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Leandro Vilar

sábado, 22 de outubro de 2022

Maria Quitéria e a Guerra de Independência do Brasil

Durante a Guerra de Independência do Brasil (1822-1824), uma jovem baiana de vinte anos se disfarçou de homem e voluntariou-se para servir no Exército do Imperador. Maria Quitéria acabou mostrando valentia, honra e lealdade ao seu país, sendo mais tarde condecorada pelo próprio imperador D. Pedro I. No ano do bicentenário da independência, trago esse breve relato sobre a participação dessa soldado, que hoje é uma das heroínas da pátria. 

Maria Quitéria de Jesus nasceu em 27 de julho de 1792, no Sítio Licurizeiro, no distrito de São João das Itapororocas (atualmente em Feira de Santana), sendo a primogênita de Gonçalo Alves de Almeida e de Quitéria Maria de Jesus. O casal teve mais dois filhos, todavia, Quitéria faleceu quando a filha tinha apenas 9 anos de idade, levando Gonçalo casou-se com Eugênia Maria dos Santos e mudaram-se para a fazenda Serra da Agulha. Da nova união vieram mais filhos, mas Maria Quitéria se tornou responsável por ajudar a madrasta na criação dos enteados e filhos, além de que ajudava o pai no cuidado da propriedade rural. Posteriormente Eugênia faleceu e o Gonçalo casou-se uma terceira vez, contraindo matrimônio com Maria Rosa de Brito, a qual não gostava de Maria Quitéria e seus irmãos. Ela criticava a condição da adolescente ter muita liberdade, o que incluía caçar, cavalgar e ir participar das danças e festejos dos escravos. 

Representação iconográfica mais antiga que se conhece de Maria Quitéria de Jesus, feita por Augustus Earle para o livro Diário de uma viagem ao Brasil (1824) de Maria Graham. 

Não se sabe ao certo os motivos que levaram Maria Quitéria a se alistar no Exército voluntário. No ano de 1820 quando começou os dilemas envolvendo a independência brasileira, se desconhece até onde Maria Quitéria tinha conhecimento disso, já que vivia numa fazenda no interior. E pelo que indica seus biógrafos, ela nunca foi a escola, nem se quer seria alfabetizada. Todavia, a situação mudou em 1822 com a eclosão da guerra na Bahia, ainda em fevereiro daquele ano. O conflito duraria mais de um ano, embora esteve concentrado à Baia de Todos os Santos e os arredores de Salvador, ele se estendeu por outras localidades do Recôncavo, incluindo a Vila de Cachoeira, município onde Maria Quitéria vivia. 

A guerra começou em fevereiro e como o Brasil não dispunha de um exército próprio, pois a maior parte era formado por soldados portugueses ou luso-brasileiros leais a Coroa portuguesa, o príncipe Dom Pedro ordenou a convocação emergencial para formar o Exército Libertador. Assim, em diferentes capitanias começou-se um recrutamento voluntário massivo para se formar milícias e batalhões. No caso da Bahia, isso ocorreu em várias localidades, incluindo a Vila de Cachoeira, a qual inclusive se tornou um dos centros pró-independência, rebelando-se contra o jugo português.

Os recrutadores eram enviados às vilas e fazendas para buscarem homens de forma voluntária ou até forçada para servirem nas fileiras do novo exército. Um desses recrutadores visitou a fazenda Serra da Agulha, mas pela condição dos filhos de Gonçalo de Almeida serem crianças, não puderam se alistar. Sendo Maria Quitéria a mais velha de seus filhos, na época com seus 20 anos de idade. Se desconhece os detalhes de como Maria Quitéria tentou se alistar, mas pelo pouco que se sabe, ela fugiu de casa, indo pedir ajuda de sua irmã Teresa e do marido dela, o soldado José Cordeiro de Medeiros, o qual emprestou uma farda para a cunhada, a qual cortou os cabelos e se disfarçou de homem, partindo para Cachoeira. 

