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Leandro Vilar

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Solte o Kraken!

O kraken é um dos monstros marítimos mais populares nas artes, seja nas pinturas, cinema, desenhos e jogos, a criatura é retratada como um gigantesco cefalópode, podendo ora ser um polvo ou uma lula. Todavia, o kraken costuma ser erroneamente associado a mitologia grega devido aos filmes Fúria de Titãs, por outro lado, também costuma ser associado a mitologia nórdica, outro erro comum. Na prática o kraken é uma criatura do folclore escandinavo e sua ligação com a mitologia grega e nórdica deve-se a um erro de interpretação a partir de alguns filmes e livros. O presente texto conta um pouco da história dessa criatura que até o começo do século XX, pensava-se que fosse real. 

Um kraken atacando um navio. John Gibson, 1887. 

O kraken na mitologia grega?

Essa é uma associação bastante comum a ponto de muita gente pensar que tal criatura sempre fez parte dos mitos gregos, mas na verdade ele foi um acréscimo, bastante engenhoso inclusive. O fato ocorreu com o filme Fúria de Titãs (Clash of Titans) lançado em 1981, um épico do cinema, que foi popular no começo dos anos 1980. Dirigido por Desmond Davis e escrito por Beverley Cross, o filme trata-se de uma releitura do mito de Perseu, recontando sua história de como ele matou a Medusa e salvou a princesa Andrômeda, que seria sacrificada para um monstro marinho. 

Na mitologia o monstro enviado por Poseidon se chama Cetus, não havendo uma descrição do mesmo. Inclusive a palavra cetus originou cetáceo, a família das baleias. Por conta de não haver uma descrição do monstro que ameaçava devorar Andrômeda, Cross decidiu inserir uma criatura que gerasse pavor e fosse um grande desafio para Perseu enfrentar no clímax do filme, assim, com a ajuda dos efeitos especiais, ele optou por uma criatura antropomórfica e a chamou de Kraken. 

O kraken no filme Fúria de Titãs (1981). 

Apesar de um visual totalmente diferente do visto nas lendas, o kraken de Fúria de Titãs se tornou um marco nos efeitos especiais da época e influenciou produções a retratar a criatura como parte da mitologia grega, algo visto no jogo God of War 2 (2007) e no remake Fúria de Titãs (2010). Dessa forma se observa que o kraken somente tem conexão com a mitologia grega por conta da invenção de um filme. 

O kraken no remake de Fúria de Titãs (2010) ainda manteve seu visual bem diferente da criatura das lendas. 

O kraken na mitologia nórdica?

Os que defendem a existência dessa criatura nos mitos nórdicos costumam recorrer a duas sagas como fonte de argumento. Na mitologia nórdica a principal criatura que habitava os mares era Jormungand, a colossal serpente filha de Loki. Tal serpente marinha aparece poucas vezes nos mitos e era o grande inimigo do deus Thor, algo visto principalmente no mito da pescaria e depois no confronto de ambos durante o Ragnarök. Entretanto, os mitos não relatam outras criaturas marítimas. Mas aí entra duas sagas.

A primeira é a Saga de Örvar-Oddr (XIII), a qual narra a jornada lendária do personagem título. Em dado momento da narrativa se menciona uma criatura marinha chamada hafgufa ("vapor oceânico"), o qual habitaria o Mar da Groenlândia, sendo descrito como um grande animal que soltaria vapor pela cabeça. Isso lembraria uma baleia. Na mesma saga também se menciona uma criatura chamada lyngbakr, que seria tão grande que era confundido como uma ilhota. Fato esse que os marinheiros chegavam a pisar nele, achando que fosse terra firme, então a criatura submergiria. Esse monstro também habitaria os mares entorno da IslândiaPor sua vez, na crônica Konungs skuggjá ("Espelho do Rei"), o hafgufa ou hrosshvalr é descrito como uma animal parecido com um grande peixe o qual abria sua enorme boca para atrair outros peixes e animais e os engoliria numa única bocada. (LOXTON; PROTHERO, 2013, p. 193-194). 

