a partir da segunda metade do século XVI, a cartografia da Holanda sofre influência da cartografia portuguesa, em especial de Fernão Vaz Dourado, Luís Teixeira, Cipriano Sanches e Luís Jorge Barbuda. Foi, sobretudo, devido a este movimento cultural de influência cartográfica estrangeira que as cidades de Antuérpia e Amsterdã, floresceram no desenvolvimento da cartografia flamenga, tendo, sob pano de fundo, as descobertas do novo mundo. É neste contexto que nomes como Ortelius e Mercator fazem-se presentes.

Conforme Koeman et al. (2007), a cidade de Antuérpia foi um grande e importante centro comercial da Europa do Século XVI. Local de trocas comerciais e culturais, a cidade destacou-se como centro da incipiente escola cartográfica flamenga pois facilmente encontravam-se os produtores de mapas como cartógrafos, gravadores, pintores, artistas e livreiros vivendo nela. Porém, o grande centro difusor das ciências ficava em Louvain, a oeste de Bruxelas. Esta cidade em especial, tornou-se um grande centro difusor de ideias, pesquisas e estudos que tiveram papel fundamental na cartografia. Ainda de acordo com o autor, os ensinos de algumas áreas do conhecimento humano destacaram-se além da cartografia nesta referida universidade, como a Matemática e a Astronomia. Muitos produtos foram elaborados no entorno da universidade tal como globos e instrumentos náuticos, sendo considerada por muitos como um grande centro difusor dos conhecimentos cartográficos do período.

No livro intitulado “Rhumb lines and map wars: a social history of the Mercator projection” de Mark Monmonier, publicado pela Universidade de Chicago em 2004, é possível compreender, graças a grande quantidade de informações, alguns aspectos da vida e obra de Gerardus Mercator, um dos cartógrafos que alcançou grande prestígio no século XVI. Como legado, nos deixou significativos avanços na ciência cartográfica, além, é claro, de uma projeção que leva seu nome.

Para Monmonier (2004), Gerardus Mercator não foi apenas um simples cartógrafo, tornou-se grande intelectual em várias outras áreas do conhecimento humano. Segundo o autor, o cartógrafo destacou-se também como calígrafo, excelente gravador de mapas, fabricante de instrumentos náuticos e, consequentemente, editor, tendo muito interesse em outras áreas do conhecimento humano como a Matemática, a Astronomia, a Cosmografia, o magnetismo terrestre, História, Filosofia e também a Teologia, ao qual dedicou precioso tempo de sua vida.

Conforme Monmonier (2004), Gerardus Mercator nasceu no que seria a parte norte da Bélgica numa vila chamada de Rupelmonde, distante aproximadamente dez quilômetros de Antuérpia. De origem simples, o pai de Mercator foi sapateiro e pequeno agricultor. Aos quinze anos Gerardus foi aceito no monastério onde aprendeu Teologia cristã e Latim. Mercator desenvolveu grande interesse na escrita itálica que, a este tempo, era considerada elegante, onde pôde gravar nomes de lugares nos seus mapas e textos interpretativos deles. Importa destacar que o Latim era a língua da elite educadora da Europa, onde os estudiosos jovens comumente alteravam seus nomes “latinizando-os”.

Por volta de 1530, Gerardus Mercator matriculou-se na Universidade de Louvain, onde publicou seus épicos atlas mundiais. Nesta consagrada universidade, foi acadêmico das Ciências Humanas e Filosofia, assistindo palestras do brilhante matemático e astrônomo Gemma Frisius, que foi o primeiro pesquisador a efetuar levantamentos regionais com base em triangulação tornando-se mentor de Mercator. Quanto as suas obras, podemos destacar que no decorrer de sua vida, de acordo com Seemann (2003), Gerardus Mercator elaborou inúmeros mapas, incluindo atlas e globos, primeiro celestes e depois terrestres, especializando-se nestes últimos. Soma-se a esta rica produção, os manuais de caligrafia. Muitas de suas produções foram encomendas pelos Habsburgos, autoridades políticas que exerceram grande influência na Europa a este tempo. Como exemplo, pode-se citar dentre as grandes obras do cartógrafo um mapa dos Flandres, datado de 1540, e outro mapa das ilhas britânicas, com data de 1564, que os católicos pretendiam usar como instrumento político contra a Rainha protestante Elizabeth. Também se destacam entre suas produções o mapa-múndi cordiforme (no formato de dois corações) de 1538, um mapa do continente Europeu de 1554 com projeção cônica e conforme, fortemente baseado nos conceitos da Geografia de Ptolomeu, além, é claro, de seu famoso mapa datado de 1569, o qual analisamos, sendo o primeiro a ser construído levando em consideração sua projeção de mesmo nome. Além disto, Mercator, nascido em 1512 e falecido em 1594, viveu incrivelmente mais que qualquer outro cartógrafo deste período, produziu mapas da França, Holanda e Alemanha em 1585, diversos atlas em 1585, 1589 e 1595 além de mapas específicos da Itália e dos Balcãs e Grécia por volta de 1589.

Se pudéssemos atribuir um “divisor de águas” na cartografia histórica, este seria no século XVI, entre os anos de 1569 e 1570. Neste período nasceu, por meio de Mercator (planisfério de 1569) e Abram Ortelius (primeiro atlas moderno datado de 1570), a cartografia moderna na Europa. De acordo com Miceli (2012), o alicerce de toda uma escola cartográfica holandesa encontra-se nas produções de Mercator e Ortelius, inaugurando uma nova era onde Mercator e Ortelius seriam os responsáveis por formarem as bases fundamentais do conhecimento geográfico moderno, representado por uma Cartografia Náutica assentada sob a Astronomia e a Matemática e outras áreas do conhecimento humano.

A iconografia do Mapa de Mercator e o contexto de outros mapas e documentos históricos

Quanto a análise iconográfica (bibliocartográfica, contornos e tipografias) presente no mapa analisado (fig.1) datado de 1569, podemos afirmar que, à primeira vista, nota-se que na elaboração do mapa mundi de 1569 Mercator não utilizou as famosas linhas de rumo, herança das cartas portulanas e da escola ptolomaica. De acordo com o Vlaams Instituut voor de Zee (2015), a principal contribuição de Mercator para o mundo da ciência marítima e especialmente do transporte comercial foi esse mapa do mundo de 1569, onde o cartógrafo baseou-se em um novo modelo matemático inovador para o período. De dimensões consideráveis, composto por vinte e uma folhas com tamanho total de 134x212 centímetros, foi considerado uma obra-prima de Mercator.

De acordo com Santos (2002), a grande contribuição de Mercator em relação a seus antecessores na elaboração de sua obra de 1569 está justamente no ato de analisar a terra como uma esfera e, a partir desta, identificar as variáveis que permitiram traçar um sistema de coordenadas, em que o nível de distorção fosse conhecido e controlado. Deste modo, Seemann (2003), considera que a projeção de Mercator não foi criada com objetivo de representação simples dos territórios, mas sim para finalidades práticas, sobretudo para navegação.

Portanto, Mercator construiu uma projeção conforme (onde os ângulos são conservados na rede de paralelos e meridianos em 90º), onde a forma das áreas representadas no mapa, se mantém a mesma, mas, devido a uma variação da escala, no mapa, nas áreas localizadas principalmente acima dos 60º de latitude Norte e Sul, elas são prejudicadas devido a deformações consideráveis, fruto de um ajustamento matemático originado de uma esfera (tridimensional) transportada para um plano (bidimensional). A (Figura 1), mostra as tantas folhas que compõem o planisfério de Mercator de 1569 e a (Figura 2), apresenta uma parcela do mapa-múndi de Mercator de 1569, referente a parte Sul Americana.

Figura 1: O Planisfério de Gerardus Mercator datado de 1569.

