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Leandro Vilar

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

A Torre de Babel

No livro de Gênesis existe uma breve menção a uma alta torre situada na Ásia, a qual consistiu numa afronta a Deus, por conta disso, ele fez que a humanidade se desentendesse, passando a falar línguas distintas. Embora essa narrativa como veremos a seguir, seja diferente do que normalmente pensamos, a ponto de ela ser mais tratada como um mito do que um fato, como alguns cristãos defendem. Vale salientar que apesar de a Bíblia ser um livro sagrado, ela contém alegorias e mitos, os quais possuem um papel de instrução, pois era a forma pela qual os povos antigos faziam isso, já que a História e a Filosofia não eram saberes regulares. Sendo assim, esta postagem procurou tratar de alguns problemas e dúvidas relativos ao mito da Torre de Babel.

A Torre de Babel por Athanasius Kircher, 1619. 

O relato bíblico (Gênesis 11, 1-9)

Tradução presente na Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa: 

1. Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. 

2. Como os homens que emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Sennar, e aí se estabeleceram;

3. Disseram um ao outro "Vinde! Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo!" O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa.

4. Disseram: "Vinde! construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra".

5. Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído.

6. E Iahweh disse: "Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles. 

7. Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros.

8. Iahweh os dispersou daí por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade.

9. Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi aí que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi aí que ele os dispersou sobre toda a face da terra. 

Descrevendo a Torre em Babel

O mito da torre foi sendo nos séculos seguintes sendo ampliado e até recebendo acréscimos. Como visto na citação acima, a narrativa é bem curta. Apenas fala que um grupo de pessoas se mudou para o vale de Sennar ou Sinear, uma região incerta situada no sul da Mesopotâmia. Ali, essas pessoas construíram uma cidade e a torre, somente no final da narrativa é dito que a cidade ficou conhecida como Babel, mais tarde é informado se tratar da cidade da Babilônia

Não obstante, Deus ficou maravilhado com a façanha daqueles habitantes, e disse que aquilo era a prova que a humanidade poderia realizar grandes feitos. No entanto, diferente do que é dito, o mito não deixa explícito a indignação ou preocupação de Deus, ele somente decidiu confundir aqueles construtores, fazendo-os falar línguas distintas para que assim parassem de construir e se espalhassem pelo mundo. 

Entretanto, o relato não fala que a torre foi destruída como as vezes costumamos ler a respeito. No entanto, a narrativa informa que a torre parou de ser construída, pois sua população foi embora - pelo menos parte dela. Depois disso não temos mais informações sobre a torre: qual seria sua altura? Quando ela foi construída? quanto tempo duraram as obras? Ela foi destruída como? Quem mandou construir ela? Essas perguntas foram até respondidas em outras fontes, mas não na Bíblia. Sobre isso, vejamos o que alguns autores escreveram acerca desse mito. 

Livro dos Jubileus, obra com 50 capítulos, os quais trazem uma versão alternativa de Gênesis, tendo sido escrito por volta de 100 a.C, apresenta mais informações sobre a torre. No capítulo 10, entre os versículos 18 a 28 é informado que a cidade e a torre foram construídas por ordem do rei Reu, filho de Pelege e Lomna, sendo ele neto de Sinnar. Durante seu governo, ao longo de 43 anos, a torre foi construída como forma de que os homens pudessem alcançar o céu. O Livro dos Jubileus fornece o tamanho dessa estrutura, a qual mediria 5.433 côvados e 2 palmos de altura, sua largura seria de 203 tijolos e 13 estádios. Tais valores conotam uma estrutura gigantesca com mais de 2,4 mil metros de altitude e centenas de metros de largura. 

Após fornecer essas informações o relato seguinte é similar ao encontrado em Gênesis, em que Deus desceu do Céu para fazer os homens falarem línguas diferentes e não se entenderem. Por conta dessa confusão de idiomas a região foi chamada de Babel (que nesse caso seria sinônimo de balbúrdia). Em seguida é dito que Deus indignado com a torre enviou um poderoso vendaval que derrubou a torre, a qual ficava localizada entre Assur e a Babilônia. Aqui temos um dado curioso, pois Babel não seria a cidade, mas a região (uma referência ao império babilônico provavelmente). 

A torre de Babel em xilogravura de Gustave Doré, 1868. 

O historiador judeu Flávio Josefo (c. 37-100) em seu livro Antiguidades Hebraicas - também traduzido como História dos Hebreus -, no capítulo 4 escreveu sobre a Torre de Babel. Em sua explanação a torre foi construída pelo rei Ninrode, bisneto de Noé. Em seu governo foi ordenado a construção da tal torre como forma enaltecer a afronta de Ninrode e seu povo perante a Deus. Nesse relato, Josefo deixou claramente escrito que a torre realmente foi erigida para provocar Deus, por conta disso ele causou a confusão das línguas como uma punição, fazendo assim as pessoas se espalharem. No entanto, o relato de Flávio Josefo não informa o tamanho da torre e nem quanto tempo ela demorou para ser construída. Ele também não diz como ela foi destruída, mas que ela ficava situada na Babilônia. 

Outra obra que traz informações sobre a torre está presente no Apocalipse Grego de Baruque, um dos vários apocalipses apócrifos. Embora canonicamente as igrejas cristãs aceitem apenas o Apocalipse de João de Patmos, o qual consta como o último livro da Bíblia, entretanto, no Cristianismo Primitivo mais de setenta apocalipses foram escritos, alguns até foram reconhecidos pela Igreja Católica e a Igreja Copta na época. 

