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Leandro Vilar

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Yakuza: a máfia japonesa

Conhecida internacionalmente como Yakuza, a máfia japonesa já existe há quase quatrocentos anos, embora tenha ganhado destaque mundial no século XX. A Yakuza é reconhecida por seu estrito código hierárquico e de obediência e lealdade, sendo dividida em clãs e territórios. Seus membros também são reconhecidos por suas tatuagens, algumas que cobrem grande parte do corpo. Neste texto escrevi um pouco sobre essa curiosa e polêmica máfia, pois, a relação da Yakuza com a lei japonesa é ambígua, pois legalmente ela não é proibida, sendo vetado os crimes que ela venha praticar. 

Origem

Já li pessoas dizendo que a Yakuza teria surgido há mil anos ou somente no XIX, entretanto, a história de origem dessa máfia passa por dois momentos distintos. Os primórdios remontam ao século XVII com gangues de rua, já durante o regime militar do Xogunato Tokugawa ou Período Edo (1603-1868). Todavia, foi no XIX, que alguns dos aspectos centrais da Yakuza como hoje conhecemos, se formalizaram, mas somente na segunda metade do XX, essa máfia ganhou influência nacional e virou manchete em outros países. 

O Xogunato Tokugawa foi o último dos xogunatos a governar o Japão, sendo o mais poderoso e longevo deles. Sua formação remeteu diretamente das ações de Tokugawa Ieyasu (1543-1616), o qual participou das campanha militares durante o Período Sengoku (1467-1603), época de intensa guerra civil no país. Tokugawa conseguiu consolidar o plano de reunificação do Japão, iniciado por Oda Nobunaga e continuado por Toyotomi Hideyoshi. Finalmente concluído esse plano, as guerras feudais chegaram ao fim, e Tokugawa ascendeu como xogum ("generalíssimo comandante").

Sob o novo xogunato o país entrou numa fase de paz, havendo alguns conflitos pontuais, mas nada equiparado a beligerância e carnificina de antes. Além disso, a organização administrativa, legal e social foram alteradas. Nesse período as cidades começaram a crescer e o comércio prosperou de forma significativa, graças as iniciativas começadas ainda no século XVI, com os contatos com os portugueses, ingleses e holandeses. 

Apesar da paz, não significou que a prosperidade veio junto. Grande parte da população japonesa pertencia a classe dos camponeses (hyakusho), que apesar da importância como produtores de alimentos, eram pobres. Além deles havia a classe dos artesãos (shokunin) e dos comerciantes (akindo), ambas eram subvalorizadas socialmente. Abaixo desses três, os quais formavam a plebe, estavam as subclasses que eram compostas pelos marginalizados (eta, hinin, burukamin) da sociedade feudal japonesa. Foi preciso comentar isso, pois a Yakuza surgiu a partir da plebe e dos marginalizados. 

Com a expansão do comércio e das cidades na segunda metade do século XVII, surgiram guildas de artesãos e comerciantes, mas também pequenas organizações informais, para apostas, agiotagem, extorsão, prostituição e contrabando. Essas organizações criminosas ao lado de gangues de ladrões, mercenários e assassinos, foram os embriões da Yakuza. É preciso destacar que naquele tempo, os ricos eram formados pela nobreza, a aristocracia feudal e a aristocracia militar. Teoricamente um samurai era um homem que fazia parte da elite, mesmo que ele não fosse rico, pois no Japão feudal, a ideia de pertencer a elite não era baseado na riqueza, mas a classe que pertencia. No entanto, os samurais não eram tratados da mesma forma, havendo aqueles que eram apenas soldados, enquanto outros eram funcionários públicos e daimiôs (senhores feudais). 

