No livro de Gênesis existe uma breve menção a uma alta torre situada na Ásia, a qual consistiu numa afronta a Deus, por conta disso, ele fez que a humanidade se desentendesse, passando a falar línguas distintas. Embora essa narrativa como veremos a seguir, seja diferente do que normalmente pensamos, a ponto de ela ser mais tratada como um mito do que um fato, como alguns cristãos defendem. Vale salientar que apesar de a Bíblia ser um livro sagrado, ela contém alegorias e mitos, os quais possuem um papel de instrução, pois era a forma pela qual os povos antigos faziam isso, já que a História e a Filosofia não eram saberes regulares. Sendo assim, esta postagem procurou tratar de alguns problemas e dúvidas relativos ao mito da Torre de Babel.
A Torre de Babel por Athanasius Kircher, 1619. |
O relato bíblico (Gênesis 11, 1-9)
Tradução presente na Bíblia de Jerusalém em língua portuguesa:
1. Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras.
2. Como os homens que emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Sennar, e aí se estabeleceram;
3. Disseram um ao outro "Vinde! Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo!" O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa.
4. Disseram: "Vinde! construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra".
5. Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído.
6. E Iahweh disse: "Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles.
7. Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros.
8. Iahweh os dispersou daí por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade.
9. Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi aí que Iahweh confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi aí que ele os dispersou sobre toda a face da terra.
Descrevendo a Torre em Babel
O mito da torre foi sendo nos séculos seguintes sendo ampliado e até recebendo acréscimos. Como visto na citação acima, a narrativa é bem curta. Apenas fala que um grupo de pessoas se mudou para o vale de Sennar ou Sinear, uma região incerta situada no sul da Mesopotâmia. Ali, essas pessoas construíram uma cidade e a torre, somente no final da narrativa é dito que a cidade ficou conhecida como Babel, mais tarde é informado se tratar da cidade da Babilônia.
Não obstante, Deus ficou maravilhado com a façanha daqueles habitantes, e disse que aquilo era a prova que a humanidade poderia realizar grandes feitos. No entanto, diferente do que é dito, o mito não deixa explícito a indignação ou preocupação de Deus, ele somente decidiu confundir aqueles construtores, fazendo-os falar línguas distintas para que assim parassem de construir e se espalhassem pelo mundo.
Entretanto, o relato não fala que a torre foi destruída como as vezes costumamos ler a respeito. No entanto, a narrativa informa que a torre parou de ser construída, pois sua população foi embora - pelo menos parte dela. Depois disso não temos mais informações sobre a torre: qual seria sua altura? Quando ela foi construída? quanto tempo duraram as obras? Ela foi destruída como? Quem mandou construir ela? Essas perguntas foram até respondidas em outras fontes, mas não na Bíblia. Sobre isso, vejamos o que alguns autores escreveram acerca desse mito.
O Livro dos Jubileus, obra com 50 capítulos, os quais trazem uma versão alternativa de Gênesis, tendo sido escrito por volta de 100 a.C, apresenta mais informações sobre a torre. No capítulo 10, entre os versículos 18 a 28 é informado que a cidade e a torre foram construídas por ordem do rei Reu, filho de Pelege e Lomna, sendo ele neto de Sinnar. Durante seu governo, ao longo de 43 anos, a torre foi construída como forma de que os homens pudessem alcançar o céu. O Livro dos Jubileus fornece o tamanho dessa estrutura, a qual mediria 5.433 côvados e 2 palmos de altura, sua largura seria de 203 tijolos e 13 estádios. Tais valores conotam uma estrutura gigantesca com mais de 2,4 mil metros de altitude e centenas de metros de largura.
Após fornecer essas informações o relato seguinte é similar ao encontrado em Gênesis, em que Deus desceu do Céu para fazer os homens falarem línguas diferentes e não se entenderem. Por conta dessa confusão de idiomas a região foi chamada de Babel (que nesse caso seria sinônimo de balbúrdia). Em seguida é dito que Deus indignado com a torre enviou um poderoso vendaval que derrubou a torre, a qual ficava localizada entre Assur e a Babilônia. Aqui temos um dado curioso, pois Babel não seria a cidade, mas a região (uma referência ao império babilônico provavelmente).
