É comum lermos ou ouvirmos que os antigos egípcios adoravam gatos, considerando os bichanos como animais sagrados. E isso de deveu a condição de que os gatos caçavam os ratos, protegendo os estoques de grãos. De fato, existe um fundo de verdade nessas afirmações, mas os gatos não se limitaram apenas a sua ação de caçar ratos. A religião e a mitologia do Egito Antigo foi marcada por uma forte ligação com o simbolismo animal devido a sua condição de ser uma zoolatria (culto aos animais). Vários deuses importantes possuíam aparência antropozoomórfica. Os principais animais da fauna egípcia como falcões, vacas, crocodilos, íbis, gatos, cães, cobras, leões, hipopótamos, carneiros, etc. personificavam deuses. Além disso, animais como babuínos, garças, bois entre outras espécies, tinham seu lugar como animais sagrados. Por conta disso, o fato dos gatos serem adorados pelos antigos egípcios era somente parte de todo um sistema religioso e mitológico desenvolvido ao longo de milênios.
As deusas leoas nos primórdios do Egito Antigo
Nem sempre a adoração a esses felinos existiu ao longo da história egípcia. Os egípcios por volta de 2000 a.C, teriam começado a adotar gatos da espécie Felix sylvestre libica como animais de estimação. Essa espécie era encontrada no norte da África e espalhada em diferentes localidades da Ásia. A ideia de que os egípcios teriam sido os primeirios a domesticá-la, hoje é questionável, pois a domesticação pode ter se iniciado bem antes. De qualquer forma, essa espécie que é conhecida pelos nomes populares de gato da Núbia ou gato da Líbia, era de pequeno porte, tendo geralmente pelugem listrada e cinza. Com os cruzamentos ao longo de gerações, outros tipos de cores e portes foram surgindo.
Nesse primeiro momento da história egípcia do Período Tinita (3000-2660 a.C), os egípcios já cultuavam vários felinos, incluindo leões, leopardos, panteras negras e os gatos. Geraldine Pinch (2002, p. 132-133) explica que o leão simbolizava o faraó, o poder real, o leopardo e a pantera representavam a fúria do deus Seth. A leoparda simbolizaria a proteção da família, algo também visto com a leoa, por se tratar de um felino bastante apegado as suas crias. Por tal condição, leoas representavam símbolos de proteção, estando associadas como guardiãs de túmulos reais e até de deuses. No entanto, a autora diz que no caso dos gatos, esses ainda estavam associados a ideia de serem bichos de estimação que faziam companhia, mas caçavam ratos, insetos e cobras.
Pinch (2002, p. 134) comenta que leões, leoas, leopardos e panteras teriam elementos positivos representando proteção, a realeza, os deuses, mas elementos negativos simbolizando a fúria, a violência, o perigo. Apesar desse simbolismo dual, isso não impediu que tais felinos ganhassem destaque nas crenças religiosas e mitológicas. E um dado interessante é que havia por esse período três deusas leoas: Sekhmet, Bastet e Shesmetet as quais são representadas guardando o túmulo de Osíris. Além delas, outras deusas como Mafdet (deusa da justiça e punição) e Pakhet (deusa da guerra), também eram retratadas como leoas, panteras ou gatas. Observa-se assim, que temos cinco deusas com aspectos felinos, principalmente associadas com a leoa. Apesar que com o tempo, prevaleceu maior atenção a Sekhmet e Bastet, e as demais deusas perderam influência ou deixaram de serem retratadas como leoas.
CERNY (1952, p. 22, 25) comenta que desde a I Dinastia (3200-2825 a.C), durante o Período Tinita, já se encontram referências a deusa Mafdet com cabeça de leoa, mas ela estaria associada também com o gato e o mangusto, animais que para os antigos egípcios representavam predadores das cobras. Fato esse que Mafdet era uma deusa invocada para se proteger de picadas de cobras. O autor também informa que data da II Dinastia (2825-2686 a.C) algumas das informações mais antigas sobre o culto a deusa Bastet. Culto esse que parece ter surgido na cidade de Per-Baste (chamada de Bubástis pelos gregos) no Alto Egito. Naquela época a deusa tinha cabeça de leoa, não de uma gata.