Sendo assim, mesmo ricos artesãos e comerciantes, eram socialmente malvistos por pertencerem a plebe. Entretanto, grande parte da população japonesa era pobre, além disso, soma-se a condição de que os marginalizados não tinham condições para ascender de classe, exercendo trabalhos degradantes e socialmente considerados inferiores e até imorais. Assim, em meio a esse cenário desolador, muitos homens que acabavam estando fadados a pobreza por conta da sua classe de origem, aceitavam entrar nas organizações criminosas para tentar fazer dinheiro, ganhar alguma proteção e até arranjar um propósito de vida, pois estamos falando de uma sociedade feudal em que a servidão era a base das relações sociais. Encontrar um mestre ou chefe para servir, pertencer a um grupo, era algo comum daquela sociedade. 

Kaplan e Dubro (2003, p. 4) comentam que no começo do século XVII existiam bandos de criminosos chamados kabuki-mono ("os malucos"), o que poderia ser equivalente a hoje aos punks (aqui no sentido pejorativo). Esses homens formavam pequenos grupos, usavam roupas velhas ou espalhafatosas, tinham cortes de cabelo considerados esquisitos; eram descritos como rudes e falavam empregando muitas gírias, além de se referirem uns aos outros por apelidos. Os kubuki-mono também eram referidos como hatamoto-yakko ou machi-yakko

Os autores apontam que parte desses homens eram ex-soldados ou ex-samurais, que com o fim das guerras feudais, ficaram desempregados, mas ao invés de se tornarem agricultores ou artesãos, optavam em entrar para gangues, adotando uma vida de crimes. Em outros casos, alguns dos kabuki-mono já eram criminosos desde a infância ou adolescência, como forma de tentar escapar do trabalho pesado no campo, ou acreditavam que no crime conseguiriam melhorar de vida. (KAPLAN, DUBRO, 2003, p. 5).

Esses grupos de criminosos operavam de forma errante, viajando entre as províncias, mas alguns se estabeleciam em fazendas, vilas, portos e cidades. Com o crescimento das cidades, vários negócios se desenvolveram, e alguns kabuki-mono acabaram se tornando gangues urbanas, envolvendo-se com jogos de azar, agiotagem, prostituição, bares, contrabandos, extorsão e outros crimes. Eles formaram territórios e clãs, isso ainda no século XVII. E, assim, essas organizações criminosas ainda informais foram se desenvolvendo ao longo do XVII e XVIII, já que as autoridades nunca conseguiram eliminá-las ou faziam vista grossa, pois alguns chefes criminosos eram homens que se tornaram influentes, além de que algumas gangues disfarçavam seus negócios ilícitos. 

Kaplan e Dubro (2003, p. 6) destacaram que no século XVIII, lendas, poemas, canções, contos e peças teatrais sobre os machi-yakko se desenvolveram. Algumas dessas histórias tratavam eles como criminosos perigosos e rudes, mas várias outras os representavam como heróis, retratando-os como os protetores dos fracos e oprimidos, irmandade de homens leais, e até mesmo os comparando como "bons ladrões" (otokodate) no melhor estilo do Robin Hood. Entretanto, essa propaganda benéfica se tratava mais de ficção do que realidade. 

No entanto, na transição do XVIII para o XIX, surgiu duas nomenclaturas para se referir a alguns tipos de criminosos: os bakuto (jogadores apostadores) e os tekiya (vendedores ambulantes). Esses dois grupos começaram a ganhar destaque no cenário criminoso japonês. Os bakuto atuavam em estradas e cidades, já os tekiya trabalhavam nas feiras, mercados e portos. Eles são considerados por vários historiadores como os grupos que viriam originar a yakuza, pois os machi-yakko estariam mais próximos de gangues de rua, mas esses dois no XIX começaram a constituir o que poderíamos chamar de "sindicatos do crime".