A torre de Babel em xilogravura de Gustave Doré, 1868. |
Outra obra que traz informações sobre a torre está presente no Apocalipse Grego de Baruque, um dos vários apocalipses apócrifos. Embora canonicamente as igrejas cristãs aceitem apenas o Apocalipse de João de Patmos, o qual consta como o último livro da Bíblia, entretanto, no Cristianismo Primitivo mais de setenta apocalipses foram escritos, alguns até foram reconhecidos pela Igreja Católica e a Igreja Copta na época.
O Apocalipse Grego de Baruque teria sido escrito entre os séculos I e III, sendo atribuído sua autoria a uma profecia tida por Baruque ben Néria, o qual atuou como secretário do profeta Jeremias, durante o século VI a.C, na época do Cativeiro da Babilônia. Baruque teria escrito vários livros, um deles se tornou cânon para os católicos e ortodoxos, mas os demais foram tidos como apócrifos, incluindo as duas versões de seu apocalipse (as quais foram escritas em grego e sírio). Recorri a versão grega por essa fornecer mais detalhes sobre a Torre de Babel.
No relato desse apocalipse é dito que Baruque recebeu um anjo e esse revelou para ele visões sobre os Quatro Céus e outras localidades. Na descrição do Segundo Céu, Baruque ver um grupo de homens e mulheres com cabeças de cães e patas de cervo, espantado com aquilo, ele perguntou ao anjo o que tais pessoas fizeram. O anjo respondeu que aquelas pessoas cometeram o pecado de construir a torre, com 436 côvados de altura, tão alta, que aquelas pessoas chegaram até o Primeiro Céu e tentaram "perfurar" ele. Mas Deus vendo aquilo se enfureceu e fez aquelas pessoas falarem línguas diferentes e as expulsou dali.
Observa-se que o relato de Baruque é bem curto e pouco informa sobre a torre, nem se quer indica que ela ficasse em Babel, mas fornece sua altura, que em valores atuais seria algo em torno dos 200 metros de altura, um valor até mais realista do que o tamanho da torre descrito no Livro de Jubileus. Vale considerar que a estrutura humana mais alta que existia naquele tempo era a Grande Pirâmide do Egito, com seus 150 metros de altura. Não obstante, o apocalipse de Baruque informa que realmente as pessoas conseguiram chegar ao Céu e usaram uma verruma (tipo de perfuradora) para tentar abrir uma passagem para esse. Aqui temos a descrição de uma ação na qual Deus pega aqueles construtores no flagrante. Todavia, o relato não informa como a torre foi destruída, ou quando ela foi erguida.
A Torre de Babel por Lucas Van Valckenborch, 1594. |
Fontes para o mito da Torre de Babel
Mas se uma gigantesca torre nunca existiu, de onde poderia ter surgido essa narrativa? Atualmente os historiadores trabalham a hipótese principal de que o zigurate de Marduk, que havia na Babilônia, teria inspirado esse mito. É preciso salientar que elementos das mitologias mesopotâmicas influenciaram mitos bíblicos, então não seria improvável que ambas as hipóteses realmente tenham um grau de veracidade. Sendo assim, começarei pela questão arqueológica.
Zigurates eram templos piramidais escalonados (ou seja, erguidos com andares, não em forma de uma pirâmide perfeita), os quais já existiam antes de 3000 a.C, tendo sido estruturas criadas pelos sumérios, um dos povos mais desenvolvidos daquele tempo. Os zigurates eram feitos de tijolos, assim como, a torre de Babel, nota-se aqui uma grande semelhança, já que em todos os relatos esse material sempre e o mesmo, pois, em momento algum é dito que pedras foram usadas para a construção da torre.
Os zigurates além da função religiosa como templo, também exerciam uma função político-administrativa, pois representavam a autoridade monárquica e do clero, em que na sociedade sumeriana, mas também acadiana e babilônica, os sacerdotes eram também funcionários públicos. A prática de erguer zigurates perdurou ao longo de mais de dois mil anos, havendo zigurates de distintos tamanhos, mas eles não eram tão altos como normalmente se pensa, a maioria ficava entre 30 e 50 metros de altura. Entretanto, o zigurate de Marduk, construído na Babilônia foi um dos mais altos. Sua altura foi estimada em 91 metros conforme antigas análises de documentos encontrados a respeito; mas hoje acredita-se que ele possa ter tido entre 50 e 60 metros de altura.