Ela se alistou no Regimento de Artilharia ainda em setembro, permanecendo ali por algumas semanas até que foi descoberta. Todavia, naquele tempo, já havia mulheres voluntárias ajudando na guerra, mesmo que não fossem soldados. Com isso, Maria Quitéria foi transferida para o Batalhão de Voluntários do Príncipe, chamado de Batalhão dos Periquitos devido a cor verde de seus uniformes. Ele era formado por agricultores e escravos, os quais foram voluntários ou recrutados a força. Vale ressalvar que os escravizados receberam a promessa de alforria caso ajudassem na vitória na guerra. 

Ingressando no novo batalhão, esse foi despachado em novembro de 1822 para atuar nas cercanias da Ilha da Maré, posição que manteve nos meses seguintes. A primeira batalha significativa enfrentada pelos Periquitos foi no conflito em Pituba e depois na batalha de Itapuã, no qual foi elogiada por seu desempenho e bravura, tendo capturado uma trincheira inimiga e feita vários prisioneiros. Posteriormente em janeiro de 1823 participou do conflito naval na foz do rio Paraguaçu, em que navios brasileiros e portugueses e confrontaram, enquanto a tropa terrestre impedia o desembarque inimigo. Além de Maria Quitéria, outras mulheres teriam lutado nessa batalha. Em reconhecimento ao seu valor apresentado nesses três conflitos, foi tornada 1a Cadete com distinção, em abril daquele ano. 

Em junho, o Batalhão dos Periquitos pressionava ao lado de outros batalhões e regimentos as defesas portuguesas em Salvador, forçando a rendição desses em 2 de julho de 1823. Nesse tempo, a fama da Cadete Maria Quitéria de Jesus já tinha se espalhado a ponto que o imperador D. Pedro I enviou uma carta convocando-a a ir ao Rio de Janeiro. 

Chegando à capital imperial, ela foi condecorada pelo imperador em 20 de agosto de 1823, recebendo a insígnia dos Cavaleiros da Imperial Ordem do Cruzeiro e uma pensão vitalícia de alferes. Retornou para casa e foi vivamente recebida pela família. Mais tarde ela se casou com Gabriel Pereira de Brito e seguiram a vida como agricultores. Eles tiveram apenas uma filha, Luísa Maria da Conceição. Após a morte do marido, Maria Quitéria não voltou a se casar, vivendo o restante da vida com sua filha na fazenda, depois mudando-se para Feira de Santana e Salvador, falecendo aos 61 anos. 

Retrato de Maria Quitéria em versão colorida, feita por Domenico Failutti, em 1920, com base no desenho de Augustus Earle. 

A rápida trajetória militar de Maria Quitéria impressionou na época, pois embora outras mulheres tenham lutado na Guerra de Independência, somente ela foi condecorada pelo imperador, tendo seu esforço reconhecido, embora que outras mulheres também tivessem merecido esse reconhecimento. No entanto, ainda em vida, embora tenha vivido de forma simples como agricultora, Maria Quitéria foi homenageada algumas vezes, para finalmente ser reconhecida como heroína da independência, tendo arriscado sua vida para assegurar a liberdade de seu país. 

NOTA: Na corte brasileira, Maria Quitéria conheceu além do imperador, a imperatriz, as princesas e outros nobres, a tutora Maria Graham, preceptora das princesas. Durante os três anos que morou no Brasil, ela escreveu diários e os publicou como livro. Uma das gravuras de seu livro é de Maria Quitéria, mulher que ela admirou na época que conheceu, apesar do seu jeito simples e meigo. 

NOTA 2: Em alguns estados existem ruas, avenidas, praças, escolas etc. em homenagem a Maria Quitéria. Estátuas também foram erigidas em sua memória.

NOTA 3: Devido a condição de ter se disfarçado de homem para ir à guerra, Maria Quitéria foi comparada a Joana d'Arc, sendo considerada sua versão brasileira. 

NOTA 4: Apesar de pouco se conhecer da sua história, Maria Quitéria foi tema de livros, tentativas de biografias e de documentários. 

NOTA 5: Maria Quitéria compõe o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria

Referências bibliográficas: 

SCHUMAHER, Schuma (coord.). Maria Quitéria de Jesus. In: Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. 

SOUSA SILVA, Joaquim Norberto de. Brasileiras célebres. Brasília, Senado Federal, 1997. 

