Durante a Idade Média, a venda de relíquias sagradas se tornou um dos fatores para o crime de simonia, prática da qual incluía a venda, negociação e compra de cargos eclesiásticos, bênçãos, cerimônias, liturgias, perdões, favores, autorizações, licenças, etc. Diferentes modalidades do comércio da fé. Todavia, engana-se aquele que pensa que relíquias sagradas se resumiriam a pedaços da cruz de Cristo, o Santo Sudário, a lança de Longinus, pregos usados na crucificação. As relíquias sagradas abrangiam coisas diversas como ossos, dentes, chumaços de cabelo, taças, amuletos, anéis, escapulários, roupas, etc. Isso tudo foi utilizado de forma engenhosa e vigarista para enganar os fiéis.
O Sudário de Turim, uma das relíquias sagradas mais famosas conhecida. |
Conceito
Santo Agostinho de Hipona (354-430) chegou a escrever sobre as relíquias, inclusive classificando-as em três tipos. A palavra relíquia vem do latim reliquiae, que significa "aquilo que resta", sendo o conceito inicialmente referente aos restos mortais de mártires e santos, depois acrescentando de objetos a eles ligados. Sobre isso, Agostinho escreveu que haveria as relíquias de Cristo, que seriam alvo de adoração (latreia), as relíquias dos santos que seriam veneradas (douleia), e as relíquias dos mártires que seriam lembradas (memoriae). (FRANCO JR, 2010, p. 20-21).
Muitos séculos depois a definição de Agostinho foi atualizada pela Igreja Católica, principalmente refere as relíquias dos santos, as quais eram as mais abundantes. Decretando o seguinte:
"A doutrina eclesiástica católica dividiu em três classes as relíquias dos santos, a saber: insignes, notáveis e mínimas. As relíquias insignes, conforme definição da Sagrada Congregação dos Ritos, de 8 de abril de 1623, são o corpo ou um membro de um santo, como por exemplo, a cabeça, um braço, uma perna, contanto que seja inteira e aprovada pela autoridade eclesiástica. As relíquias notáveis são definidas como um fragmento considerável de uma parte importante de seu corpo, como por exemplo, da cabeça, de um braço, de uma perna. Esses fragmentos só serão considerados novamente relíquias insignes, caso se consigam unir as partes retiradas à parte principal, de modo que formem novamente uma unidade completa, conforme determinou mais uma vez a Sagrada Congregação dos Ritos, em 3 de dezembro de 1672. As relíquias chamadas mínimas são aquelas caracterizadas por partículas do corpo de um santo, como um dente, uma unha, um fio de cabelo ou então partículas de relíquias insignes ou notáveis, como, por exemplo, as que se encontram encerradas em pequenos relicários e medalhas que as pessoas trazem pendurados no pescoço. Dizem os postulados do Concílio Tridentino que os fiéis devem respeitar e honrar as relíquias dos corpos dos mártires e de outros santos, porque eles são os membros vivos de Jesus Cristo, operando Deus graças extraordinárias por meio deles, que devem, um dia, ressuscitar para a vida eterna". (GUIMARÃES, 2012, p. 57).
Antecedentes
A veneração de relíquias sagradas não é prática exclusiva do Cristianismo católico, ortodoxo e copta, outras religiões mais antigas possuíam tais práticas como o Budismo e o Hinduísmo. Até mesmo algumas vertentes do Islão possuem a veneração aos santos e suas relíquias.
A presença de relíquias sagradas no cristianismo remonta os primeiros séculos dessa religião, apesar que somente na Idade Média isso se difundiu. Mesmo assim, em determinadas épocas elas estiveram em maior ou menor evidência, e isso também variava de país para país. Mas qual teria sido a função dessas relíquias? Alguns leitores poderão pensar que o papel fosse o de idolatria ou para enganar os fiéis, de certa forma isso realmente acontecia, mas não eram as únicas funções desses objetos sacralizados.