Representação de como teria sido o zigurate Etemenanqui da Babilônia. |
Chamado de Etemenanqui (templo da fundação do Céu e da Terra), ele foi dedicado a Marduk, o deus padroeiro da Babilônia, importante divindade da religião e mitologia dos babilônios, embora fosse anteriormente cultuado pelos acadianos. Não se sabe em que época esse zigurate foi construído, havendo várias sugestões que remonta do século XIV a.C até o século IX a.C. Todavia, a estrutura sofreu com os ataques feitos a cidade, fato esse, que os historiadores e arqueólogos apontam a possibilidade de o zigurate possa ter sido parcialmente destruído no século VII a.C, durante a invasão assíria da Babilônia, em que o rei Senaqueribe relatou o sucesso de sua campanha, ao dizer que o zigurate dos babilônios foi destruído por sua ordem.
Entretanto, o templo provavelmente foi reconstruído nos séculos seguintes, pois os reis Nabopolasar (r. 626-605 a.C) e seu filho Nabucodonosor II (r. 604-562 a.C) empreenderam grandes reformas na cidade, reconstruindo muita coisa destruída desde a invasão dos assírios, além de promover novas obras. Inclusive os gregos creditavam a Nabucodonosor II a criação dos famosos Jardins Suspensos da Babilônia. De qualquer forma, o zigurate deve ter sido reconstruído, embora não se saiba que tamanho ele passou a ter.
Além disso, durante o Cativeiro da Babilônia (586-539 a.C), o zigurate existia, fato esse que o historiador grego Heródoto de Halicarnasso relatou no século V a.C, que essa torre teria oito andares e seria quadrangular, sendo a mais alta estrutura da cidade. Embora Heródoto nunca tenha viajado à Babilônia, mas ele chegou a viajar à Ásia Menor e o Egito, tendo obtido informações sobre essa localidade.
Sendo assim, o zigurate Etemenanqui, ainda hoje, é um forte candidato para ter inspirado o mito da Torre de Babel pelos seguintes motivos: ele era uma torre feita de tijolos, era a mais alta construção daquela cidade; a Babilônia era uma cidade cosmopolita, e uma das maiores cidades do mundo, na época, na qual se falava muitas línguas; o zigurate era um templo dedicado a Marduk, divindade vista como um falso deus pelos hebreus; além de que os hebreus desenvolveram toda uma antipatia com os babilônios devido a invasão de seu país e a época do cativeiro; fato esse, que a Babilônia é uma cidade malvista na Bíblia, em várias passagens.
NOTA: No Corão a Torre de Babel não é citada. Embora a cidade de Babel (Babilônia) seja mencionada algumas vezes.
NOTA 2: O mito de Enmerkar e o Senhor de Aratta fala da construção de um zigurate e da punição do deus Enki, fazendo a humanidade falar línguas distintas. Apesar dessas semelhanças com a narrativa bíblica, esse mito é bem diferente, pois Enmerkar construiria a torre como uma oferenda a deusa Ishtar. Mas a punição de Enki se deveu a outros motivos.
Fontes:
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.
LIVRO dos Jubileus. Tradução de L. F. S. Prado. 2012. Disponível em: https://www.autoresespiritasclassicos.com/Evangelhos%20Apocrifos/Apocrifos/1/O%20Livro%20dos%20Jubileus%20(Texto%20Et%C3%ADope%20-%20Completo).pdf.
NATALIO, Férnandez Marcos. Apocalipsis griego de Baruc. Introducción, traducción y notas. Sefarad: revista de estudios hebraicos, sefardíes y de Oriente Próximo, a. 50, n. 1, 1986, p. 191-209.
Referências bibliográficas:
FARIA, Jacir de Freitas. Gn, 11-9: contramito Torre de Babel ao mito de fundação da Babilônia. Estudos Bíblicos, vol. 30, n. 120, 2013, p. 359-370.
RYKEN, Leland; WILHOIT, James C; LONGMAN III, Tremper (eds.). Tower of Babel. In: Dictionary of Biblical Imagery. Leicester, InterVarsity Press, 1998, p. 261-265.
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