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Leandro Vilar

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Lhasa, a cidade proibida


Por vários anos a capital do Tibete, a cidade de Lhasa, ficou conhecida na Europa e Ocidente como a "cidade proibida". No entanto, esse epíteto devia-se mais a interpretação equivocada dos europeus do que propriamente uma atitude ultraconservadora e xenofóbica dos tibetanos. Condição essa que por séculos Lhasa foi visitada e frequentada por vários estrangeiros, no entanto, nem todos eram bem-vindos. 

Breve história de Lhasa

A cidade nem sempre foi capital do Tibete. Por séculos ela foi apenas uma cidade importante por conta de seus mosteiros. Que inclusive era algo bastante comum naquele país, em que cada cidade e vila possuía um mosteiro, as vezes até dois ou três. 

Lhasa antigamente chamava-se Rasa ("cidade das cabras"), sendo sua fundação desconhecida, mas oriunda de uma comunidade de pastores de ovelhas. A cidade encontra-se na parte oriental do Tibete, estando situada numa altitude de 3.500 metros acima do nível do mar, na confluência dos rios Lhasa, Yarlong Tsangpo e Nyang Qu. A vila de Rasa ganhou destaque no século VII durante o reinado de Songtsen Gampo, o qual foi responsável por unificar o país e fundar o Império Tibetano (618-842). O imperador Gampo converteu-se ao budismo por influência de suas esposas, as quais eram a chinesa Wen Cheng e a nepalesa Bhrikuti. Em seu reinado o budismo foi difundido no Tibete, com isso, muitos monastérios começaram a serem construídos, e o imperador ordenou a construção de mosteiros e templos e do Palácio de Potala, erguido sobre o Monte Potala, que serviria como sede da nova corte. Rasa foi renomeada para Lhasa ("cidade dos deuses") e manteve a função de capital do império até o século IX, quando o império ruiu e se fragmentou. (QING LI, 2018, p. 1-6). 

Com o fim do Império Tibetano, Lhasa perdeu seu status de capital, mas conservou sua importância religiosa por conta de seus templos e monastérios. No entanto, a cidade somente recuperou sua influência política muitos séculos depois. Durante o século XVII, o V Dalai Lama, Lobsang Gyatso (1612-1682), mudou-se para Lhasa em 1645, ordenando a reforma e expansão do antigo palácio de Potala. Foi nesse período que o prédio começou a tomar as formas que hoje conhecemos, como a construção do Palácio Branco. O V Dalai Lama também foi responsável por unificar o Tibete sob o domínio político e religioso dos Dalai Lamas, além de tornar Lhasa novamente a capital do país. (QING JI, 2018, p. 16). 

Durante o governo do VI Dalai Lama, Tsangyang Gyatso (1683-1706), na década de 1690, o Palácio Vermelho foi expandido e fundido ao Palácio Branco, em que ambos formam o atual Palácio de Potala, que podemos ver em Lhasa, o qual tornou-se definitivamente a residência de inverno dos Dalai Lamas, mas também sede do governo e dos regentes. No grande palácio viviam também centenas de monges que atuavam em cargos eclesiásticos e políticos. Apesar de grandes obras do século XVII, Potala ainda recebeu expansões e reformas nos séculos seguintes. (QING JI, 2018, p. 17-18). 

O imponente Palácio de Potala, em Lhasa. Por séculos foi a residência da corte dos Dalai Lamas. Atualmente é um museu e patrimônio histórico mundial. 

Os europeus chegam ao Tibete

O relato mais antigo que se conhece de europeus no Tibete, advém de dois missionários portugueses, os jesuítas Antônio de Andrade (1580-1634) e Manuel Marques, os quais em missão evangélica, deixaram a cidade de Agra, na Índia, em companhia de peregrinos que iam visitar um templo budista no Tibete Ocidental. A viagem ocorreu em 1624 e durou três meses, e os dois missionários tiveram problemas para se adaptar com o frio, a altitude, a língua e a falta de comida, além de serem recebidos de forma hostil pelos tibetanos ali. Porém, eles conseguiram apoio no reino tibetano de Guge, cujo rei mostrou interesse nas oportunidades de comércio com os portugueses, autorizando a criação de uma missão e igreja em suas terras. A missão perdurou até 1629, quando o rei Dakpa foi derrubado numa guerra promovida pelo reino inimigo de Ladhak. A missão jesuítica foi destruída e abandonada. Todavia, Andrade escreveu um livro sobre sua vivência no Tibete, intitulado Novo descobrimento do Gram Catayo, ou Reinos de Tibet (1626). Lembrando que Andrade e Marques não chegaram a visitar Lhasa, que distava pelo menos mil quilômetros dali. 

