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sexta-feira, 26 de março de 2021

Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569

 Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569


Giovanni Colossi Scotton

Ruth Emilia Nogueira

Introdução

Em pleno período renascentista de afloramento científico, político, econômico e cultural, surge um mapa com características distintas dos demais mapas até aquele momento produzidos. A grande obra de Gerardus Mercator, datada de 1569, intitulada de “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum navegatium emendate acommodata” ou “Nova aumentada descrição da terra com correções para o uso de navegação”, efetuada com objetivo de proporcionar uma maior segurança para a navegação marítima, fato que foi de fundamental importância para o desenvolvimento comercial Europeu, principalmente na mensuração de tempo, quanto ao estabelecimento das rotas comerciais mais curtas.

Naturalmente, quando analisamos um mapa histórico, buscamos obter como resultado uma análise objetiva, neutra ou independente, acerca dos símbolos e signos presentes e a representação gráfica usada. Para Harley (2005), em seu ensaio intitulado “Textos e Contextos na Interpretação dos Primeiros Mapas”, os mapas nunca são somente caracterizados por possuir unicamente o discurso cartográfico, convertido numa imagem que representa uma dada realidade, sob um determinado tempo num espaço específico. Os mapas usam uma linguagem que deve ser decodificada, eles são fruto de uma construção social, e, portanto, devem ser analisados como textos (discurso) e imagens (representação gráfica), ou seja, por meio de sua iconografia e iconologia caracterizando um novo paradigma para análise de mapas históricos. Neste sentido, foram aplicadas para a obra de Mercator, datada de 1569, as três categorias de análise propostas por Harley (2005), relacionadas aos estudos referentes aos mapas históricos: o contexto do cartógrafo, de outros mapas e da sociedade. Tal escolha foi efetuada para se executar uma análise crítica do mapa numa perspectiva social, ou seja, desconstruindo-o.

A primeira categoria, o contexto do cartógrafo, conforme Harley (2005) nos apresenta, é fundamental para o analista de mapas verificar o ofício de cartógrafo ao tempo da confecção do mapa, sua origem, aprendizado, escola, relações sociais, família, e outras variáveis. Assim, não se trata apenas de delegar autoria aos mapas, pois é necessário investigar os gravadores, pintores, artistas e outros profissionais que porventura tenham participado do processo de produção do mapa. É preciso lembrar que um mapa nunca está fechado em si e o indivíduo que o produziu está inserido no contexto social mais amplo de uma determinada sociedade. Assim, este exerce uma função nela, alterando às relações de poder, que estão presentes entre os indivíduos de uma dada sociedade como salienta Foucault (2014).

A segunda categoria, o contexto de outros mapas, se converte numa analogia, pois a produção de um mapa está intimamente ligada à sua relação com outros mapas e documentos históricos. Relatos e descrições documentais acerca de explorações são, por exemplo, convertidos em discurso para imagem gráfica, servindo de subsídio para confecção cartográfica. Como Harley (2005) afirma, as características cartográficas identificadas, por exemplo, por traços familiares de uma determinada escola cartográfica, permitem identificar alguns mapas anônimos. O estudo comparativo das características topográficas lineares (rios, caminhos), por exemplo, assim como os contornos da costa, somados à utilização da cartobibliografia (reunião de vários mapas impressos sobre uma mesma superfície) são fundamentais para o historiador de mapas analisa-los.

O contexto da sociedade é o último aspecto a ser considerado para se fazer uma leitura de mapas como imagens e textos. Devemos salientar que nenhum mapa é produzido fora de um contexto social mais amplo e o mesmo está intimamente ligado com a ordem social de um determinado período e um lugar específico. Assim, a análise se converte numa tentativa de identificar os agentes por trás da obra, como para quem o cartógrafo produziu o mapa, com quais objetivos, qual finalidade. Como Harley (2005) salienta, nenhum mapa é apolítico e isento de ideias, funções e objetivos. Um mapa é uma construção social na medida em que o mesmo apresenta informações ocultas, segredos e censuras que devem ser reveladas.

