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Leandro Vilar

domingo, 6 de novembro de 2022

Dragonologia: o estudo dos dragões em bestiários medievais

A Dragonologia consiste numa pseudociência fictícia, presente em obras de literatura e jogos, a qual tem como intuito estudar os dragões em seus aspectos biológicos e mágicos. No entanto, na Europa medieval, a dragonologia foi algo real, ou quase isso, pois os bestiários, livros que estudavam animais reais e fantásticos, dedicavam páginas ou capítulos para se estudar essas feras reptilianas que cuspiriam veneno ou fogo. O presente texto com base nos bestiários europeus comentou a respeito desses animais fantásticos.

Quatro diferentes representações de dragões em bestiários do século XIII. 

Introdução: a literatura dos bestiários

O bestiário foi um gênero literário medieval surgido na Europa, influenciado por livros da Antiguidade como o Da História dos Animais de Aristóteles, História Natural de Plínio, o Velho, o Fisiólogo de autoria desconhecida, entre outras obras. Os bestiários se popularizaram entre os séculos XII ao XIV, sendo livros ricamente ilustrados, cobiçados por alguns colecionadores, por serem obras caras. Eram livros que versavam sobre temas antigos, baseados nas pesquisas de estudiosos clássicos, ou em pesquisadores desconhecidos. Muitos bestiários foram produzidos na Inglaterra e França, principais países desse gênero literário. 

Os bestiários elencavam uma série de animais reais e fantásticos, mas não abordavam necessariamente monstros. A maioria das criaturas retratadas pertenciam a fauna da Europa, norte da África, Oriente Médio e Índia. As informações sobre animais reais na maior parte das vezes eram imprecisas, advindas de lendas, mitos e boatos, mas eram tidas como corretas naquelas obras. Por sua vez, dentre os animais fantásticos tínhamos unicórnios, grifos, fênices, basiliscos, e evidentemente, os dragões, que estavam entre os mais populares. 

“O Bestiário organiza-se em torno de pequenas narrativas que descrevem várias espécies animais, com propósitos morais e didácticos. Neste sentido, cada uma dessas narrativas é composta por duas partes distintas: uma parte descritiva de sentido literal (a descrição, proprietas ou naturas) e a sua moralização e interpretação teológica de sentido simbólico-alegórico (também designada como moralização, moralitas ou figuras)”. (VARANDAS, 2006, p. 1). 

"O desenvolvimento da produção de bestiários é coincidente com o desenvolvimento e crescimento das bibliotecas monásticas. Por estas razões, não podemos atribuir a estes manuscritos um autor particular, pois apresentam-se como fruto de várias mãos que, ao longo dos anos, os foram copiando e, ao mesmo tempo, traduzindo e ampliando. De entre as várias ordens religiosas que apadrinharam os bestiários contam-se os monges beneditinos e os cistercienses, embora também os franciscanos e os monges agostinhos os tenham desenvolvido". (VARANDAS, 2006, p. 19). 

O conceito de dragão 

Em geral o conceito de dragão que normalmente utilizamos é de um monstro reptiliano de grande porte, podendo ser até mesmo gigantesco, o qual voa e cospe fogo. Todavia, existem diferentes tipos de dragões, além de que o chamado dragão oriental (encontrado em países como China, Japão, Coreias, Tailândia, Camboja, Vietnã etc.) anteceda a noção de dragão europeu. Entretanto, o próprio dragão oriental possui aspectos físicos, mágicos e funções distintas dos dragões europeus. 

Como o objeto de estudo dessa análise são os dragões europeus, não vem ao caso explanar sobre os dragões asiáticos. Logo, retomando ao caso europeu, a palavra dragão advém do grego antigo drákon, palavra usada para se referir a monstros ofídicos de grande porte. Sendo assim, a origem da palavra drákon referia-se a grandes serpentes, as quais os antigos gregos diziam viver em partes da África e da Índia. De fato, realmente existem grandes cobras nessas localidades, diferente da Europa, em que a maioria das espécies ofídicas mal chegam aos dois metros de comprimento. (OGDEN, 2013). 