Na análise iconográfica, percebe-se a representação de uma escala de latitude identificada na (Figura 3) em (A), onde as latitudes aparecem graduadas em intervalos de um grau, partindo de 79º de latitude Norte até o Equador, e do Equador até a latitude de 66º Sul. Assim como a escala de latitudes, também são representadas no mapa as longitudes, onde o antimeridiano de 360º ou meridiano 0º passa exatamente no centro do planisfério, porém, deslocado para oeste. Um exemplo dessas longitudes pode ser visto na fig.1 de forma geral e no detalhe na (Figura 3) em (B). A orientação geral dos ventos é representada pela rosa dos ventos nas (Figuras 1 e 3) (C), característica das cartas portulanas do período renascentista, porém, no mapa de Mercator, existem várias rosas dos ventos localizadas no entorno dos muitos continentes, formando uma rede de linhas interligadas que foram fundamentais para navegação dita de rumo e estima muito utilizada pelos navegadores do século XV e XVI.

Figura 2: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. 

Figura 3: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. 

Importa destacar nesta iconografia a representação de seres mitológicos em mar aberto e continente, fato que comprova a estreita ligação de Mercator com o fundamentalismo religioso e a dificuldade de rompimento deste paradigma. Ou então, poderia ser uma exigência do contratante do mapa para que tais elementos fossem desta maneira representados.

No recorte do mapa na (Figura 2), observa-se na costa Atlântica esquadras de Naus como ícones, símbolos da conquista europeia do novo mundo. A toponímia do litoral é por deveras pobre, tendo pouca expressão, apenas determinando os principais rios, porém, Mercator separa as duas bacias hidrográficas, do Amazonas e do Prata, por uma contínua linha de cordilheiras que percorre o interior do continente, ao invés de representar um lago ao centro interligando as duas bacias, como nesta época acreditava-se existir.

O antropofagismo também é representado no extremo sudoeste do continente, assim como a presença de nativos e de animais. Conforme a análise, é possível perceber que, mesmo aplicando a projeção de Mercator, no continente Sul Americano, este por sua vez apresenta-se hiperbolicamente representado, sendo este, composto por três cartas distintas do total de dezoito construídas do Orbi atribuído à Mercator. A deformação dos continentes é natural numa projeção que mantém ângulos retos de 90º, este fator indica que esta carta foi produzida mais para os oceanos do que para os continentes, ou seja, uma carta de auxílio aos navegantes, como seu próprio nome determina (“Nova aumentada descrição da Terra com correções para o uso de navegação”, 1569).

O planisfério de Mercator representou uma verdadeira evolução nas técnicas e instrumentos de medição para a cartografia e foi amplamente utilizada pela facilidade que este sistema proporcionava, primordialmente, utilizando-se de uma linha que atravessa todos os meridianos em ângulo constante ou (loxodrome). A nova descrição da terra com correções para o uso da navegação de 1569 foi uma obra produzida muito provavelmente em escritório. Informações acerca dos descobrimentos chegavam frequentemente à Antuérpia, assim como marinheiros portugueses que traziam consigo relatos e descrições ou roteiros das navegações pelo mundo. Mercator deve ter se utilizado destas privilegiadas informações para compilar seu mapa mundi.

De acordo com Georama (1967), Gerardus Mercator não contava apenas com o aprendizado recebido de seu mestre, mas também com importantes descobertas sobre conhecimentos Cosmográficos, Topográficos, Matemáticos e Astronômicos existentes naquele período. Ainda conforme o autor, Mercator fora privilegiado por ser de origem Flamenga e, portanto, estar inserido dentro de uma conjuntura histórica que a este tempo permitia ter uma relação próxima com o Imperador Carlos V, permitindo-lhe trocar informações com navegadores e pilotos portugueses e espanhóis muito experientes nas práticas de navegação de longo curso. Tudo indica que neste contexto Mercator teria conhecido o famoso matemático nomeado cosmógrafo-mor do reino de Portugal, o então Pedro Nunes (1502-1578), e que teria aproveitado grande parte de suas investigações para elaboração de seus mapas e globos terrestres.

Soma-se a estes fatores a grande produção cartográfica, elaborada por Mercator, anterior a publicação de seu mapa mundi de 1569, que seguramente serviu de base para o aprimoramento das suas dezoito folhas pertencentes no planisfério de 1569.

O contexto social em que viveu Mercator

Mercator, como grande estudioso, possuía uma vasta bibliografia que lhe serviu sobremaneira para a elaboração de mapas, cartas e globos terrestres. A pergunta que devemos fazer é se Gerardus Mercator foi, durante sua vida, um cartógrafo completamente isento de ideologias, já que sua produção datada de 1569, era vista como um produto científico, que servira a melhoria da navegação tornando-a mais segura. Para responder a esta questão devemos considerar, assim como Harley (2005) chama atenção, o contexto do cartógrafo e sua inserção naquela sociedade, sobretudo em sua vida de relações. Num primeiro momento, percebe-se, por exemplo, que Mercator não foi apenas um mero cartógrafo, pois sua vida estava intrinsecamente ligada à questões político-econômicas estabelecidas com seus financiadores, que estavam longe der ser pequenos comerciantes de Antuérpia.

Para Seemann (2003), Mercator produziu seus primeiros mapas, globos e Atlas para os Habsburgos, uma das mais prósperas dinastias europeias, que, como monarquia, dominou vastos territórios durante um longo período da historiografia humana, fundando uma sólida e absoluta autoridade política. Desta maneira, percebe-se que havia um jogo de interesses na produção de mapas, atlas e globos já naquela época, os quais são atualmente conhecidos como mapas históricos. “os trabalhos de Mercator como cartógrafo tiveram início em Louvain, onde apresentou sua descrição da Terra Santa, editada em 1537, com dedicatória ao humanista Frans van Cranevelt (1485-1564), um dos conselheiros do Imperador Carlos V.” (MICELI, 2012, p.106) O humanista e jurista Frans van Cranevelt foi aluno da Universidade de Louvain, formando-se em Artes e logo depois em Direito, exercendo a cátedra na mesma universidade. Conforme Bejczy (2015), por volta de 1522, Cranevelt foi nomeado membro do Grande Conselho de Mechelen, o mais alto tribunal da Holanda, ganhando rapidamente o prestígio da elite dominante europeia.

Mercator também produzira por determinação de alguns mercadores de Antuérpia um mapa dos Flandres que nunca foi concluído. As relações políticas exercidas pelo cartógrafo e autoridades da monarquia não cessaram, acompanhando suas produções no decorrer da segunda metade do século XVI. Logo após, nos idos anos 1540, Gerardus Mercator iniciou um projeto de construção de um globo terrestre. “[...] a gravação deste globo terrestre foi concluída por volta de 1541 e dedicado a Nicolas Perrenot de Granvelle (1468-1550), Chanceler de Carlos V e patrão do cartógrafo, por cuja influência produziu inúmeros instrumentos científicos para o imperador” (MICELI, 2012, p. 107).

Assim, percebe-se uma estreita relação entre Mercator e o imperador Carlos V, que indiretamente, por meio de seus conselheiros e chanceleres, incumbia o cartógrafo da construção e gravação de globos terrestres, atlas e mapas diversos. Eles seguramente serviriam a um propósito muito mais amplo e complexo, onde suas produções foram adquirindo, desta forma, uma conotação social. Conforme o The Biography (2015), Gerardus Mercator teria dedicado seu globo terrestre de 1541 para Granvelle. Nicolas Perrenot de Granvelle foi um político e diplomata borgonhês, sendo um dos principais assessores do imperador Carlos V. Mercator também trabalhou na produção de um segundo globo terrestre para Gemma Frisius. O cartógrafo, a este tempo, acumulava muitas produções alcançando grande prestígio como um dos maiores cartógrafos do século XVI. “Em 1551, ano em que recebeu privilégio para imprimir e editar livros, Mercator finalizou seu globo celeste, contendo desenhos sobre os movimentos dos planetas e constelações, dedicando-o a George da Áustria, bispo de Liège” (MICELI, 2012, p. 107).