O padre Antônio de Andrade foi um dos primeiros missionários e europeus a visitarem o Tibete e deixar um relato escrito a respeito. 

Na década seguinte, outros jesuítas, Estevão Cacella e João Cabral voltaram ao Tibete e montaram nova missão que durou quatro anos até ser abandonada por conta de insegurança e problemas políticos. A presença de jesuítas no reino tibetano somente seria registrada em 1666, quando os missionários Johannes Grueber e Albert D'Orville, viajaram de Pequim à Agra, tendo cruzado o Tibete, e conseguido fazer contatos importantes. Fato esse que a Companhia de Jesus e depois a Ordem dos Capuchinhos retornariam ao país ao longo do século XVII e parte do XVIII, para seguir com as missões de evangelização. (QING LI, 2018, p. 153). 

O Palácio de Potala em Lhasa. Pintura de Johan Gruber, publicada no livro China Illustrata (1667). 

No ano de 1720, o VII Dalai Lama, Kelzang Gyatso (1707-1757), mudou-se para Lhasa, e sendo ele protetor dos missionários cristãos, uma comitiva foi enviada à cidade, sendo a primeira formalmente registrada pela Igreja Católica. Naquela época a capital tibetana não era fechada aos europeus, até porque ela ainda era praticamente desconhecida da Europa. Todavia, os capuchinhos trataram de estabelecer ali uma igreja, tendo sido ela fundada em 1726. A igreja permaneceu ativa por quase vinte anos, tendo sido fechada em 1745 por pressão dos clero e de alguns nobres, os quais não eram a favor que uma religião estrangeira fosse pregada no país. Com isso os capuchinhos foram convidados a deixar Lhasa e o Tibete, e as missões foram suspensas pelos anos seguintes. (QING LI, 2018, p. 154-155). 

A cidade proibida

Com a expulsão dos jesuítas e capuchinhos a partir de 1745, a missões foram abandonadas, igrejas foram derrubadas, o cristianismo foi proibido e a população que havia se convertido acabou retornando as crenças budistas, além disso, após a morte do VII Dalai Lama, os seus sucessores apresentaram uma política antipática aos missionários e europeus, vetando o acesso deles no país na maior parte da vezes. Condição essa que novos europeus somente começaram a poder visitar o reino tibetano e sua capital, no século XIX, um deles foi Thomas Manning (1772-1840), o qual era sinólogo e trabalhava para a Companhia das Índias Orientais, na China. 

Em 1811, Manning recebeu a missão de viajar até Lhasa, no intuito de representar os interesses da companhia mercante. Acompanhado de um guia e seu interprete chinês, ele viajou do Cantão na China, até o Butão, onde aguardou autorização da embaixada chinesa que permitiu seu acesso ao Tibete, apresentando-o como seu enviado. Manning relatou que a viagem pelo Tibete foi árdua devido a sua falta de costume com a altitude e o frio. Finalmente em dezembro de 1811 ele chegou a capital tibetana, onde residiu até abril de 1812, sendo considerado o primeiro britânico a visitar a cidade, até então já proibida para muitos europeus. (YOUNGHUSBAND, 1910, p. 35-39). 

Durante sua estadia, Manning teve reuniões com o regente, autoridades e o IX Dalai Lama, Lungtok Gyatso (1807-1815), uma criança ainda. As impressões e comentários de Manning sobre os meses que viveu em Lhasa, foram divulgadas em jornais e revistas na Inglaterra e outros países, como artigos de curiosidade sobre aquele país de montanhas que ainda era pouco conhecido para os europeus. 

Retrato de Thomas Manning, considerado o primeiro britânico a visitar Lhasa. 