Siniawer (2008, p. 12) aponta que no século XIX os bakuto ganharam influência em várias cidades e vilas do país. Tendo se organizado em clãs (famílias), eles operavam apostas, agiotagem, controlavam casas de jogos, também tinham negócios envolvendo prostíbulos, bares, restaurantes, aluguéis de imóveis etc. No caso, Siniawer salienta que não necessariamente os bakuto fossem ladrões, pois naquele tempo, não havia leis rígidas para controlar jogos de azar e a prostituição não era totalmente proibida. No entanto, eles eram auxiliados por homens chamados de shishi ("matador"), geralmente ex-guerreiros ou ronins que se tornavam guardas, mercenários ou assassinos de aluguel, os quais protegiam os bakuto ou lutavam por eles nas brigas contra outros clãs. Inclusive, shishi foram convocados para lutar nas guerras que marcaram o final do xogunato Tokugawa, em que eles lutaram por ambos lados. 

Os bakuto também usavam trajes específicos, faziam uso de gírias, apelidos, mas dois aspectos se destacaram em sua cultura: a adoção de tatuagens e a prática do yubitsume ou otoshimae, em que um homem cortava um dos dedos das mãos (geralmente o mindinho) como forma de pedir desculpas por algum erro ou ofensa a um superior. Em alguns casos o ato era incentivado como prova de mostrar lealdade ao clã. 

Dois bakuto com suas tatuagens, fotografados na década de 1870. 

No caso do grupo dos tekiya, esses também não eram necessariamente criminosos, pois tratavam-se de comerciantes ambulantes ou caixeiros viajantes. Dessa forma, haviam tekiya que negociavam honestamente, mas existiam aqueles que vendiam mercadorias roubadas, contrabandeadas, falsificadas e adulteradas, além de participarem de lavagem de dinheiro, subornos e financiamento do crime. Por conta disso, existiam comerciantes que trabalhavam legalmente, no entanto, mantinham negócios ilícitos. Além de estarem associados as guildas de mercadores, os tekiya possuíam suas próprias organizações baseadas num patriarca ou chefe, seguindo uma hierarquia severa com código de lealdade e submissão. Eles também cooperavam com os bakuto e outros criminosos. (HILL, 2006, p. ). 

Nomenclatura

Até aqui vimos que nos séculos XVII ao XIX, não se empregava o termo yakuza, havendo vários nomes para se referir a esses criminosos, embora que no XIX prevaleceu o uso do termo bakuto. No caso da palavra yakuza essa é a junção de três palavras ya-ku-za as quais significam 8-9-3, que corresponde a uma sequência numérica de cartas usadas no jogo oicho-kabu, que é jogado com o baralho kabufuda ou hanafuda. Esse jogo tem regras parecidas com o bacará, por conta disso, quem tira a mão 8-9-3 tem azar, por ser uma jogada ruim. Pela condição dos bakuto serem envolvidos com jogos de azar, que naquele tempo, eram principalmente os jogos de cartas e de dados, o termo yakuza acabou se tornando uma gíria para se referir aos bakuto. Mas somente no XX essa palavra passou a ser normalmente empregada para se referir a esses homens num sentido pejorativo. 

O baralho kabufuda usado para se jogar oicho-kabu, jogo que originou a palavra yakuza. 

Mas embora a palavra yakuza seja atualmente mundialmente conhecida, no entanto, ela ainda hoje é considerada pejorativa entre os japoneses. Os membros da máfia não gostam de usá-la, optando em usar outros termos como gokudô ("caminho extremo ou caminho árduo"), em referência, a ser uma vida de submissão, lealdade e de perigos. No entanto, mais raramente alguns deles usam a expressão ninkyo dantai ("organização cavalheiresca"), uma referência as histórias do século XVIII, em que esses criminosos eram retratados como bons. (HILL, 2006). 

Mas a polícia, o governo e a imprensa do Japão costumam usar os termos gokudô ou boryuokudan ("grupo violento"), embora que a segunda palavra também possa ser usada no sentido de organização criminosa. Não obstante, existem também algumas gírias locais usadas em determinadas cidades e regiões para se referirem a yakuza. 