Em 1552, Mercator deixou Louvain a pedido do Imperador Carlos V para instalar-se em Duisburg, sobretudo pelo fato do mesmo estar sob suspeita de cometer atos de heresia contra os princípios da igreja católica. Poucas cidades europeias estavam livres das amarras religiosas impostas por Roma, uma delas foi a cidade alemã de Duisburg, onde tais ideologias não eram aplicadas. Antes, porém, de ser preso e levado para Rupelmonde, Mercator, conforme Miceli (2012), produzira mais uma obra destinada a outro nobre. Sua descrição da Europa, datada de 1554, foi dedicada ao filho de Nicolas, Antoine Perrenot de Granvelle (? -1586), conselheiro de Carlos V e Filipe II, cardeal-arcebispo de Mechlin, bispo de Aras e, como o pai, patrão do cartógrafo. Estas relações sociais, acompanham Gerardus Mercator desde muito cedo, quando o mesmo se destacou em Louvain, acompanhando consequentemente a elaboração de seus globos terrestres, mapas e atlas os quais o cartógrafo fora incumbido da produção.

Os ocultos no planisfério de Mercator

Precisamos compreender o contexto social em que vivia Mercator, quando optamos por desconstruir o planisfério de 1569. A ligação de Mercator com a pessoa de Antônio Perrenot de Granvelle, tem especial valor nesta análise uma vez que ele, conforme The Biography (2015), foi conselheiro de Carlos V e com o passar dos anos também nomeado cardeal da Igreja Católica. Esta nomeação está intimamente ligada à sua grande influência e aos serviços diplomáticos prestados. Antônio Perrenot de Granvelle foi um dos grandes colaboradores da Casa dos Habsburgo. Frequentou missões diplomáticas, incluindo as negociações entre Carlos V e o rei francês Francisco I, representando o imperador no concílio de Trento em 1545, além de conduzir as negociações de casamento entre o príncipe Felipe e a rainha Maria Tudor. Também participou do processo de paz entre católicos e protestantes ocorrido na Inglaterra, em 1555.

Logo, Antônio Perrenot de Granvelle mudou-se para Roma para participar do conclave de 1565, e foi eleito Papa com nome de Pio V, desta forma, reconciliando seus contatos com os humanistas italianos que conheceu durante seus estudos universitários e consequentemente com Gerardus Mercator que fora contratado para produzir um mapa-múndi intitulado: “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum navegatium emendate acommodata” (“Nova aumentada descrição da Terra com correções para o uso de navegação”, datada de 1569).

Porque o Papa Pio V encomendou à Mercator esta nova carta do mundo? Eis que surge uma das questões que poucos pesquisadores da cartografia histórica atentaram ou mesmo investigaram de forma aprofundada. Partindo de uma metodologia científica, assim como apresenta-nos Harley (2005) sobre as categorias de análise determinantes para se efetuar a chamada desconstrução de um mapa histórico, é possível construir uma hipótese acerca desta pergunta.

Ao que nos parece claro, é que o Papa Pio V possa ter contratado Mercator com objetivo de obter, por meio desta produção, um avançado conhecimento sobre os descobrimentos efetuados pelas coroas ibéricas e seus reais domínios sob o interior destes territórios. A preocupação com invasões e a localização das vilas e cidades também nos parece evidente assim como seu interesse no conhecimento de forma adequada das rotas comerciais estabelecidas entre a Europa e as Índias, principalmente para aferir distâncias, rotas e estimar o tempo de viajem com maior precisão.

Ora, não apenas estes elementos eram vistos como essenciais para a Igreja, mas sobretudo com o objetivo da propagação e disseminação da fé Católica sob os novos territórios, antes que outras ordens religiosas tomassem a dianteira no processo. A exemplo, podemos citar o quanto a fundação da França Antártica por Villegagnom em 1555 preocupava o Vaticano, pois, de forma alguma seria admitido que uma colônia protestante se instalasse nos territórios de domínio das coroas ibéricas na América e pronunciasse uma outra fé que não a Católica.

O Papa Pio V foi, sem dúvidas, um dos homens mais poderosos da Europa no seu tempo e o mapa produzido por Mercator seguramente serviu de subsídio ao firmamento de tratados, sobretudo nos envolvimentos territoriais, sendo desta forma, amplamente utilizado para diplomacia e, consequentemente, aos interesses pessoais e ideológicos do soberano da Igreja Católica que exercia grande influência na Europa deste tempo. Se partimos deste pressuposto, então devemos considerar não apenas a função técnica que o planisfério de Mercator exerceu e influenciou a Cartografia, mas, também nessa leitura, ele está pobre de uma construção social da época.

Desta forma, percebe-se que o mapa teve um papel amplo, num contexto complexo, no envóculo de uma intrincada rede de relações sociais estabelecidas e compreendidas sob este novo paradigma de análise de mapas históricos. Desta maneira, o mapa assume uma nova característica, não deixando, porém, de ser científico, mas agregando a função característica de elemento modificador pelo simples fato dele ser retórico.

Outro elemento que importa destacar é a consciência do cartógrafo acerca dos reais objetivos a que seus mapas serviriam. Mercator não produziu o mapa de 1569 apenas para atender os anseios científicos, para com isso, promover uma significativa melhora para a navegação. Apesar do mapa expressar em sua forma iconográfica esta função, não foi a única assumida. Mercator conhecia muito bem seu contratante e, desta forma, sabia que seu mapa atenderia aos desejos do mesmo, e estaria de acordo com a ideologia dele, seu desejo de expansão econômica e dominação religiosa. Tais elementos, ocultos no mapa, são desvendados somente numa análise iconológica, a qual é capaz de analisar sob o enfoque histórico social os segredos, as censuras e ocultos por trás de uma iconografia.

Um fator que corrobora com as hipóteses levantadas nesta análise, é que Mercator enriqueceu graças aos benefícios cedidos a ele pelos conselheiros do Imperador Carlos V e posteriormente pelo Papa Pio V, entre eles a livre produção, reprodução e impressão de livros e mapas que a este tempo poucas pessoas tinham acesso. Igualmente, produziu obras para reis, como seu famoso segundo globo terrestre que naturalmente fora decorado com pérolas e ouro, numa nítida prática de produção de mapas para príncipes.

Mercator tornou-se membro de uma elite dominante e, devido a seu alto grau de conhecimento e desenvolvimento intelectual, é improvável que o mesmo fosse incapaz de prever que suas obras fossem utilizadas num contexto social mais amplo e complexo, estando estas carregadas de interesses econômicos, políticos e sociais.

Deste modo, conclui-se que Mercator ao mesmo tempo que produziu um marco para a ciência e a cartografia por meio da elaboração de seu mapa mundi de 1569, primeiro mapa conhecido a conter sua famosa projeção, também elaborou concomitantemente uma “arma” mais poderosa que qualquer canhão, navio ou exército que à época poderia existir. Seu mapa serviu como elemento primordial para o cumprimento de uma agenda ideológica de dominação econômica, social, étnica e religiosa, conforme demostramos a partir do paradigma de uma análise baseada no discurso (texto) e nos elementos gráficos (imagem), presentes em sua iconografia e iconologia.

Referências bibliográficas

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GEORAMA. História da Cartografia. Rio de Janeiro: Codex, 1967. 239p.

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KOEMAN, C; SCHILDER, G; EGMOND, M. V; KROGT, P V. D. Commercial Cartography and Map Production in The Low Countries, 1500 – ca. 1672. In: WOODWARD, D. (Org). The History of Cartography Vol.3 Cartography in the European Renaissance. Chicago: University of Chicago Press, 2007. 1.120p.

MICELI, P. O Desenho do Brasil no Teatro do Mundo. Campinas: Unicamp, 2012. 263p.

MONMONIER, M. Rhumb Lines and Map Wars: A Social History of The Mercator Projection. Chicago: The University of Chicago Press, 2004. 183p.

SANTOS, D. A Reinvenção do Espaço: Diálogos em torno da construção do significado de uma categoria. São Paulo: UNESP, 2002. 217p.

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Fonte: SCOTTON, Giovani Colossi; NOGUEIRA, Ruth Emilia. Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569. Geosul, Florianópolis, v. 31, n. 62, p 39-58, jul./ago. 2016. 


terça-feira, 16 de março de 2021

O indianismo no Brasil: o herói indígena

 

O indianismo consiste num termo para se referir a uma corrente, principalmente literária, mas também vista em menor escala na pintura, em cuja proposta houve a idealização da figura do indígena, para fins ufanistas, nacionalistas, marciais, românticos, heroicos e trágicos. Assim, as diferentes fases do indianismo apresentam esses aspectos com maior ou menor destaque.

