Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569
Giovanni Colossi Scotton
Ruth Emilia Nogueira
Introdução
Em pleno período
renascentista de afloramento científico, político, econômico e cultural, surge
um mapa com características distintas dos demais mapas até aquele momento
produzidos. A grande obra de Gerardus Mercator, datada de 1569,
intitulada de “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum navegatium
emendate acommodata” ou “Nova aumentada descrição da terra com correções para o
uso de navegação”, efetuada com objetivo de proporcionar uma maior segurança
para a navegação marítima, fato que foi de fundamental importância para o
desenvolvimento comercial Europeu, principalmente na mensuração de tempo,
quanto ao estabelecimento das rotas comerciais mais curtas.
Naturalmente, quando
analisamos um mapa histórico, buscamos obter como resultado uma análise objetiva,
neutra ou independente, acerca dos símbolos e signos presentes e a
representação gráfica usada. Para Harley (2005), em seu ensaio intitulado
“Textos e Contextos na Interpretação dos Primeiros Mapas”, os mapas nunca são
somente caracterizados por possuir unicamente o discurso cartográfico,
convertido numa imagem que representa uma dada realidade, sob um determinado
tempo num espaço específico. Os mapas usam uma linguagem que deve ser
decodificada, eles são fruto de uma construção social, e, portanto, devem ser
analisados como textos (discurso) e imagens (representação gráfica), ou seja,
por meio de sua iconografia e iconologia caracterizando um novo paradigma para
análise de mapas históricos. Neste sentido, foram aplicadas para a obra de
Mercator, datada de 1569, as três categorias de análise propostas por Harley
(2005), relacionadas aos estudos referentes aos mapas históricos: o contexto do
cartógrafo, de outros mapas e da sociedade. Tal escolha foi efetuada para se
executar uma análise crítica do mapa numa perspectiva social, ou seja,
desconstruindo-o.
A primeira categoria, o
contexto do cartógrafo, conforme Harley (2005) nos apresenta, é fundamental
para o analista de mapas verificar o ofício de cartógrafo ao tempo da confecção
do mapa, sua origem, aprendizado, escola, relações sociais, família, e outras
variáveis. Assim, não se trata apenas de delegar autoria aos mapas, pois é
necessário investigar os gravadores, pintores, artistas e outros profissionais
que porventura tenham participado do processo de produção do mapa. É preciso
lembrar que um mapa nunca está fechado em si e o indivíduo que o produziu está
inserido no contexto social mais amplo de uma determinada sociedade. Assim,
este exerce uma função nela, alterando às relações de poder, que estão presentes
entre os indivíduos de uma dada sociedade como salienta Foucault (2014).
A segunda categoria, o
contexto de outros mapas, se converte numa analogia, pois a produção de um mapa
está intimamente ligada à sua relação com outros mapas e documentos históricos.
Relatos e descrições documentais acerca de explorações são, por exemplo,
convertidos em discurso para imagem gráfica, servindo de subsídio para
confecção cartográfica. Como Harley (2005) afirma, as características
cartográficas identificadas, por exemplo, por traços familiares de uma
determinada escola cartográfica, permitem identificar alguns mapas anônimos. O
estudo comparativo das características topográficas lineares (rios, caminhos),
por exemplo, assim como os contornos da costa, somados à utilização da
cartobibliografia (reunião de vários mapas impressos sobre uma mesma
superfície) são fundamentais para o historiador de mapas analisa-los.
O contexto da sociedade é o
último aspecto a ser considerado para se fazer uma leitura de mapas como imagens
e textos. Devemos salientar que nenhum mapa é produzido fora de um contexto
social mais amplo e o mesmo está intimamente ligado com a ordem social de um
determinado período e um lugar específico. Assim, a análise se converte numa
tentativa de identificar os agentes por trás da obra, como para quem o
cartógrafo produziu o mapa, com quais objetivos, qual finalidade. Como Harley
(2005) salienta, nenhum mapa é apolítico e isento de ideias, funções e
objetivos. Um mapa é uma construção social na medida em que o mesmo apresenta
informações ocultas, segredos e censuras que devem ser reveladas.