A análise do contexto da sociedade é deveras complexa e deve ser cuidadosamente trabalhada, pois não se trata apenas de identificar o contexto do cartógrafo, mas sim de analisar um conjunto de possibilidades presentes na sociedade. Cabe ao analista de mapas históricos imergir na sociedade estabelecida sob o período de elaboração do mapa para poder analisar de forma satisfatória todas as variáveis do contexto da sociedade daquela época. O mapa é um elemento retórico e por isso pode representar o poder de um indivíduo ou conjunto de indivíduos sobre a sociedade ou vice-versa.

Gerardus Mercator e sua obra

No período do século XVI, os Países Baixos vivenciavam o estabelecimento de um lucrativo comércio com a Europa, assim como salienta Koeman et al. (2007), mais efetivamente aos finais do século XVI, os comerciantes holandeses tornaram-se grandes transportadores de cargas para toda Europa, soma-se a este fator as viagens às índias orientais em busca de uma rica fonte de especiarias e outros produtos que ampliaram de sobremaneira o comércio holandês, principalmente na cidade portuária de Antuérpia ao norte dos Países Baixos. Nesta época, a escola cartográfica holandesa revelou grandes nomes que viraram a tornar-se referência para o rompimento da cartografia ptolomaica para o surgimento de uma cartografia mais precisa e científica. De acordo com Miceli (2012), a partir da segunda metade do século XVI, a cartografia da Holanda sofre influência da cartografia portuguesa, em especial de Fernão Vaz Dourado, Luís Teixeira, Cipriano Sanches e Luís Jorge Barbuda. Foi, sobretudo, devido a este movimento cultural de influência cartográfica estrangeira que as cidades de Antuérpia e Amsterdã, floresceram no desenvolvimento da cartografia flamenga, tendo, sob pano de fundo, as descobertas do novo mundo. É neste contexto que nomes como Ortelius e Mercator fazem-se presentes.

Conforme Koeman et al. (2007), a cidade de Antuérpia foi um grande e importante centro comercial da Europa do Século XVI. Local de trocas comerciais e culturais, a cidade destacou-se como centro da incipiente escola cartográfica flamenga pois facilmente encontravam-se os produtores de mapas como cartógrafos, gravadores, pintores, artistas e livreiros vivendo nela. Porém, o grande centro difusor das ciências ficava em Louvain, a oeste de Bruxelas. Esta cidade em especial, tornou-se um grande centro difusor de ideias, pesquisas e estudos que tiveram papel fundamental na cartografia. Ainda de acordo com o autor, os ensinos de algumas áreas do conhecimento humano destacaram-se além da cartografia nesta referida universidade, como a Matemática e a Astronomia. Muitos produtos foram elaborados no entorno da universidade tal como globos e instrumentos náuticos, sendo considerada por muitos como um grande centro difusor dos conhecimentos cartográficos do período.

No livro intitulado “Rhumb lines and map wars: a social history of the Mercator projection” de Mark Monmonier, publicado pela Universidade de Chicago em 2004, é possível compreender, graças a grande quantidade de informações, alguns aspectos da vida e obra de Gerardus Mercator, um dos cartógrafos que alcançou grande prestígio no século XVI. Como legado, nos deixou significativos avanços na ciência cartográfica, além, é claro, de uma projeção que leva seu nome.

Para Monmonier (2004), Gerardus Mercator não foi apenas um simples cartógrafo, tornou-se grande intelectual em várias outras áreas do conhecimento humano. Segundo o autor, o cartógrafo destacou-se também como calígrafo, excelente gravador de mapas, fabricante de instrumentos náuticos e, consequentemente, editor, tendo muito interesse em outras áreas do conhecimento humano como a Matemática, a Astronomia, a Cosmografia, o magnetismo terrestre, História, Filosofia e também a Teologia, ao qual dedicou precioso tempo de sua vida.

Conforme Monmonier (2004), Gerardus Mercator nasceu no que seria a parte norte da Bélgica numa vila chamada de Rupelmonde, distante aproximadamente dez quilômetros de Antuérpia. De origem simples, o pai de Mercator foi sapateiro e pequeno agricultor. Aos quinze anos Gerardus foi aceito no monastério onde aprendeu Teologia cristã e Latim. Mercator desenvolveu grande interesse na escrita itálica que, a este tempo, era considerada elegante, onde pôde gravar nomes de lugares nos seus mapas e textos interpretativos deles. Importa destacar que o Latim era a língua da elite educadora da Europa, onde os estudiosos jovens comumente alteravam seus nomes “latinizando-os”.