O Apocalipse Grego de Baruque teria sido escrito entre os séculos I e III, sendo atribuído sua autoria a uma profecia tida por Baruque ben Néria, o qual atuou como secretário do profeta Jeremias, durante o século VI a.C, na época do Cativeiro da Babilônia. Baruque teria escrito vários livros, um deles se tornou cânon para os católicos e ortodoxos, mas os demais foram tidos como apócrifos, incluindo as duas versões de seu apocalipse (as quais foram escritas em grego e sírio). Recorri a versão grega por essa fornecer mais detalhes sobre a Torre de Babel.

No relato desse apocalipse é dito que Baruque recebeu um anjo e esse revelou para ele visões sobre os Quatro Céus e outras localidades. Na descrição do Segundo Céu, Baruque ver um grupo de homens e mulheres com cabeças de cães e patas de cervo, espantado com aquilo, ele perguntou ao anjo o que tais pessoas fizeram. O anjo respondeu que aquelas pessoas cometeram o pecado de construir a torre, com 436 côvados de altura, tão alta, que aquelas pessoas chegaram até o Primeiro Céu e tentaram "perfurar" ele. Mas Deus vendo aquilo se enfureceu e fez aquelas pessoas falarem línguas diferentes e as expulsou dali. 

Observa-se que o relato de Baruque é bem curto e pouco informa sobre a torre, nem se quer indica que ela ficasse em Babel, mas fornece sua altura, que em valores atuais seria algo em torno dos 200 metros de altura, um valor até mais realista do que o tamanho da torre descrito no Livro de Jubileus. Vale considerar que a estrutura humana mais alta que existia naquele tempo era a Grande Pirâmide do Egito, com seus 150 metros de altura. Não obstante, o apocalipse de Baruque informa que realmente as pessoas conseguiram chegar ao Céu e usaram uma verruma (tipo de perfuradora) para tentar abrir uma passagem para esse. Aqui temos a descrição de uma ação na qual Deus pega aqueles construtores no flagrante. Todavia, o relato não informa como a torre foi destruída, ou quando ela foi erguida. 

A Torre de Babel por Lucas Van Valckenborch, 1594. 

Na Idade Média alguns relatos sobre a altura da Torre de Babel foram escritos, apresentando-se demasiadamente exagerados, pois seus valores descreviam a torre se parecendo mais como uma montanha, do que uma torre propriamente falando. No entanto, os exemplos aqui expostos são suficientes para mostrar como esse mito foi ganhando contornos e ajudando a criar uma concepção popular sobre ele. Por conta disso, não é incomum ouvir pessoas misturarem informações desses relatos e de outros para falar quem construiu a torre, quando isso aconteceu e como ela foi destruída, lembrando que tais informações não constam no relato canônico. 

Fontes para o mito da Torre de Babel

Mas se uma gigantesca torre nunca existiu, de onde poderia ter surgido essa narrativa? Atualmente os historiadores trabalham a hipótese principal de que o zigurate de Marduk, que havia na Babilônia, teria inspirado esse mito. É preciso salientar que elementos das mitologias mesopotâmicas influenciaram mitos bíblicos, então não seria improvável que ambas as hipóteses realmente tenham um grau de veracidade. Sendo assim, começarei pela questão arqueológica. 

Zigurates eram templos piramidais escalonados (ou seja, erguidos com andares, não em forma de uma pirâmide perfeita), os quais já existiam antes de 3000 a.C, tendo sido estruturas criadas pelos sumérios, um dos povos mais desenvolvidos daquele tempo. Os zigurates eram feitos de tijolos, assim como, a torre de Babel, nota-se aqui uma grande semelhança, já que em todos os relatos esse material sempre e o mesmo, pois, em momento algum é dito que pedras foram usadas para a construção da torre. 

Os zigurates além da função religiosa como templo, também exerciam uma função político-administrativa, pois representavam a autoridade monárquica e do clero, em que na sociedade sumeriana, mas também acadiana e babilônica, os sacerdotes eram também funcionários públicos. A prática de erguer zigurates perdurou ao longo de mais de dois mil anos, havendo zigurates de distintos tamanhos, mas eles não eram tão altos como normalmente se pensa, a maioria ficava entre 30 e 50 metros de altura. Entretanto, o zigurate de Marduk, construído na Babilônia foi um dos mais altos. Sua altura foi estimada em 91 metros conforme antigas análises de documentos encontrados a respeito; mas hoje acredita-se que ele possa ter tido entre 50 e 60 metros de altura. 

Representação de como teria sido o zigurate Etemenanqui da Babilônia.

Chamado de Etemenanqui (templo da fundação do Céu e da Terra), ele foi dedicado a Marduk, o deus padroeiro da Babilônia, importante divindade da religião e mitologia dos babilônios, embora fosse anteriormente cultuado pelos acadianos. Não se sabe em que época esse zigurate foi construído, havendo várias sugestões que remonta do século XIV a.C até o século IX a.C. Todavia, a estrutura sofreu com os ataques feitos a cidade, fato esse, que os historiadores e arqueólogos apontam a possibilidade de o zigurate possa ter sido parcialmente destruído no século VII a.C, durante a invasão assíria da Babilônia, em que o rei Senaqueribe relatou o sucesso de sua campanha, ao dizer que o zigurate dos babilônios foi destruído por sua ordem. 