Observa-se assim alguns aspectos: ambos os monstros, hafgufa e lyngbakr eram criaturas marinhas; no entanto, eles nada lembram o kraken que conhecemos; segundo, os dois monstros aparentam ser erros de interpretação referentes a baleias, misturados com redemoinhos e arrecifes. Além disso, Loxton e Prothero (2013) apontam que tais monstros não necessariamente seriam krakens, mas versões marinhas de outros monstros que já circulavam na época pelo folclore europeu. Um exemplo disso é que as características dos dois monstros lembra o aspidochelone, um gigantesco peixe que soltava vapores e era confundido com uma ilhota. 

Representação do aspidochelone num manuscrito francês datado de c. 1270. 

Sendo assim, o suposto kraken da mitologia nórdica não seria um kraken realmente, mas provavelmente uma variação escandinava da lenda do aspidochelone. Embora que Loxton e Prothero (2013) sugiram que elementos do mito de Jormungand e do hipocampo também estariam presentes na descrição de ambas as criaturas. 

O kraken e a história natural: 

Mas se até agora vimos que essa criatura não tem origem na mitologia grega e nem na mitologia nórdica, de onde ele veio? Os relatos sobre o kraken são bem mais recentes do que se pensa; eles começaram a surgir no século XVIII, quando alguns estudiosos e escritores começaram a relatar a existência de um monstro habitando o Mar do Norte ou Mar da Noruega, o qual teria vários tentáculos ou braços. 

O viajante italiano Francesco Negri (1627-1698) viajou à Escandinávia por três anos, entre 1663 e 1666, posteriormente ele publicou suas memórias no livro Viaggio Settentrionale (1701), lançado após sua morte. A obra além de conter memórias de viagem, ela também traz relatos sobre as pesquisas naturalistas que Negri empreendeu principalmente na Noruega, país onde ficou mais tempo. Na ocasião, falando sobre a fauna marinha ele relatou haver uma criatura chamada sciu-crak que era um gigantesco peixe, grande como as baleias, mas de corpo achatado e arredondado, possuindo muitos chifres ou braços. (LOXTON, 2011). 

Embora tal monstro não lembre o kraken como um polvo ou lula, no entanto, observa o uso da palavra crak para se referir a um monstro marinho com muitos chifres ou braços, sendo que isso poderia ser uma alusão a tentáculos também. Não obstante, a palavra kraken tem uma origem curiosa, embora ela remeta ao nórdico antigo kraki, ela era empregada com o sentido de poste ou estaca. No norueguês a palavra krake significava árvore torta. Todavia, em algum momento o qual ainda não sabe se precisar, a palavra ganhou o sentido de gancho ou grampo, e posteriormente passou a ser usada para se referir a um monstro marinho através da forma kraken. (LOXTON, 2011). 

O missionário Hans Egede (1686-1758), responsável pela evangelização protestante da Groenlândia, durante o reinado de Frederico IV da Dinamarca e Noruega, redigiu o livro Det gamle Gronlands nye perlustration (1729), o qual foi traduzido para o alemão e mais tardiamente para o inglês, recebendo o título de Descrição da Groenlândia. A obra descreve vários temas sobre aquela ilha no norte do mundo. Egede inclusive falava da presença de serpentes marinhas gigantescas e até de um monstro chamado krake, o qual teria muitas cabeças e garras, e assim conseguia capturar vários animais e embarcações. Todavia, Egede também salientou que o hafgufa seria um nome antigo para ele, aqui surgiu o erro de interpretação apontado anteriormente. Já que as descrições de ambas as criaturas não são similares. (LOXTON; PROTHERO, 2013). 