Por volta de 1530, Gerardus Mercator matriculou-se na Universidade de Louvain, onde publicou seus épicos atlas mundiais. Nesta consagrada universidade, foi acadêmico das Ciências Humanas e Filosofia, assistindo palestras do brilhante matemático e astrônomo Gemma Frisius, que foi o primeiro pesquisador a efetuar levantamentos regionais com base em triangulação tornando-se mentor de Mercator. Quanto as suas obras, podemos destacar que no decorrer de sua vida, de acordo com Seemann (2003), Gerardus Mercator elaborou inúmeros mapas, incluindo atlas e globos, primeiro celestes e depois terrestres, especializando-se nestes últimos. Soma-se a esta rica produção, os manuais de caligrafia. Muitas de suas produções foram encomendas pelos Habsburgos, autoridades políticas que exerceram grande influência na Europa a este tempo. Como exemplo, pode-se citar dentre as grandes obras do cartógrafo um mapa dos Flandres, datado de 1540, e outro mapa das ilhas britânicas, com data de 1564, que os católicos pretendiam usar como instrumento político contra a Rainha protestante Elizabeth. Também se destacam entre suas produções o mapa-múndi cordiforme (no formato de dois corações) de 1538, um mapa do continente Europeu de 1554 com projeção cônica e conforme, fortemente baseado nos conceitos da Geografia de Ptolomeu, além, é claro, de seu famoso mapa datado de 1569, o qual analisamos, sendo o primeiro a ser construído levando em consideração sua projeção de mesmo nome. Além disto, Mercator, nascido em 1512 e falecido em 1594, viveu incrivelmente mais que qualquer outro cartógrafo deste período, produziu mapas da França, Holanda e Alemanha em 1585, diversos atlas em 1585, 1589 e 1595 além de mapas específicos da Itália e dos Balcãs e Grécia por volta de 1589.

Se pudéssemos atribuir um “divisor de águas” na cartografia histórica, este seria no século XVI, entre os anos de 1569 e 1570. Neste período nasceu, por meio de Mercator (planisfério de 1569) e Abram Ortelius (primeiro atlas moderno datado de 1570), a cartografia moderna na Europa. De acordo com Miceli (2012), o alicerce de toda uma escola cartográfica holandesa encontra-se nas produções de Mercator e Ortelius, inaugurando uma nova era onde Mercator e Ortelius seriam os responsáveis por formarem as bases fundamentais do conhecimento geográfico moderno, representado por uma Cartografia Náutica assentada sob a Astronomia e a Matemática e outras áreas do conhecimento humano.

A iconografia do Mapa de Mercator e o contexto de outros mapas e documentos históricos

Quanto a análise iconográfica (bibliocartográfica, contornos e tipografias) presente no mapa analisado (fig.1) datado de 1569, podemos afirmar que, à primeira vista, nota-se que na elaboração do mapa mundi de 1569 Mercator não utilizou as famosas linhas de rumo, herança das cartas portulanas e da escola ptolomaica. De acordo com o Vlaams Instituut voor de Zee (2015), a principal contribuição de Mercator para o mundo da ciência marítima e especialmente do transporte comercial foi esse mapa do mundo de 1569, onde o cartógrafo baseou-se em um novo modelo matemático inovador para o período. De dimensões consideráveis, composto por vinte e uma folhas com tamanho total de 134x212 centímetros, foi considerado uma obra-prima de Mercator.

De acordo com Santos (2002), a grande contribuição de Mercator em relação a seus antecessores na elaboração de sua obra de 1569 está justamente no ato de analisar a terra como uma esfera e, a partir desta, identificar as variáveis que permitiram traçar um sistema de coordenadas, em que o nível de distorção fosse conhecido e controlado. Deste modo, Seemann (2003), considera que a projeção de Mercator não foi criada com objetivo de representação simples dos territórios, mas sim para finalidades práticas, sobretudo para navegação.