Entretanto, o templo provavelmente foi reconstruído nos séculos seguintes, pois os reis Nabopolasar (r. 626-605 a.C) e seu filho Nabucodonosor II (r. 604-562 a.C) empreenderam grandes reformas na cidade, reconstruindo muita coisa destruída desde a invasão dos assírios, além de promover novas obras. Inclusive os gregos creditavam a Nabucodonosor II a criação dos famosos Jardins Suspensos da Babilônia. De qualquer forma, o zigurate deve ter sido reconstruído, embora não se saiba que tamanho ele passou a ter. 

Além disso, durante o Cativeiro da Babilônia (586-539 a.C), o zigurate existia, fato esse que um século depois, o historiador grego Heródoto de Halicarnasso relatou no século V a.C, que essa torre teria oito andares e seria quadrangular, sendo a mais alta estrutura da cidade. Embora Heródoto nunca tenha viajado à Babilônia, mas ele chegou a viajar à Ásia Menor e o Egito, tendo obtido informações sobre essa localidade. 

Sendo assim, o zigurate Etemenanqui, ainda hoje, é um forte candidato para ter inspirado o mito da Torre de Babel pelos seguintes motivos: ele era uma torre feita de tijolos, era a mais alta construção daquela cidade; a Babilônia era uma cidade cosmopolita, e uma das maiores cidades do mundo, na época, na qual se falava muitas línguas; o zigurate era um templo dedicado a Marduk, divindade vista como um falso deus pelos hebreus; além de que os hebreus desenvolveram toda uma antipatia com os babilônios devido a invasão de seu país e a época do cativeiro; fato esse, que a Babilônia é uma cidade malvista na Bíblia, em várias passagens. 

NOTA: No Corão a Torre de Babel não é citada. Embora a cidade de Babel (Babilônia) seja mencionada algumas vezes. 

NOTA 2: O mito de Enmerkar e o Senhor de Aratta fala da construção de um zigurate e da punição do deus Enki, fazendo a humanidade falar línguas distintas. Apesar dessas semelhanças com a narrativa bíblica, esse mito é bem diferente, pois Enmerkar construiria a torre como uma oferenda a deusa Ishtar. Mas a punição de Enki se deveu a outros motivos. 

Fontes:

BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002. 

LIVRO dos Jubileus. Tradução de L. F. S. Prado. 2012. Disponível em: https://www.autoresespiritasclassicos.com/Evangelhos%20Apocrifos/Apocrifos/1/O%20Livro%20dos%20Jubileus%20(Texto%20Et%C3%ADope%20-%20Completo).pdf

NATALIO, Férnandez Marcos. Apocalipsis griego de Baruc. Introducción, traducción y notas. Sefarad: revista de estudios hebraicos, sefardíes y de Oriente Próximo, a. 50, n. 1, 1986, p. 191-209. 

Referências bibliográficas: 

FARIA, Jacir de Freitas. Gn, 11-9: contramito Torre de Babel ao mito de fundação da Babilônia. Estudos Bíblicos, vol. 30, n. 120, 2013, p. 359-370. 

RYKEN, Leland; WILHOIT, James C; LONGMAN III, Tremper (eds.). Tower of Babel. In: Dictionary of Biblical Imagery. Leicester, InterVarsity Press, 1998, p. 261-265. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Ciro, o Grande: o Príncipe da Pérsia

A Pérsia originalmente era um pequeno reino situado no sul do atual Irã, fazendo fronteira com a Média, a Mesopotâmia, a Pártia e outros territórios. Mas no século VI a.C, um príncipe de vinte e poucos anos, chamado Ciro, iniciou sua ascensão como novo soberano da Pérsia, mas com a diferença de que ele estava determinado a tornar seu país num império. Neste texto contei um pouco da história de Ciro II, o Grande, o qual fundou o primeiro império persa, um dos maiores da sua época. Adianto que pouco se sabe sobre sua vida, governo e de seus antepassados. 

O Reino da Pérsia

Segundo a tradição persa e grega, os antigos persas eram um povo nômade e seminômade, os quais habitavam o sul do Irã, todavia, em algum momento do começo do século VII a.C, um chefe chamado Aquêmenes foi coroado seu primeiro rei, tendo se rebelado contra o domínio dos medos, os habitantes da Média. Nada se conhece sobre esse soberano, e ainda existe a dúvida se ele realmente tenha existido ou foi uma lenda. Seu sucessor foi o rei Teispes (675-640 a.C) de cujo reinado nada se sabe também. (BURGAN, 2009). 

Teispes foi sucedido por seus dois filhos: Ariarâmenes (676-590 a.C) e Ciro I (?-580 a.C). Não se sabe ao certo como era a relação dos dois irmãos e a forma como o reino persa estava dividido sob o governo deles. Entretanto, Ariarâmenes é pouco citado na história da época, havendo mais menções a Ciro I, que se envolveu com guerras em Elam e problemas políticos na Média e na Babilônia, na época do rei Assurbanipal (685-631 a.C). No entanto, praticamente nada se conhece do reinado de Ciro I e seu irmão. (BURGAN, 2009). 

De qualquer forma, Ciro I foi sucedido por seu filho Cambises I (?-559 a.C), que governou como único soberano da Pérsia, já não dividindo mais o trono. Em seu reinado ele procurou manter a diplomacia com os babilônios e os medas, condição essa como escreveu o historiador grego Heródoto de Halicarnasso, Cambises I casou-se com Mandane, filha do rei Astiages da Média, a fim de firmar uma aliança entre os dois reinos, anteriormente inimigos. Segundo Heródoto, esse escreveu que uma profecia tida pela madrasta de Mandane teria previsto que o filho da princesa seria um grande conquistador, subjugando o avô; se essa profecia realmente existiu ou não, ainda assim, ela estava certa, pois o filho de Mandane com Cambises I foi Ciro II. 