As origens do indianismo são algo que ainda gera discordâncias. Alguns teóricos da literatura e historiadores defendem que o indianismo teria surgido no século XVIII, através de poemas com aspectos épicos e arcadistas, mas outros preferem apontar o século XIX com o estabelecimento do Romantismo brasileiro. E uma terceira vertente sugere que escritos do século XVI, redigidos pelo padre José de Anchieta e outros clérigos poderiam ser considerados exemplos de indianismo.

Sobre isso existe uma confusão entre indianismo e indigenismo. O primeiro se refere a uma corrente literária de valorização dos indígenas, como comentado há pouco, já o Indigenismo refere-se a uma ideologia política e cultural de valorização dos costumes dos povos indígenas brasileiros. No caso, o indigenismo foi mais amplamente empregado na política, antropologia, etnologia e na história, para fins nacionalistas, patrióticos e ufanistas. E no caso essa valorização possuía mais um caráter propagandístico do que de respeito e reconhecimento. Fato esse que estudos publicados no XIX, ao mesmo tempo que idealizavam as culturas indígenas, não escondiam o olhar eurocêntrico e colonial, em que tratava os indígenas como o “bom selvagem”, o incivilizado e o primitivo. E se retornarmos aos trabalhos dos séculos XVI e XVII, a ideia de canibais, bárbaros e pagãos era predominante.

1) O indianismo do século XVIII

Algumas das obras mais significativas sobre o indianismo surgiram propriamente no Setecentos, tendo sido poemas com tom aventureiro, épico e com traços do arcadismo, em se valorizar a natureza do país.

A primeira obra de destaque foi escrita pelo poeta mineiro Basílio da Gama (1741-1795), o qual publicou O Uruguai (1769), um poema épico baseado em fatos históricos que narrava a guerra pela dominação do sul do Brasil e do Uruguai, durante o período da Missão dos Sete Povos, em que os missionários jesuítas que catequizavam os indígenas tiveram problemas com as tribos locais, mas também com os interesses dos colonos portugueses e espanhóis na disputa daquelas terras.

Frontispício do poema épico O Uruguai (1769)

O poema O Uruguai possui 1.377 versos divididos em cinco atos. Em termos técnicos é uma obra simples, por apresentar versos brancos (sem rimas) e versos livres (sem métrica). A história romantiza de forma épica alguns conflitos ocorrido no Rio Grande do Sul, destacando as ações do chefe Sepé Tiaruju (c. 1723-1756), o qual realmente existiu e liderou uma revolta. Aproveitando esse conflito como plano de fundo, Gama construiu um poema para exaltar Portugal, o que apresenta um traço nacionalista, uma das características do indianismo. (PICCHIO, 2004, p. 138-139).

O segundo trabalho desse período foi outro poema épico, intitulado Carumaru. Poema épico do descobrimento da Bahia (1781), escrito pelo frei agostiniano José de Santa Rita Durão (1722-1784). Nesse poema também inspirado numa história real, dessa vez referente ao português Diogo Álvares Correia (1475-1557), que naufragou na costa baiana e acabou fazendo parte de uma tribo de Tupinambás, tendo se casado com Paraguaçu, filha do cacique. Correia que foi apelidado pelos indígenas de Carumaru, passou o restante da vida no Brasil, tornando-se uma figura até folclórica, pois por certo tempo desconfiou que realmente sua história fosse real. De qualquer forma, o frei Durão inspirado por essa história real, redigiu sua versão dessa narrativa.

Frontispício do poema Carumaru (1781)

Nesse poema inspirado aos moldes d’os Lusíadas, assim como fez Basílio da Gama anos antes, frei Durão concedeu vários aspectos ufanistas a sua obra, enfatizando as belezas naturais e o estilo de vida simples dos indígenas. Ao mesmo tempo em que a figura de Carumaru personificava o europeu colonizador que trouxe ordem e civilidade aquelas pessoas. E no aspecto nacionalista, o subtítulo do poema deixa explícito a ideia de que aquela obra narraria como se deu a descoberta e colonização da Bahia. (PICCHIO, 2004, p. 139-140).

2) O indianismo no século XIX

Após o advento da Independência do Brasil (1822) o indianismo ganhou destaque sobre os ombros do indigenismo, que era latente naquele período. Roberto Souza (2019, p. 288) assinala que ainda no século XVIII, alguns escritores, poetas e políticos adotavam pseudônimos com nomes indígenas, o que expressaria um uso nacionalista para a figura dos indígenas. E tal aspecto foi retomado no século seguinte, não apenas por indivíduos, mas por jornais, revistas, lojas, etc. Sobre isso o autor cita como exemplo os jornais: O Tamoio (1823), O Caramuru (1832), O Carijó (1832), O Indígena do Brasil (1833), O Tamoio Constitucional (1833). Souza também informa que o D. Pedro I era chamado entre os maçons pelo nome de Guatimozim e José Bonifácio recebeu o pseudônimo de Tibiriçá.

Com esse destaque ao indigenismo nos tempos do império, a literatura indianista chegou ao seu auge. Escritores, jornalistas e historiadores começaram a usar os termos para se referir a essa condição de exaltação da terra, do nacionalismo e do patriotismo, aspectos importantes ainda mais nas primeiras décadas do recém-fundado império brasileiro, fase em que o país vivenciou várias revoltas separatistas. Logo, havia a necessidade de construir toda uma atmosfera e imaginário nacionalista e patriótico de valorizar os brasileiros como sendo agora um povo independente, não mais parte do reino unido português. (VERÍSSIMO, 2015, p. 167).

“O indianismo é um dos primeiros pródomos visíveis do movimento que enfim culminou na independência: o sentimento de superioridade a Portugal. Efetivamente era necessária grave mudança nas condições da sociedade, para que a inspiração se voltasse para as florestas e íncolas primitivos, que até então evitara, mudança tanto mais grave quanto o indianismo foi muito geral para surgir de causas puramente individuais. A verdadeira significação do indianismo é dada pelos contos populares”. (ABREU, 1931, p. 93).

Para o historiador Capistrano de Abreu, o indianismo teria surgido a partir do folclore, quando as antigas histórias sobre índios, caboclos, mamelucos, escravos, etc. ganharam atenção e consideração dos escritores e poetas, que passaram a considerar o indígena não apenas mais como o gentio (termo pejorativo para povos pagãos e tidos bárbaros), mas que embora fossem “primitivos”, ainda assim, teriam alguma qualidade, teriam valores, e era esse lado positivo que o indianismo e o indigenismo se apropriou.

2.1) A poesia de Gonçalves Dias

Gonçalves Dias

O segundo nome de destaque do indianismo brasileiro foi o poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), tragicamente falecido num naufrágio aos 41 anos. Ao longo da vida, além da poesia, Dias dedicou-se ao direito, a docência, ao jornalismo, a etnografia e o folclore. Viajou para a Europa algumas vezes, onde viveu a trabalho temporário. Sua poesia é conhecida por seu tom ufanista e nacionalista. A primeira leva de poemas indianistas do autor foi publicada no livro Primeiros Cantos (1846), sendo inclusive obras pouco conhecidas do grande público. Nesse livro temos os poemas a Canção do Índio, a Canção do Guerreiro e a Canção do Piaga, apesar que a Canção do Exílio seja o poema mais famoso desse livro. De qualquer forma, os outros três poemas tratam o indígena como figura que personifica o ufanismo, algo adotado da escola do arcadismo, apesar de que Dias vivencia-se um período do romantismo. Assim, nesses três poemas o autor exaltava a coragem e força dos indígenas, além de destacar também a natureza. No entanto, foi em outros dois poemas de tom mais dramático, em que o indianismo de Gonçalves Dias ficou mais conhecido.