Estátua de Bastet representada como uma leoa. |
O culto a Bastet
Ainda no início do seu culto, Bastet era uma deusa leonina como comentado anteriormente, apresentando em alguns mitos um comportamento bravio devido a condição de ser uma leoa. Não obstante, Bastet era referida como a "deusa do norte" uma referência a sua cidade de culto, Per-Baste estar situada no Baixo Egito, região do delta do Nilo, que fica situada no norte. Por conta dessa ser a região mais fértil do país, Bastet ainda no começo foi também associada com ritos agrícolas e de fertilidade, colocando-a como uma divindade próxima a Ísis e Hathor. Bastet também fazia contra parte com Sekhmet, em que a primeira era a "deusa do leste", e a segunda a "deusa do oeste". (REMLER, 2006, p. 28).
A deusa também foi referida como uma das guardiãs do deus Rá, estando associada a esse deus sol. Ela faria parte do grupo de divindades chamadas "filhas de Rá". Por tal condição, os faraós do Império Antigo (2660-2180 a.C), faziam orações e oferendas a deusa pedindo sua proteção em vida e após a morte, pois a deusa era guardiã de importantes deuses como Osíris e Rá. (PINCH, 2006, p. 115-116).
Por tal viés observa-se que nos primeiros séculos de culto, Bastet era uma deusa associada com funções de proteção e fertilidade, lembrando que no Egito um deus poderia ter mais de uma função, além da questão que havia deuses locais e regionais, que eram cultuados apenas em determinadas localidades, enquanto outros eram cultuados em todo o reino. O culto a Bastet parece ter iniciado de forma local em Per-Baste e se espalhado nesse período pelo Baixo Egito. No entanto, a deusa ainda possuía uma forma leonina.
Estátua de Bastet com cabeça de gato. |
Por volta da época do Império Novo (1560-1070 a.C) a versão de Bastet como uma deusa com cabeça de gato, tornou-se mais comum, mas não significa que ela perdeu seus aspectos associados com a guerra e a violência. A deusa não era uma guerreira, mas sua condição de ter sido uma leoa, simboliza ferocidade e ameaça, aspectos invocados até a XIX Dinastia, durante o Império Novo. Por outro lado, já nesse período destacava-se também a deusa num sentido de fertilidade, amor e carinho, além de ser uma divindades protetoras do faraó, e também da casa e da família. (GIESTA, 2019, p. 42-44).
Devido a popularidade da deusa Bastet, seu culto se espalhou pelo Egito, em que templos eram erguidos em outras cidades, embora o mais famoso estivesse em Per-Baste, a cidade na qual a deusa era padroeira. Além disso, o culto doméstico a Bastet também se espalhou, onde as pessoas conservavam estatuetas dela ou de gatos em seus lares, em altares junto a outras estatuetas e lhe prestavam oferendas e orações. Ter gatos também em suas casas era uma forma de agradar a deusa.
Festivais com música e dança também começaram a serem celebrados a deusa no final do Novo Império. Nesses festivais a deusa era chamada de "deusa da abundância", "senhora dos prazeres" (uma conexão com a sexualidade, embora fosse algo sutil). A deusa também era referida como "Bastet aparece antes de Rá", "Bastet protetora das Duas Terras" (referência ao Baixo Egito e Alto Egito), "Bastet vai adiante de Per-Baste". (CERNY, 1952, p. 29).
Heródoto (1950, p. 161-162) escreveu que o Festival de Bastet celebrado em Bubástis era um dos maiores no Egito, sendo comemorado anualmente com muita festa, música, danças e peregrinações. As pessoas e sacerdotes tocavam o sistro, um chocalho sagrado dedicado aos deuses. Muitas oferendas eram deixadas no templo da deusa. Isso revela a popularidade da deusa, algo que acabava passando para seu animal símbolo, o gato.