Os interesses britânicos sobre o Tibete foram adiados por problemas na Europa, envolvendo as Guerras Napoleônicas, e outros problemas na Índia e na China. Além disso, novas expedições a Lhasa praticamente foram vetadas pelas autoridades ou fracassaram no intento, devido a penosa jornada. Em 1846 os missionários franceses da Congregação da MissãoÉvariste Régis Huc (1813-1860) e Joseph Gabet (1808-1853), foram os primeiros europeus que se tem notícia, que retornaram a Lhasa, desde a visita de Manning quarenta anos antes. Ambos os missionários participavam de missões na China e na Mongólia, e a ideia era levá-las de volta ao Tibete, o qual havia proibido missões cristãs um século antes. (QING LI, 2018, p. 19). 

Huc e Gabet, inicialmente decidiram seguir direto para o Tibete, acompanhado de mongol cristão e um guia chinês, mas após meses de árdua viagem e por terem adoecido, decidiram esperar, quando souberam que poderiam seguir com uma imensa comitiva tibetana enviada à Pequim. Nesse tempo em 1845, eles aproveitaram para estudar a língua tibetana. Em janeiro de 1846 a comitiva chegou em Lhasa, e os missionários Huc e Gabet foram temporariamente autorizados no país, graças ao contato com as autoridades chinesas, embora houvesse desconfiança por conta de parte da população. Todavia, a estadia deles foi breve, tendo sido expulsos da cidade e do país em fevereiro, devido a problemas políticos entre os chineses e ingleses, no que levou a desconfiança dos tibetanos, em que alguns achavam que eles fossem ingleses infiltrados no país. Huc e Gabet foram escoltados até o Cantão, na China. (SUYIN, 1977, p. 19). 

Ainda assim, Éveriste Huc conseguiu relatar algumas de suas impressões em seu livro Souvenirs d'un Voyage dans la Tartarie, le Thibet, et la Chine pendant les Années 1844, 1845, et 1846, publicado só em 1850. Nesse livro ele relatou que as casas, templos e o Palácio de Potala eram muito bonitos, por fora, pois o interior era escuro e insalubre. Ele também relatou que parte da população era inculta, desconfiada e bastante supersticiosa

Após a fracassada missão evangelista de Huc e Gabet, outros missionários e viajantes europeus tentaram entrar no Tibete e ir para Lhasa, mas não obtiveram sucesso na maior parte das vezes, pois o visto para seus passaportes costumava ser negado, e quando eram detectados ilegalmente, acabavam sendo banidos. Um desses viajantes foi o sueco Sven Hedin (1865-1952), explorador, geógrafo, alpinista e arqueólogo amador, realizou entre 1885 e 1935, várias expedições pela Ásia, visitando três vezes o Tibete entre os anos de 1897 e 1909. Apesar de ter vivido meses no território tibetano, mapeando-o, Hedin não conseguiu autorização para ir à Lhasa. 

No início do século XX, a situação na Ásia Central acirrava-se por conta dos conflitos políticos entre os russos e britânicos. Seus governos tentaram negociar alianças com os tibetanos, propondo enviar embaixadores e construir embaixadas, mas os Dalai Lamas e os ministros negavam-se a tais acordos, temendo que as influências dos russos e britânicos viessem corromper os costumes locais e desagradar os deuses. Mas com o acirramento da disputa entre Rússia e Inglaterra pelo controle da Ásia Central, o Tibete tornou-se um território estratégico e cobiçado, pois havia ficado neutro. Os britânicos temendo que os russos invadissem o Tibete, e assim compromete-se sua autoridade sobre a Índia, parte da China, e do Nepal e Butão, decidiram agir primeiro. 

Entre 1903 e 1904 ocorreu a Expedição britânica ao Tibete ou Invasão britânica do Tibete. As tropas deixaram a Índia em novembro de 1903 e marcharam pelo Tibete Ocidental, que era mais facilmente acessível pela fronteira indiana. Elas encontraram resistência das tropas tibetanas, mas essas foram massacradas. Enquanto os britânicos usavam armas de fogo e canhões, os tibetanos ainda lutavam com arcos, lanças e espadas. Após uma campanha de meses de avanço lento, Lhasa, a então cidade proibida, foi capturada e rendida em agosto de 1904. O coronel e explorador Francis Younghusband (1863-1942), relatou vários aspectos dessa invasão ao Tibete e a captura de Lhasa, que levou o então XIII Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876-1933), a assinar um acordo de cooperação com a Inglaterra. (YOUNGHUSBAND, 1910). 