O Príncipe da Pérsia

Ciro II nasceu na cidade de Ansã, então capital persa, no entanto, não se sabe exatamente a data de seu nascimento. Ele teria nascido entre as décadas de 590 e 580 a.C., tendo sido o primeiro filho de Cambises I e Mandane, logo, herdeiro direto do trono persa, além de ser também um dos herdeiros do trono medo por parte de sua mãe, embora que na época isso nem fosse cogitado. De qualquer forma, praticamente nada se sabe sobre sua infância e adolescência, o mesmo vale para seus antepassados, pois essas etapas da vida costumavam serem ignoradas pelos antigos historiadores. Embora Xenofonte tenha escrito um livro sobre a vida de Ciro, hoje ele é considerado como sendo ficcional, em que Ciro II foi usado para ilustrar um ensaio filosófico moralista do autor. (WATERS, 2022). 

Como os persas no século VI a.C não tinham o costume de registrar sua história, as informações sobre o governo de seus reis são bastante escassas. O rei Cambises I morreu em 559 a.C de causas desconhecidas, estando entre os quarenta e cinquenta anos, dessa forma, Ciro II subiu ao trono entre seus vinte e trinta anos. Não se sabe como foram seus primeiros anos de governo, entretanto, em sua época a Pérsia ainda era um reino vassalo da Média, tendo que pagar tributos para os medos. Ciro II teria tentado convencer seu avô de mudar isso, mas esse se recusou, fato esse que uma rebelião contra os medos se iniciou anos depois.

Heródoto aponta que o conflito teria durado em torno de três anos, terminando com a vitória persa na Batalha de Pasárgada em 550 a.C, conflito o qual Ciro II teve o apoio do general medo Hárpago, que traiu seu rei. Inclusive Hárpago tomou a capital medo, Ecbatana, ordenando a prisão de Astiages, o qual compareceu ao seu neto Ciro II. O monarca persa poupou a vida do avô, mas declarou-se novo soberano da Média, fundido aquele reino à Pérsia, isso em 549 a.C. (WATERS, 2022). 

Tapeçaria do século XVIII mostrando o rei Astiages da Média preso diante de seu neto Ciro II (ao centro). 

Dessa forma, Ciro II por volta de seus quarenta anos, era o senhor de dois reinos. Ele já não era mais um príncipe vassalo, agora era um rei independente que subjugou seus rivais e tomou para si um reino que também lhe era de direito, embora ele não fosse o mais próximo na linha de sucessão. No entanto, sua ambição não estava próxima ao fim, mas apenas começando. Tendo obtido controle da Média, Ciro II decidiu expandir seus domínios. 

Fundando um império

A Média era um reino mais vasto do que a Pérsia, nem por isso necessariamente mais poderoso, pois os persas conseguiram conquistá-lo em três anos de conflito. Entretanto, Ciro II quando herdou o novo reino, seus domínios se estendiam para dentro do território Parto, adentrando o que hoje é o Turcomenistão e o Afeganistão, além de se estender no oeste através da Assíria, Armênia, chegando a Lídia (hoje na Turquia). Apesar da derrota do rei Astiages e a proclamação de um novo soberano, alguns nobres se recusaram a reconhecer Ciro II como monarca, iniciando resistência. (BURGAN, 2009). 

Uma das resistências mais notáveis ocorreu com os lídios, liderados pelo rei Creso (?-546 a.C), que formou uma aliança com os espartanos, babilônios e egípcios para confrontarem os persas. A aliança conseguiu manter os persas ocupados por alguns anos, pois os exércitos de Ciro conquistaram a Lídia na década de 540, embora que anteriormente a data cogitada fosse 547 a.C, hoje ela é considerada não como derradeira, mas marcando apenas a derrota do rei Creso, o qual apesar de morto, a resistência lídia não terminou. Além disso, vale mencionar que os lídios governavam sobre antigas colônias gregas, por conta disso, os gregos passaram a ter conhecimento cada vez mais regular sobre os persas, os considerando seus inimigos desde então, rivalidade que aumentaria nos séculos seguintes. (WATERS, 2022). 

Com a vitória sobre os lídios e seus aliados gregos Ciro II voltou a atenção para um de seus vizinhos, o Reino da Babilônia. No século VI a.C a Babilônia já não era um reino próspero e poderoso como outrora. Após a morte de Nabucodonosor II em 562 a.C, o reino entrou numa crise de sucessão em que os reis governaram por poucos anos, sendo traídos ou assassinados, o que fragilizou ordem política até que Nabonido foi coroado em 556 a.C, governando com o apoio de seu filho Belsazar. Embora pai e filho tenham conseguido estabilizar a crise dinástica que assolou a Babilônia, o reino perdeu suas forças e estabilidade nesse tempo, condição essa que Ciro II sabia disso e decidiu conquistar os babilônios. (BURGAN, 2009). 

Mapa do Reino da Babilônia ou Império Neobabilônico no século VI a.C. 

Se desconhece os detalhes das campanhas militares do governo de Ciro, o Grande, apenas há menções sobre algumas batalhas e conquistas, todavia, os relatos históricos do período apontam que não houve grandes problemas para subjugar os babilônios. O exército persa era o mais poderoso do Oriente Médio naquele tempo, vindo de sucessivas vitórias na Lídia, Armênia e Pártia, sua fama de implacável como os autores gregos se referiam a ele, havia se espalhado da Pérsia à Grécia e o Egito. Alguns governadores temiam enfrentar os persas, optando em negociar com eles, pois Ciro era conhecido por ser um monarca benevolente com quem se rendia. 