Hierarquia da yakuza

A forte hierarquia da yakuza é um legado direto dos tempos feudais do Xogunato Tokugawa, pois ali, surgiu a condição de que os grupos formados apenas por homens, os quais se sujeitavam a um chefe ou patriarca, chamado obayun. Esse líder organizava seu grupo no sentido de uma família ou clã (ikka), por conta disso, o obayun ser referido também como pai. Essa relação era reflexo do sistema feudal de suserania e vassalagem (no caso da yakuza, chamado de oyabun-kobun, relação pai e filho), mantido até hoje, embora não seja algo exclusivo da máfia japonesa, pois as máfias na Itália e Estados Unidos também são conhecidas por se organizarem em famílias, possuindo seu padrinho ou patriarca. (KAPLAN, DUBRO, 2003, p. 8).

A relação entre o oyabun e seus subordinados era selada por uma cerimônia com saquê, chamada de sakazuki, em que os membros de maior prestígio da família, tem o direito de beber, almoçar ou jantar com o chefe. Além disso, dependendo da hierarquia do indivíduo a quantidade de saquê servida variava, para expressar se sua hierarquia era alta ou baixa. Essa prática surgida no período do xogunato, ainda hoje é mantida por algumas famílias. Inclusive as hierarquias mais baixas também costumam se relacionar com os novatos e membros de poucos anos, levando-os para beber saquê, a fim de celebrar sua entrada para a família ou sua promoção. (HILL, 2008, p. 67). 

Ainda no final do século XVII encontramos menções a esse sistema de clãs, o qual foi sendo desenvolvido nos séculos seguintes até chegar a versão atual, surgida no XX, como se poder ver no quadro abaixo. 

Hierarquia de um clã da yakuza. 

No topo temos o chefe (patriarca, pai ou presidente) chamado de oyabun, mas também pode ser referido como kumicho. Em cada clã existe um chefe, embora que seja comum clãs menores serem vassalos de clãs maiores, logo, oyabun dessas famílias mais poderosas tem vários outros oyabun ao seu serviço. 

Não obstante, abaixo do chefe existem dois tipos de subchefes: o saiko-komon ou saiko-kanbu que atua como um administrador-sênior, as vezes comparado a um diretor-executivo ou o consigliere da máfia ítalo-americana. O saiko-komon cuida da parte burocrática e administrativa dos negócios da família, tendo subordinado diretamente a ele executivos (kanbu), advogados (shingiin), contadores (kaikei), além de gestores, administradores e secretários. Dependendo da extensão dos negócios da família, pode haver mais de um saiko-komon a serviço. (HILL, 2008, p. 66-67). 

Já os outros subchefes cuidam da parte da defesa e da atuação. Eles são o wakagashira (primeiro-tenente ou primeiro-capitão) e o shateigashira (segundo-tenente ou vice-capitão), ambos possuem cargos elevados na família, ditando ordens diretas. Eles cuidam de supervisionar os empregados, além de cuidar de negócios em distritos ou áreas específicas em que a família atue. Tais homens em alguns casos possuem direito para organizar seus funcionários, delegando cargos de chefia e confiança, incluindo o de so-honbucho (chefe de sede), em que um yakuza é nomeado para controlar alguma gangue ou negócio local, tendo que se reportar aos tenentes, já que dificilmente terá acesso ao chefe. (HILL, 2008, p. 66-67). 

Yakuzas numa fotografia da década de 1960. O uso de ternos foi um padrão adotado com base nas máfias ocidentais. 

No entanto, a maior parte dos membros da yakuza são formados pelos kumi-in ("soldados"), os quais são divididos nos kyodai (membros veteranos, os senpai no linguajar japonês) e os shatei (que inclui os membros com poucos anos de casa e os novatos). Genericamente esses homens eram chamados no passado de kobun (capangas). Os kyodai assumem cargos de mais confiança já que estão a mais tempo em serviço, podendo inclusive controlar shatei em alguns negócios. Já os shatei compreende grande parte da força de trabalho de uma família, atuando como vendedores, atendentes, garçons, apostadores, agiotas, capangas, seguranças, motoristas etc. (HILL, 2006, p. 67-68). 