Link relacionado:

200 anos da Independência do Brasil

LINKS: 

Maria Quitéria: Honra e Glória (curta-metragem)

Mulheres na História #112: MARIA QUITÉRIA, a heroína da Independência do Brasil

domingo, 16 de outubro de 2022

As torres do silêncio

Uma antiga tradição fúnebre que está chegando ao fim consiste nas estranhas torres do silêncio, localidades construídas pelos praticantes do Zoroastrismo, uma das religiões monoteístas mais antigas conhecidas, a qual preconizava que os mortos deveriam ser depositados nessas torres. O presente artigo apresenta os aspectos religiosos por trás dessa estranha prática e os problemas que ela gerou e hoje como os adeptos dessa religião encaram essa mudança. 

Introdução

O Zoroastrismo, ou Masdeísmo ou Parsismo é uma religião monoteísta de caráter profético, messiânico, revelado e soteriológico, surgida no que hoje é o território do Irã, entre os séculos VIII a.C e VI a.C, sendo atribuído ao profeta Zaratustra (ou Zoroastro na versão grega de seu nome), a origem dessa religião. No caso, suas origens são incertas, pois não se sabe se Zaratustra realmente existiu e quando ele teria vivido, já que os livros zoroastrianos datam de séculos após ele, além de existirem várias lendas sobre sua vida e façanhas.

Não obstante, Zaratustra possui características similares as vistas em Jesus Cristo, como ser oriundo de uma família pobre, ser um escolhido de um deus, possuir o dom da profecia e de poder realizar milagres, além de ter sido incumbido de pregar a palavra de sua divindade. Neste caso, Zaratustra aos 30 anos vivenciou revelações dadas por Aura-Masda, o Senhor da Luz, uma das divindades cultuadas entre os antigos iranianos, mas na religão de Zaratustra, se tornou o deus supremo. (FYRE, 1999). 

“Em resumo, o ponto de partida da predicação de Zaratustra é a revelação da onipotência, da santidade e da bondade de Aúra-Masda. O Profeta recebe-a diretamente do Senhor, mas essa revelação não cria um monoteísmo. O que Zaratustra proclama, oferecendo-a como modelo aos seus adeptos, é a escolha de Deus e das outras Entidades divinas. Ao escolher Aúra-Masda, o masdeísta escolhe o bem contra o mal, a verdadeira religião contra aquela dos daêvas. (ELIADE, 1983, p. 151-152).

Por intermédio de Aura-Masda e seus Espíritos Iluminados (Amesha Spenta), Zaratustra foi instruído na revelação do deus da luz e assim passou o restante da sua vida em pregação para converter seguidores, mesmo que isso tenha significado ganhar inimizades, sendo considerado louco e traidor da fé dos antigos deuses. 

A doutrina zoroastriana foi sendo desenvolvida com o tempo, mas segundo os relatos sobre a missão do profeta, ele naquele tempo abominou o sacrifício de animais e humanos, a idolatria, o animismo, a feitiçaria, a adivinhação, o politeísmo etc. Ele passou a ditar regras morais, a pregar sobre a doutrina do pecado e da impureza, a sacralidade do fogo, o cultivo das virtudes, a ameaça das Forças do Mal, o Inferno, a Salvação, o Juízo Final etc. 

"Os deveres do fiel (ashavan) são o culto de Ahura Mazdah e dos outros bons espíritos, a manutenção do fogo sagrado e a veneração dos mortos. A mais apreciada das virtudes pessoais é a retidão. O Zoroastriano é obrigado a guardar grande pureza: não somente se deve abster do adultério, da violação e dos restantes atos contra a natureza, mas está sujeito a múltiplas observâncias, por vezes bizarras, relativas às relações sexuais e ao contato com os seres e objetos impuros, especialmente cadáveres. São, igualmente, recomendadas e praticadas a caridade para com os pobres, a hospitalidade para com os estranhos. Como virtude social, figura, no primeiro plano, o trabalho da terra. É falta cortar uma árvore. O boi e o cão são objeto de maior apreço". (HUBY, 1956, p. 385). 