“Já em meados do século III reverenciava-se a manjedoura que servira de berço ao menino Jesus. Pelo menos desde 348 muitos fragmentos da Santa Cruz estavam distribuídos pelo mundo cristão. Desde o século V eram objeto de culto a coluna à qual Cristo tinha sido amarrado e flagelado, a coroa de espinhos, os pregos com os quais foi fixado à Cruz, a mesa da Santa Ceia. Estavam dentre as relíquias do Cristo objetos frágeis e que teriam desaparecido não fosse exatamente seu poder sagrado, caso da túnica de uso cotidiano do personagem (reivindicado pelas igrejas de Argenteuil e de Trèves), da mortalha que envolveu o cadáver inteiro do crucificado (impropriamente conhecida por sudário de Turim) ou apenas sua cabeça (sudário de Oviedo)”. (FRANCO JR, 2010, p. 16).
No século IV após o Édito de Milão (312), o Concílio de Niceia (325), além de outros concílios, o cristianismo tornou-se a religião oficial do império romano, ao mesmo tempo em que a Igreja conquistava cada vez mais autoridade e influência. Jerusalém que estava sob domínio romano, tornou-se uma cidade finalmente importante não no sentido religioso, mas para fins políticos econômicos, pois controlar Jerusalém era uma forma de exercer autoridade sobre os cristãos, assim como, a cidade tornou-se rota para peregrinações. E a partir dessa conexão, algumas pessoas começaram a levar relíquias sagradas da Terra Santa para Constantinopla, Roma e outras localidades.
São Cirilo de Jerusalém (313-386) em 350 passou a defender que os cristãos deveriam visitar a Terra Santa e seus lugares sagrados, como um testemunho de fé e até mesmo uma obrigação, algo que os muçulmanos séculos depois começariam a fazer em relação a Meca. Inclusive foi no século IV que data a história de que a cruz de Cristo foi descoberta, colocando em evidência a ideia de relíquia sagrada. As pessoas se aglomeravam para ver aqueles pedaços de madeira que julgavam realmente pertencer a verdadeira cruz em que o Messias foi crucificado na sexta-feira de Páscoa. (NASCIMENTO, 2014, p. 58-59).
A presença daquela relíquia tinha suas implicações religiosas de testemunho de fé, provando que realmente Jesus Cristo existiu e ali foi crucificado. No entanto, a função desses objetos não se limitava apenas a confirma a existência dos personagens bíblicos e dos santos, mas também estariam imbuídos de uma força espiritual.
“O que os latinos chamam santo (sanctus), chamam-lhe os gregos âgios, isto é, sem terra, quasi sine terra; nome que convém aos bem-aventurados “porque já não pertencem à terra nem por suas ações, nem por seus desejos”. O santo era, portanto, um ser humano que intermediava a ligação do terrestre com o sobrenatural como define André Vauchez: “O santo é um ser humano através do qual se estabelece um contato entre o céu e a terra”. Também para Le Goff, santo significa “acima de tudo um morto excepcional, testemunho da ‘carne impassível’ e cujo culto se desenvolve em torno do seu corpo, do seu túmulo e das suas relíquias”. Para a doutrina eclesiástica, santos “são aqueles que seguiram fielmente o exemplo de Cristo, oferecendo um glorioso testemunho do Reino dos Céus com o derramamento de seu sangue ou com o exercício heróico de virtudes””. (GUIMARÃES, 2012, p. 54).
Hilário Franco Jr (2010, p. 19) comenta que no ano de 361, Santo Hilário (315-368) escreveu que as relíquias sagradas, o sangue dos mártires e os ossos dos santos eram importantes para fortalecer a fé dos fiéis, mas também guardariam em si a capacidade de realizar milagres, sobretudo milagres de cura e proteção contra Satanás e seus demônios.
“Tanto nas relíquias primárias (corporais) quanto nas secundárias (objetos) a espiritualidade medieval não via um fragmento morto, e sim o sagrado vivo. Nelas está contido o próprio Deus, pois “o todo pode estar na parte”. Para atender os pedidos de relíquias feitos por importantes personagens, o papa Gregório Magno (590-604) cortou pequenos fragmentos da túnica de São João, mas estes foram recusados sob a alegação de que eram relíquias insignificantes. A fim de provar que elas eram o próprio santo, Gregório fez um pequeno furo no tecido, do qual escorreu sangue”. (FRANCO JR, 2010, p. 21).