O pequeno poema I-Juca-Pirama (1851), foi publicado no livro de contos intitulado Últimos Cantos, possuindo 484 versos divididos em 10 cantos, narra a história trágica de um Tupi que é capturado por uma tribo de Timbiras, os quais o escolhem para o ritual antropofágico. Durante o ritual em que o condenado deve cantar seus feitos, o indígena começou a recitar algumas poucas façanhas, mas em seguida começou a chorar e pediu para ser solto, pois tinha um pai velho e cego para cuidar. Como ingerir a carne de covardes era algo ruim, os timbiras soltaram o tupi, o qual voltou para casa e contou o ocorrido para seu pai, o qual se irritou por ter um filho covarde. Indignado e revoltado com o pai, ele decidiu provar sua coragem e partiu para se vingar dos timbiras.

Nesse poema não temos o indígena romântico como visto nos livros de José de Alencar, a versão indianista de Gonçalves Dias é mais nua e crua, apesar de manter um heroísmo trágico, algo em voga no romantismo da época.

Sua segunda produção mais importante é o poema Os Timbiras (1857), obra que inclusive foi publicada na Alemanha, durante a estadia do autor naquele país. Esse poema de caráter épico, foi escrito anos antes e não chegou a ser concluído. Ele narra a viagem de uma tribo de Timbiras do sul do Maranhão até o Amazonas. No percurso, os personagens enfrentam várias ameaças promovidas pela natureza, outras tribos indígenas e pelos portugueses. A obra apesar de não ter sido concluída, contaria com 12 cantos, mas apenas 4 foram publicados.

Esse poema como outras obras de Dias, possui uma forte linguagem simbólica, ufanista e nacionalista. Os Timbiras são um povo comparado aos Troianos da Eneida de Virgílio, apesar que Dias disse ter se inspirado na Ilíada de Homero. De qualquer forma, nota-se algumas poucas semelhanças, onde temos dois povos que possuem suas terras atacadas e uma profecia fala para eles buscaram um novo lar. Infelizmente nunca saberemos o que ocorreu nessa viagem pelo norte do Brasil.

2.2) O épico de Gonçalves de Magalhães

O médico, diplomata, político, escritor e poeta Domingos José Gonçalves Magalhães (1811-1882) é considerado o expoente de início do Romantismo brasileiro, ao publicar seu livro de poemas intitulado Suspiros Poéticos e Saudades (1836). Apesar dessa obra que lhe rendeu reconhecimento no mundo literário, seu trabalho mais significativo sobre o indianismo somente foi publicado duas décadas depois com A Confederação dos Tamoios (1856).

Na época, Magalhães gozava de boa reputação no meio literário, diplomático, político e até nas graças do imperador D. Pedro II. Seu livro, lançado um ano antes do Guarani de José de Alencar, tinha como pretensão ser a grande obra do indianismo romântico de sua época, algo que inclusive gerou críticas por parte de Alencar, quando esse apontou que o poema de Magalhães tinha mais características do arcadismo do que do romantismo. De fato, a crítica de José de Alencar não era infundada, pois Gonçalves Magalhães inspirou-se no O Uruguai de Basílio da Gama, épico com tom do arcadismo e também se inspirou na literatura barroca de Os Lusíadas.

Frontispício da segunda edição da Confederação dos Tamoios (1857)

“Este poema épico [Confederação dos Tamoios] em dez cantos narra a revolta índia de 1560: quando os tamoios guiados por Aimbiré se tinham sublevado contra os portugueses. Conduzida em dois planos, o da guerra e o do amor - onde os portadores do amor romântico e também do ideal libertário são o valoroso Aimbiré e sua esposa Iguaçu - a narrativa tem como eixo a figura do padre Anchieta que, enquanto os navegantes lusitanos traçam o sulco da conquista sobre a praia onde nascerá a cidade do Rio de Janeiro, compõe, piedoso, os corpos enlaçados dos dois índios, salvos pela morte voluntária da ignomínia de serem escravos”. (PICCHIO, 2004, p. 166).

Rafael Brunhara (2020) comenta que entre as polêmicas envolvendo o livro de Magalhães esteve mais uma crítica pelo estilo de sua obra, que oscila entre três escolas literárias, sua tentativa de imitar Os Lusíadas, a pretensão de Magalhães de criar o epopeia brasileira definitiva. Além disso, o autor comenta que outros estudiosos criticaram também o conteúdo, história e desenvolvimento do poema. Mas apesar dessas polêmicas, não se pode negar que a Confederação dos Tamoios foi um marco da literatura indianista, mesmo que hoje seja um livro pouco lembrado e até mesmo ofuscado pela obra de José de Alencar e Gonçalves Dias.

2.3) A trilogia de José de Alencar


José de Alencar
O escritor e político cearense José Martiniano de Alencar (1829-1877) é lembrado como um dos principais nomes da literatura romântica indianista brasileira, por conta de sua trilogia de sucesso, ainda hoje referenciada como clássicos da literatura brasileira e até certa época, utilizada como material paradidático nas escolas. Apesar da fama de seus livros, não significa que Alencar esteve isento de críticas contrárias ao seu trabalho. Em seus livros O Guarani e Iracema, dos quais daqui a pouco comentarei, Alencar foi criticado por representar os protagonistas de forma ingênua, facilmente manipuláveis, e por outro lado, mostrar os demais personagens como pessoas arrogantes, prepotentes e brutas. Para entender melhor isso, vejamos alguns breves resumos sobre sua trilogia. O Guarani (1857) foi publicado em formato de folhetim em jornais cearenses na época, sendo a terceira obra escrita por Alencar, na época com seus 28 anos. Foi com este livro que sua carreira como escritor despontou. A obra ainda hoje considerada um clássico da literatura brasileira, narra um romance conturbado entre o índio Peri, o qual se apaixona pela bela Cecília "Ceci" de Mariz, de cabelos louros e olhos azuis, a qual não corresponde ao amor de seu amigo.

Frontispício de O Guarani (1857)

Embora o nome do livro seja guarani, Peri é descrito como pertencendo ao povo goitacá, natural do Espírito Santo e Rio de Janeiro, e de fato, a trama se passa no interior da Capitania do Rio de Janeiro. Peri é descrito como um guerreiro forte, valente, leal, fiel, mas ingênuo. Pois embora seu amor por Cecília não seja correspondido, ainda assim, ele faz tudo para agradá-la. E tal característica é marcante em vários momentos do romance.

O romance mescla esses aspectos de um amor não correspondido, amizade, inveja, ciúmes e cobiça, pois outros dos personagens que atuam como vilões, geram problemas para o casal, levando inclusive a uma batalha dos aimorés em busca de vingança. Dessa forma, o Guarani apresentava o protagonista como um herói trágico.

Já o segundo livro de Alencar, intitulado Iracema. Lenda do Ceará (1865), inverte os papéis do protagonismo, dessa vez o foco é na mulher, a bela Iracema de lábios de mel e cabelos negros, que é descrita como sendo virgem, filha do pajé Araquém, e “sacerdotisa” da jurema. A qual se apaixona pelo português Martim, que perdido é encontrado por membros da tribo de Iracema, os Tabajara.

Nesse romance a trama se passa em local indeterminado no Ceará, terra natal de Alencar. Embora que os dois povos indígenas representados: os Tabajara e os Pitiguara/Potiguara, sejam populações que habitavam entre os estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, fato esse que no romance há menções a localizações destes outros estados.

Frontispício de edição de 1870 de Iracema

Iracema é a personagem que encarna os aspectos da donzela em perigo e que vive um amor proibido. Seu pai e irmão não querem que ela se relacione com Martim, por ele ser estrangeiro e pertencer a um povo estranho, que por sua vez, é aliado dos Potiguara, inimigos dos Tabajara. Ainda assim, Martim se apaixona por Iracema e tenta ganhar a confiança dela e de sua família. A índia também se apaixona pelo português, mas vivencia o dilema de se arriscar ou não para amá-lo. Mas em meio a esse romance problemático desenvolve-se os problemas bélicos entre os Tabajara e Potiguara, e outros inimigos, apesar que a narrativa não aprofunde esses conflitos. Novamente temos um romance de tons dramáticos como no Guarani.