No quesito funerário, toda uma série de práticas e ritos foram desenvolvidos para estabelecer as fases do luto, o trato dado ao cadáver e seu despacho. Após a morte da pessoa iniciava-se as preces para que sua alma seguisse o caminho certo, além de se rezar para manter espíritos malignos longe. Enquanto as orações são realizadas, os familiares, parentes, amigos e autoridades são notificados. Em comunidades mais antigas, sacerdotes eram convocados até o local para fazer preces também. Depois o corpo era conduzido para uma funerária, para se realizar o velório. O falecido era mantido coberto por uma mortalha, estando depositado num caixão ou maca feita de metal. Terminado o velório, o corpo era encaminhado para a lavagem. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Todavia, devido a grande preocupação do Zoroastrismo com a questão da pureza corporal e espiritual, cadáveres eram considerados algo bastante impuro e determinava práticas específicas para sua recolha e destinação. E para isso surgiram as torres do silêncio, nome popular dado a localidades para se depositar os mortos, sendo um local silencioso devido a ausência dos vivos ali, além de que as pessoas que ali vão, devem ir em silêncio como sinal de respeito. 

A torre do silêncio

Na religião zoroastriana a terra, o fogo e a água são considerados elementos sagrados a ponto de que existem práticas que são consideradas pecaminosas por macularem esses elementos. Sendo assim, há determinadas atividades, objetos e seres que não podem ser enterrados, queimados ou jogados na água, pois irão profanar aqueles elementos e consistem em pecado fazer isso (ou pelo menos consistiam, pois atualmente determinadas doutrinas foram alteradas). Nesse quesito, os cadáveres estavam entre essas proibições.

A torre do silêncio de Yazd, no Irã. O local está deixando de ser utilizado devido a abolição dessa prática. 

Desde os tempos antigos foi estabelecido a condição de que o corpo morto era algo impuro, pois a alma que é sagrada, deixou de habitá-lo, então o corpo se tornava uma carcaça vazia. Por ele ser impuro, não deveria ser enterrado e nem cremado, pois contaminaria a terra e o fogo. Tampouco poderia ser jogado dentro da água. Aqui surgiu um dilema: como se livrar dos mortos? Isso inclui os humanos e animais. 

A solução foi a criação de lugares para se despejar os corpos e deixá-los serem devorados pelos carniceiros. Tais lugares foram chamados de dakhma (torre do silêncio), as quais eram erguidas distante das cidades e vilas, normalmente em lugares altos para facilitar a chegada dos abutres (os principais carniceiros na região). As torres são normalmente circulares e não são tão altas. Elas são abertas, permitindo que os abutres pudessem entrar para se alimentar dos cadáveres e carcaças. 

Dependendo da localidade, a torre pode ter três níveis, nos quais se colocava os corpos dos homens, das mulheres e das crianças de ambos os sexos. Em caso da torre não ter esses níveis, os corpos dos homens e mulheres eram separados um dos outros, assim como das crianças e idosos. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Para realizar essa atividade considerada impura, existem alguns trabalhadores que exercem atividades específicas como os nasa salars (transportadores de cadáveres) e os pakshus (limpadores de cadáveres). Os primeiros são encarregados de recolher o morto de onde ele faleceu e depois executar seu translado para onde deva ir, para finalmente chegar a uma torre do silêncio. Já os pakshus são os responsáveis por limpar os corpos, removendo seus trajes e pertences, lavando-os e cobrindo-os com uma mortalha para entregá-los aos nasa salars. No entanto, em localidades onde tais profissionais não existiam, cabia a família providenciar essas práticas, tendo o cuidado de se usar luvas e batas para não tocar o corpo falecido sem proteção, pois isso acarretaria em impureza, requisitando da pessoa ter que se lavar para se purificar. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Entretanto, a prática das torres do silêncio nem sempre foi unânime, mesmo na Antiguidade. Condição essa que nos impérios persas, os masdeístas como eram chamados, eles eram enterrados, sepultados até cremados, não necessariamente jogados nas torres do silêncio. Essa condição se manteve ao longo dos séculos, fato esse que atualmente muitos zoroastrianos abandonaram as torres do silêncio, sendo esse um rito apenas praticado por algumas comunidades no Irã, Paquistão e na Índia. 