Outro aspecto a ser comentado diz respeito a presença das mulheres. Ainda hoje formalmente mulheres não fazem parte da yakuza, nem são chamadas de gokudô. Todavia, elas trabalham para a máfia, em geral, exercendo cargos baixos como vendedoras, ajudantes, acompanhantes, prostitutas, cafetinas, secretárias, faxineiras, cozinheiras, garçonetes etc. Tecnicamente elas são vistas como "empregadas avulsas", as quais estão subordinadas aos negócios da máfia. Por outro lado, mesmo as esposas e filhas do chefe, dos tenentes e dos administradores não possuem participação nos negócios, embora existam algumas exceções em que esposas de chefes assumiram de forma interina o comando devido ao falecimento dos maridos. 

Além disso, dentro da yakuza ao longo de décadas imperou até mesmo casamentos arranjados, em que chefes para firmar alianças com outros clãs, negociavam suas filhas, irmãs e sobrinhas para criarem laços matrimoniais. Em outros casos, alguns chefes até ofereciam suas filhas em casamento para subordinados seus de confiança. E em situações mais extremas, algumas dessas mulheres foram obrigadas a se prostituir. O livro Yakuza Moon (2004), escrito pela filha de um oyabun, apresenta essa realidade difícil das mulheres que servem a máfia japonesa. 

As tatuagens na yakuza

A tatuagem no Japão é algo antigo, entretanto, foi a partir do século XVIII, que alguns bakuto começaram a se tatuar, condição essa, que no XIX possuímos pinturas, gravuras e até fotografias como a vista anteriormente mostrando homens tatuados. No xogunato Tokugawa ainda havia a prática em algumas épocas, de se tatuar (bokkei) ou marcar a ferro e fogo os criminosos, como forma de facilitar em saber caso fossem capturados novamente. Todavia, isso acabou gerando estigmas. Alguns desses homens como não conseguiam mais trabalho por conta disso, pois algumas marcas eram infligidas em lugares visíveis como no pescoço e até no rosto, migravam para o crime. Então em dado momento, alguns bakuto, tekiya e outros criminosos passaram a adotar tatuagens como forma de protesto ou identidade pessoal de sua cultura considerada marginal. No caso, a tatuagem se tornou uma marca estereotipada associada a yakuza, em que se ver homens com muitas tatuagens, mas nem sempre foi assim. Além disso, a tatuagem no país é tratada por alguns como arte, chamada de irezumi. (SINIAWER, 2008, p. 21-22). 

O uso de tatuagens dentro da yakuza é algo de caráter espiritualista e honorífico. Por exemplo, a depender do clã, determinados tipos de símbolos e imagens são vetados para qualquer membro, sendo que o gokudô deve provar sua lealdade e empenho com o clã, para ter a permissão de se tatuar com determinados símbolos e imagens. Por outro lado, as tatuagens normalmente remetem-se a figuras da mitologia e do folclore, pois para a cultura da yakuza, essa referência ao mitológico e até o religioso, faz parte da identidade cultural como ser japonês, mas também por ser parte da máfia. 

Yakuzas apresentando suas tatuagens. 

Outro aspecto a ser salientado é que diferente do que vemos em filmes, jogos, desenhos e quadrinhos, os yakuzas não ficam exibindo suas tatuagens, por questão de dois motivos principais: primeiro, isso ainda é tabu no Japão, em que pessoas com muitas tatuagens são suspeitas de serem criminosos (embora nem todo yakuza seja criminoso). Condição essa que existem lugares como praias, piscinas públicas, parques aquáticos, casas de banho, praças, em que é proibido homens tatuados de tirarem a camisa, pois pode gerar mal-entendido entre os demais frequentadores. 

Segundo, as tatuagens são um símbolo de identidade do homem (e até da mulher), em que deve-se zelar pela discrição. Ou seja, as tatuagens não são apenas pinturas, mas possuem todo um significado que deve ser reservado apenas a outros membros do clã e de pessoas próximas. Fato esse que normalmente não se tatua a nuca, o rosto, cabeça e as mãos, pois são partes visíveis, mas as tatuagens devem ficar ocultas. Todavia, há casos de alguns eventos e cerimônias, em que os gokudô são autorizados a exibirem suas tatuagens, como forma de mostrar respeito ao seu clã, mas também seu valor perante a sociedade. 

Fotografia dos anos 1960 ou 1970, mostrando algumas mulheres a serviço da yakuza, exibindo suas tatuagens. 

Não obstante, atualmente fazer tatuagens deixou de ser obrigatório em alguns clãs. Além disso, yakuzas que exibem corpos com muitas tatuagens costumam ser veteranos e saudosistas dessa prática, já que em geral, os yakuzas têm poucas tatuagens, normalmente nas costas, braços e peito. 

A máfia legalizada? 

Enquanto em outros países a máfia é algo ilegal, e ser associado ou membro dela é crime, no Japão a situação é mais complexa. a yakuza desde seus primórdios agiu na chamada "zona cinzenta", operando legalmente e ilegalmente na margem da lei. Tentativas de combatê-la são antigas, mas por conta de alguns clãs da yakuza terem negócios lícitos, agindo em prol da sociedade e até mesmo praticando filantropia, a yakuza conseguiu escapar as algemas da lei em várias ocasiões. Entretanto, no auge da máfia, época que os historiadores costumam apontar como tendo entre os anos de 1960 e 1990, a yakuza se organizou principalmente como sindicatos do crime, e isso contribuiu para aumentar sua má fama. (KAPLAN, DUBRO, 2003, p. 112-113).

Nesse período os sindicatos dominantes eram o Yamaguchi-gumi, o Inagawa-kai e o Sumiyoshi-kai. Segundo dados da polícia de 1989, esses três sindicatos reuniam pelo menos 3.197 clãs, os quais contabilizavam mais de 86 mil homens, apesar que estimativas sugiram que nas décadas de 1960 e 1970, houvessem mais de 100 mil ou 200 mil homens envolvidos com a máfia. (HILL, 2006, p. 65). 

Em seu auge a yakuza cometeu uma série de crimes como extorsão, contrabando, tráfico de drogas, tráfico de mulheres, pirataria, chantagem, sequestros, prostituição, apostas ilegais etc. No entanto, não é do feitio dessa máfia assaltos, roubos e assassinatos que chamem a atenção. Todavia, apesar dessa grande quantidade de homens envolvidos com a máfia, esses três sindicatos ainda continuam a existir, mesmo sabendo-se que cometeram vários crimes ao longo de décadas, mas por que isso acontece?

A resposta é complicada, pois a percepção japonesa sobre organização criminosa é diferente da vista em outros países. Por conta da yakuza operar na "zona cinzenta", isso não a torna totalmente ruim, pois existem clãs que como dito, agem legalmente. Mesmo o Yamaguchi-gumi, o qual é o maior sindicato da yakuza, possui negócios lícitos e até mesmo pratica filantropia, faz caridade, e ordena que seus membros evitem cometerem assaltos, roubos, se envolverem com tráfico de drogas, vandalismo e coisas do tipo. Além disso, você ser membro da yakuza, não é taxado como crime. Todavia, se você cometer algum ato ilícito sendo gokudô, então a polícia irá incriminá-lo. 

Outro exemplo para entender essa problemática quanto a legalidade da máfia, diz respeito a prostituição no Japão. Legalmente ela é proibida desde 1958, mas existem meios lícitos de ocultar a prostituição como clubes de stripper, clubes de acompanhantes (hostess clubs), clubes de fetichismo sexual, as soaplands (casas de banho eróticas) etc. Observa-se assim, como a legislação japonesa é bastante flexível, por conta disso, a yakuza ainda hoje existe, mesmo que tenha havido tentativas de proibi-la. 

Vale lembrar que nem todo empregado que atue num negócio que pertence a yakuza, seja um gokudô, pois como a máfia se expandiu para muitos negócios, é comum contratarem pessoas comuns, os chamados jun-kosei-in, que as vezes nem sabem que a loja, restaurante, bar, empresa, escritório, clínica, banca de revistas etc., em que trabalham, pertence a yakuza. 