As relíquias em nível religioso eram recordações das pessoas a quem elas representavam, o que Hilário Franco Jr chamou de "metonímia do sagrado", em que o fiel ao poder ver aquele objeto ou restos mortais de algum santo ou personagem bíblico, estaria visualmente fazendo conexão com o sagrado, testemunhando "com seus próprios olhos" a veracidade daquelas narrativas bíblicas ou dos milagres realizados. Por outro lado, a relíquia também como atestado por bispos e doutores no final da Antiguidade e começo do Medievo, eram meios pelos quais o poder de Deus se manifestava, daí haver casos de cristãos que procuravam tocar nessas relíquias ou nos relicários, esperando que com o simples toque pudessem ser abençoados ou curados. Inclusive essa ideia era retirada diretamente do Evangelho de Marcos, 5. 24-34, em que é relatado que uma mulher doente após tocar as vestes de Jesus, curou-se milagrosamente.
"O primeiro testemunho conhecido de culto de santo, escrito por volta do ano de 110, justifica a veneração a Inácio devido à graça que ele possuía, ideia que prosperou, como ilustra cerca de dois séculos e meio mais tarde uma homilia na qual Basílio de Cesareia ensina que “aquele que toca os ossos de um mártir participa da santidade e da graça que nele residem”. Visando a disciplinar o crescente desejo de contato com corpos santos, a partir de meados do século IV um muro passou a separá-los dos fiéis, que os viam através de pequenos vãos abertos para tanto. Por estas fenestellae os cristãos passavam pedaços de pano que ao tocar os corpos santos ficavam santificados. Todo objeto que entrava em contato com o sagrado podia gerar outras relíquias, numa longa cadeia de sacralizações". (FRANCO JR, 2010, p. 17).
Com estabelecimento dessa crença da divinização dos restos mortais de cristãos mártires ou santos, teve-se início a preocupação de preservar ossos, dentes, unhas, cabelos, roupas, objetos pessoais e se possível até mesmo mumificar os santos. Apesar que a tradição cristã informe que os corpos que não sofreram deterioração avançada, isso seria um sinal de santidade.
"Em 852, Hincmar, arcebispo de Reims, tirou os restos de São Remígio de seu sarcófago de pedra e o colocou em um relicário de prata na cripta recém-construída, enquanto o sudário do santo, transformado em nova relíquia, foi colocado em uma caixa de marfim. A transmissão de sacralidade por contiguidade metonímica era tal, que algumas insígnias de peregrinação (pequenos objetos inventados no século XII para atestar a condição de peregrino do indivíduo que a portava como uma espécie de broche), após sua fabricação, eram esfregadas em relíquias de maneira a se tornarem elas próprias relíquias, com igual poder de curar doenças e proteger de intempéries ou más colheitas. Mais tarde surgiram insígnias com um pequeno espelho no verso, para absorver os influxos sagrados das relíquias que, quando de grandes celebrações, sobretudo no sudeste alemão, eram elevadas diante da multidão de peregrinos, que então colocavam as insígnias diante delas". (FRANCO JR, 2010, p. 17).
As relíquias para fins políticos e econômicos
Anteriormente vimos que desde o final do Cristianismo Primitivo as relíquias sagradas começaram a surgir e serem veneradas, inclusive até mesmo estando associadas a milagres. No entanto, já no período medieval com o desenvolvimento de catedrais e basílicas. Essa prática acentuou-se entre os séculos X ao XII.
Nesse período o cristianismo expandia-se pela Europa, a qual ainda vivenciava seu processo de conversão, mas a medida que novos povos eram sendo convertidos, igrejas, catedrais e bispados eram fundados. Por outro lado, territórios já cristianizados também recebiam novas igrejas e catedrais. E foi nesse contexto que o uso político e econômico das relíquias começou a se destacar.