A análise do contexto da
sociedade é deveras complexa e deve ser cuidadosamente trabalhada, pois não se
trata apenas de identificar o contexto do cartógrafo, mas sim de analisar um
conjunto de possibilidades presentes na sociedade. Cabe ao analista de mapas
históricos imergir na sociedade estabelecida sob o período de elaboração do
mapa para poder analisar de forma satisfatória todas as variáveis do contexto
da sociedade daquela época. O mapa é um elemento retórico e por isso pode
representar o poder de um indivíduo ou conjunto de indivíduos sobre a sociedade
ou vice-versa.
Gerardus Mercator e sua obra
No período do século XVI, os
Países Baixos vivenciavam o estabelecimento de um lucrativo comércio com
a Europa, assim como salienta Koeman et al. (2007), mais efetivamente aos
finais do século XVI, os comerciantes holandeses tornaram-se grandes
transportadores de cargas para toda Europa, soma-se a este fator as viagens às
índias orientais em busca de uma rica fonte de especiarias e outros produtos
que ampliaram de sobremaneira o comércio holandês, principalmente na cidade
portuária de Antuérpia ao norte dos Países Baixos. Nesta época, a escola
cartográfica holandesa revelou grandes nomes que viraram a tornar-se referência
para o rompimento da cartografia ptolomaica para o surgimento de uma
cartografia mais precisa e científica. De acordo com Miceli (2012), a partir da
segunda metade do século XVI, a cartografia da Holanda sofre influência da
cartografia portuguesa, em especial de Fernão Vaz Dourado, Luís Teixeira,
Cipriano Sanches e Luís Jorge Barbuda. Foi, sobretudo, devido a este
movimento cultural de influência cartográfica estrangeira que as cidades de
Antuérpia e Amsterdã, floresceram no desenvolvimento da cartografia flamenga,
tendo, sob pano de fundo, as descobertas do novo mundo. É neste contexto que
nomes como Ortelius e Mercator fazem-se presentes.
Conforme Koeman et al.
(2007), a cidade de Antuérpia foi um grande e importante centro comercial da
Europa do Século XVI. Local de trocas comerciais e culturais, a cidade
destacou-se como centro da incipiente escola cartográfica flamenga pois
facilmente encontravam-se os produtores de mapas como cartógrafos, gravadores,
pintores, artistas e livreiros vivendo nela. Porém, o grande centro difusor das
ciências ficava em Louvain, a oeste de Bruxelas. Esta cidade em especial,
tornou-se um grande centro difusor de ideias, pesquisas e estudos que tiveram
papel fundamental na cartografia. Ainda de acordo com o autor, os ensinos de
algumas áreas do conhecimento humano destacaram-se além da cartografia nesta
referida universidade, como a Matemática e a Astronomia. Muitos produtos foram
elaborados no entorno da universidade tal como globos e instrumentos náuticos,
sendo considerada por muitos como um grande centro difusor dos conhecimentos
cartográficos do período.
No livro intitulado “Rhumb
lines and map wars: a social history of the Mercator projection” de Mark
Monmonier, publicado pela Universidade de Chicago em 2004, é possível
compreender, graças a grande quantidade de informações, alguns aspectos da vida
e obra de Gerardus Mercator, um dos cartógrafos que alcançou grande prestígio
no século XVI. Como legado, nos deixou significativos avanços na ciência
cartográfica, além, é claro, de uma projeção que leva seu nome.
Para Monmonier (2004),
Gerardus Mercator não foi apenas um simples cartógrafo, tornou-se grande
intelectual em várias outras áreas do conhecimento humano. Segundo o autor, o
cartógrafo destacou-se também como calígrafo, excelente gravador de mapas,
fabricante de instrumentos náuticos e, consequentemente, editor, tendo muito
interesse em outras áreas do conhecimento humano como a Matemática, a
Astronomia, a Cosmografia, o magnetismo terrestre, História, Filosofia e também
a Teologia, ao qual dedicou precioso tempo de sua vida.
Conforme Monmonier (2004),
Gerardus Mercator nasceu no que seria a parte norte da Bélgica numa vila
chamada de Rupelmonde, distante aproximadamente dez quilômetros de
Antuérpia. De origem simples, o pai de Mercator foi sapateiro e pequeno
agricultor. Aos quinze anos Gerardus foi aceito no monastério onde aprendeu
Teologia cristã e Latim. Mercator desenvolveu grande interesse na escrita
itálica que, a este tempo, era considerada elegante, onde pôde gravar nomes de
lugares nos seus mapas e textos interpretativos deles. Importa destacar que o
Latim era a língua da elite educadora da Europa, onde os estudiosos jovens
comumente alteravam seus nomes “latinizando-os”.