Portanto, Mercator construiu uma projeção conforme (onde os ângulos são conservados na rede de paralelos e meridianos em 90º), onde a forma das áreas representadas no mapa, se mantém a mesma, mas, devido a uma variação da escala, no mapa, nas áreas localizadas principalmente acima dos 60º de latitude Norte e Sul, elas são prejudicadas devido a deformações consideráveis, fruto de um ajustamento matemático originado de uma esfera (tridimensional) transportada para um plano (bidimensional). A (Figura 1), mostra as tantas folhas que compõem o planisfério de Mercator de 1569 e a (Figura 2), apresenta uma parcela do mapa-múndi de Mercator de 1569, referente a parte Sul Americana.

Figura 1: O Planisfério de Gerardus Mercator datado de 1569.

Na análise iconográfica, percebe-se a representação de uma escala de latitude identificada na (Figura 3) em (A), onde as latitudes aparecem graduadas em intervalos de um grau, partindo de 79º de latitude Norte até o Equador, e do Equador até a latitude de 66º Sul. Assim como a escala de latitudes, também são representadas no mapa as longitudes, onde o antimeridiano de 360º ou meridiano 0º passa exatamente no centro do planisfério, porém, deslocado para oeste. Um exemplo dessas longitudes pode ser visto na fig.1 de forma geral e no detalhe na (Figura 3) em (B). A orientação geral dos ventos é representada pela rosa dos ventos nas (Figuras 1 e 3) (C), característica das cartas portulanas do período renascentista, porém, no mapa de Mercator, existem várias rosas dos ventos localizadas no entorno dos muitos continentes, formando uma rede de linhas interligadas que foram fundamentais para navegação dita de rumo e estima muito utilizada pelos navegadores do século XV e XVI.

Figura 2: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. 

Figura 3: Recorte do mapa de 1569 de Gerardus Mercator. 

Importa destacar nesta iconografia a representação de seres mitológicos em mar aberto e continente, fato que comprova a estreita ligação de Mercator com o fundamentalismo religioso e a dificuldade de rompimento deste paradigma. Ou então, poderia ser uma exigência do contratante do mapa para que tais elementos fossem desta maneira representados.

No recorte do mapa na (Figura 2), observa-se na costa Atlântica esquadras de Naus como ícones, símbolos da conquista europeia do novo mundo. A toponímia do litoral é por deveras pobre, tendo pouca expressão, apenas determinando os principais rios, porém, Mercator separa as duas bacias hidrográficas, do Amazonas e do Prata, por uma contínua linha de cordilheiras que percorre o interior do continente, ao invés de representar um lago ao centro interligando as duas bacias, como nesta época acreditava-se existir.

O antropofagismo também é representado no extremo sudoeste do continente, assim como a presença de nativos e de animais. Conforme a análise, é possível perceber que, mesmo aplicando a projeção de Mercator, no continente Sul Americano, este por sua vez apresenta-se hiperbolicamente representado, sendo este, composto por três cartas distintas do total de dezoito construídas do Orbi atribuído à Mercator. A deformação dos continentes é natural numa projeção que mantém ângulos retos de 90º, este fator indica que esta carta foi produzida mais para os oceanos do que para os continentes, ou seja, uma carta de auxílio aos navegantes, como seu próprio nome determina (“Nova aumentada descrição da Terra com correções para o uso de navegação”, 1569).

O planisfério de Mercator representou uma verdadeira evolução nas técnicas e instrumentos de medição para a cartografia e foi amplamente utilizada pela facilidade que este sistema proporcionava, primordialmente, utilizando-se de uma linha que atravessa todos os meridianos em ângulo constante ou (loxodrome). A nova descrição da terra com correções para o uso da navegação de 1569 foi uma obra produzida muito provavelmente em escritório. Informações acerca dos descobrimentos chegavam frequentemente à Antuérpia, assim como marinheiros portugueses que traziam consigo relatos e descrições ou roteiros das navegações pelo mundo. Mercator deve ter se utilizado destas privilegiadas informações para compilar seu mapa mundi.

De acordo com Georama (1967), Gerardus Mercator não contava apenas com o aprendizado recebido de seu mestre, mas também com importantes descobertas sobre conhecimentos Cosmográficos, Topográficos, Matemáticos e Astronômicos existentes naquele período. Ainda conforme o autor, Mercator fora privilegiado por ser de origem Flamenga e, portanto, estar inserido dentro de uma conjuntura histórica que a este tempo permitia ter uma relação próxima com o Imperador Carlos V, permitindo-lhe trocar informações com navegadores e pilotos portugueses e espanhóis muito experientes nas práticas de navegação de longo curso. Tudo indica que neste contexto Mercator teria conhecido o famoso matemático nomeado cosmógrafo-mor do reino de Portugal, o então Pedro Nunes (1502-1578), e que teria aproveitado grande parte de suas investigações para elaboração de seus mapas e globos terrestres.