Desenho retratando os ingleses negociando com os tibetanos, após a ocupação de Lhasa em 1904.

Com o acordo forçado entre o XIII Dalai Lama e o governo colonial britânico, a Inglaterra tornou-se o único país europeu a dispor de autorização para manter uma embaixada em Lhasa e permitir a entrada regularmente de militares e funcionários. Apesar que o governo chinês tentou expulsar os britânicos, gerando uma crise diplomática que se estendeu até 1913, quando o Dalai Lama se posicionou firmemente pela autonomia tibetana. Nesse mesmo ano a embaixada chinesa foi expulsa do país, somente retornando anos depois. Além dos britânicos, os indianos, chineses, nepaleses e butaneses continuaram a frequentar normalmente o país, no entanto, a entrada de europeus e gente de outros países seguia limitada. (BARNETT, 2006, p. xxii). 

Entre 1938-1939 ocorreu a expedição alemã nazista ao Tibete. A expedição de caráter científico e documental, foi liberada pelo zoólogo e policial da SS, Ernst Schäfer (1910-1992), o qual levou consigo outros cinco exploradores e alguns guias nepaleses e tibetanos. A expedição durou meses, tendo resultado em centenas de fotografias, horas de filmagens, coleta de amostras, desenhos de paisagens, mapas e anotações, incluindo anotações relativas ao racismo científico defendido pelos nazistas, além de procurarem evidências do "povo ariano". A expedição de Schäfer alcançou Lhasa em 1939, recebendo autorização para entrar na cidade, onde permaneceram por dois meses. Na época, os tibetanos desconheciam o que era o Nazismo e a guerra ainda não havia eclodido. 

Membros da expedição alemã nazista de 1938-1939, que visitou o Tibete por meses. 

Com aproximação do governo do XIII Dalai Lama, o Tibete passou cada vez a ser mais estudado pelos ingleses e alemãs, o que levou alguns tibetólogos a viajarem ao país, permitindo difundir as noções, costumes e história deles na Europa. No entanto, mesmo os estudiosos que publicaram livros entre 1905 e 1940, vigorava a ideia de que Lhasa continuasse a ser uma "cidade proibida" aos estrangeiros, um senso comum relativamente equivocado, fato esse que o alpinista Heinrich Harrer, quando chegou a Lhasa, na década de 1940, ainda conservava a noção de que aquela continuava sendo a "cidade proibida" do Tibete. 

Lhasa na década de 1940

Durante a década de 1940, os alpinistas austríacos Heinrich Harrer (1912-2006) e seu amigo Peter Aufschnaiter (1899-1973), passaram sete anos vivendo no Tibete, após fugirem de uma prisão de presos políticos na Índia, por conta da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Harrer redigiu um livro de memórias intitulado Sete Anos no Tibete (1952). Neste livro, ele narrou sua jornada da chegada ao Himalaia, passando pela prisão, as tentativas de fuga, depois os 21 meses tentando exílio no Tibete, para finalmente narrar acontecimentos da sua vida e de Aufschnaiter durante os cinco anos seguintes. Além disso, Harrer tornou-se professor e amigo do XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso

O relato de Harrer é bastante interessante, pois ele mesmo disse que ficou surpreso ao chegar em Lhasa e descobrir que a cidade não era tão reclusa a estrangeiros como já havia sido no passado. Ele e Aufschnaiter chegaram a capital tibetana em janeiro de 1946, descobrindo uma cidade com seus 30 a 40 mil habitantes, a qual possuía uma embaixada chinesa, nepalesa e britânica. De fato, como visto anteriormente, esses três povos já frequentavam o país há bastante tempo.

Harrer relatou que o comércio da cidade era internacional, tudo graças ao interesse da nobreza e da elite tibetana, os quais para manterem sua ostentação pelo luxo, importavam mercadorias de vários países, condição essa que ele escreveu que não era difícil encontrar produtos de luxo da China, Índia, Pérsia, Japão e até de mais longe como Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Harrer contou que viu móveis europeus, ternos italianos, chapéus ingleses, uísque escocês, porcelana chinesa, maquiagem e perfumes franceses, joias indianas, etc. Lhasa apresentava um sofisticado comércio de produtos de luxo.

Além do comércio, Harrer relatou que os habitantes de Lhasa conheciam o futebol, mas que naquele tempo era proibido, no entanto, eles jogavam basquete e tênis. Havia professores de inglês, hindi e chinês para servir aos filhos da elite. Por outro lado, Lhasa não dispunha de cinemas, teatros e bares. O turismo basicamente não existia naquele tempo, sendo que o grande fluxo de pessoas devia-se a questão da peregrinação, que atraía principalmente gente da Índia, China e Nepal. 

Ele também relatou que havia rádios no país, as quais captavam frequências da China, Índia, Rússia, e até de mais longe, como a Europa e os Estados Unidos. No entanto, somente o governo e os ricos tinham rádios em casa. 

Harrer também escreveu que butaneses, cazaques e mongóis visitavam ou viviam no Tibete. Inclusive em Lhasa havia uma mesquita, pois existia uma comunidade muçulmana por lá. Algo bastante interessante, o que revela como a cidade era mais cosmopolita do que ainda se achava, pois no Ocidente ainda prevalecia o senso comum que o Tibete era uma nação fechada ao contato com os estrangeiros.

Heinrich Harrer e o XIV Dalai Lama, na segunda metade da década de 1940. 

Sobre isso, Heinrich Harrer explicou que os monges e parte da nobreza eram realmente conservadores e viam os europeus com desconfiança, sendo contrários a mudanças na sociedade e a adoção de tecnologia, fato esse que os britânicos foram responsáveis por levar o telegrafo, mas a luz elétrica era raríssima e não havia automóveis por lá. Máquinas também eram raras. Até mesmo o uso de carroças não era comum, pois os tibetanos preferiam transportar tudo nos iaques. Harrer também chamou atenção que os europeus não tinham livre permissão para ficar no país. Mesmo os britânicos, os quais eram os que mais frequentavam ali por conta da dominação sobre a Índia, necessitavam de autorização. Logo, europeus que não tinham autorização, facilmente eram expulsos. A ideia não é tão diferente de hoje em dia, onde se requer passaportes com visto autorizando ficar numa outra nação. 

Lhasa volta a ser a cidade proibida

No ano de 1950 o exército chinês invadiu o país em outubro. Os chineses estavam bem mais preparados para a guerra do que os tibetanos, os quais não possuíam um exército fixo e nem treinado. Além disso, eles possuíam velhas armas de fogo, adquiridas com os britânicos, russos e indianos. Apesar disso, os tibetanos tinham a vantagem de lutar em casa e estarem adaptados a conflitos em altas altitudes. Mesmo assim, após quase duas semanas de conflitos, com milhares de mortos, casas, templos e mosteiros destruídos, a derrota na Batalha de Chamdo (19 de outubro), levou o governador da região e comandante em chefe, Ngapoi Ngawang Jigme (1910-2009) declarar rendição. Decisão condenada na época, pois as tropas tibetanas ainda poderiam ter resistido mais algum tempo até que aliados chegassem. 

Ainda no mês de outubro o exército chinês ocupou Lhasa, dando início ao prenúncio de anexação do Tibete. Em 1951 o governo tibetano assinou o Acordo de Dezessete Pontos para a Libertação do Tibete, um engodo que favorecia o governo chinês de Mao Tsé-tung (1893-1972). O acordo prometia melhorias ao Tibete, mas o obrigava a selar um pacto de submissão com os chineses que iriam auxilia-los em sua proteção, organização e desenvolvimento. Essa trégua inicial se manteve até 1959, quando houve protestos inclusive rumores de uma tentativa de prender ou matar o XIV Dalai Lama, o que levou ele e parte da população a se auto-exilarem, com isso o governo chinês tomou o controle do Tibete, que perdeu seu status de país e tornou-se parte da República Popular da China, algo oficializado em 1965. 

