Pesquisar neste blog

Comunicado

Comunico a todos que tiverem interesse de compartilhar meus artigos, textos, ensaios, monografias, etc., por favor, coloquem as devidas referências e a fonte de origem do material usado. Caso contrário, você estará cometendo plágio ou uso não autorizado de produção científica, o que consiste em crime de acordo com a Lei 9.610/98.

Desde já deixo esse alerta, pois embora o meu blog seja de acesso livre e gratuito, o material aqui postado pode ser compartilhado, copiado, impresso, etc., mas desde que seja devidamente dentro da lei.

Atenciosamente
Leandro Vilar

domingo, 16 de outubro de 2022

As torres do silêncio

Uma antiga tradição fúnebre que está chegando ao fim consiste nas estranhas torres do silêncio, localidades construídas pelos praticantes do Zoroastrismo, uma das religiões monoteístas mais antigas conhecidas, a qual preconizava que os mortos deveriam ser depositados nessas torres. O presente artigo apresenta os aspectos religiosos por trás dessa estranha prática e os problemas que ela gerou e hoje como os adeptos dessa religião encaram essa mudança. 

Introdução

O Zoroastrismo, ou Masdeísmo ou Parsismo é uma religião monoteísta de caráter profético, messiânico, revelado e soteriológico, surgida no que hoje é o território do Irã, entre os séculos VIII a.C e VI a.C, sendo atribuído ao profeta Zaratustra (ou Zoroastro na versão grega de seu nome), a origem dessa religião. No caso, suas origens são incertas, pois não se sabe se Zaratustra realmente existiu e quando ele teria vivido, já que os livros zoroastrianos datam de séculos após ele, além de existirem várias lendas sobre sua vida e façanhas.

Não obstante, Zaratustra possui características similares as vistas em Jesus Cristo, como ser oriundo de uma família pobre, ser um escolhido de um deus, possuir o dom da profecia e de poder realizar milagres, além de ter sido incumbido de pregar a palavra de sua divindade. Neste caso, Zaratustra aos 30 anos vivenciou revelações dadas por Aura-Masda, o Senhor da Luz, uma das divindades cultuadas entre os antigos iranianos, mas na religão de Zaratustra, se tornou o deus supremo. (FYRE, 1999). 

“Em resumo, o ponto de partida da predicação de Zaratustra é a revelação da onipotência, da santidade e da bondade de Aúra-Masda. O Profeta recebe-a diretamente do Senhor, mas essa revelação não cria um monoteísmo. O que Zaratustra proclama, oferecendo-a como modelo aos seus adeptos, é a escolha de Deus e das outras Entidades divinas. Ao escolher Aúra-Masda, o masdeísta escolhe o bem contra o mal, a verdadeira religião contra aquela dos daêvas. (ELIADE, 1983, p. 151-152).

Por intermédio de Aura-Masda e seus Espíritos Iluminados (Amesha Spenta), Zaratustra foi instruído na revelação do deus da luz e assim passou o restante da sua vida em pregação para converter seguidores, mesmo que isso tenha significado ganhar inimizades, sendo considerado louco e traidor da fé dos antigos deuses. 

A doutrina zoroastriana foi sendo desenvolvida com o tempo, mas segundo os relatos sobre a missão do profeta, ele naquele tempo abominou o sacrifício de animais e humanos, a idolatria, o animismo, a feitiçaria, a adivinhação, o politeísmo etc. Ele passou a ditar regras morais, a pregar sobre a doutrina do pecado e da impureza, a sacralidade do fogo, o cultivo das virtudes, a ameaça das Forças do Mal, o Inferno, a Salvação, o Juízo Final etc. 

"Os deveres do fiel (ashavan) são o culto de Ahura Mazdah e dos outros bons espíritos, a manutenção do fogo sagrado e a veneração dos mortos. A mais apreciada das virtudes pessoais é a retidão. O Zoroastriano é obrigado a guardar grande pureza: não somente se deve abster do adultério, da violação e dos restantes atos contra a natureza, mas está sujeito a múltiplas observâncias, por vezes bizarras, relativas às relações sexuais e ao contato com os seres e objetos impuros, especialmente cadáveres. São, igualmente, recomendadas e praticadas a caridade para com os pobres, a hospitalidade para com os estranhos. Como virtude social, figura, no primeiro plano, o trabalho da terra. É falta cortar uma árvore. O boi e o cão são objeto de maior apreço". (HUBY, 1956, p. 385). 

No quesito funerário, toda uma série de práticas e ritos foram desenvolvidos para estabelecer as fases do luto, o trato dado ao cadáver e seu despacho. Após a morte da pessoa iniciava-se as preces para que sua alma seguisse o caminho certo, além de se rezar para manter espíritos malignos longe. Enquanto as orações são realizadas, os familiares, parentes, amigos e autoridades são notificados. Em comunidades mais antigas, sacerdotes eram convocados até o local para fazer preces também. Depois o corpo era conduzido para uma funerária, para se realizar o velório. O falecido era mantido coberto por uma mortalha, estando depositado num caixão ou maca feita de metal. Terminado o velório, o corpo era encaminhado para a lavagem. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Todavia, devido a grande preocupação do Zoroastrismo com a questão da pureza corporal e espiritual, cadáveres eram considerados algo bastante impuro e determinava práticas específicas para sua recolha e destinação. E para isso surgiram as torres do silêncio, nome popular dado a localidades para se depositar os mortos, sendo um local silencioso devido a ausência dos vivos ali, além de que as pessoas que ali vão, devem ir em silêncio como sinal de respeito. 