Posteriormente, o bispo dinamarquês Erik Pontoppidan (1698-1764), o qual foi historiador e antiquarista, escreveu o livro Versuch einer natürlichen Geschichte Norwegens (História Natural da Noruega), publicado em dois volumes em 1752 e 1753. Na obra, ele relatou a existência de serpentes marinhas, sereias e krakens no Mar da Noruega. Pontoppidan considerava que o kraken seria uma espécie de estrela-do-mar gigante, pois teria muitos membros. (LOXTON; PROTHERO, 2013). 

Observava-se que tanto Negri, Egede e Pontoppidan se referiam ao kraken como tendo muitos membros, ora chamado de "braços" ou "garras", posteriormente isso foi melhor interpretado como tentáculos. 

No começo do XIX, o malacologista francês Pierre Denis de Montfort (1766-1820), estudioso de moluscos, escreveu Historie Naturelle Génerale et Particulière des Mollusques (1801-1802), dividido em dois volumes, em que defendeu que o kraken não seria um monstro gigantesco com chifres e garras, ou uma estrela-do-mar, mas seria uma espécie de cefalópode, talvez um polvo ou lula. (LOXTON; PROTHERO, 2013, p. 207). 

Polvo colossal (kraken) numa ilustração para o livro de Denis de Montfort, em 1801

O relato de Denis de Montfort se tornou referência para estudiosos e artistas do século XIX, os quais começaram a se referir ao kraken como sendo um grande polvo ou lula. Inclusive o fato de ele ter vários membros como garras que capturavam os marinheiros, faziam sentido na figura de um cefalópode que usava seus tentáculos com ventosas ou para capturar a tripulação. Por conta disso, várias representações desse monstro passaram a retratá-lo dessa forma.

Um kraken atacando um navio. Ilustração de W. H. Lizars (1839), baseada na descrição de Denis de Montfort. 

A fama do kraken cresceu significativamente em 1861 quando uma corveta francesa de nome Alecton, avistou uma lula gigante no Atlântico próximo as ilhas Canárias. O capitão Fréderic Bouyer relatou que ele deu ordem para capturar a criatura, mas quando tentaram levantá-la, ela era tão pesada que a ponta da sua cabeça se partiu e o animal conseguiu escapar. O pedaço foi levado de volta para a França, como prova de encontro com aquela lula gigante. No caso, é preciso salientar que naquele período o meio acadêmico considerava que o kraken fosse um erro de interpretação acerca de polvos e lulas, uma lenda sobre tais criaturas. 

A lula de Bouyer. Pierre Lackerbauer (1865). 

NOTA: O poeta britânico Alfred Tennyson escreveu um soneto intitulado Kraken (1830). 

NOTA 2: No clássico livro Moby Dick (1851), Hermann Melville cita uma lula gigante no capítulo 59. 

NOTA 3: No livro Os trabalhadores do mar (1866) de Victor Hugo, há um polvo gigante que devora marinheiros.  

NOTA 4: No clássico livro Vinte mil léguas submarinas (1869) de Júlio Verne, o kraken aparece. 

NOTA 5: No filme Piratas do Caribe: O Baú da Morte (2006), o vilão Davy Jones controla um kraken.

NOTA 6: Kraken é o nome de uma bolsa e banco de criptomoedas fundado em 2011, nos Estados Unidos. 

NOTA 7: O livro Curious Creatures (1890) de John Ashton, sugeriu que alguns monstros retratados na Carta Marina (1539) de Olaus Magnus, seriam krakens. Todavia, a hipótese de Ashton é contestada pelo fato de Magnus não usar esse termo, tampouco não nomeia os vários monstros que aparecem no mapa. 

Referências bibliográficas: 

LOXTON, Daniel. The Kraken! Skeptic, vol. 16, n. 3, 2011. 

LOXTON, Daniel; PROTHERO, Donald R. Abominable Science! Origins of the Yeti, Nessie, and the other famous cryptids. New York: Columbia University Press, 2013. 

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