Por volta de 1530, Gerardus
Mercator matriculou-se na Universidade de Louvain, onde publicou seus
épicos atlas mundiais. Nesta consagrada universidade, foi acadêmico das
Ciências Humanas e Filosofia, assistindo palestras do brilhante matemático e
astrônomo Gemma Frisius, que foi o primeiro pesquisador a efetuar
levantamentos regionais com base em triangulação tornando-se mentor de
Mercator. Quanto as suas obras, podemos destacar que no decorrer de sua vida,
de acordo com Seemann (2003), Gerardus Mercator elaborou inúmeros mapas,
incluindo atlas e globos, primeiro celestes e depois terrestres,
especializando-se nestes últimos. Soma-se a esta rica produção, os manuais de
caligrafia. Muitas de suas produções foram encomendas pelos Habsburgos,
autoridades políticas que exerceram grande influência na Europa a este tempo.
Como exemplo, pode-se citar dentre as grandes obras do cartógrafo um mapa dos
Flandres, datado de 1540, e outro mapa das ilhas britânicas, com data de 1564,
que os católicos pretendiam usar como instrumento político contra a Rainha
protestante Elizabeth. Também se destacam entre suas produções o
mapa-múndi cordiforme (no formato de dois corações) de 1538, um mapa do
continente Europeu de 1554 com projeção cônica e conforme, fortemente baseado
nos conceitos da Geografia de Ptolomeu, além, é claro, de seu famoso mapa
datado de 1569, o qual analisamos, sendo o primeiro a ser construído levando em
consideração sua projeção de mesmo nome. Além disto, Mercator, nascido em 1512
e falecido em 1594, viveu incrivelmente mais que qualquer outro cartógrafo
deste período, produziu mapas da França, Holanda e Alemanha em 1585, diversos
atlas em 1585, 1589 e 1595 além de mapas específicos da Itália e dos Balcãs e
Grécia por volta de 1589.
Se pudéssemos atribuir um
“divisor de águas” na cartografia histórica, este seria no século XVI, entre os
anos de 1569 e 1570. Neste período nasceu, por meio de Mercator
(planisfério de 1569) e Abram Ortelius (primeiro atlas moderno datado de
1570), a cartografia moderna na Europa. De acordo com Miceli (2012), o alicerce
de toda uma escola cartográfica holandesa encontra-se nas produções de Mercator
e Ortelius, inaugurando uma nova era onde Mercator e Ortelius seriam os
responsáveis por formarem as bases fundamentais do conhecimento geográfico
moderno, representado por uma Cartografia Náutica assentada sob a Astronomia e
a Matemática e outras áreas do conhecimento humano.
A iconografia do Mapa de
Mercator e o contexto de outros mapas e documentos históricos
Quanto a análise iconográfica
(bibliocartográfica, contornos e tipografias) presente no mapa analisado
(fig.1) datado de 1569, podemos afirmar que, à primeira vista, nota-se que na
elaboração do mapa mundi de 1569 Mercator não utilizou as famosas linhas de
rumo, herança das cartas portulanas e da escola ptolomaica. De acordo com o Vlaams
Instituut voor de Zee (2015), a principal contribuição de Mercator para
o mundo da ciência marítima e especialmente do transporte comercial foi esse
mapa do mundo de 1569, onde o cartógrafo baseou-se em um novo modelo matemático
inovador para o período. De dimensões consideráveis, composto por vinte e uma
folhas com tamanho total de 134x212 centímetros, foi considerado uma obra-prima
de Mercator.
De acordo com Santos (2002),
a grande contribuição de Mercator em relação a seus antecessores na elaboração
de sua obra de 1569 está justamente no ato de analisar a terra como uma esfera
e, a partir desta, identificar as variáveis que permitiram traçar um sistema de
coordenadas, em que o nível de distorção fosse conhecido e controlado. Deste
modo, Seemann (2003), considera que a projeção de Mercator não foi criada com
objetivo de representação simples dos territórios, mas sim para finalidades
práticas, sobretudo para navegação.