Abutres comendo uma carcaça na torre do silêncio em Mumbai, Índia. 

A abolição das torres do silêncio (dakhma) começou ainda no século XIX, em que países como Sri Lanka, Afeganistão e áreas do Irã, Paquistão e Índia proibiram esse rito, substituindo pelo sepultamento em esquifes de cimento, de forma que os corpos não toquem a terra, para não contamina-la. Essa modalidade de sepultamento também é aplicada em outros países. Dessa forma, as torres do silêncio, as quais poderiam muito bem serem chamadas de "torres dos mortos", se tornaram ruínas de uma prática antiga e considerada estranha e bizarra em outras culturas. 

Referências bibliográficas: 

CHOSKY, Jamsheed K. Zoroastrianism. In: JONES, Lindsay (ed.). Encyclopedia of Religion, vol. 14. 2a ed. Hills, Thomson Gale, 2005, p. 9988-10008. 

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis, tomo I: Dos Vedas a Dioniso, vol. 2. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. 2a ed, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

FRYE, Richard N. Zaratustra. In: BRUNNER-TRAUT, Emma. Os fundadores das grandes religiões. Tradução de Ivo Martinazzo. Petrópolis, Vozes, 1999. 

HUBY, José. CHRISTVS: história das religiões. vol. II. Tradução e prefácio de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Edição Saraiva, 1956. 2v.

Link relacionado: 

Ásia: berço de religiões: as religiões iranianas

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Machu Picchu: a cidade escondida dos Incas

Atualmente Machu Picchu é uma das atrações turísticas mais famosas no mundo, atraindo milhões de visitantes por ano. Embora hoje seja até mais fácil de se visitá-la, havendo linha de trem e ônibus para chegar até a montanha onde ela fica situada, no entanto, por séculos seu paradeiro era desconhecido. Somente em 1911 a cidade foi descoberta. Seu nome era conhecido pelos colonizadores espanhóis ainda no século XVI, mas eles nunca conseguiram localizá-la, tendo a cidade servido de refúgio para os incas que se recusaram a se submetera dominação espanhola. 

Introdução

O Incas foram um dos vários povos andinos que habitaram o que hoje é o território de Cuzco, no Peru. Eles teriam surgido em algum momento do século XII como uma tribo rural, vivendo ao lado de outras tribos. Entretanto se desconhece a história da ascensão desse povo, já que eles não conheciam a escrita, sendo essa inexistente para outros povos sul-americanos. Todavia, no começo do século XV, cerca de duzentos anos depois, os Incas já eram uma potência militar regional, e, em 1438, o Sapa Inca Pachacuti fundou um império, que cresceu por mais de um século. 

O Império Inca (1438-1533) era chamado de Tawantinsuyu ("os quatro cantos"), o qual em seu auge, englobou os atuais territórios do Peru, Equador, parte da Colômbia, Bolívia e Chile. O imperador era chamado de Sapa Inca, atuando numa monarquia teocrática, em que ele era representante dos deuses, sendo considerado sagrado; os incas eram um povo politeísta, agrícola e mercante; embora desconhecessem a escrita, possuíam um sistema de contagem e cálculo usando-se quipos. Eles também eram habilidosos na construção de terraços agrícolas, pontes e cidades de pedra. 

A sociedade inca era bastante estratificada, havendo a realeza, a nobreza, o clero, a plebe e os escravos. Os nobres e clérigos controlavam a política, a religião, a educação e o exército. O império inca governou sobre outros povos que foram subjugados, sendo estimado mais de 6 a 14 milhões de habitantes para eles. Apesar de sua expansão e prosperidade, revoltas ocorriam e os espanhóis as incentivaram para ganhar apoio, além de usarem sua astúcia e poderio bélico para assustar e manipular os últimos monarcas. 