As Crônicas de Nabonido, registros históricos do monarca babilônio, relataram que os persas obtiveram duas grandes vitórias importantes: a Batalha de Susa, ocorrida em data incerta no ano de 540 a.C, na qual os persas conquistaram a capital do Elam, importante território fronteiriço entre a Pérsia e a Babilônia. Dali o exército persa atravessou aquelas terras rumo ao coração dos domínios babilônicos indo travar a Batalha de Ópis, uma cidade situada ao norte da Babilônia. O conflito ocorreu por volta de 12 de outubro de 539 a.C. Com essa vitória o exército persa marchou rumo a capital. Os historiadores cogitam que Ciro II tenha negociado a rendição com os generais babilônios, pois eles não apresentaram resistência. (DANDO-COLLINS, 2020). 

No dia 29 de outubro de 539 a.C, a cidade da Babilônia estava cercada pelos exércitos persas e o rei Nabonido foi forçado a declarar rendição, já que recusava aceitar a derrota. Ele foi preso junto com seu filho e familiares. Com isso, Ciro II havia subjugado mais um grande reino asiático. Como primeiras medidas tomadas, o monarca persa prometeu que manteria a paz, não iria saquear a cidade, retomaria as obras públicas, manteria os funcionários em seus cargos, desde que jurassem lealdade a ele; Ciro também mandou realizar cerimônias religiosas, principalmente a Marduk, o deus padroeiro da cidade. Ele também declarou seu filho Cambises II como governante da Babilônia e seu sucessor oficial. Essas medidas foram escritas num cilindro de argila, que felizmente foi preservado nesses milênios. 

O Cilindro de Ciro, o Grande, o qual registra suas ordens como novo rei da Babilônia. 

A conquista da Babilônia é mencionada em alguns livros bíblicos do Antigo Testamento: Isaías, Esdras, Daniel e Segunda Crônica dos Reis, citam Ciro, o Grande e celebram sua conquista, pois os hebreus que tinham sido escravizados pelos babilônios décadas antes, puderam ser libertados. Na Bíblia, embora Ciro fosse tido como um monarca pagão e conquistador, ele foi reconhecido como benevolente por colocar fim ao Cativeiro da Babilônia, embora que a Síria e a Judeia fizessem parte de seu império, agora ampliado com a anexação do reino babilônico. 

Após subjugar a Babilônia, sua última grande conquista, os historiadores gregos, babilônios e persas pouco falam do governo de Ciro nos anos seguintes, mas em dado momento ele decidiu combater os Masságetas liderados pela rainha Tômiris, que viviam nas fronteiras nortes do império no que hoje seriam o Cazaquistão e o UzbequistãoNão se sabe quando essa campanha teve início, mas Ciro mesmo idoso, tendo seus sessenta e poucos anos, viajou para o campo de batalha. Segundo Heródoto, Ciro II foi morto em batalha e sua cabeça foi cortada; a rainha Tômiris ordenou que ela fosse jogada dentro de um recipiente como sangue; já Xenofonte disse que o rei morreu dormindo. A causa da morte de Ciro II não é conclusiva, pois outros autores citaram outros fatores, no entanto, foram unânimes de que ele faleceu em 530 a.C. (DANDO-COLLINS, 2020). 

A tumba de Ciro, em Pasargada. Embora tenha sido um poderoso monarca, ele pediu que sua tumba fosse simples. 

Considerações finais

Ciro II da Pérsia ganhou a alcunha de o grande por conta de sua política expansionista e os êxitos obtidos por suas campanhas militares, algumas nas quais ele participou no comando. No entanto, suas conquistas militares se resumem em três grandes momentos: a conquista da Média, da Lídia e da Babilônia, condição essa que por volta de 538 a.C, o monarca mandou escrever a seguinte mensagem: 

"Eu sou Ciro, o Rei do Mundo, o Grande Rei, o Poderoso Rei, Rei da Babilônia, Rei da Suméria e da Acádia, Rei dos quatro cantos do mundo, Filho de Cambises, Grande Rei, Rei de Ansã, Descendente de Teispes, Grande Rei, Rei de Ansã, A Semente Perpétua da Realeza, cujo reinado Bel e Nabu Amam". (DANDO-COLLINS, 2020). 

Nesse discurso soberbo, Ciro exaltou sua conquista sobre o reino babilônico, assim como, enalteceu seu império, seu pai e avô, além de fazer uma homenagem aos deuses babilônicos Bel (epíteto para Marduk) e Nabu (deus da escrita). Seu império era o mais extenso no mundo na época, nesse sentido ele havia se tornado um príncipe, aqui no sentido de "o primeiro" imperador da Pérsia. 

O império persa sob o domínio de Ciro, o Grande (559-530 a.C). 

Com a sua morte, o trono foi devidamente passado para Cambises II, o qual em seu reinado conquistou o Egito, a Núbia e a Cirenaica. Mas diferente de seu pai que era conhecido pela complacência e a benevolência, Cambises era mais rude e temperamental, a ponto de Heródoto se referir a ele como um tirano. No entanto, Cambises como seu pai, lhe herdou o gosto pela conquista militar, tendo tentado expandir seus domínios na África, o que foi seu erro e lhe custou a vida. Após sua morte, o trono foi tomado por um impostor que se disfarçou como irmão de Cambises II, Esmérdis.