Portanto, Mercator construiu
uma projeção conforme (onde os ângulos são conservados na rede de paralelos e
meridianos em 90º), onde a forma das áreas representadas no mapa, se mantém a
mesma, mas, devido a uma variação da escala, no mapa, nas áreas localizadas
principalmente acima dos 60º de latitude Norte e Sul, elas são prejudicadas
devido a deformações consideráveis, fruto de um ajustamento matemático
originado de uma esfera (tridimensional) transportada para um plano
(bidimensional). A (Figura 1), mostra as tantas folhas que compõem o
planisfério de Mercator de 1569 e a (Figura 2), apresenta uma parcela do
mapa-múndi de Mercator de 1569, referente a parte Sul Americana.
Figura 1: O Planisfério de Gerardus Mercator datado de 1569. |
Na análise iconográfica, percebe-se a representação de uma escala de latitude identificada na (Figura 3) em (A), onde as latitudes aparecem graduadas em intervalos de um grau, partindo de 79º de latitude Norte até o Equador, e do Equador até a latitude de 66º Sul. Assim como a escala de latitudes, também são representadas no mapa as longitudes, onde o antimeridiano de 360º ou meridiano 0º passa exatamente no centro do planisfério, porém, deslocado para oeste. Um exemplo dessas longitudes pode ser visto na fig.1 de forma geral e no detalhe na (Figura 3) em (B). A orientação geral dos ventos é representada pela rosa dos ventos nas (Figuras 1 e 3) (C), característica das cartas portulanas do período renascentista, porém, no mapa de Mercator, existem várias rosas dos ventos localizadas no entorno dos muitos continentes, formando uma rede de linhas interligadas que foram fundamentais para navegação dita de rumo e estima muito utilizada pelos navegadores do século XV e XVI.
Figura 2: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. |
Figura 3: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. |
Importa destacar nesta iconografia a representação de seres mitológicos em mar aberto e continente, fato que comprova a estreita ligação de Mercator com o fundamentalismo religioso e a dificuldade de rompimento deste paradigma. Ou então, poderia ser uma exigência do contratante do mapa para que tais elementos fossem desta maneira representados.
No recorte do mapa na
(Figura 2), observa-se na costa Atlântica esquadras de Naus como ícones,
símbolos da conquista europeia do novo mundo. A toponímia do litoral é por
deveras pobre, tendo pouca expressão, apenas determinando os principais rios,
porém, Mercator separa as duas bacias hidrográficas, do Amazonas e do Prata,
por uma contínua linha de cordilheiras que percorre o interior do continente,
ao invés de representar um lago ao centro interligando as duas bacias, como
nesta época acreditava-se existir.
O antropofagismo também é
representado no extremo sudoeste do continente, assim como a presença de
nativos e de animais. Conforme a análise, é possível perceber que, mesmo
aplicando a projeção de Mercator, no continente Sul Americano, este por sua vez
apresenta-se hiperbolicamente representado, sendo este, composto por três
cartas distintas do total de dezoito construídas do Orbi atribuído à Mercator.
A deformação dos continentes é natural numa projeção que mantém ângulos retos
de 90º, este fator indica que esta carta foi produzida mais para os oceanos do
que para os continentes, ou seja, uma carta de auxílio aos navegantes, como seu
próprio nome determina (“Nova aumentada descrição da Terra com correções para o
uso de navegação”, 1569).
O planisfério de Mercator
representou uma verdadeira evolução nas técnicas e instrumentos de medição para
a cartografia e foi amplamente utilizada pela facilidade que este sistema
proporcionava, primordialmente, utilizando-se de uma linha que atravessa todos
os meridianos em ângulo constante ou (loxodrome). A nova descrição da terra com
correções para o uso da navegação de 1569 foi uma obra produzida muito
provavelmente em escritório. Informações acerca dos descobrimentos chegavam
frequentemente à Antuérpia, assim como marinheiros portugueses que traziam
consigo relatos e descrições ou roteiros das navegações pelo mundo. Mercator
deve ter se utilizado destas privilegiadas informações para compilar seu mapa
mundi.