Soma-se a estes fatores a grande produção cartográfica, elaborada por Mercator, anterior a publicação de seu mapa mundi de 1569, que seguramente serviu de base para o aprimoramento das suas dezoito folhas pertencentes no planisfério de 1569.

O contexto social em que viveu Mercator

Mercator, como grande estudioso, possuía uma vasta bibliografia que lhe serviu sobremaneira para a elaboração de mapas, cartas e globos terrestres. A pergunta que devemos fazer é se Gerardus Mercator foi, durante sua vida, um cartógrafo completamente isento de ideologias, já que sua produção datada de 1569, era vista como um produto científico, que servira a melhoria da navegação tornando-a mais segura. Para responder a esta questão devemos considerar, assim como Harley (2005) chama atenção, o contexto do cartógrafo e sua inserção naquela sociedade, sobretudo em sua vida de relações. Num primeiro momento, percebe-se, por exemplo, que Mercator não foi apenas um mero cartógrafo, pois sua vida estava intrinsecamente ligada à questões político-econômicas estabelecidas com seus financiadores, que estavam longe der ser pequenos comerciantes de Antuérpia.

Para Seemann (2003), Mercator produziu seus primeiros mapas, globos e Atlas para os Habsburgos, uma das mais prósperas dinastias europeias, que, como monarquia, dominou vastos territórios durante um longo período da historiografia humana, fundando uma sólida e absoluta autoridade política. Desta maneira, percebe-se que havia um jogo de interesses na produção de mapas, atlas e globos já naquela época, os quais são atualmente conhecidos como mapas históricos. “os trabalhos de Mercator como cartógrafo tiveram início em Louvain, onde apresentou sua descrição da Terra Santa, editada em 1537, com dedicatória ao humanista Frans van Cranevelt (1485-1564), um dos conselheiros do Imperador Carlos V.” (MICELI, 2012, p.106) O humanista e jurista Frans van Cranevelt foi aluno da Universidade de Louvain, formando-se em Artes e logo depois em Direito, exercendo a cátedra na mesma universidade. Conforme Bejczy (2015), por volta de 1522, Cranevelt foi nomeado membro do Grande Conselho de Mechelen, o mais alto tribunal da Holanda, ganhando rapidamente o prestígio da elite dominante europeia.

Mercator também produzira por determinação de alguns mercadores de Antuérpia um mapa dos Flandres que nunca foi concluído. As relações políticas exercidas pelo cartógrafo e autoridades da monarquia não cessaram, acompanhando suas produções no decorrer da segunda metade do século XVI. Logo após, nos idos anos 1540, Gerardus Mercator iniciou um projeto de construção de um globo terrestre. “[...] a gravação deste globo terrestre foi concluída por volta de 1541 e dedicado a Nicolas Perrenot de Granvelle (1468-1550), Chanceler de Carlos V e patrão do cartógrafo, por cuja influência produziu inúmeros instrumentos científicos para o imperador” (MICELI, 2012, p. 107).

Assim, percebe-se uma estreita relação entre Mercator e o imperador Carlos V, que indiretamente, por meio de seus conselheiros e chanceleres, incumbia o cartógrafo da construção e gravação de globos terrestres, atlas e mapas diversos. Eles seguramente serviriam a um propósito muito mais amplo e complexo, onde suas produções foram adquirindo, desta forma, uma conotação social. Conforme o The Biography (2015), Gerardus Mercator teria dedicado seu globo terrestre de 1541 para Granvelle. Nicolas Perrenot de Granvelle foi um político e diplomata borgonhês, sendo um dos principais assessores do imperador Carlos V. Mercator também trabalhou na produção de um segundo globo terrestre para Gemma Frisius. O cartógrafo, a este tempo, acumulava muitas produções alcançando grande prestígio como um dos maiores cartógrafos do século XVI. “Em 1551, ano em que recebeu privilégio para imprimir e editar livros, Mercator finalizou seu globo celeste, contendo desenhos sobre os movimentos dos planetas e constelações, dedicando-o a George da Áustria, bispo de Liège” (MICELI, 2012, p. 107).