Catedrais que possuíam relíquias sagradas passaram a ganhar prestígio, inclusive sendo consideradas basílicas menores. O mesmo também valia para igrejas e mosteiros que possuíam relíquias. Nesse sentido, possuir algum objeto sagrado ou restos mortais de algum santo, tornava-se fator de status, aumentando o reconhecimento daquele templo localmente ou regionalmente e as vezes até internacionalmente. Logo, não foi incomum que padres, bispos, arcebispos, cardeais, papas, reis, nobres, mercadores, etc., buscassem conseguir relíquias sagradas para serem expostas em seus templos e cidades e assim os tornarem notórios.
“Daí o hábito de subdividir
e distribuir fragmentos sagrados como estratégia de prestígio político ou
eclesiástico. As relíquias de Santo Estevão, por exemplo, descobertas perto de
Jerusalém em 415, foram doadas a tantos lugares que somente em território da
atual França há setenta cidades com o nome daquele apóstolo. Relíquias ajudavam
a formar e consolidar laços sociais, como fez São Luís em 1224: durante
peregrinação a Rocamadour (sudoeste francês), ao passar pela pequena aldeia de
Creysse doou-lhe um fragmento da coroa de espinhos”. (FRANCO JR, 2010, p. 23).
Uma das mãos de Santo Estêvão (c. 975-1038), o qual foi rei da Hungria. |
As relíquias podiam ficar expostas em altares e relicários, ou eram guardadas, sendo exibidas em determinadas épocas do ano, geralmente feriados religiosos como a Páscoa e o Natal, e os dias litúrgicos dos santos. Em alguns lugares realizava-se o desfile das relíquias, numa procissão pela cidade ou vila, em que elas eram expostas a população, sendo motivo de grande orgulho participar dessas procissões.
Por consequência, uma igreja, catedral ou mosteiro que conservasse relíquias tornava-se famoso na região e atraía visitantes, que em geral deixavam ofertas. Inclusive o fiel nem precisava ir visitar o local, mas sabendo da fama daquele templo, enviava suas ofertas em dinheiro, tecidos, produtos in natura, mercadorias diversas. Em alguns casos quando a popularidade do local sagrado crescia, ele poderia ser alvo de peregrinações. Um bom exemplo disso é Santiago de Compostela na Espanha.
O suposto túmulo do apóstolo foi descoberto por um camponês no século IX, o qual comunicou o bispo local, que por sua vez avisou ao rei Afonso II, o Casto. O monarca mandou construir uma igreja naquela localidade para se guardar os restos mortais do santo apóstolo. Não demorou para moradores ali se estabelecerem e construírem uma pequena vila. No século X, a localidade antes chamada de Liberdón foi renomeada para Vila de Santiago de Compostela. Nesse período, milagres foram atestados naquela igreja, fazendo sua fama crescer. No século XII a famosa peregrinação que ainda hoje ocorre, teve início. Cristãos de diferentes locais de Portugal e Espanha partiam para visitar a basílica e deixar suas preces e orações ao santo apóstolo milagreiro. (LOPEZ; SEIJAS, 2010, p. 16-17, 28).
A coroa de espinhos comprada pelo rei Luís IX da França. |
“A capela que o rei Luís IX, futuro São Luís, construiu em seu palácio em 1248 – a Sainte-Chapelle, verdadeiro relicário arquitetônico de vitrais – para abrigar a coroa de espinhos de Cristo, grande parte da Santa Cruz, a santa esponja, o ferro da santa lança, relíquias que comprara um pouco antes ao endividado imperador latino de Constantinopla, tinha acesso direto de seu dormitório, portanto era espaço privado da família real, porém os benefícios de tão nobres relíquias atingiam todos seus súditos. A translatio daqueles testemunhos da Paixão para a França mostrava que aquela terra e seu rei eram queridos de Deus: o transporte marítimo da coroa de espinhos de Constantinopla a Veneza transcorreu sem problemas e o transporte terrestre de Veneza a Paris foi poupado de chuva durante o dia, enquanto choveu abundantemente de noite, quando a relíquia estava abrigada. “A França torna-se uma nova Terra Santa”, nota com toda a razão Jacques Le Goff”. (FRANCO JR, 2010, p. 22).