De acordo com Georama
(1967), Gerardus Mercator não contava apenas com o aprendizado recebido de seu
mestre, mas também com importantes descobertas sobre conhecimentos
Cosmográficos, Topográficos, Matemáticos e Astronômicos existentes naquele
período. Ainda conforme o autor, Mercator fora privilegiado por ser de origem
Flamenga e, portanto, estar inserido dentro de uma conjuntura histórica que a
este tempo permitia ter uma relação próxima com o Imperador Carlos V,
permitindo-lhe trocar informações com navegadores e pilotos portugueses e
espanhóis muito experientes nas práticas de navegação de longo curso. Tudo
indica que neste contexto Mercator teria conhecido o famoso matemático nomeado
cosmógrafo-mor do reino de Portugal, o então Pedro Nunes (1502-1578), e
que teria aproveitado grande parte de suas investigações para elaboração de
seus mapas e globos terrestres.
Soma-se a estes fatores a
grande produção cartográfica, elaborada por Mercator, anterior a publicação de
seu mapa mundi de 1569, que seguramente serviu de base para o aprimoramento das
suas dezoito folhas pertencentes no planisfério de 1569.
O contexto social em que
viveu Mercator
Mercator, como grande
estudioso, possuía uma vasta bibliografia que lhe serviu sobremaneira para a
elaboração de mapas, cartas e globos terrestres. A pergunta que devemos fazer é
se Gerardus Mercator foi, durante sua vida, um cartógrafo completamente isento
de ideologias, já que sua produção datada de 1569, era vista como um produto
científico, que servira a melhoria da navegação tornando-a mais segura. Para
responder a esta questão devemos considerar, assim como Harley (2005) chama
atenção, o contexto do cartógrafo e sua inserção naquela sociedade, sobretudo
em sua vida de relações. Num primeiro momento, percebe-se, por exemplo, que
Mercator não foi apenas um mero cartógrafo, pois sua vida estava
intrinsecamente ligada à questões político-econômicas estabelecidas com seus
financiadores, que estavam longe der ser pequenos comerciantes de Antuérpia.
Para Seemann (2003),
Mercator produziu seus primeiros mapas, globos e Atlas para os Habsburgos, uma
das mais prósperas dinastias europeias, que, como monarquia, dominou vastos
territórios durante um longo período da historiografia humana, fundando uma
sólida e absoluta autoridade política. Desta maneira, percebe-se que havia um
jogo de interesses na produção de mapas, atlas e globos já naquela época, os
quais são atualmente conhecidos como mapas históricos. “os trabalhos de
Mercator como cartógrafo tiveram início em Louvain, onde apresentou sua
descrição da Terra Santa, editada em 1537, com dedicatória ao humanista Frans
van Cranevelt (1485-1564), um dos conselheiros do Imperador Carlos V.”
(MICELI, 2012, p.106) O humanista e jurista Frans van Cranevelt foi aluno da
Universidade de Louvain, formando-se em Artes e logo depois em Direito,
exercendo a cátedra na mesma universidade. Conforme Bejczy (2015), por volta de
1522, Cranevelt foi nomeado membro do Grande Conselho de Mechelen, o
mais alto tribunal da Holanda, ganhando rapidamente o prestígio da elite
dominante europeia.
Mercator também produzira
por determinação de alguns mercadores de Antuérpia um mapa dos Flandres que
nunca foi concluído. As relações políticas exercidas pelo cartógrafo e
autoridades da monarquia não cessaram, acompanhando suas produções no decorrer
da segunda metade do século XVI. Logo após, nos idos anos 1540, Gerardus
Mercator iniciou um projeto de construção de um globo terrestre. “[...] a
gravação deste globo terrestre foi concluída por volta de 1541 e dedicado a Nicolas
Perrenot de Granvelle (1468-1550), Chanceler de Carlos V e patrão do
cartógrafo, por cuja influência produziu inúmeros instrumentos científicos para
o imperador” (MICELI, 2012, p. 107).
Assim, percebe-se uma
estreita relação entre Mercator e o imperador Carlos V, que indiretamente, por
meio de seus conselheiros e chanceleres, incumbia o cartógrafo da construção e
gravação de globos terrestres, atlas e mapas diversos. Eles seguramente serviriam
a um propósito muito mais amplo e complexo, onde suas produções foram
adquirindo, desta forma, uma conotação social. Conforme o The Biography
(2015), Gerardus Mercator teria dedicado seu globo terrestre de 1541 para
Granvelle. Nicolas Perrenot de Granvelle foi um político e diplomata borgonhês,
sendo um dos principais assessores do imperador Carlos V. Mercator também
trabalhou na produção de um segundo globo terrestre para Gemma Frisius. O
cartógrafo, a este tempo, acumulava muitas produções alcançando grande
prestígio como um dos maiores cartógrafos do século XVI. “Em 1551, ano em que
recebeu privilégio para imprimir e editar livros, Mercator finalizou seu globo
celeste, contendo desenhos sobre os movimentos dos planetas e constelações,
dedicando-o a George da Áustria, bispo de Liège” (MICELI, 2012, p. 107).