Em 1552, Mercator deixou Louvain a pedido do Imperador Carlos V para instalar-se em Duisburg, sobretudo pelo fato do mesmo estar sob suspeita de cometer atos de heresia contra os princípios da igreja católica. Poucas cidades europeias estavam livres das amarras religiosas impostas por Roma, uma delas foi a cidade alemã de Duisburg, onde tais ideologias não eram aplicadas. Antes, porém, de ser preso e levado para Rupelmonde, Mercator, conforme Miceli (2012), produzira mais uma obra destinada a outro nobre. Sua descrição da Europa, datada de 1554, foi dedicada ao filho de Nicolas, Antoine Perrenot de Granvelle (? -1586), conselheiro de Carlos V e Filipe II, cardeal-arcebispo de Mechlin, bispo de Aras e, como o pai, patrão do cartógrafo. Estas relações sociais, acompanham Gerardus Mercator desde muito cedo, quando o mesmo se destacou em Louvain, acompanhando consequentemente a elaboração de seus globos terrestres, mapas e atlas os quais o cartógrafo fora incumbido da produção.

Os ocultos no planisfério de Mercator

Precisamos compreender o contexto social em que vivia Mercator, quando optamos por desconstruir o planisfério de 1569. A ligação de Mercator com a pessoa de Antônio Perrenot de Granvelle, tem especial valor nesta análise uma vez que ele, conforme The Biography (2015), foi conselheiro de Carlos V e com o passar dos anos também nomeado cardeal da Igreja Católica. Esta nomeação está intimamente ligada à sua grande influência e aos serviços diplomáticos prestados. Antônio Perrenot de Granvelle foi um dos grandes colaboradores da Casa dos Habsburgo. Frequentou missões diplomáticas, incluindo as negociações entre Carlos V e o rei francês Francisco I, representando o imperador no concílio de Trento em 1545, além de conduzir as negociações de casamento entre o príncipe Felipe e a rainha Maria Tudor. Também participou do processo de paz entre católicos e protestantes ocorrido na Inglaterra, em 1555.

Logo, Antônio Perrenot de Granvelle mudou-se para Roma para participar do conclave de 1565, e foi eleito Papa com nome de Pio V, desta forma, reconciliando seus contatos com os humanistas italianos que conheceu durante seus estudos universitários e consequentemente com Gerardus Mercator que fora contratado para produzir um mapa-múndi intitulado: “nova et aucta orbis terrae discriptio ad usum navegatium emendate acommodata” (“Nova aumentada descrição da Terra com correções para o uso de navegação”, datada de 1569).

Porque o Papa Pio V encomendou à Mercator esta nova carta do mundo? Eis que surge uma das questões que poucos pesquisadores da cartografia histórica atentaram ou mesmo investigaram de forma aprofundada. Partindo de uma metodologia científica, assim como apresenta-nos Harley (2005) sobre as categorias de análise determinantes para se efetuar a chamada desconstrução de um mapa histórico, é possível construir uma hipótese acerca desta pergunta.

Ao que nos parece claro, é que o Papa Pio V possa ter contratado Mercator com objetivo de obter, por meio desta produção, um avançado conhecimento sobre os descobrimentos efetuados pelas coroas ibéricas e seus reais domínios sob o interior destes territórios. A preocupação com invasões e a localização das vilas e cidades também nos parece evidente assim como seu interesse no conhecimento de forma adequada das rotas comerciais estabelecidas entre a Europa e as Índias, principalmente para aferir distâncias, rotas e estimar o tempo de viajem com maior precisão.

Ora, não apenas estes elementos eram vistos como essenciais para a Igreja, mas sobretudo com o objetivo da propagação e disseminação da fé Católica sob os novos territórios, antes que outras ordens religiosas tomassem a dianteira no processo. A exemplo, podemos citar o quanto a fundação da França Antártica por Villegagnom em 1555 preocupava o Vaticano, pois, de forma alguma seria admitido que uma colônia protestante se instalasse nos territórios de domínio das coroas ibéricas na América e pronunciasse uma outra fé que não a Católica.