No entanto, o drákon dos mitos gregos não seria uma simples cobra grande, mas um monstro propriamente falando, como a serpente Píton, a Hidra de Lerna e Ládon. Esses três exemplos presentes da mitologia grega são dragões no sentido da palavra drákon. Vale ressaltar que a Hidra e Ládon eram dragões com várias cabeças, mas eles não cuspiriam fogo e nem voariam. Esses dois elementos estão ausentes nesses três mitos, sendo agregados por outros povos europeus com o tempo. (OGDEN, 2013). 

Por sua vez, os romanos traduziram a palavra drákon para draco, que originou várias versões dessa palavra nos idiomas europeus como dragão, dragon, dragón, drake, drache, drac, drago, drage, draak etc. 

Com o passar do tempo a noção de dragão foi se espalhando pela Europa e ganhando novas características, surgindo os dragões alados e cuspidores de fogo. Embora tais características sejam marcantes, elas não eram únicas. Os bestiários forneciam diferentes informações sobre essas características tidas como reais, algo que veremos no próximo tópico. 

Os dragões nos bestiários europeus

Como vimos um breve resumo histórico sobre os bestiários, passemos direto ao tema dessa análise. Os dragões nos bestiários eram representados em diferentes cores, não necessariamente sendo verdes e pretos, alguns eram vermelhos, azuis, amarelos, marrons, cinza; alguns poderiam ter mais de uma cor, e havia casos de dragões que não teriam escamas, mas conteriam pelos e penas (embora fosse um padrão mais raro de se ver). Além disso, dragões poderiam correr, pular, voar e nadar. O que revela como essa criatura estava inserida nos ambientes terrestre, aquático e celeste.

Os dragões poderiam cuspir veneno, soltar fogo pela boca, fumaça pelas narinas; alguns também exalavam um odor tão fedorento que gerava náuseas. A ideia de dragões soltando gelo e raio é algo oriundo da literatura pós-medievo.  

Michel Pastoureau (2012) também comenta que nos bestiários em geral as descrições dos dragões eram baseadas num padrão comum, repetidas por vários autores. Os quais salientavam serem criaturas que poderiam cuspir veneno ou fogo, teriam uma longa e forte cauda, que poderiam usar como chicote; conteriam presas e garras bastante afiadas; seus olhos eram negros ou vermelhos, possuindo um olhar intimidador a ponto de causar medo ou paralisia. Eles viveriam em cavernas, florestas, montanhas e desertos. 

Essas criaturas também possuíam um tamanho variado, podendo serem pequenas, ter o tamanho de um cavalo, ser grande como um elefante, ou maior do que uma casa. Em geral os bestiários não estipulavam o tamanho dos dragões, ficando a critério das narrativas que abordavam eles, determinar isso. 

Um tipo comum de dragão encontrado nos bestiários e na iconografia medieval europeia era o chamado lindworm, um dragão com corpo de cobra, mas possuindo duas patas, o qual poderia cuspir veneno. 

Um lindworm sob a árvore peridexion, em que pombos a cercam. Essa lendária árvore produziria frutos e flores cujo odor atrairia os pombos, mas repeliria os dragões. Bestiário Harley MS 3244, fol. 58, c. 1255-1265. 

Em pedras rúnicas suecas, erguidas durante o século XI, no final da Era Viking (VIII-XI), encontramos vários lindworm adornando esses monumentos. Ali podemos ver esses dragões tendo em geral pernas dianteiras, possuindo orelhas ou chifres. Essa imagem do lindworm foi preservada nos bestiários, mas com a principal mudança de que nesses livros eles eram representados geralmente tendo as pernas traseiras, o que os permitia andar como aves. 