Em 1552, Mercator deixou
Louvain a pedido do Imperador Carlos V para instalar-se em Duisburg, sobretudo
pelo fato do mesmo estar sob suspeita de cometer atos de heresia contra os
princípios da igreja católica. Poucas cidades europeias estavam livres das
amarras religiosas impostas por Roma, uma delas foi a cidade alemã de Duisburg,
onde tais ideologias não eram aplicadas. Antes, porém, de ser preso e levado
para Rupelmonde, Mercator, conforme Miceli (2012), produzira mais uma obra
destinada a outro nobre. Sua descrição da Europa, datada de 1554, foi dedicada
ao filho de Nicolas, Antoine Perrenot de Granvelle (? -1586),
conselheiro de Carlos V e Filipe II, cardeal-arcebispo de Mechlin,
bispo de Aras e, como o pai, patrão do cartógrafo. Estas relações sociais,
acompanham Gerardus Mercator desde muito cedo, quando o mesmo se destacou em
Louvain, acompanhando consequentemente a elaboração de seus globos terrestres,
mapas e atlas os quais o cartógrafo fora incumbido da produção.
Os ocultos no planisfério de
Mercator
Precisamos compreender o
contexto social em que vivia Mercator, quando optamos por desconstruir o
planisfério de 1569. A ligação de Mercator com a pessoa de Antônio Perrenot de
Granvelle, tem especial valor nesta análise uma vez que ele, conforme The
Biography (2015), foi conselheiro de Carlos V e com o passar dos anos
também nomeado cardeal da Igreja Católica. Esta nomeação está intimamente
ligada à sua grande influência e aos serviços diplomáticos prestados. Antônio
Perrenot de Granvelle foi um dos grandes colaboradores da Casa dos
Habsburgo. Frequentou missões diplomáticas, incluindo as negociações entre
Carlos V e o rei francês Francisco I, representando o imperador no concílio
de Trento em 1545, além de conduzir as negociações de casamento entre o
príncipe Felipe e a rainha Maria Tudor. Também participou do processo de
paz entre católicos e protestantes ocorrido na Inglaterra, em 1555.
Logo, Antônio Perrenot de
Granvelle mudou-se para Roma para participar do conclave de 1565, e foi eleito
Papa com nome de Pio V, desta forma, reconciliando seus contatos com os
humanistas italianos que conheceu durante seus estudos universitários e
consequentemente com Gerardus Mercator que fora contratado para produzir um
mapa-múndi intitulado: “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum
navegatium emendate acommodata” (“Nova aumentada descrição da Terra com
correções para o uso de navegação”, datada de 1569).
Porque o Papa Pio V
encomendou à Mercator esta nova carta do mundo? Eis que surge uma das questões
que poucos pesquisadores da cartografia histórica atentaram ou mesmo
investigaram de forma aprofundada. Partindo de uma metodologia científica,
assim como apresenta-nos Harley (2005) sobre as categorias de análise
determinantes para se efetuar a chamada desconstrução de um mapa histórico, é
possível construir uma hipótese acerca desta pergunta.
Ao que nos parece claro, é
que o Papa Pio V possa ter contratado Mercator com objetivo de obter, por meio
desta produção, um avançado conhecimento sobre os descobrimentos efetuados
pelas coroas ibéricas e seus reais domínios sob o interior destes territórios.
A preocupação com invasões e a localização das vilas e cidades também nos
parece evidente assim como seu interesse no conhecimento de forma adequada das
rotas comerciais estabelecidas entre a Europa e as Índias, principalmente para
aferir distâncias, rotas e estimar o tempo de viajem com maior precisão.