Uma cidade na montanha

A cidade foi construída entre as décadas de 1420 e 1450 por ordem do primeiro imperador inca Pachacuti (1408-1474), erigida no topo do monte Machu Picchu (Montanha Velha), ao lado do monte Huaynu Picchu (Montanha Jovem), ambos situados no vale do rio Urubamba, considerado parte da região sagrada para os incas. Apesar de sua construção, ela não serviu de capital real como já foi considerado no passado, já que Pachacuti e os outros imperadores governavam a partir de Cuzco, de onde podiam comandar a política e seus exércitos nas guerras que levaram a expansão de seu império. Sendo assim, a cidade foi erigida como ponto de ocupação da região, a qual era habitada por tribos dos chancas, que foram subjugados pelos incas. Condição essa que existiam outras cidades vizinhas como Quente Marca e Pattalacta, além de vilarejos agrícolas que forneciam alimentos para a cidade. 

Ruínas da cidade de Machu Picchu. Ao fundo o monte Huaynu Picchu. 

Uma hipótese sugere que Machu Picchu possa ter sido uma "cidade troféu", construída para enaltecer a vitória militar de Pachacuti, por conta disso, sua localização e boa qualidade de suas edificações. Nesse quesito, o imperador em pessoa (não se sabe quantas vezes ele foi a essa cidade) ou outros nobres, disporiam de Machu Picchu como uma cidade reservada para seus interesses, lazer e até preces, já que montanhas eram sagradas na religião dos incas.  

Embora seja bela e famosa, Machu Picchu não era uma cidade grande, estimativas apontam que ela teria tido entre 300 a 1.000 habitantes, talvez um pouco mais do que isso. Apesar de ter sido uma cidade pequena, ela contava com templos, um palácio, mercado, praças, terraços, currais e oficinas. A cidade também possuía uma muralha, fosso, canais, ruas, estradas, escadarias e alguns túmulos. Sua construção foi um engenho árduo e admirável, já que se trata de uma cidade feita com pedras, a maioria transportada montanha acima pelos escravos ou no lombo das lhamas. Se desconhece quanto tempo as obras levaram para serem concluídas. 

Também se desconhece o papel político, econômico, social e religioso de Machu Picchu devido a inexistência de relatos escritos, o que existem são hipóteses. Mas por haver um palácio na cidade, os historiadores sugerem que nobres ali habitassem, talvez pudessem ser parentes do imperador (pois havia a prática de ele designar parentes seus para governar determinadas localidades) ou alguma família importante, designada para o governo daquela cidade. 

A descoberta de Machu Picchu

Não se sabe quando a cidade foi abandonada, as estimativas arqueológicas e históricas apontam que Machu Picchu ainda continuou a ser habitada após a conquista espanhola. Algumas datas foram sugeridas, variando de 1535 a 1570 como o tempo em que a cidade ainda era habitada. Essas datas são reforçadas pela condição de que o imperador rebelde Manco Capac II em 1539, fundou a cidade de Vilcabamba ao norte de Cuzco, na proximidade do rio Urubamba. A cidade permaneceu ocupada até 1572, embora que na prática os ditos quatro imperadores que ali viveram, não dispunham de autoridade como antes, já que o império havia perdido sua coesão. No entanto, devido a queda do império inca, parte da população ou se sujeitou aos novos governantes ou decidiu migrar para outros territórios para escapar da colonização. 

A ideia de que Machu Picchu fosse uma cidade escondida, na verdade se deve a uma interpretação dos arqueólogos, pois na prática, ela nunca foi escondida, já que havia estradas que conduziam a ela, além de que a cidade estava ligada a rede de comércio. Todavia, a condição de os espanhóis não a terem encontrado no tempo da colonização levou ao surgimento da lenda de ela ser uma "cidade secreta" ou uma "cidade perdida". 

Não se sabe ao certo se os espanhóis realmente chegaram a Machu Picchu, pois o explorador Baltasar de Ocampo, ainda no século XVI, em suas explorações disse ter visitado uma antiga cidade no alto de uma montanha e ali havia belas casas, ele disse que tal lugar era chamado de Pictos. Os historiadores e arqueólogos não possuem certeza se essa descrição seria uma referência a Machu Picchu, pois havia uma cidade chamada Victos. Embora essa não ficasse propriamente sobre uma montanha. 

Depois do relato de Ocampo não se conhece relatos que sugiram ser referências a Machu Picchu, pois ela como outras cidades incas acabaram sendo abandonadas em fins do XVI, após a queda de Vilcabamba, o último reduto da monarquia incaica. 