Nesse livro, Alencar investiu bastante num tom ufanista para destacar as belezas do Ceará, além de uma rebuscada prosa com tom poético. Assim como, Iracema tornou-se a lenda para a origem do povo cearense, surgido da união do indígena e do europeu, na figura de Moacir, o filho de Iracema e Martim. De fato, a proposta de Alencar de criar uma lenda para sua terra natal ganhou êxito, e Iracema hoje é considerada patrimônio artístico cearense, possuindo estátuas, ruas e praças em sua homenagem.

Por fim, a terceira obra é Ubirajara (1874) que é o livro menos conhecido dessa trilogia indianista. Diferente dos romances anteriores em que era apresentado o amor conturbado e romântico entre um indígena e um colono, em Ubirajara a trama toda gira em torno de personagens indígenas, não tendo a presença dos europeus ou dos colonos. Novamente Alencar faz uso do amor e guerra como fatores para sua narrativa, em que o chefe Ubirajara da tribo dos Araguaia, apaixonado por Araci, filha do chefe Iraquê da tribo dos Tocantins,  acaba entrando em conflito contra os pretendentes dela e outras tribos.

Folha de rosto de uma edição de 1919 de Ubirajara

O romance segue a estética das obras anteriores com seu linguajar ufanista e poético, seu foco no amor proibido ou problemático para o casal protagonista, intrigas, ciúmes, invejas e conflitos. A diferença como assinalada anteriormente é que dessa vez temos um foco apenas nos indígenas não tendo a intervenção do colonizador opressor. A briga entre os protagonistas e suas tribos lembra algo visto em Iracema. Além disso, Ubirajara não é um herói ingênuo e melodramático como Peri, ele é um guerreiro que é chefe de sua tribo, além de ser astuto também, pois se disfarça para poder disputar a mão em casamento de Araci, e consegue vencer a disputa. Além disso, o personagem também é o típico herói que consegue conciliar dois povos em desavença, firmando a paz entre os Araguaia e os Tocantins.

3) O indianismo na pintura romântica

Representações de indígenas remontam desde o século XVII, com destaque a pintores holandeses e flamengos que na época do Brasil holandês (1630-1654) fizeram várias pinturas sobre os indígenas. Inclui-se também a publicação de livros e a feitura de gravuras portuguesas, espanholas, francesas e inglesas nos séculos XVI ao XVIII, representando indígenas brasileiros. No entanto, enquanto essa iconografia procurava retratar os indígenas de forma fidedigna ou apenas ilustrativa para livros e exposições, no século XIX surgiram pinturas românticas. Sobre elas, destaquei as mais conhecidas.

No caso das pinturas que se pode ver abaixo, nota-se que elas têm em comum uma morte idealizada, algo que inclusive fez parte do Romantismo em diferentes países. Basta lembrar que obras clássicas do romantismo alemão como Os sofrimentos do Jovem Werther (1774) e Fausto (1808/1832), ambos do escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), abordam o drama, a tragédia e a morte, entre outros assuntos. Logo, as pinturas românticas indianistas também apresentaram essas características, tendo como características principais retratar indígenas em praias, estando tristes ou mortos.

O pintor catarinense Victor Meirelles (1832-1903), conhecido por várias obras na época do império brasileiro, com destaque as suas pinturas sobre batalhas, o imperador D. Pedro II, temas católicos e mitológicos gregos, paisagens brasileiras, ele pintou alguns indígenas. No quesito sua obra mais famosa contendo indígenas é a Primeira Missa do Brasil (1861), no entanto, o quadro que quero destacar aqui é o Moema (1866), baseado na personagem inspirada nas lendas sobre o Carumaru. A personagem em algumas dessas narrativas teve um final trágico, e foi essa tragicidade que Meirelles decidiu abordar.

Moema, Victor Meirelles, 1866. 

Inspirado também numa ideia de morte romantizada, o pintor José Maria de Medeiros (1849-1925) pintou Lindóia, quadro trágico que retrata a morte da indígena, picada por uma cobra. Lindóia é personagem do poema O Uruguai, e acaba tendo uma morte trágica, mesmo que seu amado tenha conseguido matar a serpente, não conseguiu salvá-la. 

Lindóia, José Maria de Medeiros, 1882. 

Inspirado na obra de Meirelles temos o quadro O último tamoio (1883), de Rodolfo Amoedo (1857-1941). O tema do quadro é baseado no poema A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães. Nessa pintura temos o chefe Aimberê, falecido numa praia e ao seu lado está o Padre José de Anchieta. A cena apresenta novamente elementos trágicos associados ao cenário de uma praia.

O último tamoio, Rodolfo Amoedo, 1883. 

Dois anos depois de pintar Lindóia, José Maria de Medeiros, retornou a temática indianista e dessa vez retratou novamente uma mulher, mas em cenário diferente e em situação menos trágica. Ele pintou Iracema (1884), onde nesse quadro temos também uma indígena em uma praia com tons pastéis, mas enquanto nas obras anteriores Moema, Lindóia e Aimberê estão mortos, Iracema está viva e olha para uma flecha com uma flor. O tema em questão é baseado na parte da história que a indígena teme que Martim pudesse ter morrido ou ido embora.

Iracema, José Maria de Medeiros, 1884. 

Considerações finais

O indianismo na literatura brasileira foi marcado duas fases que se complementam: o século XVIII com seus poemas épicos e arcadistas, os quais tornavam os indígenas protagonistas ou coadjuvantes da ação, sobretudo no poema O Uruguai, que possui temática de guerra. Já em Carumaru o tom é mais calmo e foca-se na relação do colonizador com o colonizado. Mas ambos possuem sua dose de ufanismo e de nacionalismo, o primeiro utiliza a guerra de resistência contra a ambição dos jesuítas e dos espanhóis para justificar o Brasil como território leal a Portugal, já o segundo poema tenta construir uma origem romântica para a descoberta e povoação da Capitania da Bahia. 

Tais características são retomadas no século XIX, a época áurea do indianismo propriamente falando, o qual incorporou diversos elementos do Romantismo como o romance, dilemas amorosos, amores proibidos, rixas familiares, saudade, medo, sonhos, esperança, medo, drama e tragédia, unindo-os as características ufanistas vistas na poesia de Gonçalves Dias e na prosa de José de Alencar, além de inserir também elementos nacionalistas, como em Iracema, o qual se propôs a criar uma lenda para o Ceará, algo visto com Carumaru de frei Santa Maria Durão. Por sua vez, A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães buscou resgatar a ideia do épico militar vista com O Uruguai

Salienta-se também que os poemas mais famosos de Gonçalves Dias, I-Juca-Pirama e Os Timbiras exploram o drama e a tragédia, retomando a ideia da valentia e do lado belicoso dos indígenas, mas sem inserir o romance propriamente falando, algo mais visível na trilogia de José de Alencar, em que o romance e seus dilemas é ponto central na narrativa dessas obras, além de destacar que em O Guarani e Iracema, o foco se dar sobre a união do indígena com o europeu, já que em Ubirajara, o romance permanece entre os indígenas. Mas além dessa questão romântica, os livros de Alencar também possui elementos de aventura e conflito, que destacam os indígenas por sua força e heroísmo, algo visível com Peri e Ubirajara. Já que no livro de Iracema, o heroísmo pertence aos personagens secundários como seu irmão Caubi e o amigo de seu marido, Poti. 

No tocante as pinturas, o foco é o drama e a tragédia, tendo como cenário a praia, lembrando que praias são cenários bem reconhecidos no Brasil e no exterior. Logo, a escolha deles foi proposital para retratar as mortes de Moema e Aimberê, além do luto de Iracema. Por sua vez, na pintura da morte de Lindoia, temos a praia substituída pela floresta, outro cenário comumente associado a paisagem brasileira. 

Com o término do Império do Brasil o indianismo entrou em declínio. Alguns modernistas tentaram resgatar ideias dele para o século XX, mas essas ideias ou não foram bem aceitas ou não tiveram o impacto esperado. 

NOTA: Em 1870 o compositor Carlos Gomes, lançou a ópera O Guarani, que fez sucesso na época. 