Ora, não apenas estes
elementos eram vistos como essenciais para a Igreja, mas sobretudo com o
objetivo da propagação e disseminação da fé Católica sob os novos territórios,
antes que outras ordens religiosas tomassem a dianteira no processo. A exemplo,
podemos citar o quanto a fundação da França Antártica por Villegagnom em
1555 preocupava o Vaticano, pois, de forma alguma seria admitido que uma
colônia protestante se instalasse nos territórios de domínio das coroas
ibéricas na América e pronunciasse uma outra fé que não a Católica.
O Papa Pio V foi, sem
dúvidas, um dos homens mais poderosos da Europa no seu tempo e o mapa produzido
por Mercator seguramente serviu de subsídio ao firmamento de tratados,
sobretudo nos envolvimentos territoriais, sendo desta forma, amplamente
utilizado para diplomacia e, consequentemente, aos interesses pessoais e
ideológicos do soberano da Igreja Católica que exercia grande influência na
Europa deste tempo. Se partimos deste pressuposto, então devemos considerar não
apenas a função técnica que o planisfério de Mercator exerceu e influenciou a
Cartografia, mas, também nessa leitura, ele está pobre de uma construção social
da época.
Desta forma, percebe-se que
o mapa teve um papel amplo, num contexto complexo, no envóculo de uma
intrincada rede de relações sociais estabelecidas e compreendidas sob este novo
paradigma de análise de mapas históricos. Desta maneira, o mapa assume uma nova
característica, não deixando, porém, de ser científico, mas agregando a função
característica de elemento modificador pelo simples fato dele ser retórico.
Outro elemento que importa
destacar é a consciência do cartógrafo acerca dos reais objetivos a que seus
mapas serviriam. Mercator não produziu o mapa de 1569 apenas para atender os
anseios científicos, para com isso, promover uma significativa melhora para a navegação.
Apesar do mapa expressar em sua forma iconográfica esta função, não foi a única
assumida. Mercator conhecia muito bem seu contratante e, desta forma, sabia que
seu mapa atenderia aos desejos do mesmo, e estaria de acordo com a ideologia
dele, seu desejo de expansão econômica e dominação religiosa. Tais elementos,
ocultos no mapa, são desvendados somente numa análise iconológica, a qual é
capaz de analisar sob o enfoque histórico social os segredos, as censuras e
ocultos por trás de uma iconografia.
Um fator que corrobora com
as hipóteses levantadas nesta análise, é que Mercator enriqueceu graças aos
benefícios cedidos a ele pelos conselheiros do Imperador Carlos V e
posteriormente pelo Papa Pio V, entre eles a livre produção, reprodução e
impressão de livros e mapas que a este tempo poucas pessoas tinham acesso.
Igualmente, produziu obras para reis, como seu famoso segundo globo terrestre
que naturalmente fora decorado com pérolas e ouro, numa nítida prática de
produção de mapas para príncipes.
Mercator tornou-se membro de
uma elite dominante e, devido a seu alto grau de conhecimento e desenvolvimento
intelectual, é improvável que o mesmo fosse incapaz de prever que suas obras
fossem utilizadas num contexto social mais amplo e complexo, estando estas
carregadas de interesses econômicos, políticos e sociais.
Deste modo, conclui-se que
Mercator ao mesmo tempo que produziu um marco para a ciência e a cartografia
por meio da elaboração de seu mapa mundi de 1569, primeiro mapa conhecido a
conter sua famosa projeção, também elaborou concomitantemente uma “arma” mais
poderosa que qualquer canhão, navio ou exército que à época poderia existir.
Seu mapa serviu como elemento primordial para o cumprimento de uma agenda
ideológica de dominação econômica, social, étnica e religiosa, conforme
demostramos a partir do paradigma de uma análise baseada no discurso (texto) e
nos elementos gráficos (imagem), presentes em sua iconografia e iconologia.
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http://thebiography.us/en/granvela-antonio-perrenot-de Acesso em: 15/05/2015.
VLAAMS INSTITUUT VOOR DE ZEE
(VLIZ). Gerardus Mercator. Wetenschatten - Historische figuren van het zeewetenschappelijk
onderzoek. 2012, Disponível em: http://www.vliz.be/imisdocs/publications/233989.pdf
Acesso em 25/05/2015
Fonte: SCOTTON, Giovani Colossi; NOGUEIRA, Ruth Emilia. Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569. Geosul, Florianópolis, v. 31, n. 62, p 39-58, jul./ago. 2016.