O impostor chamado Gaumata ou Bardia governou por alguns meses quando foi descoberto e executado. Como Cambises II não tinha deixado herdeiros homens, seu primo Dario assumiu o governo, tornando-se Dario I, o Grande, um governante ao nível de Ciro II, o qual tentou conquistar a Grécia sem sucesso, mas essa é outra história. 

NOTA: Segundo Heródoto, quando Astiages soube da profecia dada por sua esposa, de que seu neto nascido de Mandane iria destroná-lo, teria mandado matar o bebê, mas o general Hárpago se recusou a cumprir a ordem e trocou a criança. Todavia, essa história é tida como uma lenda, algo que encontra respaldo na própria mitologia grega, em que personagens como Perseu, Édipo e Páris foram destinados a trazer a ruína ao reino, e, por isso eles foram abandonados para morrer. 

NOTA 2: Ciro II foi casado com Cassandane, referido por ele como o grande amor de sua vida. Dessa união eles tiveram Cambises II, Esmérdis, Atossa e Roxana. No caso, Atossa acabou casando-se com Dario, o Grande, a fim de reforçar a aliança dele como sucessor oficial, condição essa que o rei Xerxes I, era neto de Ciro II. 

Referências bibliográficas: 

BURGAN, Michael. Empires of Ancient Persia. New York, Chelsea House, 2009. 

DANDO-COLLINS, Stephen. Cyrus the Great: conqueror, liberator, anointed one. Nashville, Turner Publishing Company, 2020. 

WATERS, Matt. The Life of Cyrus the Great: King of the World. Oxford, Oxford University Press, 2022. 

domingo, 6 de novembro de 2022

Dragonologia: o estudo dos dragões em bestiários medievais

A Dragonologia consiste numa pseudociência fictícia, presente em obras de literatura e jogos, a qual tem como intuito estudar os dragões em seus aspectos biológicos e mágicos. No entanto, na Europa medieval, a dragonologia foi algo real, ou quase isso, pois os bestiários, livros que estudavam animais reais e fantásticos, dedicavam páginas ou capítulos para se estudar essas feras reptilianas que cuspiriam veneno ou fogo. O presente texto com base nos bestiários europeus comentou a respeito desses animais fantásticos.

Quatro diferentes representações de dragões em bestiários do século XIII. 

Introdução: a literatura dos bestiários

O bestiário foi um gênero literário medieval surgido na Europa, influenciado por livros da Antiguidade como o Da História dos Animais de Aristóteles, História Natural de Plínio, o Velho, o Fisiólogo de autoria desconhecida, entre outras obras. Os bestiários se popularizaram entre os séculos XII ao XIV, sendo livros ricamente ilustrados, cobiçados por alguns colecionadores, por serem obras caras. Eram livros que versavam sobre temas antigos, baseados nas pesquisas de estudiosos clássicos, ou em pesquisadores desconhecidos. Muitos bestiários foram produzidos na Inglaterra e França, principais países desse gênero literário. 

Os bestiários elencavam uma série de animais reais e fantásticos, mas não abordavam necessariamente monstros. A maioria das criaturas retratadas pertenciam a fauna da Europa, norte da África, Oriente Médio e Índia. As informações sobre animais reais na maior parte das vezes eram imprecisas, advindas de lendas, mitos e boatos, mas eram tidas como corretas naquelas obras. Por sua vez, dentre os animais fantásticos tínhamos unicórnios, grifos, fênices, basiliscos, e evidentemente, os dragões, que estavam entre os mais populares. 

“O Bestiário organiza-se em torno de pequenas narrativas que descrevem várias espécies animais, com propósitos morais e didácticos. Neste sentido, cada uma dessas narrativas é composta por duas partes distintas: uma parte descritiva de sentido literal (a descrição, proprietas ou naturas) e a sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-alegórico (também designada como moralização, moralitas ou figuras)”. (VARANDAS, 2006, p. 1). 

"O desenvolvimento da produção de bestiários é coincidente com o desenvolvimento e crescimento das bibliotecas monásticas. Por estas razões, não podemos atribuir a estes manuscritos um autor particular, pois apresentam-se como fruto de várias mãos que, ao longo dos anos, os foram copiando e, ao mesmo tempo, traduzindo e ampliando. De entre as várias ordens religiosas que apadrinharam os bestiários contam-se os monges beneditinos e os cistercienses, embora também os franciscanos e os monges agostinhos os tenham desenvolvido". (VARANDAS, 2006, p. 19). 

O conceito de dragão 

Em geral o conceito de dragão que normalmente utilizamos é de um monstro reptiliano de grande porte, podendo ser até mesmo gigantesco, o qual voa e cospe fogo. Todavia, existem diferentes tipos de dragões, além de que o chamado dragão oriental (encontrado em países como China, Japão, Coreias, Tailândia, Camboja, Vietnã etc.) anteceda a noção de dragão europeu. Entretanto, o próprio dragão oriental possui aspectos físicos, mágicos e funções distintas dos dragões europeus. 

Como o objeto de estudo dessa análise são os dragões europeus, não vem ao caso explanar sobre os dragões asiáticos. Logo, retomando ao caso europeu, a palavra dragão advém do grego antigo drákon, palavra usada para se referir a monstros ofídicos de grande porte. Sendo assim, a origem da palavra drákon referia-se a grandes serpentes, as quais os antigos gregos diziam viver em partes da África e da Índia. De fato, realmente existem grandes cobras nessas localidades, diferente da Europa, em que a maioria das espécies ofídicas mal chegam aos dois metros de comprimento. (OGDEN, 2013). 