NOTA 2: O Guarani foi adaptado ao cinema em 1979 e 1996. E em 1991 a Rede Manchete fez uma minissérie de 35 capítulos sobre o romance. Além disso, o livro foi adaptado algumas vezes para histórias em quadrinhos. 

NOTA 3: Na Lagoa de Messejana em Fortaleza, fica situada a mais famosa estátua de Iracema. 

NOTA 4: O livro Iracema ganhou um filme em 1979, com a bela Helena Ramos no papel da protagonista. A produção possui um tom erótico. 

NOTA 5: O romance Ubirajara recebeu adaptações para os quadrinhos. 

NOTA 6: O poema I-Juca-Pirama foi adaptado ao teatro em 1869. 

Referências bibliográficas:

ABREU, Capistrano de. Ensaios e estudos: crítica e história. Rio de Janeiro, Sociedade Capistrano de Abreu, 1931.

BRUNHARA, Rafael. A Confederação dos Tamoios, epopeia modelar. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Niterói, v. 22, n. 40, 2020, p. 73-83.

CANDIDO, Antônio. O Romantismo no Brasil. 2ª ed. São Paulo, Humanitas, 2004.

GRIZOSTE, Weberson Fernandes. A dimensão anti-épica de Virgílio e o indianismo de Gonçalves Dias. Coimbra, Faculdade de Letras, 2010.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2004.

SOUZA, Roberto Acízelo de. O indianismo e a busca da identidade brasileira: influxos europeus e raízes nacionais. Revista Versalete, Curitiba, v. 7, n. 13, 2019, p. 287-316.

VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira: do período colonial a Machado de Assis. Rio de Janeiro, Contexto, 2015.

terça-feira, 9 de março de 2021

Fontes escritas para se estudar o Brasil holandês

Listas bibliográficas sobre o Brasil holandês já foram escritas de forma extensiva, principalmente pelo historiador José Honório Rodrigues (1913-1987) em seus livros Civilização Holandesa no Brasil (1940) e Historiografia e bibliografia do domínio holandês no Brasil (1949). Posteriormente temos outros autores que escreveram a respeito, mas de forma menos detalhada, em livros que abordam fontes sobre o período colonial brasileiro.

No tocante as fontes sobre o Brasil holandês a maior parte delas têm origem em correspondências e documentos administrativos. São cartas, requerimentos, instruções, ordens, relatórios, despachos, avisos, decretos, etc. Um volumoso acervo documental cuja a maior parte não foi transcrita e nem traduzida, apesar do empenho de historiadores como Alfredo Carvalho, José Hygino, Souto Maior, entre outros, em terem traduzido vários documentos holandeses, entre o final do XIX e começo do XX, ainda há trabalho a ser feito.

De qualquer forma o presente texto teve a proposta de apresentar algumas das principais fontes escritas primárias e secundárias sobre o Brasil holandês, especialmente as fontes que foram traduzidas, e que consistem em diários de viagem, relatórios, listas, crônicas militares, crônicas históricas e obras de história natural.

Dessa forma dividi essas fontes por datação e categoria para facilitar a leitura. Aos leitores interessados por estes livros, quase todos estão disponíveis online, sejam nas edições do século XVII, XIX ou começo do XX. Ou o leitor pode procurar em sebos ou livrarias pelas edições mais recentes. 

1) Fontes primárias

a) Primeira invasão (1624-1625)

  • Motivos porque a companhia das Índias Ocidentais deve tentar tirar ao Rei da Espanha a terra do Brasil (1624). Escrito por Jan Andries Moerbeeck e apresentado ao governo holandês, esse relato apresenta 21 motivos para que a WIC investisse em invadir o Brasil e tomar o controle de seus engenhos. O documento realmente obtive êxito na época, e uma primeira ação foi realizada naquele ano.
  • Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, para se recuperar a cidade do Salvador, na Bahia de Todos os Santos; tomada pelos Holandeses, a oito de maio de 1624, & recuperada a primeiro de maio de 1625 (1625). Escrito pelo jesuíta Bartolomeu Guerreiro (1564-1642), é um dos poucos documentos que se possui sobre essa primeira tentativa dos holandeses em conquistar territórios no Brasil.
  • Lista de tudo que o Brasil pode produzir anualmente (1625). Esse relatório econômico de origem anônima, foi escrito pelos holandeses, como outro motivo para incentivar a WIC a invadir o Brasil. O relatório é curto, possuindo somente duas páginas, citando que entre o Rio Grande e a Bahia haveria 137 engenhos, em seguida ele apresenta alguns valores sobre a produção e o valor de venda do açúcar.

b) Período da conquista (1630-1637)

  • Memória oferecida ao Conselho Político de Pernambuco por Adriaen Verdonck em 1630. Escrito pelo belga Adriaen Verdonck, que morava em Pernambuco, suas memórias são informações sobre Pernambuco, Alagoas, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte, informando sua geografia, natureza, lugares e engenhos, ofertadas aos holandeses em sinal de amizade. Já que Verdonck passou a trabalhar para a companhia.
  • Relaçam breve e verdadeira da memorável victoria, que ouve o Capitão-mor da Capitania da Paraíba Antonio de Albuquerque, dos Rebeldes de Olanda, que são vinte naus de guerra, e vinte e sete lanchas: pretenderão occupar esta praça de sua Magestade, trazendo nelas pera o efeito dous mil homens de guerra escolhidos, a fora a gente do mar (1632). Escrito a partir do testemunho do frei beneditino Paulo do Rosário (?-1655), o qual relatou a primeira tentativa da WIC para se conquistar a Capitania da Paraíba, batalha ocorrida em dezembro de 1631.
  • Relatório sobre a Capitania da Paraíba (1635). Escrito pelo conselheiro Servaes Carpentier, que foi o primeiro governador da Paraíba, entre 1635 e 1636. Carpentier redigiu breve relatório apresentando a cidade de Filipeia de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa), agricultura, pecuária, engenhos, fortes e aldeias indígenas.
  • História ou Anais dos Feitos da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais desde seu começo até o fim do ano de 1636 (1644). Nesse volumoso trabalho escrito por um dos diretores da WIC, Johannes de Laet (1581-1649), o autor redigiu a história da companhia desde sua fundação em 1621, passando pela invasão a Salvador em 1624, e depois retornando as campanhas de conquista entre 1630 e 1636.
  • Memorias diárias de la Guerra del Brasil, por discurso de nueve anos, empeçando desde M. DC. XXX (1654). Essa crônica militar foi redigida a partir da vivência de Duarte de Albuquerque Coelho (1591-1658), quarto capitão donatário de Pernambuco, em sua fracassada tentativa de recuperar sua capitania. Coelho escreveu pormenores do processo de conquista holandesa, de 1630 até 1639, já com a chegada de Nassau. Devido a problemas judiciais e de licença, seu livro somente foi publicado muitos anos depois.
  • Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais (1677). Escrito por Ambrósio Richshoffer, um jovem estraburguês que aos 17 anos se alistou na WIC, servindo no Brasil entre 1630 e 1632. Richshoffer relatou algumas de suas experiências como soldado, atuando em Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. Seu diário somente foi publicado em sua velhice.

c) Governo nassoviano (1638-1644)

  • Breve discurso sobre o estado das quatro capitanias conquistadas no Brasil, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte setentrional do Brasil. (1638). Publicado no início do governo de Nassau, esse relatório apresentou aos diretores, conselheiros e acionistas da WIC, uma visão geral e básica de como se encontrava o domínio holandês no Brasil, após oito anos de guerras para assegurar quatro capitanias. Muito provavelmente foi redigido pelo conselheiro Adriaen van der Dussen, que é um dos três nomes que assinou o documento. Neste relatório são apresentadas informações geográficas, breves descrições sobre as cidades, vilas, aldeias e freguesias, os colonos, escravos e indígenas, costumes, religião, guerra, etc.
  • Descrição geral da Capitania da Paraíba (1639), consiste num relatório redigido por Elias Herckmans, terceiro governador holandês da Paraíba, governando de 1636 a 1639. Nesse importante relato, o autor escreveu sobre a geografia, natureza, engenhos, fazendas, a cidade de Frederica (atual João Pessoa) e os costumes dos indígenas.
  • Relatório sobre o Estado das Capitanias conquistadas no Brasil, apresentado pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na Câmara de Amsterdã (1640). A obra possui características similares as vistas no Breve discurso, inclusive tendo sido escrita em 1639 e publicada no ano seguinte. A diferença é que Dussen acrescentou e omitiu alguns dados a mais.
  • História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, Conde de Nassau etc. (1647). Apesar de publicado após o governo de Nassau, esse livro aborda os oito anos de seu mandato, tendo sido escrito pelo filósofo e cronista Gaspar Barléus (1584-1648). O livro aborda temas sobre história, economia, cultura, fauna, flora, produção do açúcar, descrições sobre as capitanias, além de enaltecer a figura de Maurício de Nassau. A obra também contou com ilustrações na época, algumas desenhadas por Franz Post.