Em seguida temos os dragões do tipo wyvern, os quais se tornaram os mais populares nos bestiários e na heráldica. Esse dragão é bem parecido com o lindworm, suas principais diferenças é o fato de ele ter asas e poder voar, e também podia cuspir fogo. O wyvern era tão popular que a maioria dos bestiários a partir do século XIII deixaram de retratar lindworm, e passaram a adotar esse tipo de dragão, o qual também aparecia na iconografia de igrejas, monumentos, outros livros e pinturas. Sua forma também inspirou os artistas renascentistas.

Um wyvern colorido e com penas no bestiário MS. Ludwig XV 3, folio 89r, c. 1270. 

Os wyvern eram dragões mais associados com o fogo, diferente dos lindworm, que em geral era dito apenas cuspirem veneno. Além disso, pelo fato dos wyvern poderem voar, as narrativas lhes concediam uma característica mais assustadora, pois essas criaturas poderiam facilmente capturar alguém com suas patas e levar as pessoas embora. No entanto, Pastoureau (2012) lembra que a capacidade de alguns dragões poderem voar os deixava vulneráveis a uma força da natureza: os raios. Pasotoureau salienta que um raio poderia matar facilmente um dragão, isso vem da questão simbólica em que dragões se tornaram seres demoníacos pelo Cristianismo, e o raio passou a ser a manifestação divina de Deus. Nesse sentido, um dragão ser atingido por um raio simbolizava Deus punindo o mal

Outros tipos de dragões encontrados em bestiários são os de quatro patas, os quais não possuem um nome específico. Esses de forma menos usual apareciam sem asas, sendo o mais comum os dragões alados quadrupedes. Esses dragões costumam ter um corpo baseado em lagartos, mas também em outras criaturas como crocodilos e leões. Na prática eles somente se diferenciavam dos wyvern pela quantidade de patas (e as vezes de asas também). Esse tipo de dragão antecede os bestiários, pois no poema Beowulf (c. 1000) já encontramos a menção de um dragão quadrupede que voa, cospe fogo e guarda uma caverna do tesouro. Elementos clássicos das lendas sobre dragões. 

Um dragão quadrupede no bestiário Harley MS 3244, fol. 59r, 1255-1265. 

O dragão, o elefante e a pantera

Um aspecto curioso a ser mencionado que está presente nos bestiários era a relação desses três animais. Autores da Antiguidade e começo do Medievo relatavam que dragões eram seres oriundos da África (em especial na Etiópia) e da Ásia (em especial da Índia), mas eles existiam na Europa, embora fosse mais raro de encontrá-los. Por tal condição, os dragões eram animais que conviviam com a fauna africana e asiática, o que incluía elefantes e panteras. 

Plínio, o Velho em sua História Natural (Livro 8, capítulos 1-13) relatou que os elefantes na Índia eram atacados por grandes serpentes, as quais conseguiam matá-los e devorá-los. Essa descrição é interessante, pois anos depois ela foi ligeiramente reformulada, pois no século VII, Isidoro de Sevilha em sua Etimologias, repetiu algumas informações ditas por Plínio, mas substituindo as serpentes por dragões (draco no original em latim usado por ele). Dessa forma, as obras da época de Isidoro e as posteriores, passaram a informar que elefantes e dragões eram inimigos naturais. 

Elefanta protegendo seu filhote do ataque de um dragão. Bibliothèque Nationale de France, lat. 6838B, folio 4v, séc. XIII. 

Os autores não entram em detalhes do porquê especificamente dragões caçarem elefantes, mas com o tempo o elefante tornou-se simbolicamente um animal que representava o bem, e, por sua vez, o dragão passou a expressar o mal. Dessa forma, eles simbolizavam opostos. 