O Papa Pio V foi, sem dúvidas, um dos homens mais poderosos da Europa no seu tempo e o mapa produzido por Mercator seguramente serviu de subsídio ao firmamento de tratados, sobretudo nos envolvimentos territoriais, sendo desta forma, amplamente utilizado para diplomacia e, consequentemente, aos interesses pessoais e ideológicos do soberano da Igreja Católica que exercia grande influência na Europa deste tempo. Se partimos deste pressuposto, então devemos considerar não apenas a função técnica que o planisfério de Mercator exerceu e influenciou a Cartografia, mas, também nessa leitura, ele está pobre de uma construção social da época.

Desta forma, percebe-se que o mapa teve um papel amplo, num contexto complexo, no envóculo de uma intrincada rede de relações sociais estabelecidas e compreendidas sob este novo paradigma de análise de mapas históricos. Desta maneira, o mapa assume uma nova característica, não deixando, porém, de ser científico, mas agregando a função característica de elemento modificador pelo simples fato dele ser retórico.

Outro elemento que importa destacar é a consciência do cartógrafo acerca dos reais objetivos a que seus mapas serviriam. Mercator não produziu o mapa de 1569 apenas para atender os anseios científicos, para com isso, promover uma significativa melhora para a navegação. Apesar do mapa expressar em sua forma iconográfica esta função, não foi a única assumida. Mercator conhecia muito bem seu contratante e, desta forma, sabia que seu mapa atenderia aos desejos do mesmo, e estaria de acordo com a ideologia dele, seu desejo de expansão econômica e dominação religiosa. Tais elementos, ocultos no mapa, são desvendados somente numa análise iconológica, a qual é capaz de analisar sob o enfoque histórico social os segredos, as censuras e ocultos por trás de uma iconografia.

Um fator que corrobora com as hipóteses levantadas nesta análise, é que Mercator enriqueceu graças aos benefícios cedidos a ele pelos conselheiros do Imperador Carlos V e posteriormente pelo Papa Pio V, entre eles a livre produção, reprodução e impressão de livros e mapas que a este tempo poucas pessoas tinham acesso. Igualmente, produziu obras para reis, como seu famoso segundo globo terrestre que naturalmente fora decorado com pérolas e ouro, numa nítida prática de produção de mapas para príncipes.

Mercator tornou-se membro de uma elite dominante e, devido a seu alto grau de conhecimento e desenvolvimento intelectual, é improvável que o mesmo fosse incapaz de prever que suas obras fossem utilizadas num contexto social mais amplo e complexo, estando estas carregadas de interesses econômicos, políticos e sociais.

Deste modo, conclui-se que Mercator ao mesmo tempo que produziu um marco para a ciência e a cartografia por meio da elaboração de seu mapa mundi de 1569, primeiro mapa conhecido a conter sua famosa projeção, também elaborou concomitantemente uma “arma” mais poderosa que qualquer canhão, navio ou exército que à época poderia existir. Seu mapa serviu como elemento primordial para o cumprimento de uma agenda ideológica de dominação econômica, social, étnica e religiosa, conforme demostramos a partir do paradigma de uma análise baseada no discurso (texto) e nos elementos gráficos (imagem), presentes em sua iconografia e iconologia.

Referências bibliográficas

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KOEMAN, C; SCHILDER, G; EGMOND, M. V; KROGT, P V. D. Commercial Cartography and Map Production in The Low Countries, 1500 – ca. 1672. In: WOODWARD, D. (Org). The History of Cartography Vol.3 Cartography in the European Renaissance. Chicago: University of Chicago Press, 2007. 1.120p.

MICELI, P. O Desenho do Brasil no Teatro do Mundo. Campinas: Unicamp, 2012. 263p.

MONMONIER, M. Rhumb Lines and Map Wars: A Social History of The Mercator Projection. Chicago: The University of Chicago Press, 2004. 183p.

SANTOS, D. A Reinvenção do Espaço: Diálogos em torno da construção do significado de uma categoria. São Paulo: UNESP, 2002. 217p.

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Fonte: SCOTTON, Giovani Colossi; NOGUEIRA, Ruth Emilia. Um outro paradigma para análise do Mapa-Múndi de Mercator de 1569. Geosul, Florianópolis, v. 31, n. 62, p 39-58, jul./ago. 2016. 


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