Sob o governo comunista da ditadura de Mao Tsé-tung, Lhasa voltou a ser uma cidade proibida ao Ocidente, dessa vez não por escolha do conservadorismo tibetano, mas por imposição política dos chineses, acirrada pela Guerra Fria (1945-1991). Por conta dessa disputa internacional entre nações capitalistas e socialistas, embaixadores, estudiosos, militares e funcionários foram retirados ou expulsos do Tibete, assim como, vetou-se a ida de viajantes. 

Desfile cívico de exaltação ao líder Mao Tsé-tung, nas ruas de Lhasa, década de 1960 ou 1970. 

Tubten Khétsun o qual pertencia a pequena nobreza tibetana, participou da revolta de 1959 contra os chineses, mas acabou sendo preso. Ele escreveu um livro de memórias relatando os vários anos de amargura que vivenciou no Tibete, durante a ditadura de Mao Tsé-tung (1949-1976). Khétsun ficou quatro anos preso num campo de trabalhos forçados, pois foi condenado como preso político. De fato, muitos outros tibetanos que se opunham ao governo, eram enviados para lá, embora alguns conseguiram fugir para a Índia. Khétsun relatou fome, miséria, violência, invasões, roubos, opressão e censura naqueles anos de ditadura. Mesmo tendo sido libertado em 1963, ele seguiu vivendo em Lhasa, incapaz de poder fugir do Tibete. Somente em 1983 ele conseguiu autorização para deixar Lhasa. 

Considerações finais

No século XXI com a reabertura das fronteiras chinesas de forma contínua, hoje é possível viajar para o Tibete sem grandes dificuldades, apesar que seja necessário um visto para entrar na China e outro visto para entrar no Tibete. Antes de 2012 era mais difícil conseguir esses vistos. 

Lhasa tornou-se uma cidade turística e atualmente é a capital da Região Autônoma do Tibete e da Prefeitura de Lhasa, que abarca cinco distritos. A população da cidade é de mais de 450 mil habitantes divididos pelos seus distritos. A cidade possui uma estação ferroviária, um aeroporto, hotéis, restaurantes, praças, parques, estradas, serviço de táxi, luz elétrica, água encanada, serviço de internet. Os templos e o Palácio de Potala tornaram-se museus, já que o XIV Dalai Lama vive em exílio na Índia, e os monges foram expulsos dos mosteiros e templos, ainda existindo uma censura do governo chinês sobre crenças e costumes tibetanos. O governo chinês desde 2010 vem investindo para ampliar o turismo no Tibete. 

O Palácio de Potala em fotografia tirada nos últimos anos. O local atualmente é um museu. 

NOTA: No auge, o Império Tibetano se estendia do sul da Mongólia, englobando o oeste da China, e indo até o golfo de Bengala na Índia, ocupando também o Nepal e o Butão. 

NOTA 2: Os Dalai Lamas surgiram no século XIV, mas somente a partir do quinto deles, é que conseguiu-se consolidar a autoridade política sobre o país. 

NOTA 3: O fundador da Tibetologia, o húngaro Sándor Kórosi Csoma (1784-1842), passou vários anos morando na Índia, onde estudou a língua tibetana e os ensinamentos do budismo lamaísta, tendo escrito dicionários e gramáticas a respeito. No entanto, ele nunca visitou o Tibete, embora tenha sido convidado na época, mas faleceu antes de poder viajar. 

Referências bibliográficas:

BARNETT, Robert. Lhasa: streets with memories. Columbia, Columbia University Press, 2006. 

HARRER, Heinrich. Sete anos no Tibet. Porto Alegre, L&PM Pocket, 2017. 

KHÉTSUN, Tubten. Memories of Life in Lhasa under chinese rule. Translated and with an introduction by Matthew Akester. Columbia, Columbia University Press, 2008. 

SUYIN, Han. Lhasa, the open city. New York, G. P. Putnam Sons, 1977. 

QING LI. The Evolution and Preservation of the Old City of Lhasa. China: Springer, 2018. 

YOUNGHUSBAND, Francis. India and Tibet: a history of the relations which have subsisted between the two countries from the time of Warren Hastings to 1910; with a particular account of the mission to Lhasa of 1904. London: John Murray, 1910.

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