c) Crise da WIC e a guerra de restauração (1645-1654)

  • Sucesso dela Guerra de Portugueses levantados em Pernambuco contra Holandeses, como por carta do mestre-de-campo Martim Soarez e André Vidal de Negreiros (1646). Consiste num relato redigido pelo governador-geral do Brasil, Antônio Telles de Silva, com base nas cartas de Soarez e Negreiros, informando sobre o início da insurreição pernambucana.
  • A bolsa do Brasil (1647). Consiste num “panfleto” crítico de origem anônima, escrito em holandês, o qual denunciava a corrupção da WIC no Brasil. Além de informar sobre os funcionários corruptos, desvio de verba e renda, também citava os principais senhores de engenho que mais deviam a companhia e outros credores. Provavelmente o manifesto foi escrito por algum funcionário das finanças, que decidiu escancarar esse problema financeiro.
  • O machadão do Brasil (1647). Consiste num diálogo entre dois homens ficcionais, de autoria anônima, em que Kees Jansx Schott, que morava no Brasil, conversa com o recém-chegado caixeiro-viajante Jan Maet. No diálogo Schott expõe de forma levemente sarcástica a corrupção na colônia holandesa.
  • Diário ou Breve Discurso acerca da Rebelião dos pérfidos desígnios dos portugueses do Brasil (1647). De autoria anônima e redigido por um curioso como informa no início do documento, trata-se de um relatório diário dos acontecimentos da guerra de restauração entre os anos de 1645 e 1647, citando informações sobre Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. O autor provavelmente deveria morar em Recife, pois refere-se a vários momentos a chegada de navios. Além disso, é possível que tivesse contato com gente do governo ou ele mesmo seria um funcionário da companhia. 
  • O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade na Restauração de Pernambuco (1648). Nessa crônica redigida pelo frei Manuel Calado (1584-1654), o qual vivenciou o Brasil holandês, seu relato cobre principalmente o início da insurreição pernambucana, entre os anos de 1645 e 1647, embora ele remeta-se a alguns acontecimentos anteriores daquele período. O livro também tem um teor panegírico voltado a João Fernandes Vieira, um dos líderes da restauração.
  • História Natural do Brasil (1648). Consiste num livro sobre história natural redigido pelo naturalista, matemático e astrônomo Georg Marcgraf (1610-1644) e o médico e naturalista Guilherme Piso (1611-1678). Ambos viveram no Brasil durante o governo de Nassau, realizando expedições pelas capitanias ocupadas pelos holandeses. Marcgraf faleceu antes de concluir o livro, o qual foi terminado por Piso. A obra é um marco para os estudos sobre medicina natural, zoologia e botânica.
  • Diário ou Narração Histórica de Matheus van den Broeck (1651). Redigido pelo conselheiro Broeck, que também atuou como governador da Capitania do Ceará entre 1649 e 1654. Seu diário centra-se em comentar aspectos do início da insurreição pernambucana.
  • História das últimas lutas no Brasil entre os Holandeses e Portugueses (1651). Foi escrito em francês por Pierre Moreau, que atuou entre 1646 e 1648 como secretário do conselheiro Michel Van Goch. Apesar de sua publicação anos depois, o livro cobre os eventos da guerra de restauração no período que Moreau viveu no Recife a trabalho. Todavia, ele não inseriu datas em seu relato, o que dificulta identificar alguns dos acontecimentos
  • Relação da Viagem ao País dos Tapuias (1651). Trata-se de um documento que hoje chamaríamos de etnográfico, embora consista mais nas impressões e estranhezas de seu autor para os costumes indígenas. Ele foi escrito por Roulox Baro, o qual trabalhou como intérprete para a WIC, principalmente em território rio-grandense. Nessa obra baseada em seus anos de convivência com tribos chamadas genericamente de tapuias pelos holandeses, ele deixou suas impressões sobre aqueles povos.
  • Relação diária do sítio e tomada da forte praça do Recife, recuperação das capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande, Ceará, e a ilha de Fernão de Noronha (1654). Essa relação de menos de quarenta páginas foi escrita pelo general Francisco Barreto de Meneses, que depois se tornou governador de Pernambuco e governador-geral do Brasil. Meneses relatou os acontecimentos referentes ao ano de saída da WIC do Brasil.
  • Memorável viagem marítima e terrestre pelo Brasil (1682). Escrito ao longo de anos pelo explorador Johan Nieuhof (1618-1672) que esteve a serviço da WIC, o qual viveu no Brasil entre 1640 e 1649. Seu longo livro aborda temas sobre história, geografia e fauna e flora. Alguns dos capítulos são dedicados apenas a natureza brasileira. No tocante a narrativa histórica, Nieuhof começou seus relatos ainda no governo de Nassau, prosseguindo até abril de 1647, quando a guerra de restauração já havia tido início. Seu livro somente foi publicado postumamente.  
  • Diário de Henri Haecxs, membro do Alto Conselho no Brasil (1645-1654). Nesse documento pessoal, o conselheiro Haecxs expressou suas impressões sobre suas viagens ao Brasil e o tempo que ficou a serviço ali, pois ele não permaneceu os nove anos contínuos vivendo na colônia. Em muitos momentos seu diário limita-se a relatar a monotonia dos 40 a 45 dias de viagem da Holanda para Pernambuco, e outras ocasiões ele comenta seus aborrecimentos, curiosidades, seus afazeres como conselheiro e a realidade do declínio da WIC no Brasil e as ameaças constantes dos insurretos.
  •  Diário de Pieter Hansen. Redigido pelo dinamarquês Pieter Hansen, o qual serviu na WIC no Brasil, por dez anos, seu diário aborda sua viagem a Holanda, e a vida no Brasil entre 1644 e 1654, em que ele serviu principalmente em Pernambuco e Rio Grande do Norte. O diário também aborda outros momentos de sua vida, ao retornar para casa. Todavia, essa obra não foi publicada em seu tempo, e no Brasil foi publicada com o título de Viagem ao Brasil (1644-1654) em 2016.

 2) Fontes secundárias

  • Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica (1675). Consiste num estudo do governador Francisco de Brito Freire (c. 1625-1692). Embora tenha participado de algumas batalhas durante o Brasil holandês, sua crônica militar é resultado da consulta a outros autores do período, tratando-se de um livro que procurou apresentar os principais acontecimentos daquele período, indo de 1630 a 1655.
  • Castrioto Lusitano ou, História da guerra entre o Brasil e a Holanda, durante os anos de 1624 a 1654, terminada pela gloriosa restauração de Pernambuco e das capitanias confinantes: obra em que se descrevem os heroicos feitos do ilustre João Fernandes Vieira, e dos valorosos capitães que com ele conquistaram a independência nacional (1679), escrito pelo frei beneditino Rafael de Jesus (1614-1693) o qual foi nomeado cronista-mor do reino de Portugal, a obra consiste numa crônica militar baseada em fontes primárias, a qual narra os principais acontecimentos do domínio holandês de 1624 a 1654, além de servir também de panegírico a João Fernandes Vieira, ambas informações elucidadas no longo subtítulo do livro.
  • História da Guerra de Pernambuco (1681). Outra crônica militar sobre o Brasil holandês, dessa vez escrita por Diogo Lopes Santiago, o qual se baseou principalmente nos relatos de Manuel Calado.