“A simonia dispõe de uma longa história de qualificação e combate nos textos cristãos. Esta falta tem seu nome derivado da passagem dos Atos dos Apóstolos 8.18-23, na qual Simão Mago, ao verificar que o Espírito Santo era dado pelos apóstolos através da empostação das mãos, ofereceu-lhes dinheiro para obter deles o mesmo poder. Segundo Joseph Lynch (1976, p. 65-66), o século XI foi o período de maior polemização da simonia, no qual se adensou à questão uma profunda exegese sobre a venda de bens espirituais, com a passagem de Reis 5:16-27, a retomada de normas canônicas antigas, como o segundo cânone do Concílio de Calcedônia, de 451, e o uso de contos apócrifos sobre Simão Mago. Mas, no geral, apesar de repetidamente condenada, a prática da simonia parecia inevitável em um meio social, cuja nomeação aos ofícios eclesiásticos garantia, muitas vezes, o controle sobre um vasto patrimônio material”. (BOVO, 2013, p. 77).
Franco Jr (2010, p. 23-25) comenta que em diferentes épocas há relatos de clérigos e leigos que roubaram relíquias de outros mosteiros e igrejas, ou contrabandearam elas de Jerusalém, Constantinopla, Roma e outras localidades. Apesar desses crimes simoníacos, em geral os culpados nunca eram sentenciados por isso. A sentença não ocorria por conta dos criminosos não serem descobertos, ou quando se sabia quem havia feito isso, seus atos eram justificados como sendo ações honrosas e por uma causa de fé.
"Quando em 1102 o bispo Diego
Gelmírez tirou da diocese de Braga várias relíquias para instalá-las na
catedral compostelana, justificou o ato dizendo que elas assim receberiam a
“devida veneração”. Essa prática ocidental explica por que, quando da conquista
cruzada de Constantinopla, em 1204, ocorreu sem problemas de consciência uma
metódica espoliação das relíquias bizantinas – quase quatrocentas foram
transferidas para o Ocidente". (FRANCO JR, 2010, p. 25).
Após a Quarta Cruzada (1204), em que resultou no saque da cidade de Constantinopla, grande, poderosa e rica capital do Império Bizantino, centenas de relíquias foram roubadas ou foram vendidas. Nascimento (2014) destacou a venda da Coroa de Espinhos, um pedaço da cruz e outras relíquias, vendidas ao rei Luís IX da França, pelo imperador Balduíno II (r. 1228-1261). Essa venda continuou por várias décadas, pois no século seguinte, o imperador Manuel II Paleólogo (r. 1391-1425) vendeu algumas relíquias ao rei D. João I de Portugal (r. 1385-1433), o qual aceitou a compra em 1401, mas exigindo que o imperador bizantino enviasse um atestado de autenticidade das relíquias, pois era comum a fraude de muitas delas.
A simonia tornou-se pauta de queixas, denúncias e concílios nos séculos XI e XII, período que a procura por relíquias, além de que a venda de favores e cargos eram altos. Apesar que os séculos XIII e XIV também mostraram uma grande busca por relíquias sagradas, revelando que a criminalização da simonia em seus vários aspectos, nunca foi efetivada propriamente. No entanto, surgiu a preocupação com as relíquias falsas.
“A crescente inflação de
relíquias que a sociedade cristã conhecia desde fins da Antiguidade oscilava
entre os dois sentidos do termo latino inventio. As legítimas eram “achadas”,
geralmente por iluminação divina, várias outras “inventadas”, isto é
falsificadas. Tal procedimento não foi raro, tendo sido criticado várias vezes,
como em 401 por um tratado de Agostinho, em 789 pela legislação carolíngia ou
em 1031-1041 pela crônica de Raul Glaber”. (FRANCO JR, 2010, p. 25).