No entanto, o drákon dos mitos gregos não seria uma simples cobra grande, mas um monstro propriamente falando, como a serpente Píton, a Hidra de Lerna e Ládon. Esses três exemplos presentes da mitologia grega são dragões no sentido da palavra drákon. Vale ressaltar que a Hidra e Ládon eram dragões com várias cabeças, mas eles não cuspiriam fogo e nem voariam. Esses dois elementos estão ausentes nesses três mitos, sendo agregados por outros povos europeus com o tempo. (OGDEN, 2013). 

Por sua vez, os romanos traduziram a palavra drákon para draco, que originou várias versões dessa palavra nos idiomas europeus como dragão, dragon, dragón, drake, drache, drac, drago, drage, draak etc. 

Com o passar do tempo a noção de dragão foi se espalhando pela Europa e ganhando novas características, surgindo os dragões alados e cuspidores de fogo. Embora tais características sejam marcantes, elas não eram únicas. Os bestiários forneciam diferentes informações sobre essas características tidas como reais, algo que veremos no próximo tópico. 

Os dragões nos bestiários europeus

Como vimos um breve resumo histórico sobre os bestiários, passemos direto ao tema dessa análise. Os dragões nos bestiários eram representados em diferentes cores, não necessariamente sendo verdes e pretos, alguns eram vermelhos, azuis, amarelos, marrons, cinza; alguns poderiam ter mais de uma cor, e havia casos de dragões que não teriam escamas, mas conteriam pelos e penas (embora fosse um padrão mais raro de se ver). Além disso, dragões poderiam correr, pular, voar e nadar. O que revela como essa criatura estava inserida nos ambientes terrestre, aquático e celeste.

Os dragões poderiam cuspir veneno, soltar fogo pela boca, fumaça pelas narinas; alguns também exalavam um odor tão fedorento que gerava náuseas. A ideia de dragões soltando gelo e raio é algo oriundo da literatura pós-medievo.  

Michel Pastoureau (2012) também comenta que nos bestiários em geral as descrições dos dragões eram baseadas num padrão comum, repetidas por vários autores. Os quais salientavam serem criaturas que poderiam cuspir veneno ou fogo, teriam uma longa e forte cauda, que poderiam usar como chicote; conteriam presas e garras bastante afiadas; seus olhos eram negros ou vermelhos, possuindo um olhar intimidador a ponto de causar medo ou paralisia. Eles viveriam em cavernas, florestas, montanhas e desertos. 

Essas criaturas também possuíam um tamanho variado, podendo serem pequenas, ter o tamanho de um cavalo, ser grande como um elefante, ou maior do que uma casa. Em geral os bestiários não estipulavam o tamanho dos dragões, ficando a critério das narrativas que abordavam eles, determinar isso. 

Um tipo comum de dragão encontrado nos bestiários e na iconografia medieval europeia era o chamado lindworm, um dragão com corpo de cobra, mas possuindo duas patas, o qual poderia cuspir veneno. 

Um lindworm sob a árvore peridexion, em que pombos a cercam. Essa lendária árvore produziria frutos e flores cujo odor atrairia os pombos, mas repeliria os dragões. Bestiário Harley MS 3244, fol. 58, c. 1255-1265. 

Em pedras rúnicas suecas, erguidas durante o século XI, no final da Era Viking (VIII-XI), encontramos vários lindworm adornando esses monumentos. Ali podemos ver esses dragões tendo em geral pernas dianteiras, possuindo orelhas ou chifres. Essa imagem do lindworm foi preservada nos bestiários, mas com a principal mudança de que nesses livros eles eram representados geralmente tendo as pernas traseiras, o que os permitia andar como aves. 

Em seguida temos os dragões do tipo wyvern, os quais se tornaram os mais populares nos bestiários e na heráldica. Esse dragão é bem parecido com o lindworm, suas principais diferenças é o fato de ele ter asas e poder voar, e também podia cuspir fogo. O wyvern era tão popular que a maioria dos bestiários a partir do século XIII deixaram de retratar lindworm, e passaram a adotar esse tipo de dragão, o qual também aparecia na iconografia de igrejas, monumentos, outros livros e pinturas. Sua forma também inspirou os artistas renascentistas.

Um wyvern colorido e com penas no bestiário MS. Ludwig XV 3, folio 89r, c. 1270. 

Os wyvern eram dragões mais associados com o fogo, diferente dos lindworm, que em geral era dito apenas cuspirem veneno. Além disso, pelo fato dos wyvern poderem voar, as narrativas lhes concediam uma característica mais assustadora, pois essas criaturas poderiam facilmente capturar alguém com suas patas e levar as pessoas embora. No entanto, Pastoureau (2012) lembra que a capacidade de alguns dragões poderem voar os deixava vulneráveis a uma força da natureza: os raios. Pasotoureau salienta que um raio poderia matar facilmente um dragão, isso vem da questão simbólica em que dragões se tornaram seres demoníacos pelo Cristianismo, e o raio passou a ser a manifestação divina de Deus. Nesse sentido, um dragão ser atingido por um raio simbolizava Deus punindo o mal

Outros tipos de dragões encontrados em bestiários são os de quatro patas, os quais não possuem um nome específico. Esses de forma menos usual apareciam sem asas, sendo o mais comum os dragões alados quadrupedes. Esses dragões costumam ter um corpo baseado em lagartos, mas também em outras criaturas como crocodilos e leões. Na prática eles somente se diferenciavam dos wyvern pela quantidade de patas (e as vezes de asas também). Esse tipo de dragão antecede os bestiários, pois no poema Beowulf (c. 1000) já encontramos a menção de um dragão quadrupede que voa, cospe fogo e guarda uma caverna do tesouro. Elementos clássicos das lendas sobre dragões. 