Em 1991 o governo decidiu caçar os yakuzas, dando início a lei anti-boryukudan (ou lei anti-yakuza), a qual tornava ilegal organizações criminosas. Essa foi a grande ação do século XX em combate a máfia, no que resultou no fim de várias gangues e pequenos clãs. Segundo dados oficiais, pelo menos 192 clãs foram desmantelados. Pode parecer um número grande, mas em 1989, eram reconhecidos mais de 3.100 clãs, sendo assim, um valor ainda pequeno. (HILL, 2008, p. 251-253). No entanto, a lei anti-boryukudan continuou em operação, desmantelando outras famílias nos anos seguintes. Atualmente estima-se que existam mais de mil clãs em atividade, o que significa que uns dois mil chegaram ao fim durante trinta anos de ação dessa lei. 

Nos anos de 2010 e 2011 houve tentativas de algumas prefeituras de diminuir ainda mais a influência da máfia. A cidade de Fukoaka, em abril de 2010, lançou campanha para multar e desencorajar empresas e estabelecimentos comerciais e industriais que fizessem negócios com empresas controladas pela máfia. No ano seguinte, Okinawa, Tóquio e outras cidades adotaram medidas similares, incluindo impedir que empresas da yakuza pudessem disputar licitações e fazer negócios com o governo. Algumas dessas medidas seguem em ação. 

Mas se nas últimas três décadas a lei anti-yakuza conseguiu enfraquecer consideravelmente a máfia, incluindo diminuir os índices de violência, em parte graças aos regulamentos de forte controle de armas de fogo, condição essa que hoje em dia, raramente um gokudô utiliza pistolas e revólveres, diferente do que era no século passado. Por conta disso, a máfia acabou tendo que melhorar a ocultação de seus esquemas, assim como, passou a agir em outros países para suprir a perda de investimentos e territórios. Condição essa que hoje sabe-se que alguns clãs atuam na Coreia do Sul, China, Filipinas, Estados Unidos, Brasil e em outros países. 

Muitos clãs que caíram com a lei anti-yakuza eram clãs pequenos ou que não dispunham de contatos e dinheiro suficiente para subornos. Vale ressalvar que os três grandes sindicatos possuem contatos no meio político e policial, e isso concede proteção para seus negócios, além de que, eles também mascaram suas ações ilegais por trás de seus negócios ilícitos, o que dificulta classificá-los como "organizações criminosas" segundo a legislação japonesa, por conta disso, a yakuza ainda segue existindo. 

NOTA: A temática da yakuza rendeu filmes, livros, mangás, músicas, jogos, peças teatrais etc. 

NOTA 2: A franquia de jogos Ryu Ga Gotoku, mais conhecida internacionalmente pela tradução Like a Dragon ou Yakuza, é famosa por retratar o mundo da máfia japonesa, mesmo que apelando para visuais e ideias caricatas. 

NOTA 3: No cinema japonês os chamado yakuza eiga ou gokudo film, começaram a se popularizar no final dos anos 1950. 

NOTA 4: Os jogos Yakuza Kenzan! (2008) e Yakuza Ishin! (2014), retratam o bakuto durante o Xogunato Tokugawa. 

Referências bibliográficas: 

HILL, Peter B. E. The Japanese Mafia: Yakuza, Law, and the State. Oxford, Oxford University Press, 2006. 

KAPLAN, David E; DUBRO, Alec. Yakuza: Japan's criminal underworld. Berkeley, University of Californian Press, 2003. 

SINIAWER, Eiko Maruko. Ruffians, Yakuza, Nationalists. The violent politics of Modern Japan, 1860-1960. Ithaca, Cornell University Press, 2008. 

Links: 

O tatuador da Yakuza explica por que tatuagens nunca devem ser vistas

A Yakuza virou minha família': a artista que viveu no submundo da máfia japonesa para retratar suas mulheres


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