O simbolismo dos gatos no Egito Antigo
Com a popularização da deusa Bastet versão gata, os egípcios passaram cada vez mais dar maior atenção a criarem gatos. Heródoto de Halicarnasso (1950) escrevendo no século V a.C, dizia que no Egito havia muitos gatos e o povo egípcio os amava tanto quanto os cães. Criar gatos era uma forma de honrar e adorar a deusa, mas também de pedir suas bênçãos. Nesse sentido, os gatos para os antigos egípcios expressavam proteção, fertilidade e boa sorte.
Réplica de gesso de uma estátua de gato da XXVI Dinastia, entre os séculos VII-VI a.C. Museu de História da Arte, Montevidéu, Uruguai, foto de acervo pessoal. |
No quesito proteção esse se manifestava tanto para guardar o faraó, a realeza, a família, o lar, o indivíduo na vida e na morte. Pois há manuscritos religiosos como o Texto dos Sarcófagos e o Livro dos Mortos em que informa a conexão de Bastet com os mortos, agindo como uma das deusas que protegiam e auxiliavam os mortos. (GIESTA, 2019, p. 50-51).
Bastet e os gatos também seriam proteção contra o mau olhado e magias danosas. Alguns escritos mágicos apresentam invocações a deusa, pedindo que ela lhes protegesse de inimigos, do mau olhado, de pragas, perigos e de espíritos malvados. A deusa era invocada sozinha ou na companhia de outros deuses. (GIESTA, 2019, p. 52). Tal fato é interessante, pois quando um gato morresse de repente ou era envenenado, era sinal de mau agouro para seus donos.
A importância dada aos gatos refletia-se também no fato de muitos deles terem sido mumificados. Existem tumbas dedicadas apenas aos felinos, contendo dezenas de múmias. Há relatos de gatos mumificados que eram enviados para serem sepultados em Per-Baste ou em outros templos dedicados a deusa e até a outros deuses, pois o uso de múmias de animais para oferendas foi prática comum entre os egípcios em diferentes épocas. Além disso em algumas épocas, múmias de gatos eram usadas também como amuletos de boa sorte e de proteção, existindo até um comércio específico em que vendia-se e preparava tais múmias. (RICHARDIN [et. al], 2017). No entanto, lembramos que nem todo mundo tinha dinheiro para pagar por uma mumificação, em geral, os pobres eram apenas embalsamados e sepultados. O mesmo valia para seus cães e gatos. Porém, faraós como Amenhotep III, chegaram a mandar construir tumbas e sarcófagos para seus gatos.
Algumas múmias de gatos. Em geral os animais eram colocados dentro desse compartimentos e recebiam cabeças decorativas. |
NOTA: A cidade de Per-Baste não existe hoje em dia. Havendo somente suas ruínas.
NOTA 2: Os gregos antigos comparavam as funções religiosas de Bastet com as deusas Ártemis e Deméter. Heródoto já cita essa comparação em seu livro.
Referências bibliográficas:
CERNY, Jaroslav. Ancient Egyptian Religion. London, Hutchinson House, 1952.
GIESTA, Eugénio José Castro. Bastet e Sekhmet: aspectos de uma natureza dual.
HERÓDOTO de Halicarnasso, História. Traduzido por Pierre Henri Larcher. Rio de Janeiro, W. M. Jackson, 1950.
PINCH, Geraldine. Handbook Egyptian Mythology. Santa Barbara, ABC-Clio, 2002.
REMLER, Pat. Egyptian Mythology A to Z. New York, Facts on File, Inc, 2006.
RICHARDIN, Pascale; PORCIER, Stéphanie; IKRAM, Salima; LOUARN, Gaëtan; BERTHET, Didier. Cats, crocodiles, cattle, and more: initial steps toward establishinga chronology of Ancient Egyptian animal mummies. Radiocarbon, vol. 59, n. 2, 2017, p 595–607.
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