Um dragão quadrupede no bestiário Harley MS 3244, fol. 59r, 1255-1265. 

O dragão, o elefante e a pantera

Um aspecto curioso a ser mencionado que está presente nos bestiários era a relação desses três animais. Autores da Antiguidade e começo do Medievo relatavam que dragões eram seres oriundos da África (em especial na Etiópia) e da Ásia (em especial da Índia), mas eles existiam na Europa, embora fosse mais raro de encontrá-los. Por tal condição, os dragões eram animais que conviviam com a fauna africana e asiática, o que incluía elefantes e panteras. 

Plínio, o Velho em sua História Natural (Livro 8, capítulos 1-13) relatou que os elefantes na Índia eram atacados por grandes serpentes, as quais conseguiam matá-los e devorá-los. Essa descrição é interessante, pois anos depois ela foi ligeiramente reformulada, pois no século VII, Isidoro de Sevilha em sua Etimologias, repetiu algumas informações ditas por Plínio, mas substituindo as serpentes por dragões (draco no original em latim usado por ele). Dessa forma, as obras da época de Isidoro e as posteriores, passaram a informar que elefantes e dragões eram inimigos naturais. 

Elefanta protegendo seu filhote do ataque de um dragão. Bibliothèque Nationale de France, lat. 6838B, folio 4v, séc. XIII. 

Os autores não entram em detalhes do porquê especificamente dragões caçarem elefantes, mas com o tempo o elefante tornou-se simbolicamente um animal que representava o bem, e, por sua vez, o dragão passou a expressar o mal. Dessa forma, eles simbolizavam opostos. 

No caso da pantera, esse é um exemplo interessante também. Muitas informações sobre esse felino são desencontradas, atribuindo a eles algumas características dos leões, leopardos e tigres. Na prática, a palavra pantera era usada para se referir aos leopardos, encontrados na África e Ásia. No século VII, Isidoro de Sevilha escrevia com base em Plínio e outros autores antigos, que as panteras eram belos animais com pelagem colorida podendo ter ou não manchas, possuindo círculos pretos ao redor dos olhos. Elas eram animais que mantinham a boa convivência com outras espécies, menos os dragões, por conta disso, as panteras eram respeitadas pelos outros bichos devido a sua influência em afugentar os dragões. Séculos depois, Alberto Magno escreveu que os dragões temiam as panteras a ponto de apenas em avistá-las ou ouvir seus rugidos, eles saíam fugindo. 

Uma pantera protege um cervo e um camelo, afugentando com seu rugido dois dragões. Royal MS 12 F XIII (Bestiário de Rochester), folio 9r, c. 1230-1240. 

Uma das interpretações para as panteras afugentarem os dragões (mesmo elas sendo pequenas se comparado a algumas dessas feras) advém de uma compreensão cristã desses animais. No Fisiólogo é dito que as panteras eram animais associados as virtudes cristãs, representando a amizade, a honra, a benevolência e a proteção, pois elas sendo corajosas, enfrentavam os perigos que ameaçavam outros animais, da mesma forma que um cristão deveria se impor contra as injustiças e zelar pelos que não podem se proteger. Assim, se recordarmos que o dragão se tornou símbolo da maldade, e a pantera era um símbolo de bondade, novamente a dicotomia Bem x Mal se encontrava presente. 

Dessa forma os leitores podem observar que a relação entre o dragão, o elefante e a pantera giravam entorno de uma interpretação religiosa cristã: em que o elefante representaria o bem oprimido pela maldade, por sua vez, a pantera simbolizaria a força do bem que triunfa sobre o mal. 

NOTA: O termo dragão oriental engloba as crenças sobre dragões presentes no Extremo Oriente, pois os dragões do Oriente Médio possuem características e funções distintas, algumas parecidas com a versão europeia. Neste caso, optei em diferenciar esses dois tipos de dragões asiáticos. 

NOTA 2: Além do Cristianismo, as religiões do Judaísmo, Islão, Zoroastrismo, entre outras, também consideram dragões como criaturas maléficas. 

NOTA 3: Alberto Magno em seu bestiário trouxe uma longa descrição sobre os elefantes, evidentemente embasada em informações lendárias e incorretas, mas que na época tidas como verdadeiras. 

NOTA 4: No Fisiólogo é dito que a pantera era um animal que simbolizava qualidades de Jesus Cristo e de Salomão. 

NOTA 5: Nomenclaturas como wyrm, lindworm, wyvern, dragon, drake etc., para distinguir dragões, advém mais da literatura contemporânea, pois nos bestiários, os outros termos não eram utilizados, e as vezes usava-se apenas a palavra draco para se referir a todos eles. 

Fontes:

ALBERT the Great. Man and the Beasts: De Animalibus (Books 22-26). Translated by James J. Scanlan. Binghamton, Medieval & Renaissance Texts & Studies, 1987. 

ISIDORE of Seville. Etymologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 

PHYSIOLOGUS. A medieval book of nature lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago: University of Chicago Press, 2009. 

Referências bibliográficas:

OGDEN, Daniel. Drakon: Dragon Myth and Serpent Cult in the Ancient Greek and Roman Worlds. Oxford: Oxford University Press, 2013. 

PASTOUREAU, Michel. Bestiari del Medioevo. Traduzione de Camilla Testi. Torino: Giulia Einaudi, 2012. 

VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

Links relacionados:

Animais fantásticos e onde habitam: a literatura dos bestiários

O rei das serpentes: o basilisco