Com o abandono da cidade, a vegetação começou a tomar conta de suas edificações e ruas. Com o passar das décadas os telhados ruíram e algumas estruturas mais frágeis também. As estradas foram encobertas pela vegetação, pois deixaram de serem utilizadas. Todavia, as fazendas situadas no sopé da montanha ainda eram utilizadas como apontam documentos coloniais. 

Em 1865 o naturalista italiano Antonio Raimondi (1824-1890), o qual investigava o Peru, passou pela região de Machu Picchu, tendo avistado algumas ruínas em meio a vegetação, mas não chegou a explorar a localidade devido a ser de difícil acesso. Na época que Raimondi executou sua pesquisa científica para estudar a flora e a fauna, naquele tempo já existiam arqueólogos, historiadores, exploradores, aventureiros e caçadores de tesouros que percorriam o Peru, a Bolívia, o Equador e a Colômbia atrás de antigas cidades. Alguns iam pela ciência, outros pela aventura e a promessa de achar tesouros. 

Uma hipótese surgida na década retrasada sugere que o empresário alemão Augusto Berns, o qual fundou uma empresa de mineração no Peru, pode ter ordenado buscas em Machu Picchu e outros sítios arqueológicos da região, em busca de tesouros. Apesar da pesquisa ainda não ter confirmado essa teoria, no entanto, sabe-se que no ano de 1880 o explorador francês Charles Wiener (1854-1919) relatou ter avistado ruínas de uma cidade sobre o monte Machu Picchu, mas não foi até ali devido ao difícil acesso. 

Posteriormente surgiram relatos de aventureiros e alpinistas peruanos que escalaram o Monte Machu Picchu, atestando a existência de ruínas ali. No entanto, somente em 1911 o explorador estadunidense Hiram Bingham III (1875-1965) em expedição no Peru, estava pesquisando as últimas cidades dos incas, como Vilcabamba, quando se deparou com relatos sobre as ruínas de Machu Picchu, as quais já eram visitadas desde pelo menos o final do XIX, inclusive o agricultor Agustín Lizárraga (?-1912) havia visitado a cidade, incluindo uma expedição informal com amigos em 1902, em busca de terras para plantio (deve-se lembrar que havia fazendas em Machu Picchu). 

Bingham III sabendo da expedição daqueles agricultores peruanos, decidiu levar sua equipe e fazer o mesmo trajeto, tomando para si a fama como descobridor de Machu Picchu, algo que ele noticiou em 1911. Meses depois ele ganhou patrocínio da Universidade de Yale e do National Geographic Society e retornou ao Peru em 1912 para iniciar as escavações na cidade e recolhimento de artefatos. Ele permaneceu até 1915 realizando várias expedições à cidade e outras localidades peruanas, inclusive foi mais tarde acusado de contrabandear artefatos de forma ilegal. 

Machu Picchu em fotografia tirada por Harim Bingham III em 1912. 

Considerações finais

Gradativamente Machu Picchu foi ficando famosa, sendo noticiada como a "cidade perdida dos Incas" ou a "cidade secreta". Em 1913 um importante artigo da Revista National Geographic popularizou a "descoberta" de Harim Bingham III, e com isso, nas décadas seguintes outras expedições foram sendo feitas à antiga cidade. Até o final dos anos 1970 vários estudos foram realizados na cidade. 

Em 1981 a região se tornou Zona de Proteção Ecológica, em 1983 a UNESCO a inseriu na Lista de Patrimônio Mundial da Humanidade. Na década de 1990 a cidade se tornou atração turística, sendo aberta a visitação regularmente, tendo nos anos seguintes construídos uma estrutura com ferrovia, estradas e hotéis para facilitar o acesso a cidade. Desde então, Machu Picchu ainda continua a ser uma das mais famosas atrações turísticas do Peru e do mundo.

Referências bibliográficas: 

HALL, Amy Cox. Framing a lost city: Science, photography, and the making of Machu Picchu. Austin, University of Texas Press, 2017. 

MACHU Picchu: canto de piedra. Miraflores, Wust Ediciones, 2010. 

MANN, Elizabeth. Machu Picchu. London, Mikaya Press, 2000.