No caso da pantera, esse é um exemplo interessante também. Muitas informações sobre esse felino são desencontradas, atribuindo a eles algumas características dos leões, leopardos e tigres. Na prática, a palavra pantera era usada para se referir aos leopardos, encontrados na África e Ásia. No século VII, Isidoro de Sevilha escrevia com base em Plínio e outros autores antigos, que as panteras eram belos animais com pelagem colorida podendo ter ou não manchas, possuindo círculos pretos ao redor dos olhos. Elas eram animais que mantinham a boa convivência com outras espécies, menos os dragões, por conta disso, as panteras eram respeitadas pelos outros bichos devido a sua influência em afugentar os dragões. Séculos depois, Alberto Magno escreveu que os dragões temiam as panteras a ponto de apenas em avistá-las ou ouvir seus rugidos, eles saíam fugindo. 

Uma pantera protege um cervo e um camelo, afugentando com seu rugido dois dragões. Royal MS 12 F XIII (Bestiário de Rochester), folio 9r, c. 1230-1240. 

Uma das interpretações para as panteras afugentarem os dragões (mesmo elas sendo pequenas se comparado a algumas dessas feras) advém de uma compreensão cristã desses animais. No Fisiólogo é dito que as panteras eram animais associados as virtudes cristãs, representando a amizade, a honra, a benevolência e a proteção, pois elas sendo corajosas, enfrentavam os perigos que ameaçavam outros animais, da mesma forma que um cristão deveria se impor contra as injustiças e zelar pelos que não podem se proteger. Assim, se recordarmos que o dragão se tornou símbolo da maldade, e a pantera era um símbolo de bondade, novamente a dicotomia Bem x Mal se encontrava presente. 

Dessa forma os leitores podem observar que a relação entre o dragão, o elefante e a pantera giravam entorno de uma interpretação religiosa cristã: em que o elefante representaria o bem oprimido pela maldade, por sua vez, a pantera simbolizaria a força do bem que triunfa sobre o mal. 

NOTA: O termo dragão oriental engloba as crenças sobre dragões presentes no Extremo Oriente, pois os dragões do Oriente Médio possuem características e funções distintas, algumas parecidas com a versão europeia. Neste caso, optei em diferenciar esses dois tipos de dragões asiáticos. 

NOTA 2: Além do Cristianismo, as religiões do Judaísmo, Islão, Zoroastrismo, entre outras, também consideram dragões como criaturas maléficas. 

NOTA 3: Alberto Magno em seu bestiário trouxe uma longa descrição sobre os elefantes, evidentemente embasada em informações lendárias e incorretas, mas que na época tidas como verdadeiras. 

NOTA 4: No Fisiólogo é dito que a pantera era um animal que simbolizava qualidades de Jesus Cristo e de Salomão. 

NOTA 5: Nomenclaturas como wyrm, lindworm, wyvern, dragon, drake etc., para distinguir dragões, advém mais da literatura contemporânea, pois nos bestiários, os outros termos não eram utilizados, e as vezes usava-se apenas a palavra draco para se referir a todos eles. 

Fontes:

ALBERT the Great. Man and the Beasts: De Animalibus (Books 22-26). Translated by James J. Scanlan. Binghamton, Medieval & Renaissance Texts & Studies, 1987. 

ISIDORE of Seville. Etymologies. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 

PHYSIOLOGUS. A medieval book of nature lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago: University of Chicago Press, 2009. 

Referências bibliográficas:

OGDEN, Daniel. Drakon: Dragon Myth and Serpent Cult in the Ancient Greek and Roman Worlds. Oxford: Oxford University Press, 2013. 

PASTOUREAU, Michel. Bestiari del Medioevo. Traduzione de Camilla Testi. Torino: Giulia Einaudi, 2012. 

VARANDAS, Angélica. A Idade Média e o Bestiário. Medievalista, ano 2, n. 2, 2006, p. 1-53. 

Links relacionados:

Animais fantásticos e onde habitam: a literatura dos bestiários

O rei das serpentes: o basilisco

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