Com a abundância de relíquias de Cristo, dos apóstolos, Reis Magos, da Virgem Maria, de João Batista e sobretudo de vários santos e mártires, não tardou para dúvidas surgirem, pois em alguns locais chegava haver menções a vários dentes, mas somente existem 32 dentes, porém, uns cinquenta atribuídos a determinado santo, eram conhecidos. Ou o fato dos vários pedaços da cruz, dos pregos, que tradicionalmente credita-se que teriam sido somente três, mas dezenas deles foram vendidos. Isso levou os compradores a começarem a desconfiar da procedência dessas relíquias, embora nem sempre fosse algo fácil de ser feito, pois dependendo do nível da falsificação e da lábia do mercador, o cliente desconfiado poderia desembolsar uma generosa quantia por objetos falsos.
Apesar desse comércio da fé, como dito anteriormente, as punições eram raras. Em geral os crimes de simonia mais comumente punidos eram os referentes a abuso de poder, venda de cargos, favorecimento de pessoas, promessas, bênçãos, perdões e coisas do tipo. Embora existissem críticas à falsificação das relíquias, não maioria das vezes eram casos que ficavam em aberto.
Considerações finais
A prática de fabricar falsas relíquias seguiu nos séculos seguintes, e durante a Reforma Protestante foi criticada não apenas a falsificação, mas a veneração as relíquias e a simonia num todo. Todavia, é preciso salientar que não foram apenas os protestantes que fizeram essas críticas, católicos e ortodoxos também se manifestaram contrários a excessiva atenção dada as relíquias.
Por volta do século XVI a compra e busca de relíquias caiu consideravelmente, tornando-as ainda mais raras. Mas não significa que a veneração as relíquias tenha terminado, ainda hoje ela exista, mesmo dividindo opinião entre os católicos e ortodoxos. Além disso, a fabricação de falsas relíquias é uma prática que continua a ser feita, mais raramente, onde geralmente está associada a imagens de santos e santas, que lhe são atribuídas milagres.
Por sua vez, nem mesmo as igrejas protestantes estão isentas da simonia. Por mais que essa não atue no sentido da veneração das relíquias, ainda assim, ocorre os favorecimentos e negociações de cargos eclesiásticos, venda de promessas e o comércio da fé, em que vendem-se produtos abençoados, ungidos ou até mesmo milagreiros.
NOTA: A busca por relíquias originou as lendas sobre o Santo Graal, o lendário cálice usado por Cristo na Última Ceia.
NOTA 2: Na Divina Comédia (1321), Dante Alighieri destacava a simonia como um dos crimes punidos na sua versão do Inferno. Apesar que ele enfatizasse a simonia referente a venda e negociação de cargos, nem tanto as relíquias sagradas. Porém, mais adiante no poema, ele também condenava os falsificadores, que incluía os simoníacos de relíquias.
NOTA 3: No livro Baudolino (2000) de Umberto Eco, o autor satiriza a simonia das relíquias, onde Baudolino e seus amigos começam a fabricar várias relíquias, destacando-se as múmias dos Reis Magos e as cabeças de São João Batista, para poderem ganhar dinheiro com isso.
NOTA 4: No romance A Relíquia (1887) de Eça de Queiroz, apresenta uma sátira às relíquias religiosas.
NOTA 5: As relíquias sagradas mais comumente associadas com Jesus são os pedaços da cruz, os pregos e o seu prepúcio. Havendo vários lugares que guardam tais relíquias.
Referências bibliográficas:
BOVO, Claudia Regina. O combate à simonia na correspondência de Pedro Damiano: uma retórica reformadora do século XI? Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, 2013, p. 75-101.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Relíquia, metonímia do sagrado. Historiae, Rio Grande, v.1, n. 1, 2010, p. 9-29.
GUIMARÃES, Francisco Portugal. Proprium sanctorum: o culto as suas relíquias e relicários. População e Sociedade, CEPESE, Porto, vol. 20, 2012, p. 53-67.
LÓPEZ, Simón Vicente; SEIJAS, Julio Prado. Compostela una historia entretenida. Santiago de Compostela, Sotelo Blanco, 2010.
NASCIMENTO, Renata Cristina de S. As santas relíquias: tesouros espirituais e políticos. Revista Diálogos Mediterrânicos, n. 6, 2014, p. 56-67.
Links relacionados:
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Santiago de Compostela: o destino dos peregrinos
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