A torre do silêncio

Na religião zoroastriana a terra, o fogo e a água são considerados elementos sagrados a ponto de que existem práticas que são consideradas pecaminosas por macularem esses elementos. Sendo assim, há determinadas atividades, objetos e seres que não podem ser enterrados, queimados ou jogados na água, pois irão profanar aqueles elementos e consistem em pecado fazer isso (ou pelo menos consistiam, pois atualmente determinadas doutrinas foram alteradas). Nesse quesito, os cadáveres estavam entre essas proibições.

A torre do silêncio de Yazd, no Irã. O local está deixando de ser utilizado devido a abolição dessa prática. 

Desde os tempos antigos foi estabelecido a condição de que o corpo morto era algo impuro, pois a alma que é sagrada, deixou de habitá-lo, então o corpo se tornava uma carcaça vazia. Por ele ser impuro, não deveria ser enterrado e nem cremado, pois contaminaria a terra e o fogo. Tampouco poderia ser jogado dentro da água. Aqui surgiu um dilema: como se livrar dos mortos? Isso inclui os humanos e animais. 

A solução foi a criação de lugares para se despejar os corpos e deixá-los serem devorados pelos carniceiros. Tais lugares foram chamados de dakhma (torre do silêncio), as quais eram erguidas distante das cidades e vilas, normalmente em lugares altos para facilitar a chegada dos abutres (os principais carniceiros na região). As torres são normalmente circulares e não são tão altas. Elas são abertas, permitindo que os abutres pudessem entrar para se alimentar dos cadáveres e carcaças. 

Dependendo da localidade, a torre pode ter três níveis, nos quais se colocava os corpos dos homens, das mulheres e das crianças de ambos os sexos. Em caso da torre não ter esses níveis, os corpos dos homens e mulheres eram separados um dos outros, assim como das crianças e idosos. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Para realizar essa atividade considerada impura, existem alguns trabalhadores que exercem atividades específicas como os nasa salars (transportadores de cadáveres) e os pakshus (limpadores de cadáveres). Os primeiros são encarregados de recolher o morto de onde ele faleceu e depois executar seu translado para onde deva ir, para finalmente chegar a uma torre do silêncio. Já os pakshus são os responsáveis por limpar os corpos, removendo seus trajes e pertences, lavando-os e cobrindo-os com uma mortalha para entregá-los aos nasa salars. No entanto, em localidades onde tais profissionais não existiam, cabia a família providenciar essas práticas, tendo o cuidado de se usar luvas e batas para não tocar o corpo falecido sem proteção, pois isso acarretaria em impureza, requisitando da pessoa ter que se lavar para se purificar. (CHOKSY, 2005, p. 10001). 

Entretanto, a prática das torres do silêncio nem sempre foi unânime, mesmo na Antiguidade. Condição essa que nos impérios persas, os masdeístas como eram chamados, eles eram enterrados, sepultados até cremados, não necessariamente jogados nas torres do silêncio. Essa condição se manteve ao longo dos séculos, fato esse que atualmente muitos zoroastrianos abandonaram as torres do silêncio, sendo esse um rito apenas praticado por algumas comunidades no Irã, Paquistão e na Índia. 

Abutres comendo uma carcaça na torre do silêncio em Mumbai, Índia. 

A abolição das torres do silêncio (dakhma) começou ainda no século XIX, em que países como Sri Lanka, Afeganistão e áreas do Irã, Paquistão e Índia proibiram esse rito, substituindo pelo sepultamento em esquifes de cimento, de forma que os corpos não toquem a terra, para não contamina-la. Essa modalidade de sepultamento também é aplicada em outros países. Dessa forma, as torres do silêncio, as quais poderiam muito bem serem chamadas de "torres dos mortos", se tornaram ruínas de uma prática antiga e considerada estranha e bizarra em outras culturas. 

Referências bibliográficas: 

CHOSKY, Jamsheed K. Zoroastrianism. In: JONES, Lindsay (ed.). Encyclopedia of Religion, vol. 14. 2a ed. Hills, Thomson Gale, 2005, p. 9988-10008. 

ELIADE, Mircea. História das crenças e das ideias religiosas: da Idade da Pedra aos Mistérios de Elêusis, tomo I: Dos Vedas a Dioniso, vol. 2. Tradução Roberto Cortes de Lacerda. 2a ed, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.

FRYE, Richard N. Zaratustra. In: BRUNNER-TRAUT, Emma. Os fundadores das grandes religiões. Tradução de Ivo Martinazzo. Petrópolis, Vozes, 1999. 

HUBY, José. CHRISTVS: história das religiões. vol. II. Tradução e prefácio de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Edição Saraiva, 1956. 2v.

Link relacionado: 

Ásia: berço de religiões: as religiões iranianas

Nenhum comentário: