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Leandro Vilar

sábado, 23 de dezembro de 2023

Empire State Building: o ícone dos arranha-céus

Um dos cartões-postais da cidade de Nova York, o famoso prédio embora não tenha sido o primeiro arranha-céu a ser construído, no entanto, na década de 1930, quando foi erguido, ele ganhou rapidamente fama por ser não apenas o prédio mais alto de Nova York e dos Estados Unidos, mas também do mundo. Inclusive ele manteve essa posição por quarenta anos, o que o tornou por muito tempo o mais famoso arranha-céu do mundo. O presente texto conta um pouco da história da origem desse edifício e algumas de suas características principais. 

O Empire State Building, um dos gigantes edifícios da ilha de Manhattan, em Nova York. 
Construção

Os arranha-céus (skycraper) surgiram na década de 1880 em Chicago, migrando rapidamente para Nova York, em especial a ilha de Manhathan, o coração daquela cidade. Entretanto, os arranha-céus das décadas de 1880 a 1910 não eram edifícios altos como normalmente imaginamos. De fato, eles eram altos para os padrões da época, mas hoje seria considerados "prédios normais". De qualquer forma, a construção de arranha-céus nos EUA passou por diferentes fases de efervescência, havendo períodos de construção acelerada e outros em que mal se construía tais prédios. (DOUGLAS, 2004, p. 100). 

Esses períodos ocorreram de 1880 a 1900, depois de 1900 a 1914, parando por conta da Grande Guerra (1914-1918), retomando na década de 1920, estendendo-se para o começo dos anos 1930 quando estou em 1929 o Crash da Bolsa de Valores de Nova York, que jogou os Estados Unidos na Grande Depressão (1929-1939). Apesar disso, foi neste cenário de crise que o Empire State Building foi construído em tempo recorde para um edifício das suas proporções, pois quando foi inaugurado, era o arranha-céu mais alto do mundo.

O terreno em que hoje se situa o Empire State, que é o número 350 da Quinta Avenida, já era ocupado pelos dois prédios do hotel Waldorf-Astoria, pertencentes a rica família Astor. O terreno bastante caro foi comprado em 1928 pela empresa Bethelem Engineering Corporation num valor total de 13,5 milhões de dólares, o terreno mais caro vendido na época. Porém, a companhia que havia parcelado o valor, não conseguiu pagar a segunda parcela de 2,5 milhões, com isso os donos do terreno entraram na justiça. Além disso, a empresa também estava devendo a bancos por empréstimos feitos para efetuar a compra. Assim, no começo de 1929 o terreno foi colocado novamente à venda, sendo comparado pela empresa Empire State Inc, uma corporação de rico milionários, os quais pretendiam construir o mais alto arranha-céu de Nova York, superando o Chrysler Building que estava sendo finalizado na época. O Chrysler foi inaugurado em 1930, tendo 360 metros de altura. Na época ele era o prédio mais alto do mundo. (REIS, 2006, p. 9-10). 

A Empire State Inc reunia milionários como o empresário e banqueiro Louis G. Kaufman, o empresário e político John J. Raskob, os irmãos Coleman du Pont e Pierre S. du Pont, ambos eram donos das indústrias DuPont e da General Motors, inclusive Raskob trabalhava para eles. Por fim, tivemos Ellie P. Earle, outro empresário. Além desses homens, o então governador de NY, Alfred E. Smith também apoiou o projeto, além de ser amigo de Raskob. Graças a todo esse poder econômico, o impacto da crise iniciada em 1929 não impediu o atraso das obras, pois os dois hotéis começaram a serem demolidos em setembro do ano anterior. (DOUGLAS, 2009, p. 104).

O arquiteto William F. Lamb do escritório de arquitetura Shreve, Lamb and Harmon, famoso por construir vários prédios na cidade no estilo art décor, bastante popular na época, foi contratado para projetar o maior arranha-céu do mundo naquela época. Em poucas semanas Lamb e sua equipe chegaram a um consenso quanto ao projeto. A construtora Starrett Brothers and Eken foi contratada para realizar as obras, enquanto Homer G. Balcon foi designado engenheiro-chefe do projeto. (LANGMEAD, 2009, p. 89). 

Um dos esboços para o edifício. 

Dessa forma as obras começaram em janeiro de 1930 com as escavações para as fundações. Cada uma das colunas era projetada para suportar 5 mil toneladas de peso e tinham mais de dez metros de altura e pesavam 44 toneladas. (REIS, 2006, p. 64). Embora que simbolicamente a data de início foi colocada em Dia de São Patrício (17 de março), por conta de alguns dos empresários serem descendentes de irlandeses. Assim, em ritmo acelerado o Empire State Building começou a ser erguido com o prazo de conclusão para o ano seguinte. Significava que um prédio de mais de 300 metros de altura deveria ser construído em menos de dois anos. Hoje em dia isso é inviável, apesar do avanço tecnológico, porém, naquela época do século XX, não o era, fato esse que o Chrysler Building que tem seus 360 metros de altura, foi construído em menos de dois anos. 

Os jornais noticiavam a construção do Empire State como a oitava maravilha do mundo. A propaganda ajudou bastante a dar visibilidade ao ousado projeto. Vale lembrar que os "Empire Boys", como eram conhecidos os donos do Empire State Inc, tinham muito contato com jornais, além de contar com o apoio do governador de Nova York, de políticos e celebridades. Dessa forma, embora o país estivesse iniciando sua recessão, o desemprego começasse a aumentar, mas o setor de construção ainda estava em alta antes de estagnar. Assim, muitos dos trabalhadores do Empire State foram imigrantes irlandeses e italianos, além de contar até com indígenas também. Com a grande disponibilidade de mão de obra, os salários caíram, favorecendo a contratação de muita gente. 

As obras contaram com mais de 3.500 mil trabalhadores em diferentes profissões, que atuaram nos 18 meses da construção do prédio. Em setembro de 1930 a estrutura de aço do edifício já estava quase finalizada, passando dos 300 metros de altura, após 23 semanas de construção. Eu seu auge, os operários conseguiam erguer três andares por semana. No mês de novembro o edifício já estava quase pronto, pelo menos na sua estrutura, pois internamente as obras continuariam pelos meses seguintes. Ainda assim, foi uma proeza da engenharia contemporânea, pois o prédio cresceu rapidamente em cinco meses. (TAURANAC, 2014, p. 212-214). 

Fotos mostrando a evolução da construção do Empire State Building em cinco meses. 

Oficialmente só cinco trabalhadores morreram durante a construção do prédio, um número baixíssimo, já que foram milhares de envolvidos. Um dos motivos disso se deve que apesar da precariedade da segurança do trabalho na época, a Empire State Inc cobrou máxima cautela possível para evitar mortes e acidentes com os operários e os pedestres, pois havia o risco de queda de ferramentas, materiais e outros objetos. Dessa forma, trocou-se quando possível, escadas de mão por escadas normais, colocava-se telas diante de poços e aberturas, elevadores de obra foram reforçados etc. (REIS, 2006, p. 58). Claro que nem sempre medidas de segurança eram executadas, por exemplo, os operários não costumavam usar capacetes e nem cordas para se prenderem. Além disso, jornais da época apontaram que o número de mortos teria sido de mais de 40 vítimas, mas isso foi abafado pela construtora. 

Operários no intervalo das obras do Empire State, em 1930. 

De novembro até a inauguração em maio do ano seguinte, tratou-se de fazer toda a parte interna do edifício como as instalações elétricas e de encanamento, a instalação dos elevadores, colocar os pisos, fazer as pinturas e acabamentos, além de transportar os móveis, montar escritórios etc. Dessa forma, a festa de inauguração ocorreu em 1 de maio de 1931, Dia Mundial do Trabalhador, uma data simbólica, pois o grande edifício seria o local de trabalho de milhares de pessoas diariamente. 

O então presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, o governador e prefeito de Nova York, entre outros políticos, autoridades públicas, empresários, celebridades e membros da alta sociedade nova-iorquina e americana, compareceram para a festa de inauguração que contou com mais de 350 convidados, que foram participar de um almoço no andar 86. Todavia, na ocasião o dia estava parcialmente nublado, havendo até neblina, o que não favoreceu a bela visão da cidade para os convidados. Não obstante, no dia 2 de maio o prédio foi aberto para o público, iniciando suas atividades. (TAURANAC, 2014, p. 230-231).

Fotografia de alguns convidados na festa de inauguração do Empire State, em 1 de maio de 1931. 

Assim, era concluído em 18 meses de obras, contando com mais de 3.500 trabalhadores, tendo custado quase 25 milhões de dólares (valores da época), o Empire State Building, medindo seus 381 metros de altura (sem contar a antena), divididos em 102 andares, construído em concreto, aço, tijolos, ferro, granito e mármore, em estilo art décor, tendo 208.879 m2 construídos, possuindo 73 elevadores. De 1931 a 1970 ele foi o prédio mais alto do mundo, por isso se tornou um ícone dos arranha-céus, além de se tornar um cartão postal da cidade de Nova York até hoje, fato esse que o prédio possui mirantes nos andares 86 e 102, recebendo milhões de turistas ao ano. 

Inclusive o turismo ajudou a recuperar os investimentos da construção, pois na década de 1930 o prédio teve vários andares vazios por conta da crise econômica, mas turistas visitam local mesmo assim. Somente na década de 1940 é que os andares de escritórios, lojas e restaurantes foram sendo preenchidos propriamente. Além disso, o edifício começou a aparecer em filmes, séries, novelas e desenhos, que ajudou sua popularização pelo mundo. O filme King Kong (1933) foi a primeira grande produção cinematográfica a usar o edifício como cenário. Criando uma das mais icônicas cenas do cinema preto e branco. 

Cena do filme King Kong (1933). Na época fazia dois anos que o prédio tinha sido inaugurado e não contava com sua antena de rádio ainda. 

NOTA: A Família Astor após a venda do seus dois hotéis, construiu outro maior na Avenida Park em 1931, consistindo no atual Hotel Waldorf Astoria. 
NOTA 2: Em 1965 foi instalada uma antena de rádio no Empire State Building, medindo 62 metros de altura, o que subiu a altura do edifício para 443 metros. Valor que conserva atualmente. 
NOTA 3: Atualmente o edifício é o 54o prédio mais alto do mundo. 
NOTA 4: Em 28 de julho de 1945 um pequeno avião de guerra que sobrevoava baixo a cidade, colidiu acidentalmente com o Empire State, atingindo o andar 79 e matando 14 pessoas. Na ocasião o dia estava nublado e com um forte nevoeiro. A imprudência do piloto o levou a voar baixo. 
NOTA 5: O filme Independence Day (1996) mostra o prédio sendo destruído por uma nave alienígena. 
NOTA 6: O Empire State aparece comumente nos quadrinhos, desenhos, filmes e jogos do Homem-Aranha
NOTA 7: Atualmente o prédio abriga uma exposição em homenagem ao King Kong. 
NOTA 8: Algumas empresas que possuem escritórios no prédio são: Linkedin, Shutterstock, Workday e Expedia
NOTA 9: Atualmente pelo menos 15 mil pessoas trabalham no edifício, embora ele receba milhares de visitantes. Muitos desses são turistas. 

Referências bibliográficas: 
DOUGLAS, George H. Skycrapers: a social history very tall building in America. New York, McFarland, 2004. 
LANGMEAD, Donald. Icons of American Archicture: From the Alamo to World Trade Center. Greenwood, Greenwood Icons, 2009. 
REIS, Ronald A. The Empire State Building. New York, Chelsea House Publishers, 2006. 
TAURANAC, John. The Empire State Building: The Making of a Landmark. New York: Scribner, 2014. 

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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

100 anos da proclamação da República da Turquia

No ano de 1922 o Império Otomano chegou ao fim, após anos de crise, acentuada por conta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a renúncia do último sultão, um governo interino foi eleito até que a república foi efetivamente proclamada em 1923. Pondo fim a séculos de monarquia e suas regalias. O presente texto apresenta alguns aspectos centrais desse processo de transição política na história turca, que foi extenso, demorado e marcado por guerras e crises. 

Introdução

O Império Otomano (1299-1922) vigorou por séculos, sendo o Estado mais poderoso e rico entre os séculos XVI e XVII, considerado sua era de ouro. Os otomanos eram uma dinastia de origem turca que entraram em destaque na história em meados do século XV, quando o sultão Mehmed II conquistou Constantinopla em 1453, após quase três meses de cerco. As imponentes muralhas da cidade bizantina se renderam diante dos poderosos canhões turcos. Com tal façanha, Constantinopla foi renomeada para Istambul, tornando-se a nova capital dos otomanos pelos séculos seguintes, passando a sediar sua imponente e requintada corte, iniciando a ascensão desse império.

No entanto, no final do século XIX, os dias de glória eram lembranças distantes. Os tempos modernos contestavam os padrões de vida e preceitos socioculturais da dinastia otomana, ainda conservadora em vários aspectos diante do "século do progresso". Soma-se a isso as constantes derrotas militares e diplomáticas para as potências europeias como Inglaterra, França, Rússia e Áustria. Se em seu auge o império possuía domínios sobre o Oriente Médio, norte da África e leste Europeu, no final do XIX, seus domínios se restringiam a parte do Oriente Médio. Isso foi um duro golpe para as finanças do Estado, as quais dependiam da tributação dos estados vassalos, assim como, de zonas rurais, portos e cidades mercantis. (ZÜRCHER, 1992, p. 62-66). 

Outro aspecto a ser comentado diz respeito as críticas a monarquia e seu luxo excessivo e autoridade ainda aos moldes absolutistas. Em meados do XIX surgiu um movimento político chamado de Jovens Otomanos (Yeni Osmanlilar), formado por intelectuais provenientes das universidades, fortemente influenciados por ideários iluministas como a democracia, o liberalismo, o republicano e a laicidade. Essas ideias foram defendidas mesmo após o declínio do movimento ainda na década de 1870, que coincidiu com o final do Tanzimat (1830-1870), nome dado ao período reformista do império, que buscou modernizar a nação em vários aspectos como reformulação do código penal, do sistema tributário, abolição de impostos sobre não-muçulmanos, mudanças no alistamento militar, criação de universidades, construção de estradas e ferrovias, mudanças fiscais etc. (HOWARD, 2016, p. 70-73). 

O governo de Abdul Hamide II (1876-1909)

O sultão Abdul Hamide II (1842-1918) tentou assegurar o controle do país em meio a crise daquele período, aprovando uma constituição monarquista, além de adotar outras propostas sugeridas, como a criação de um parlamento. Isso contribuiu para sua boa aceitação, pelo menos, nos anos iniciais, pois decisões erradas acerca da política externa, revoltas nos estados vassalos, surtos de fome, adesão a guerras que foram fiascos, isso tudo foram gradativamente minando a ordem do império, contribuindo para a constante perda de territórios e o aumento de movimentos políticos cobrando a abolição da monarquia e aprovação de uma república e de uma constituição melhor. 

Retrato do sultão Abdul Hamide II

Diante dos problemas enfrentados no final da década de 1870 e começo de 1880, Abdul Hamide II suspendeu a constituição e o parlamento, e governou com despotismo pelos quase trinta anos seguintes. Apesar de seu autoritarismo, o processo de modernização tecnológica do país continuou com a construção de estradas, ferroviais, portos, adoção de energia elétrica e telefonia, por outro lado, massacres contra as comunidades de minorias, a recusa de aceitar a emancipação de estados vassalos, altos gastos com obras públicas, escândalos de corrupção, aumento da inflação, contribuiu para enfraquecer a popularidade do sultão, levando a eclodir uma revolta em 1908. (ZÜRCHER, 1992, p. 80-85). 

A Revolução dos Jovens Turcos (1908-1913)

O movimento chamado Jovens Turcos era influenciado pelos Jovens Otomanos da década de 1870, embora contasse com a adesão de outras alas insatisfeitas com o governo do sultão Abdul Hamide II. Muitos dos idealizadores do movimento estudaram em universidades europeias, especialmente as francesas, sendo influenciados pelo legado político daquele país. Assim, o movimento pretendia promover uma revolução política na Turquia, restaurando o parlamento que foi banido desde 1878, assim como, pedindo a abdicação do sultão e convocação para uma assembleia constituinte. (HOWARD, 2016, p. 77).

A Revolução dos Jovens Turcos ambicionava derrubar a monarquia, implementar uma república e uma nova constituição, para depois começar a resolver os outros vários problemas que afetavam o país. O sultão aceitou restaurar o parlamento, retomar a constituição de 1876 e libertar parte dos presos políticos e iniciar uma negociação para deliberar sua possível abdicação. Porém, meses depois de tais medidas, ele realizou em 13 de abril de 1909 um contragolpe para derrubar os revolucionários, apelando para os monarquistas e conservadores, mas parte do exército havia aderido a causa revolucionária, resultando em massacres de inocentes durante os conflitos entre ambos os lados, como o Massacre de Adana. Após essa tentativa fracassada de contragolpe, Abdul Hamide II aceitou abdicar o trono, passando-o para seu irmão Mehmed V. (ZÜRCHER, 1992, p. 95-96). 

Litogravura mostrando os revolucionários libertando Lady Liberdade de suas correntes. A mulher é uma alegoria para a Turquia. Propaganda política de 1908.
 
No entanto, com a retomada do parlamento, esse mudou o nome para Assembleia Nacional, sendo formada por sua maioria de representantes monarquistas nacionalistas representados pelo Comitê de União e Progresso (Ittihad ve Terakki Cemiyeti), conhecido pela sigla CUP. O qual defendia a manutenção da monarquia parlamentarista, tornando Mehmed V em um governante simbólico. No entanto, a política turca estava dividida em outros setores também. Tínhamos uma parcela de monarquistas conservadores os quais defendiam o retorno da autoridade do sultão, liberais que eram a favor da república, e uma parcela bem menor de socialistas e anarquistas. Porém, como os monarquistas no governo eram maioria, assim, a monarquia parlamentarista foi mantida nesta revolução. 

Os nacionalistas como ficaram mais conhecidos, detinham grande número de assentos no parlamento e na câmara federal, além do apoio das forças armadas e de políticos das províncias. Sublinha-se que o governo nacionalista ainda defendia a ideia de manter os territórios vassalos sob seu controle, o que incluía terras na Bósnia, Sérvia, Bulgária, Armênia, Síria, Palestina, Arábia Saudita e parte do Iraque. A ideia era defender um pan-turquismo, alegando que embora esses povos falassem outras línguas e tivessem suas culturas, mas eles faziam parte do Império Otomano, que buscava se modernizar para o século XX. No entanto, a Rússia tinha interesse na Armênia e incentivou revoltas ali para esses se emanciparem da Turquia, em retaliação os nacionalistas assinaram um pacto secreto com a Alemanha, para solicitar ajuda contra o Império Russo. 

Além dessa questão política externa, o governo turco passou por problemas internos também. Em 1911 ano de eleições para o parlamento, a câmara, províncias e prefeituras houve desentendimentos entre os partidos políticos, especialmente entre os membros da CUP, em que o coronel Sadik Bey, desgostoso com os rumos que o partido havia tomado, deixou a CUP, levando vários partidários consigo, vindo a fundar naquele ano o Partido do Progresso, de vertente nacionalista-liberal. Naquele mesmo ano ocorreram as eleições e vários candidatos do novo partido foram eleitos, chocando a CUP, a qual controlava o país desde 1908. Todavia, a CUP realizou um pequeno golpe de Estado, dissolvendo o parlamento, alegando fraude eleitoral e convocou eleições para 1912, as quais foram efetivamente fraudadas, lhe dando a vitória esmagadora. (HOWARD, 2016, p. 79). 

No entanto, 1912 também foi um ano ruim para a Turquia, o país sofreu um contra-ataque de países europeus do Bálcãs. A Turquia estava em guerra contra a Itália na chamada Guerra ítalo-turca (1911-1912) pela disputa do controle da colônia da Líbia, enquanto parte do exército e da marinha otomanos estavam ocupados na África, os sérvios formaram a Liga Balcânica composta pela Sérvia, Bulgária, Grécia e Montenegro, com a missão de expulsar os turcos dos Bálcãs, isso iniciou a Guerra Balcânica (1912-1913). É válido lembrar que desde o século XV os turcos detinham territórios naquela região europeia no auge de seu império, os países balcânicos faziam parte de seus domínios, agora era chegada a hora dos oprimidos revidarem. 

“Depois que os turcos se envolveram na Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), esses quatro países formaram a Liga Balcânica e se mobilizaram para a guerra. Em outubro de 1912, quando os turcos fizeram as pazes com os italianos, abrindo mão da Líbia, a Liga declarou guerra ao Império Otomano, iniciando, assim, a primeira Guerra dos Bálcãs. Entre as grandes potências, a Rússia apoiou a Liga e a Áustria-Hungria, os otomanos, e as tensões entre os dois impérios ficaram sérias a ponto de cada um mobilizar parcialmente seus exércitos. Quando a guerra chegou ao fim, em maio de 1913, as grandes potências permitiram que a Sérvia ficasse com Kosovo e a Grécia, com Épiro, mas determinaram que o restante do território albanês fosse cedido para um novo país independente. A Grécia também recebeu Creta e dividiu com a Sérvia a Macedônia, limitando à Trácia os ganhos da Bulgária. Incitados por uma violenta indignação pública por conta do magro espólio, apenas um mês depois os búlgaros declararam guerra à Sérvia e à Grécia, na esperança de assegurar parte da Macedônia. Na breve segunda Guerra dos Bálcãs, os turcos retomaram as hostilidades contra os búlgaros, e Montenegro também interveio, mas a entrada da Romênia (que se mantivera neutra na primeira Guerra dos Bálcãs) se mostrou decisiva, o que levou a Bulgária a abandonar parte de suas conquistas anteriores na Trácia, de modo a se defender contra uma invasão romena desde o norte. No acordo que deu fim ao conflito em agosto de 1913, a Bulgária recuperou a Trácia ocidental e uma rota de saída para o mar Egeu, mas devolveu a Trácia oriental ao Império Otomano e cedeu Dobruja à Romênia. As Guerras dos Bálcãs deixaram a região mais volátil do que nunca”. (SANDHAUS, 2013, p. 34-35). 

Interlúdio: A Primeira Guerra (1914-1918)

A Primeira Guerra Mundial teve início em 1914 após o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Fernando (1863-1914) durante o trajeto de carro até a prefeitura de Saravejo, quando um terrorista de nome Gavrilo Princip (1894-1918) o assassinou no caminho. Fernando era herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, sua morte foi considerada um crime contra o Estado. Nesta época os sérvios reivindicavam sua independência da Áustria-Hungria, sendo assim, Princip num ato inconsequente cometeu esse assassinato que mudou a História. 

Naquele ano a Áustria-Hungria era aliada da Alemanha e da Itália, tendo formalizado há vários anos o pacto da tríplice aliança que basicamente ditava que em caso de uma guerra contra qualquer dos aliados, os outros deveriam ajudá-los. Sendo assim, após a morte do arquiduque Fernando em 28 de junho de 1914, o governo austro-húngaro iniciou uma série de investigações nas províncias da Sérvia e da Bósnia, procurando os responsáveis por planejarem a morte do nobre, havia suspeitas de que os russos estivessem envolvidos, pois eles apoiavam a independência dos sérvios. No dia 31 de julho os russos mobilizaram seus exércitos para as fronteiras antevendo um possível conflito, todavia, os austro-húngaros e alemães consideraram aquilo como um atestado de culpa, então o kaiser Guilherme II da Alemanha declarou guerra ao czar Nicolau II da Rússia

A notícia da declaração de guerra se espalhou rapidamente, fato esse que a França que era aliada da Rússia, e disse que se os alemães os atacassem, eles seriam invadidos. O kaiser Guilherme II aceitou a provocação e mandou no dia 2 de agosto invadir Luxemburgo e no dia seguinte as tropas adentraram a Bélgica. A guerra havia começado. A Itália que era aliada da Alemanha e da Áustria-Hungria manteve-se de início de fora do conflito. O assassinato do arquiduque Fernando em Saravejo foi apenas um pretexto para a guerra começar, pois as tensões já eram grandes a vários anos; as potências europeias só queriam uma desculpa para começar uma guerra para se atacarem e disputarem o controle de colônias, territórios, estradas, ferroviais, portos, recursos naturais etc. Eram tempos de imperialismo ainda. 

Como a Turquia havia assinado um acordo militar secreto com a Alemanha poucos anos antes, com a eclosão da guerra, os alemães fizeram valer o acordo, exigindo o suporte dos turcos. O governo da CUP encarou isso como uma grande oportunidade, pois ambicionavam o estado de guerra para recuperar territórios perdidos nos Bálcãs que resultou na Guerra Balcânica (1912-1913), a disputa da Líbia com os italianos, além de problemas na Armênia, Chipre, Síria, Palestina etc. Significava que para os nacionalistas da CUP havia chance de manter tais territórios e talvez até conquistar outros. O sultão Mehmed V chegou a fazer uma declaração pública para toda a nação anunciando a entrada do país na Grande Guerra. (SHAW; SHAW, 1977, p. 310-311).

Mapa do Império Otomano em 1914. Os gregos, italianos, franceses e ingleses começaram a atacar tais territórios durante a guerra. 

As tropas turcas basicamente ficaram restritas aos territórios vizinhos, lutando sobretudo nos Bálcãs, Mar Negro, Síria, Palestina, Arábia, Iraque e Egito. Por sua vez, a Armênia sofreu um duro golpe nesse período da guerra, pois suas tentativas de se rebelar ao domínio otomano eram rechaçadas com profunda truculência que durou anos, resultando no chamado Genocídio Armênio (1915-1923), que teria vitimando algo entre 800 mil a 1,8 milhão de armênios. Além desse grande número de mortos, soma-se mais de 400 mil soldados otomanos vitimados durante a guerra e outros milhares de civis que morreram no conflito. (SHAW; SHAW, 1977, p. 317-327).

A participação na Grande Guerra foi desastrosa para a Turquia em vários aspectos. Milhares de mortos, destruição em várias cidades, altos gastos, perca de territórios, aumento do endividamento do país, aumento do custo de vida, cerco das nações europeias ao império. Frustração generalizada com a CUP e os apoiadores da campanha militar, desilusão quanto aos ideários nacionalistas e pan-turcos. Exército fragmentado em vários territórios que foram sendo perdidos. O sonho de reerguer a glória do Império Otomano havia ruído mais uma vez. E para concluir 1918, o último ano da guerra, o sultão Mehmed V faleceu de velhice, sendo sucedido por seu irmão Mehmed VI, que se tornou o último sultão do Império Otomano. 

Em 30 de outubro de 1918 foi assinado o Armistício de Mudros que punha fim aos conflitos entre os trucos e as nações europeias que os atacavam. O armistício foi aprovado após semanas de negociações, no entanto, a Turquia não saiu vencendo com isso, pelo menos não da forma que esperava. Os território invadidos foram mantidos sobre o controle dos exércitos europeus, importantes cidades como Damasco, Israel, Adana, Tarso, as ilhas de Chipre e Rodes, e a própria capital do império, Istambul, foram ocupadas por tropas francesas e britânicas ainda em novembro daquele ano. A CUP a contragosto concordou com o armistício, embora parte de seus membros consideravam isso sinal de fraqueza. O império estava desmoralizado, invadido e a mercê de inimigos. (SHAW; SHAW, 1977, p. 329).

A guerra de independência (1919-1923)

Com o fiasco da participação da Turquia na Grande Guerra, a situação do país que estava ruim, ficou pior. Várias regiões estavam ocupadas por tropas gregas, italianas, francesas e britânicas, enquanto o genocídio armênio ainda continuava. Os liberais viram a oportunidade de crescer nesse período, culpando os nacionalistas da CUP pelas mazelas do país por terem aceitado entrar numa guerra malfadada. Entre os liberais-nacionalistas que se destacaram naquele momento estava o marechal Mustafa Kemal (1881-1938), que ganhou fama e respeito das forças armadas por suas campanhas durante a guerra. Kemal era o típico homem que defendia preceitos nacionalistas, fato esse que ele foi um dos idealizadores do Movimento Nacional Turco surgido em 1919 para defender a soberania do país frente a intervenção estrangeira. Por ser um liberal também, ele era a favor de pôr fim a monarquia parlamentarista, instaurar o republicanismo, assim como, instituir o laicidade do Estado. O marechal Mustafa Kemal ficaria mais tarde conhecido como o "Pai da República Turca". (SHAW; SHAW, 1977, p. 340-342).

Mustafa Kemal, o líder que comandou a guerra de independência e o estabelecimento da república.

O marechal Kemal deu início aos planos de expulsar os estrangeiros a partir de maio de 1919, iniciando a guerra de independência. Para isso, ele passou a negociar com os russos, cedendo territórios da Armênia em troca de armas e veículos de guerra. Sendo assim, o armistício de Mudros durou menos de um ano, pois sete meses depois de sua aprovação a guerra havia reiniciado. Kemal tratou de focar em inimigos situados no território da Turquia, que incluía os franceses, gregos e italianos, já que os britânicos ocupavam territórios no Oriente Médio. Ainda em setembro daquele ano foi convocada eleições parlamentares e os vitoriosos a maioria apoiavam a política liberal-nacionalista de Mustafa Kemal, que apresentava o objetivo de recuperar o controle do país. (KAYALI, 2008, p, 125-128).

Com a realização das eleições entre 1919 e 1920, Kemal foi eleito vizir (primeiro-ministro), lembrando que o sultão Mehmed VI vivia em Istambul, mas sob tutela do governo britânico. Porém, ele era apenas um fantoche nas mãos dos inimigos. Estando de posse do novo cargo, Kemal tratou de mudar a sede do governo, transferindo-o de Istambul para Ankara, onde foi estabelecido o novo parlamento. Além disso, desde então a cidade se tornou oficialmente a capital da Turquia até hoje. 

Em 10 de agosto de 1920 foi proposto o Tratado de Sevres, organizado entre os países europeus que ocupavam a Turquia. A ideia era pôr fim a guerra de independência, forçando o governo turco a reconhecer sua derrota, assim como, autorizando a emancipação da Armênia e a criação do estado autônomo do Curdistão. O tratado também reforçava a posse de Esmirna e de algumas ilhas para ficarem sob domínio grego. O sul da região da Anatólia e o oeste da Cilícia passariam para o controle italiano; os franceses controlariam o leste da Cilícia e o território sírio. Já os britânico abocanhavam parte do hoje é o Iraque, Israel e a Palestina. (KAYALI, 2008, p, 130).

Mapa do Tratado de Sevres apresentando os territórios ocupados pelos exércitos europeus, a Armênia e o Curdistão ao sul dessa. 

Parte da população do império aceitava se submeter ao governo estrangeiro, o que incluía sírios, iraquianos, palestinos e árabes. Os armênios e curdos também defendiam o tratado, pois assim assegurariam sua autonomia e esperavam que isso poria fim aos massacres perpetrados pelos turcos ali. Porém, havia turcos que não gostavam de se sujeitar ao domínio grego e italiano devido a guerra contra eles que durava oito anos. Por sua vez, os nacionalistas mais fervorosos eram totalmente contrários as propostas desse tratado. Evidentemente que a CUP, o Partido do Progresso e o Partido Nacional Turco (ao qual pertencia Kemal), eram contrários a essa proposta, por conta disso, a guerra foi mantida.

A campanha contra os gregos e italianos estiveram entre as mais duras, pois o exército grego ao longo de 1921 avançou rumo a Ankara, com o objetivo de capturar a capital e forçar o parlamento a aceitar o Tratado de Sevres, se isso tivesse ocorrido, teria sido uma grande derrota para as forças de resistência, no entanto, as tropas turcas conseguiram resistir e frearam o avançar grego vencendo a Batalha de Inonu (11 de janeiro de 1921) e na Batalha de Sacaria (23 de agosto a 13 de setembro de 1921), a qual foi travada nos arredores da capital. A vitória em Sacaria foi fundamental para evitar a captura de Ankara pelo exército grego, forçando a recuar até a região de Esmirna. (KAYALI, 2008, p, 137-138).

Litogravura grega mostrando uma cena da Batalha de Sacaria. O documento enfatizava a superioridade do exército grego, alegando que a vitória estaria próxima. 

Dentre as nações europeias que ocupavam a Turquia, os gregos apresentaram-se como a maior ameaça, pois eles tentaram conquistar a capital Ankara, mas não significa que não tenha havido conflitos contra os italianos e franceses. Somente os britânicos é que mantiveram-se mais longe de grandes batalhas. O Tratado de Ankara (1921) encerrou os conflitos contra os franceses, cedendo os territórios sírios em troca da Cilícia. Já os conflitos com os italianos também foram se encerrando em 1921, por sua vez, os britânicos propuseram novos acordos para manter o controle dos territórios no Oriente Médio, em troca de remover suas tropas gradativamente de Istambul e outras terras ocupadas pela Turquia. 

Em 1922 a situação da guerra estava se resolvendo já que o governo havia negociado alguns acordos com quase todos seus invasores, faltava resolver o problema com os gregos. Dessa forma, naquele ano ocorreu a "grande ofensiva" do exército turco, cuja missão era empurrar os gregos de volta ao Mar Egeu e forçar a saída desses da Anatólia. Entre janeiro e fevereiro as campanhas turcas iam minando as conquistas gregas, forçando esses a recuarem, no entanto, o governo grego relutava em abandonar aquela guerra, assim, por intermédio dos britânicos, foi proposto em março uma mesa de negociações. (ZURCHER, 1992, p. 155-156). 

Os gregos ainda assim não acataram a proposta de se retirar, postergando a guerra até setembro daquele ano, vindo a sofrer pesadas derrotas como a Batalha de Dumlupinar (26-30 de agosto de 1922) que marcou a derrota do exército grego. Pois em setembro o exército turco adentrou Esmirna, cidade sob domínio grego, e que funcionava como sua base de operações na Anatólia. 

Pintura representando a chegada triunfal do exército turco em Esmirna, ocupada pelos gregos nos últimos anos. 

No mês de setembro ocorreu a retirada das tropas gregas e se sucedeu um período de trégua, a qual foi reforçada com o Armistício de Mudanya, proposto em 12 de outubro. Itália, França e Reino Unido aceitaram a proposta, mas a Grécia somente concordou com os termos dois dias depois. O armistício permitiu que populações gregas na Turquia pudessem migrar para a Grécia, Macedônia ou Bulgária, por outro lado, encerrava a perseguição aos muçulmanos na região, como ditava também a retirada de tropas e navios do território turco. A guerra contra a Grécia havia chegado ao fim. O vizir Kemal aproveitou também o momento para anunciar no mês de novembro sobre a dissolução da monarquia, destituindo o sultão Mehmed VI de seu título, mas permitindo partir para o exílio. O monarca se exilou na Itália. (HOWARD, 2016, p. 90-91). 

A monarquia otomana chegava ao fim após seis séculos, tendo o último sultão sido deposto e enviado ao exílio. No dia 23 de novembro de 1922 teve início na Suíça, país neutro, a realização da Conferência de Lausanne, a qual duraria alguns meses. A conferência tinha como proposta chegar a um acordo de paz entre Turquia, Grécia, Itália, França e Reino Unido, além de questões territoriais e indenizatórias. Mas enquanto esse acordo ainda não era concluído, em Ankara, Mustafa Kemal Paxá mobilizava a transição do governo para a república. (ZURCHER, 1992, p. 161-162). 

Viva a república (1923)

No ano de 1923 a guerra de independência havia chegado ao fim. Os conflitos ocorridos eram pequenos, oriundos de protestos espalhados pelo país, além da reação dos armênios e curdos contra a opressão que viam sofrendo a anos. Em 24 de julho foi assinado o Tratado de Lausanne após meses de negociações. O tratado estabeleceu uma série de exigências, mas algumas das principais foi encerrar a guerra entre os cinco países. A Grécia e a Itália foram os mais prejudicados, tendo perdido a maior parte do território que haviam conquistado, sobrando algumas ilhas para eles. Por sua vez, a França conseguiu ficar com a Síria, o Reino Unido levou para si parte do Iraque e da Palestina (o Estado de Israel ainda não existia). A Armênia conseguiu colocar fim ao genocídio, a custa de muitas vidas perdidas, e se separou da Turquia, embora tenha perdido parte de seu território e estava sob tutela da Rússia. Já o Curdistão foi novamente negada sua criação, e seu território permanece até hoje como parte da Turquia. Os turcos ainda conseguiram manter terras na Europa, disputada pelos gregos e búlgaros. (KAYALI, 2008, p. 140-142). 

Mapa da Turquia proposto em 1923 durante o Tratado de Lausanne. 

Com a aprovação do tratado em julho, o governo interino iniciou os preparativos para a transição para a república, sendo essa oficialmente proclamada em 29 de outubro de 1923, em que o marechal Mustafa Kemal Paxá foi eleito o primeiro presidente do país. Na prática ele já governava a Turquia desde 1919. Kemal iniciou assim uma política de reconstrução da nação que se estendeu até 1938, quando terminou seu longo mandato, devido a sua morte. Por conta das reformas empreendidas, Kemal recebeu o epíteto de Atatürk ("pai dos turcos"). 

O presidente Mustafa Kemal Atatürk discursando para o povo em 1924. 

O processo para efetivação da república na Turquia foi demorado e marcado por guerras. Se levarmos em consideração que os planos para uma república tiveram início lá na década de 1870 pelo menos, isso somente se concretizou mais de cinco décadas depois, sendo que desse período, de 1911 a 1922, foi uma década de guerras contínuas, as quais ceifaram as vidas de milhões de pessoas entre turcos, armênios, curdos, sírios, palestinos, iraquianos, britânicos, gregos, italianos, franceses, russos e outros povos envolvidos na Primeira Guerra e demais conflitos. Não obstante, o estabelecimento da república em 1923 foi o primeiro passo apenas, fato esse que durante o mandato de Kemal Atatürk (1923-1938) ocorreu a efetivação da república e sua nova constituição. 

NOTA: No quadrinho A casa dourada de Samarcanda (1980-1985), o protagonista Corto Maltese passa pela Turquia e a Armênia durante o período da guerra de independência. Alguns armênios que ele conhece, falam do conflito contra os turcos e citam até o marechal Mustafa Kemal como sendo seu inimigo. 
NOTA 2: Mustafa Kemal foi por algum tempo chamado de Paxá, título honorífico da dinastia otomana, dado para governantes e ministros. O título foi abolido em 1934.
NOTA 3: Em 1924 o presidente Mustafa Kemal aprovou o fim do califado otomano, última instituição ligada a monarquia, a qual associava o sultão como um líder religioso. Tal decisão abriu caminho para a laicidade do Estado. 
NOTA 4: O sultão Mehmed VI passou o restante da vida em exílio na Itália. 
NOTA 5: A república turca por vários anos não teve um período delimitado para o mandato dos presidentes, fato esse que Kemal Atatürk governou por 15 anos, seu sucessor, o presidente Ismet Inönü, governou por 12 anos, outros presidentes governaram por 6 a 8 anos. O tempo de mandato para a presidência somente foi regulamentado a partir de 2014 para um período de 5 anos. 

Referências bibliográficas

HOWARD, Douglas A. The History of Turkey. 2a ed. Santa Barbara, ABC-Clio, 2016. 

KAYALI, Hasan. The struggle for independence. In: KASABA, Resat (ed.). The Cambridge History of Turkey, volume 4: The Turkey in the Modern World. Cambridge, Cambridge University Press, 2008, p. 112-146. 

SHAW, Stanford J; SHAW, Ezel Kural. History of the Ottoman Empire and Modern TurkeyVolume II: Reform, Revolution, and Republic: The Rise of Modern Turkey, 1808-1975. 7a reprinted (2002). Cambridge, Cambridge University Press, 1977. 

SONDHAUS, Lawrence. A Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Contexto, 2013. 

ZÜRCHER, Erik J. Turkey: A Modern History. 3a ed. Istambul, I.B. Tauris, 1992. 

Links relacionados:

100 anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918)

O bombardeio de Constantinopla: a Queda do Império Bizantino


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Kowloon: a cidade do crime

Durante algumas décadas do século XX a cidade murada de Kowloon, na China, foi um local densamente povoado, mas de condições sanitárias precárias e uma terra sem lei, onde imperava bandidos, traficantes, mafiosos e toda sorte de gente miserável e envolvida com negócios ilícitos. Kowloon era num sentido mais ruim da palavra, uma favela de prédios sujos, desorganizados, sem água potável, de becos e ruelas escuras, um lugar inseguro, fétido e sórdido. Ainda assim, foi o lar de milhares de pessoas que sem condições de morar em outra localidade melhor, se sujeitavam aquele ambiente degradante. 

Fotografia dos anos 1980 de um dos lados de Kowloon, com seu aglomerado de edificações irregulares. 

Origem

Kowloon é uma cidade chinesa sendo vizinha de Hong Kong. Suas origens remontam há séculos, mas ela nunca teve expressividade. Durante o XIX, a Dinastia Qinq (1644-1912) a partir de 1842 cedeu Hong Kong ao domínio colonial britânico, além de parte do território de Kowloon também. Naquele tempo a região era pouco habitada e ainda contava com bosques e fazendas. Na área onde se localizava uma antiga fortaleza murada, começou a se construir um povoado em fins do XIX. Porém, esse povoado não fazia parte do território britânico, apesar de estar na fronteira desse.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Japão invadiu várias regiões da China, ocupando-as, incluindo Hong Kong e Kowloon. Durante os anos de ocupação, os japoneses destruíram parte das cidades, incluindo a condição que as muralhas de Kowloon foram demolidas também, revelando seu povoado com poucos milhares de habitantes. Apesar de ser chamada de cidade murada de Kowloon, na prática, tratava-se de um distrito, não uma outra cidade, mas a nomenclatura permaneceu.

Com o término da guerra e os danos causadas por essa, muitos pobres sem conseguir moradia em Hong Kong, que seguia sob gestão britânica, passaram a ir morar no distrito de Kowloon, e como não havia mais muralhas, o local começou a se expandir de forma desordenada. Além disso, a região que possuía praticamente ausência de policiamento, tornou-se o lugar perfeito para criminosos. 

Algumas edificações de Kowloon com sua arquitetura precária. A "cidade" foi considerada uma "favela vertical". 

Embora não tivesse mais muralhas, no entanto, o território da "cidade" estava limitado a 2,6 hectares e como não se tinha direito de construir para fora dessa delimitação, a solução foi verticalizar a povoação, no que resultou em décadas de construções irregulares. Kowloon se tornou uma "favela verticalizada", com edificações que ganhavam andares extras ou eram construídas sobre as menores, mas atingiam o limite de 14 andares por conta do aeroporto ser próximo. Por conta disso, as pessoas as vezes iam para o terraço dos prédios, cheios de antenas, entulho, caixas d'água, baldes (para pegar água da chuva), para ver os aviões. As crianças e adolescentes também gostavam de ir para lá, a fim de brincar de pular de um prédio para o outro. 

Uma cidade fora da lei

A antiga cidade murada de Kowloon começou a crescer entre as décadas de 1960 e 1980, vivenciando um forte boom populacional por conta de imigrantes pobres de algumas regiões chinesas, mas também de imigrantes vindos do Japão, Coreia e Filipinas. Por conta da carência de segurança e policiamento, já que os britânicos nada podiam fazer porque era território fora de sua jurisdição, assim como, o governo de Kowloon era negligente, com isso o crime não apenas cresceu naquela localidade, mas passou a dominar e comandar. 

Kowloon se tornou um aglomerado de cortiços e lojas, com prédios feios, colados nos outros, separados por vielas, possuindo até pontes ou passarelas improvisadas. Com exceção das ruas principais, as que adentravam o complexo eram ruelas escuras, abafadas, úmidas e sujas. Milhares de pessoas passavam diariamente por essas vias sombrias onde se podia encontrar ratos, baratas, lixo, mas também ver usuários de drogas, bêbados moribundos, mendigos, prostitutas, agiotas, mafiosos fazendo ronda. Nessa "cidade" apertada viveram de 30 a 50 mil habitantes, tornando-a a zona mais densamente povoada da China. 

Fotografia de Greg Girard de uma ruela em Kowloon. No teto era comum encontrar um emaranhado de tubulações e fios, representando ligações clandestinas de água, luz e telefone. 

O governo chinês apesar de pouco eficaz, não significou que nada fez durante seis décadas, houve operações policiais, principalmente nos anos 1970 para desbaratar a Tríade (a máfia chinesa), mas outras medidas incluíram cortar o fornecimento de energia elétrica e água encanada, mas isso não impediu que ligações clandestinas fossem feitas, além de que pessoas optassem por buscar água em poços improvisados e até viver à luz de velas e lampiões, tamanha a miséria no local. Dessa forma, tais pessoas não abandoaram Kowloon. 

Emaranhado de cabos e fios numa loja em Kowloon, isso era comum devido a falta de infraestrutura organizada e as ligações clandestinas. 

A segurança em Kowloon era uma falsa sensação, pois não havia policiamento regular, os mafiosos controlavam o local e faziam suas próprias regras, incluindo toques de recolher, controle de quem tinha acesso a determinadas ruas, vielas e áreas, além de mandar espancar, prender, torturar e matar os que desobedeciam suas regras, os afrontavam ou cometiam algum erro. Eles também cobravam alugueis e exploravam os comerciantes e moradores extorquindo-os. Apesar disso, parte da população decidiu se sujeitar aos desmandos dos criminosos. 

Por sua vez, em Kowloon devido a falta de policiamento e fiscalização, espalhou-se toda a variedade de negócios ilícitos como prostíbulos, casas de ópio e casas de apostas. Além disso, os restaurantes e bares faziam uso de prostituição, jogatina e drogas. Na "cidade" também se estabeleceu outros negócios ilícitos como clínicas clandestinas de dentistas e médicos que operavam e consultavam sem ter licença e as vezes nem formação profissional concluída. 

Um consultório odontológico ilegal em Kowloon nos anos 1980. A "cidade" concentrava dezenas de dentistas para um território pequeno. 

Esses médicos e dentistas exerciam suas profissões de forma irregular, que em vários casos geravam problemas. Apesar de não faltar clientela, pois cobravam barato e até cobravam troca de favores. As pessoas pobres acabavam se sujeitando a eles. Inclusive pobres que viviam em outros bairros ou em Hong Kong, chegavam a procurar essas clínicas para arrancar dentes, tratar ferimentos e até praticar aborto. 

Além das clínicas clandestinas outros negócios sem fiscalização operavam nessa cidade criminosa como restaurantes, bares, padarias, açougues, farmácias, fábricas (de produtos diversos) etc., os quais não tinham alvará de funcionamento e a vigilância sanitária nem se quer passava por ali. Por conta disso, era fácil encontrar produtos pirateados, mercadorias contrabandeadas, mas o pior de tudo eram os remédios falsificados e os alimentos de procedência duvidosa. Em Kwoolon havia "fábricas" caseiras de macarrão, pães, bolos, doces e até os infames açougues que vendiam carne de cachorro e gato, literalmente falando. 

Um açougue clandestino em Kowloon, algo comum. Alguns faziam uso de carne de cães e gatos. Foto de Greg Girard. 

Essas clínicas clandestinas e fábricas ilegais operavam em ambientes insalubres, apertados, escuros, alguns funcionando em porões. Mas vale ressalvar que devido a limitação do espaço para construir a "cidade", a maioria dos apartamentos eram pequenos, equivalendo a quitinetes hoje em dia, mas eram moradias que deveriam servir para cinco ou mais pessoas viverem da melhor forma que conseguiam se sustentar. 

No entanto, nem todo mundo que trabalhava em Kowloon agia de forma desonesta, parte da população possuía seus negócios e trabalhavam duro e honestamente, embora vivessem na pobreza e sob o comando da máfia. Ali também existiam escolas e creches, e crianças passaram a infância e até parte da vida adulta morando naquela localidade marginalizada. Os dentistas e médicos que tralhavam ali, nem todos eram impostores ou interesseiros, alguns que não conseguiram passar nos exames para tirar a licença de atuação ou reprovaram nos cursos, ia para Kowloon montar clínicas e consultórios para exercer a profissão com boa intenção, mesmo que ilegalmente. 

A destruição da cidade murada de Kowloon

A partir de 1987 o governo chinês e o governo britânico de Hong Kong decidiram que para acabar com os problemas sociais e criminosos associados com a cidade murada de Kowloon o melhor era desapropriar aquela zona e demoli-la. Após décadas de incompetência governamental para resolver os problemas do crime naquele distrito, a solução foi pôr tudo abaixo. 

A partir de 1988 o processo de desapropriação e remoção das famílias teve início, durando cinco anos para ser finalizado. Parte dos moradores não gostou de ter que se mudar, apesar de viverem num local precário, o sentimento de lar existia ali. Por outro lado, os que viviam ali por não terem condições de comprarem casas ou pagar o aluguel em outras localidades, aceitaram de bom grado a mudança e a ajuda fornecida pelo governo. Dessa forma, em março de 1993 teve início o processo de demolição do complexo. 

Vista aérea da antiga "cidade" murada de Kowloon em 1989, época que sua desapropriação já tinha iniciado. 

Foram semanas de atividades para demolir todos os edifícios e depois mais alguns meses para remover os escombros, sendo que as obras terminaram em 1994. No lugar da antiga cidade do crime foi construído um grande parque arborizado, com lago, quadras esportivas, quiosques e até uma zona arqueológica foi desenterrada, mostrando os vestígios da antiga fortificação ali existente. O Parque da Cidade Murada de Kowloon valorizou todo o território ao redor, concedendo frescor e beleza a aquele canto sombrio e miserável que um dia havia sido. 

Vista aérea do parque construído sobre a cidade do crime de Kowloon. 

Referência bibliográfica
LAMBOT, Ian. City of Darkness: Life in Kowloon Walled City. s. l: Watermark, 2007. 

Referências da internet

sábado, 18 de novembro de 2023

Uma história da literatura de fantasia

A literatura de fantasia é um dos maiores gêneros literários da atualidade, repercutindo em longas séries ou livros volumosos, os quais criarem esplendidos mundos ou universos fantásticos. O presente texto comenta alguns aspectos da história desse gênero literário, apresentando seu conceito, vários exemplos e subgêneros. 

Introdução

Se considerarmos que uma narrativa de fantasia é aquela que contenha monstros, magia e sobrenatural, então hoje em dia muitas histórias em quadrinhos, seriados, desenhos, filmes e jogos de videogame são obras de fantasia, pois possuem uma ou essas três prerrogativas. 

Por sua vez, se levarmos essas características básicas de forma strictu sensu, significa também que narrativas oriundas de mitos, lendas, contos de fadas, folclore e canções populares também seriam fantásticas por abordarem monstros, heróis, magia, deuses e outros seres. Sendo assim, o gênero fantástico existiria já a milhares de anos, tendo como exemplos a Epopeia de Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, o Mahabaratha, o Ramayana, somente para citar alguns exemplos. Neste sentido, o gênero de fantasia se confundiria com a poesia épica (ou epopeia), a qual conota os exemplos dados acima. 

E adentrando o período medieval as obras de fantasia ainda continuaram a surgir como a Edda Poética, a Edda em Prosa, as sagas islandesas, a Divina Comédia, as gestas de cavalaria, as crônicas das lendas arturianas, o Shahnameh dos persas, o Mabinogion dos galeses; mais tarde no período moderno tivemos a compilação dos contos de fadas europeus, a Viagem para o Oeste dos chineses, o Popol Vuh dos maias, Os Lusíadas (1582), Paraíso Perdido (1667), As Mil e Uma Noites (1707). Todas essas obras citadas poderiam ser consideradas do gênero fantástico caso tomemos conceito mais reducionista da coisa, porém, como diferencia essa produção pré-contemporânea da produção contemporânea?

Antes de conceituar o gênero fantasia é preciso distinguir duas palavras: fantasia e fantástico. Neste caso, outros gêneros literários podem possuir elementos fantásticos (magia, monstros, divindades, sobrenatural). Dessa forma, os mitos, lendas, contos de fadas e o folclore possuem elementos fantásticos, mas não seriam definidos como obras de fantasia no sentido de gênero literário, pois se tratam de uma forma de escrita e linguajar próprios. (CLUTE; GRANT, 1997, p. 335). 

O Romantismo e a origem da literatura de fantasia

A literatura de fantasia começou a surgir no século XIX com influência do Romantismo, que resgatou aspectos do medievalismo, das mitologias europeias e do folclore para criar pinturas, esculturas, romances, contos, poemas, peças de teatro, óperas e músicas. Dessa forma, temos a construção de um texto para abordar temas diversos como amor, vingança, amizade, aventura, redenção, viagem, drama, tragédia, suspense, mistério etc., contendo elementos fantásticos em sua trama. Sendo assim, se os mitos e lendas possuem seu estilo de linguagem, o romance de fantasia também possui suas características literárias. (CLUTE; GRANT, 1997, p. 338). 

Brian Stableford (1983) assinala que uma das primeiras obras de fantasia no sentido de gênero literário foi o romance Undine (1811) do escritor Friedrich de la Motte Fouqué (1777-1843), que escreveu a história da paixão de uma ondina (um tipo de espírito aquático) por um humano. A obra fez rápido sucesso, até virou ópera em 1816, todavia, os estudiosos de literatura contestam se esse livro pode ser considerado um representante do gênero fantasia, pois Fouqué se inspirou na escrita e linguagem de contos de fadas para escrever Undine

Entretanto, Penrith Goff (1985, p. 111-121) defendia que desclassificar um romance de fantasia dos idos do XIX só porque ele era baseado nos contos de fadas seria um erro, pois os escritores românticos foram buscar nessas fontes da tradição popular inspiração para suas primeiras obras de fantasia, depois foram recorrer a mitologia, lendas e o folclore. Sendo assim, para Goff, a literatura de fantasia teria nascido com base nos contos de fadas. Dessa forma, ele cita outros exemplos literários como The Golden Pot: A Modern Fairy Tale (1814) e O Quebra-Nozes e o Rei Rato (1816), ambos escritos pelo escritor e compositor prussiano Ernest Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822). 

Vale ressalvar que nessa época o escritor, poeta e tradutor Ludwig Tieck (1773-1853) fundou uma revista literária intitulada Phantasus (1812-1817) na qual se publicava contos fantásticos, a maioria baseados nos contos de fadas. O interessante dessa revista era seu título também, pois remetia a palavra fantasia que é de origem grega estando associada com Fântaso, um dos deuses dos sonhos, responsável por fazer termos sonhos surreais e fantásticos. (HAASE, 1985, p. 89-90). 

Edição de 2018 do volume 1 de Phantasus de Ludwig Tieck, originalmente publicado em 1812. 

O próprio termo fantasia foi empregado em outras obras também como o romance Phantasmion (1837) da escritora Sara Coleridge e Phantastes (1858) do escritor George MacDonald, apenas para citar alguns exemplos, pois existem outros, o que conota como os autores daquele século já estavam ciente do emprego dessa palavra para se referir a um gênero literário em desenvolvimento. 

Por conta disso, a palavra fantasia que era de origem grega, passou para o latim e outros idiomas europeus, significando algo imaginário, surreal, maravilhoso, surpreendente, onírico, estranho, mágico, entre outros adjetivos. A palavra fantasia também passou a ser usada para comentar sobre sonhos e desejos (como o fetichismo sexual), e até a designar trajes e outras coisas. (CLUTE; GRANT, 1997, p. 338-339). De qualquer forma, Tieck usou a palavra phantasus para remeter a essa percepção do fantástico. 

Assim, o gênero fantasia havia surgido no XIX e foi se desenvolvendo pelo restante do século, havendo uma profusão de obras produzidas pela Europa, destacando isso. Inicialmente até a década de 1840, a influência dos contos de fadas era bem nítida, depois ela começou a decair e passou a crescer elementos folclóricos e de mitologia germânica, celta, nórdica, eslava e grega. O uso de monstros também foi se tornando mais comum, surgindo até algumas narrativas sombrias. 

A fantasia no século XX

No século XX, mais especificamente entre as décadas de 1900 e 1940 nos Estados Unidos, o gênero fantasia vivenciou suas primeiras mudanças mais drásticas. Foi nesse período que se popularizou as pulp fiction, revistas de papel barato que publicavam semanalmente ou mensalmente contos, alguns até contendo ilustrações. Eram periódicos que publicavam narrativas de aventura, mistério, investigação, ficção científica, fantasia, romance, terror, erotismo etc. (STABLEFORD, 2005). 

Algumas revistas que se popularizaram nessa época foram: The Popular Magazine, Adventure, Blue Book Magazine, Amazing Stories, Marvel Tales, Planet Stories, Unknown etc. Mas uma das revistas que teve um forte destaque para reinventar o gênero fantasia foi a Weird Tales, lançada em 1923 e que completou cem anos de atividade. Essa revista ficou conhecida por publicar histórias de fantasia, aventura, ficção científica e terror, sendo um grande sucesso nas décadas de 1930 e 1940. 

Capa da primeira edição da Weird Tales, em 1923. 

No caso das histórias de fantasia, observou-se nas décadas de 1920 a 1940 a tendência de apresentar narrativas com pegada adulta, contendo violência, mistério, magia e erotismo. Inclusive a parte erótica era marcante nas capas e ilustrações dessas revistas. Foi na Weird Tales que surgiu Conan, o Bárbaro (1932), que se tornou um ícone de uma nova forma de escrever fantasia no século XX. 

O sucesso das pulp fiction durante a Grande Depressão (1929-1939), contribuiu para impulsionar o mercado de histórias em quadrinhos, o qual por sua vez, alavancou o gênero de fantasia com as histórias de super-heróis. Por sua vez, na década de 1950 uma nova leva de livros de fantasia começaram a serem publicados como O Senhor dos Anéis e as Crônicas de Nárnia, duas obras que tiveram um grande peso no desenvolvimento da literatura de fantasia para fora das revistas e quadrinhos, além de influenciar a origem do subgênero alta fantasia, que marcou o surgimento de algumas séries literárias nas décadas seguintes. 

Por sua vez, nos anos 1990 e 2000, observou-se o aumento de livros de fantasia voltados para o público infanto-juvenil, graças a popularidade de obras como Harry Potter e Percy Jackson, condição essa, que hoje o mercado de literatura fantástica para jovens entre seus 10 a 25 anos é bem produtivo, havendo um aumento de novos escritores na área, embora nem sempre consigam destaque nesse nicho. 

Os Fantasmas do Natal

Em 1843 o escritor Charles Dickens (1812-1870) então escreveu em um mês um pequeno romance natalino intitulado Um Conto de Natal (A Christmas Carol), uma narrativa juvenil-adulta de fantasia. A trama se passa em Londres no século XIX, num ano indefinido, mas a história ocorre principalmente durante as vésperas do Natal, quando o banqueiro avarento Ebenezer Scrooge é visitado tarde da noite pelo fantasma de seu falecido sócio Marley, o qual diz que três fantasmas iriam visitá-lo em breve, pois eles tinham duras lições a ensinar para Scrooge.

Ilustração da primeira edição do livro, mostrando Scrooge recebendo a visita do fantasma de seu sócio, Marley na noite de véspera de Natal. 

Cada fantasma que aparece apresenta o Natal para Scrooge em diferentes épocas: passado, presente e futuro, o que significa que além da presença fantástica de fantasmas, a obra conta com viagem no tempo, conceito até pouco utilizado em produções fantásticas na época. Embora o livro hoje seja visto como uma obra de fantasia, na época que ele foi publicado, Dickens se referia a ele como um livro de histórias de fantasmas (veja a nota 1 no final da postagem), apesar que não fosse uma obra de terror, mas um drama natalino com uma moral no final. 

O País das Maravilhas

Em 1865 o escritor, matemático e reverendo Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) o livro infantil As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, assinando a obra com o pseudônimo de Lewis Carroll. O livro mescla os gêneros aventura, fantasia e nonsense de forma brilhante, sendo até inusitado para a época, em que a fantasia juvenil não era tão estranha assim, dessa forma, o livro de Carroll que contava a história da jovem Alice que após seguir um coelho branco e entrar em sua toca, foi parar num misterioso e fantástico País das Maravilhas, com animais falantes e outros seres estranhos. 

Ilustração mostrando Alice participando da hora do chá promovido pelo Chapeleiro Maluco. 

O livro fez sucesso em pouco tempo, tendo recebido novas tiragens, embora que somente em 1871 Carroll publicou uma continuação intitulada Alice no Outro Lado do Espelho, em que apresenta Alice se aventurando por outro país fantástico. Mais tarde Carroll cogitou lançar um terceiro livro, até fez o esboço dele, mas desistiu da ideia. De qualquer forma, ambos os livros se tornaram bem populares no século XIX e ainda hoje influenciam escritores e outros artistas. O primeiro livro que é o mais famoso, ganhou adaptações para o teatro, a rádio, o cinema, a televisão e os videogames. 

Mundos perdidos

A literatura de mundo perdido surgiu como subgênero da literatura de aventura, tendo o livro As minas do Rei Salomão (1885) de Herny Rider Haggard (1856-1925) considerado por alguns como a origem desse subgênero, o qual apresentava a jornada de caçadores de tesouros no sul da África, liderados por Allan Quatermain, os quais seguiam as pistas de um aventureiro que sumiu, mas que teria supostamente descoberto o paradeiro das minas do Rei Salomão. Nessa narrativa não temos elementos fantásticos nítidos, exceto que a trama abordava uma lenda, pois nunca se descobriu onde ficariam as tais minas salomônicas. 

Todavia, Haggard em sua obra seguinte intitulada She: A History of Adventure (1887) acrescentou elementos fantásticos e mágicos a esse subgênero, tornando-o hibrido. Neste segundo livro acompanhamos a expedição do professor Horace Holly, seu discípulo Leo Vencey e o criado Job, os quais procuram pistas sobre uma civilização misteriosa perdida na África. Finalmente os três chegam ao Reino de Kôr, onde vive o povo negro chamado Amahagger (descrito como sendo primitivos e canibais, algo típico do racismo científico da época), porém, eles eram governados por uma bela feiticeira branca chamada Ayesha (referida pelos aventureiros como Ela), que supostamente era imortal, tendo usado magia para viver por séculos. Observa-se nessa narrativa claramente o emprego já de elementos fantásticos como a magia. 

Ilustração de 1887 mostrando a feiticeira Ayesha manipulando o Fogo da Vida, enquanto Horace, Leo e Job estão subjugados diante de seu poder. 

Haggard ainda voltaria a escrever sobre sua feiticeira em Ayesha: The Return of She (1905). Além disso, ele escreveu outras obras neste subgênero, intercalando entre narrativas de aventura com ou sem fantasia. De qualquer forma, nas últimas décadas do XIX a literatura de mundo perdido começou a se tornar popular, embora fossem obras principalmente voltadas para o gênero aventura do que o fantástico. 

No começo do XX o subgênero mundo perdido ganhou uma leva de publicações, algumas com caraterísticas de fantasia como O Mundo Perdido (1912) de Arthur Conan Doyle, que apresenta uma expedição científica a um misterioso platô na Amazônia brasileira. Neste local viveriam dinossauros, homens das cavernas e até homens-macacos. O interessante desse livro é que ele combina aspectos de aventura, fantasia e ficção científica, pois troca os monstros pelos dinossauros. O livro se tornou popular, rendendo filmes, quadrinhos e seriados. 

Inspirado no livro de Doyle, o escritor Edgar Rice Burroughs decidiu escrever algo similar. Burroughs já era conhecido por seus romances de espada e planeta com a série Barsoom sobre John Carter e as aventuras de Tarzan, mas influenciado sobre a temática de mundos perdidos e dinossauros ele escreveu o livro The Land that Time Forgot (1916), que aborda a aventura de sobreviventes num submarino alemão que vão parar num mundo perdido situado na Antártida, habitado por dinossauros e outros animais pré-históricos. A história se tornou popular e rendeu uma trilogia, sendo publicada em partes em algumas pulp fiction. Novamente os monstros eram substituídos por dinossauros, os quais estavam em moda. 

Capa de uma edição de 1924 compilando a trilogia. 

Burroughs até voltou a abordar sobre mundos perdidos em sua franquia de maior sucesso, Tarzan, embora em algumas narrativas o fantástico não era visto, tratando-se mais de aventuras em que Tarzan visitava cidades perdidas na África, tendo que confrontar povos selvagens. 

O escritor e editor Abraham Merritt (1884-1943) se popularizou na literatura de mundos perdidos no século XX, sendo hoje considerado uma referência neste subgênero, especialmente com o viés da fantasia. Merritt ganhou destaque com sua trilogia The Moon Pool (1918), The Conquest of Moon Pool (1919) e The Metal Monster (1920), as quais acompanham as aventuras do cientista Dr. Goodwin, protagonista das três aventuras. Embora que o terceiro romance não tenha uma conexão com os outros dois.

Em The Moon Pool e The Conquest of Moon Pool, Dr. Goodwin e sua equipe descobrem uma civilização perdida vivendo na Terra oca, a qual detém conhecimento avançado sendo encarado como algo mágico, além de construírem autômatos também. Por sua vez, em The Metal Monster, Goodwin no Himalaia se depara com o misterioso reino do Imperador de Metal, que possuí uma estátua metálica que solta raios. Com o sucesso dessas obras, Merritt se consolidou como um escritor de fantasia, tendo passado o restante da vida escrevendo romances, novelas e contos.

Capa de 7 de agosto da revista Argosy, destacando o romance fantástico The Metal Monster, serializado nesse periódico. 

O subgênero mundo perdido continuou a crescer bastante até a década de 1940, quando entrou em declínio, no entanto, permitiu a publicação de centenas de narrativas sobre aventura, fantasia e ficção científica. Inclusive ele influenciou as histórias em quadrinhos, em que algumas deram continuidade a esse subgênero, mantendo vivo até hoje, apesar que fora dos quadrinhos e desenhos, ele tenha quase desaparecido. 

O menino de madeira

Em 1881 o escritor italiano Carlo Collodi (1826-1890) criou seu personagem mais famoso, uma marionete de madeira chamado Pinóquio, esculpido pelo velho Gepetto. Graças a magia de uma fada de cabelos azuis, o boneco de madeira ganhou vida, tornando-se uma criança tagarela, travessa e até mentirosa, por isso seu nariz crescia quando ele mentia. 

Ilustração original para a primeira edição de Pinóquio.

Por conta de ser um menino desobediente e travesso, Pinóquio acaba se metendo em confusões e foge de casa, sendo enganado por oportunistas como animais falantes, funcionários de um circo e ladrões, iniciando a jornada de Gepetto para reaver o filho, o qual aprenderá algumas lições durante suas atribulações. Pinóquio se tornou tão famoso que foi adaptado para desenhos, quadrinhos, filmes e jogos até hoje. 

O Mágico de Oz

O escritor L. Frank Baum (1856-1919) em 1891 ao se tornar jornalista e redator em Chicago, Baum passou a escrever contos infantis para os jornais e revistas, gostando da temática. Nove anos depois ele decidiu publicar uma história original, já que normalmente trabalhava na adaptação de contos de fadas e histórias infantis antigas, então ele publicou O Mágico de Oz (1900), que narrava a aventura inesperada de uma menina chamada Dorothy Gale e seu cachorro Totó, os quais viviam no Kansas, até que eles foram sugados por um tornado e ao despertarem, eles se encontravam na mágica Terra de Oz, um país habitado por bruxas, animais falantes e outros seres estranhos. 

Em Oz, Dorothy e Totó decidem procurar uma forma de retornar para casa, então ela fica sabendo que na Cidade Esmeralda viveria um poderoso mágico que poderia ajudá-la. No caminho para essa encantada cidade, Dorothy e Totó fazem importantes amizades com um espantalho, um homem de lata e um leão medroso, enquanto seguem pela estrada de tijolos amarelos. 

Ilustração de W. W. Denslow para a primeira edição do livro, mostrando Dorothy, Totó e os demais personagens principais. 

A obra de Braum fez rápido sucesso a ponto de que o público lhe escrevia cartas pedindo continuações dessa fantasia juvenil. Entusiasmado com aquilo, Braum passou o restante da vida publicando outras histórias na Terra de Oz, com direito a introduzir novos personagens. A série de Oz rendeu quatorze livro e alguns contos, todos escritos por L. Frank Baum. Após sua morte em 1919, a franquia continuou a ser produzida por outros escritores, por mais de cem anos, tornando-a série de fantasia juvenil mais longeva. 

A fada da areia

Certo dia, cinco crianças chamadas Cyril, Anthea, Robert, Jane e Lamb, se deparam com uma misteriosa criatura que vive no jardim da nova casa deles. O pequeno ser mágico se chama Psammead e diz ser uma fada da areia, podendo realizar desejos, assim tem início ao livro Five Children and It (1902) da escritora britânica Edith Nesbit (1858-1924). Psammead acaba enganando os irmãos iniciando assim um problema entre eles de como conseguir escapar da armadilha daquele traiçoeiro fada de areia. 

Uma edição de Five Children and It, destacando Psammead, a fada da areia. 

Com a popularidade desse livro, Nesbit decidiu escrever uma continuação que foi intitulada The Phoenix and the Carpet (1904), nesta segunda história que se tornou o livro mais popular da série, os irmãos ganham um tapete velho de presente, no qual descobrem um misterioso ovo que se choca e revela ser de uma fênix falante. A ave diz que aquele tapete era mágico também, podendo voar, então os irmãos partem para a ajudar a fênix a encontrar um tesouro. Eventualmente o grupo acaba se metendo em problemas e tem que pedir a ajuda de Psammead. 

Capa de uma edição em áudio-livro. 

No entanto, as aventuras dos cinco irmãos não chegaram ao fim, Nesbit lançou o terceiro e último livro, intitulado The Story of Amulet (1906), em cuja obra a autora aumentou o tom fantástico. Nessa narrativa Cyril, Anthea, Robert e Jane estão hospedados na casa de uma babá, pois seus pais estão em viagem, e Lamb foi com a mãe. Ali os irmãos conhecem um egiptólogo de nome Jimmy, que estuda um misterioso amuleto. Eventualmente os irmãos se deparam com Psammead, que estava preso e o libertam. A fada de areia em retribuição decide ajudá-los a procurar pelo amuleto, e eles acabam viajando para o passado, iniciando a jornada para tentar voltar para o futuro. 

A trilogia de Nesbit originou quadrinhos, livros de colorir, peças de teatro, filmes, desenhos e até continuações por outros autores. 

A Terra do Nunca

O escritor e dramaturgo James Matthew Barrie (1860-1937) no começo do século XX escreveu algumas peças juvenis-adultas como Little White Bird (1902), Boy Who Wouldn't Grow Up (1904) e Peter Pan in Kensington Gardens (1906). Foi na primeira peça que ele criou o seu personagem mais famoso, uma garoto que não queria envelhecer e era chamado de Peter Pan. Entretanto, levou alguns anos para Barrie decidir aprofundar e expandir a história desse menino travesso, e assim surgiu o livro Peter Pan & Wendy (1911), em que finalmente fomos apresentados a uma ilha misteriosa chamada Terra do Nunca (Neverland). 

Ilustração de 1915 de uma edição de Peter Pan & Wendy. 

Neste livro somos apresentados ao jovem, travesso, arrogante e teimoso Peter Pan e sua fada Sininho, os quais viajaram até Londres, pois Peter perdeu sua sombra. Ao entrar na casa dos Darling para recuperá-la, ele acorda os filhos do casal, chamados Wendy, João e Miguel. Peter convence os irmãos a viajarem com ele até à Terra do Nunca, então ele voam para lá, um país habitado por piratas, indígenas, sereias, fadas e os Garotos Perdidos, meninos que nunca deixavam de serem crianças. 

Apesar da trama simples, a qual mistura elementos do gênero aventura e fantasia juvenil, Peter Pan se tornou o maior sucesso da vida de J. M. Barrie, mesmo ele tendo escrito mais de trinta livros e peças, ainda assim, ele ficou marcado por apenas essa história. Por sua vez, Peter Pan originou filmes, desenhos e jogos, e até levou a criação do Complexo de Peter Pan, uma síndrome na qual as pessoas se recusavam a reconhecer sua vida adulta. 

O Sítio do Picapau Amarelo

Concebido pelo escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), trata-se de sua obra mais famosa e a série brasileira de literatura infantil fantástica mais conhecida no país, rendendo mais de vinte livros. A ideia inicial surgiu no conto A Menina do Narizinho Arrebitado (1920), que contava a história de uma travessa menina chamada Lúcia, mais conhecida por seu apelido de Narizinho, a qual vivia no encantado Sítio do Picapau Amarelo com sua avó Benta, seu primo Pedrinho, a cozinheira chamada tia Anastácia, a boneca falante Emília, o porco falante Marquês de Rabicó, o erudito Visconde de Sabugosa, entre outros personagens. Como Lobato gostava de ler sobre folclore, várias ideias desse foram sendo acrescentadas a série do Sítio do Picapau Amarelo como a condição de termos o Saci-pererê como um personagem e a Cuca como vilã. Além disso, o livro traz animais falantes, seres fantásticos e acontecimentos mágicos. 

Capa da primeira edição da obra. 

A trama dos livros mescla a aventura e a fantasia, geralmente acompanhando Narizinho, seu primo Pedrinho e a boneca de pano falante de nome Emília. No caso, foi a partir do livro Reinações de Narizinho (1931) que a série foi estabelecida, ganhando novas histórias anualmente. Além das referências ao folclore, Lobato também colocou referências históricas como a visita do holandês Hans Staden que esteve no Brasil no século XVI, realizou um crossover com Peter Pan, Dom Quixote e até com personagens da mitologia grega como o Minotauro e Hércules

Por se tratar de uma obra fantástica, os personagens do sítio conseguiam viajar para outras épocas e lugares, incluindo o Reino das Águas Claras e até uma rápida viagem ao Céu. Mas além dessas referências folclóricas, literárias e mitológicas, Lobato também publicou narrativas com teor educacional, escrevendo livros que abordavam temas sobre gramática, matemática, geografia e geologia.

Solomon Kane, o justiceiro

O escritor e poeta Robert Ervin Howard (1906-1936) se notabilizou no gênero fantasia e de faroeste, ele escreveu para várias pulp fiction nos anos 1920 e 1930. Seu primeiro personagem de fantasia famoso foi concebido ainda na adolescência, embora somente suas histórias vieram a ser publicadas anos depois com o conto Red Nails (1928), que saiu na Weird Tales, revista que Robert manteve parceria até o fim da vida. 

Ilustração de Solomon Kane

Dessa forma em Red Nails surgia o protótipo do caçador de monstros e bandidos, que usava espadas, pistolas e até magia para combater as forças do mal, esse era Solomon Kane, um colono inglês das Treze Colônias, revoltado com o mundo, que decidiu usar suas habilidades de combate para fazer justiça com as próprias mãos. Kane era descrito como um homem alto, pálido, de cabelos pretos longos, olhos azuis, puritano e temperamento frio que agia entre os séculos XVI e XVII. 

Howard escreveu as histórias de Solomon Kane de 1928 a 1932, publicando-as na Weird Tales, cujas aventuras levavam o caçador de monstros através da América do Norte, Europa e África. Tais histórias lhe concederam fama. Ele depois acabou deixando de lado o personagem focando nas narrativas de seus bárbaros: Kull e Conan. As narrativas de Kane foram mais tarde incluídas no subgênero de espada e feitiçaria, inspirando outros caçadores de monstros como John Constantine

A era dos bárbaros

Com a popularidade do trabalho de Robert E. Howard através de suas publicações com Solomon Kane, ele decidiu investir no gênero fantasia, assim surgiu o bárbaro Kull, o Atlante, no conto The Shadow Kingdom (1929), que narrava a jornada de um bravo guerreiro, pirata, bárbaro, escravo e gladiador que mais tarde se tornou um rei. Kull era um atlante que foi ainda bebê exilado de sua terra natal, vindo a morar em Thuria. Sua trajetória de vida foi bastante difícil e marcada por muitas batalhas e façanhas num mundo antigo violento e assombrado por monstros e magia (normalmente a magia era representada como algo perigoso e maligno nessas histórias). Tais façanhas lhe renderam a alcunha de Kull, o Conquistador

Kull, o Conquistador, o primeiro bárbaro criado por Robert. E. Howard.

Howard ainda lançou mais três histórias sobre Kull na Weird Tales, mas as narrativas não causaram o sucesso esperado, condição essa que ele engavetou as demais narrativas, as quais somente foram publicadas após sua morte. Entretanto, em 1932, ele decidiu apresentar uma versão diferente desse personagem e assim surgiu Conan, o Cimério

Vários dos conceitos de Kull e seu universo situado numa Pré-história fantástica foram reutilizados para criar o personagem de Conan, um bárbaro, mercenário, ladrão e pirata do reino da Ciméria, que acabou se tornando rei da Aquelônia. A trama de Conan se passa quase três mil anos depois da Kull, não havendo uma conexão direta entre eles, inclusive a geografia de seus mundos é ligeiramente diferente, pois na época de Kull, a Atlântida e a Lemúria ainda não tinham afundado, como Howard escreve nas histórias de Conan. 

Uma ilustração de Conan. O personagem se tornou o estereótipo do bárbaro das produções de fantasia, seja em livros, quadrinhos, filmes, séries e jogos. 

Assim, Howard publicou a primeira aventura de Conan, intitulada The Phoenix in Sword (1932) na revista Wierd Tales, a mesma que quatro anos antes ele apresentou a primeira aventura de Kull (inclusive esse conto era uma reescrita de uma aventura de Kull). Porém, diferente do bárbaro atlante que era mais sério e honrado, Conan interessou mais o público da época, por ser um brutamontes grosseiro, um mulherengo, um beberrão, além de que nas histórias dele temos mais ação e erotismo do que nas narrativas de Kull, pautadas mais na aventura. Assim, Howard mesclando ideias e elementos advindos da mitologia egípcia, grega, indiana, mesopotâmica e nórdica, porém, as aventuras de Conan duraram poucos anos, pois em 1936, num ato de desespero, Howard cometeu suicídio. 

Robert E. Howard ainda conseguiu concluir 17 histórias sobre Conan, embora tenha deixado outras inacabadas, além disso, ele também escreveu um importante ensaio no qual explicava e descrevia seu mundo mitológico que se passava na fictícia Era Hiboriana (sucessora da Era Thuriana de Kull), um mundo de fantasia, monstros e magia, características tão marcantes que levaram ao surgimento do subgênero espada e feitiçaria, marcado pelo padrão narrativesco da bela donzela em perigo, locais sombrios e um feiticeiro (ou feiticeira) maléfico, que influenciou várias gerações, fato esse que Conan ganhou histórias em quadrinhos, em desenho animado e até rendeu filmes, seriado e jogos. Kull também recebeu adaptações para os quadrinhos e filme, mas não teve o mesmo impacto do que seu irmão literário. 

Faroeste fantástico

Trata-se de um subgênero surgido nos anos 1930 nas pulp fiction, contendo elementos de fantasia inseridos no cenário histórico do Velho Oeste. Na década de 1970 esse subgênero foi nomeado também de weird west ou fantasy western. O escritor Robert E. Howard que criou Solomon Kane, Kull e Conan, também era autor de histórias de faroeste, ganhando inclusive fama escrevendo contos fantásticos no Velho Oeste. 

Howard é considerado um dos primeiros escritores notáveis desses subgênero, publicando The Horror from the Mound (1932). Além dele se destacaram outras publicações como The Circus of Dr. Lao (1935) de Charles G. Finney, Spud and Cochise (1936) de Oliver La Farge.

As histórias de faroeste fantástico são um subgênero bem flexível, pois algumas continham elementos de fantasia sombria, comédia, romance, aventura, ação e até ficção científica, mas tudo girando em torno de uma versão fantástica do Velho Oeste, trazendo caubóis confrontando zumbis, lobisomens, vampiros, fantasmas, bruxas, maldições, deuses indígenas etc. Algumas narrativas não focavam os caubóis, mas a ambientação estereotipada do Velho Oeste com suas pequenas cidades de uma rua só, os ranchos, os acampamentos, as feiras, os rodeios, os circos etc. 

A revista Weird Western Tales popularizou novamente o faroeste fantástico entre as décadas de 1970 e 1980. 

O subgênero do faroeste fantástico rapidamente se popularizou migrando para o cinema, as histórias em quadrinhos e depois a televisão e mais tarde os videogames. Embora hoje em dia esteja bastante em baixa, ele influenciou franquias como Jonah Wex, Preacher, Desesperados e o Cavaleiro Solitário

O realismo fantástico latino-americano

Chamado também de realismo mágico, consiste num subgênero artístico surgido inicialmente na pintura da década de 1920, influenciada pelo modernismo e o surrealismo. Porém, na literatura esse subgênero começou a despontar nos anos 1930 com escritos da América Latina. Uma das primeiras obras creditadas tem o título de La Lluvia (1936) do escritor Uslar Pietri, que aborda um misterioso homem que aparece durante um dia de chuva e vai embora quando a chuva termina. 

O termo realismo fantástico foi desenvolvido na década de 1940 para se referir a alguns trabalhos de escritores latino-americanos que abordavam narrativas baseadas no cotidiano, mas com algum toque de fantástico. Fato esse que nessas narrativas a fantasia fica em terceiro plano, o foco é a realidade nua e crua da vida, mas em dados momentos os personagens se depararam com acontecimentos misteriosos e fenômenos inexplicáveis. Neste tipo de literatura não há a presença de monstros ou de magia, mas apenas do sobrenatural que pode ser retratado como uma visão, uma praga, o destino, um milagre, uma maldição, uma profecia, uma anomalia etc. 

O escritor colombiano Gabriel Gárcia Márquez (1927-2014) ficou famoso nesse subgênero com seu romance Cem Anos de Solidão (1967), no qual acompanhamos sete gerações da Família Buendía, que costumava fomentar casamentos entre primos para manter a linhagem, até que algumas pessoas falavam que aquilo era perigoso e errado. Inclusive o personagem Melquíades, o Cigano diz ter recebido uma profecia sobre os Buendía, profecia essa associada a uma maldição, fato esse que em cada geração alguns dos membros da família acabam morrendo, enlouquecendo, sendo traídos, adoecendo, tendo outros tipos de problemas. Por fim, um dos membros, nascido de incesto, tem um rabo de porco, confirmando a profecia de Melquíades. 

Capa da primeira edição de Cem Anos de Solidão. 

No Brasil temos o livro Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) de Ariano Vilar Suassuna. A obra apresenta toda a concepção artística do movimento armorial concebido por Ariano anos antes, como forma de valorizar a cultura nordestina e sertaneja. Neste longo livro de mais de 700 páginas, somos apresentados as peripécias de vários personagens, as quais se conectam pela narração do protagonista, um bibliotecário chamado Pedro Dinis Quaderna, preso em 1938, em Taperoá no estado da Paraíba. Ele é acusado de ter roubado seu padrinho, que morreu misteriosamente num quarto-forte na torre de sua casa. 

Todavia, Quaderna alega que é descendente da monarquia sertaneja, pois seus antepassados foram imperadores do Reino da Pedra do Reino, situado no sertão paraibano e pernambucano no século XIX. Assim, ele diz ser o imperador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna IV, legítimo soberano do Brasil e profeta da Igreja Católica-Sertaneja

Cenário usado na minissérie de A Pedra do Reino (2007). Na história essas duas pedras seriam as torres da catedral do reino, o qual misteriosamente sumiu. 

A partir de então, Quaderna relata ao corregedor as histórias desse reino que ninguém havia ouvido falar, fundado de forma mística, assim como, soterrado de forma misteriosa; ele também relata os problemas de sucessão, das tragédias acometidas por sua família, da profecia do Sebastianismo, além da sua mirabolante trajetória até ser preso. A obra mescla o tom da literatura de cordel, dos romances de cavalaria com o realismo fantástico, abordando os costumes e crenças sertanejos. 

A Terra-Média

Foi também na década de 1930 fomos apresentados a um fantástico mundo literário criado pelo escritor, poeta, professor e linguista John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973). Enquanto a Era Hiboriana se passava num Antiguidade primitiva, caótica, selvagem, violenta e sombria, a Terra-Média de Tolkien passava-se num mundo fantástico medieval, com monstros e magia, apresentando humanos, elfos, anões, orcs, magos, hobbits e outros seres. 

Tolkien começou a conceber a Terra-Média quase vinte anos antes, tendo feito rascunhos que viriam originar O Silmarillon (livro incompleto, somente publicado postumamente em 1977). Todavia, foi em 1928 quando ele começou a escrever o esboço de O Hobbit, lançado somente nove anos depois, que ele começou a dar forma a seu mundo fantástico. Tolkien devido a seu amor pela linguística e a filologia, se valeu disso para criar idiomas e alfabetos, com destaque os alfabetos élficos. Além disso, como era um ávido leitor de mitologia nórdica, celta e lendas medievais, ele reuniu ideias dessas fontes para criar a grande narrativa de seu mundo fantástico: a Demanda do Anel, iniciada com o O Hobbit (1937), mas apresentada e finalizada em O Senhor dos Anéis (1954-1955), volumosa obra com mais de mil páginas que lhe rendeu mais de uma década de escrita, tornando-se sua obra mais famosa. 

Ilustração representando os membros da Sociedade do Anel, no primeiro livro de O Senhor dos Anéis. 

Em O Senhor dos Anéis somos apresentados a uma densa e poderosa história sobre superação, amizade, dever, lealdade, traição, honra, esperança, temor, desconfiança etc., que giram entorno do clássico maniqueísmo Bem vs Mal, Luz vs Trevas, apesar disso, a trama foi belamente escrita, pois Tolkien era perfeccionista e um linguista nato, tendo cuidado em escrever seus livros, inclusive com direito a passagens exaustivamente detalhadas, além de outras com canções e poesia. 

Entretanto, as aventuras e descrições da Terra-Média não se limitaram a esses dois livros. Tolkien foi um escritor prolífico, tendo dedicado a vida a expandir e explorar seu universo literário, por conta disso, ele escreveu mais de vinte livros, entre romances, contos e ensaios que se passam por esse mundo fantástico, inspirando filmes, livros, jogos e seriados. Diferente da Era Hiboriana que acabou não sendo melhor explorada por seu criador, a Terra-Média contou com uma profunda densidade de detalhes que se tornaram temas de estudos literários. Mesmo as produções derivadas da obra de Tolkien, ainda não conseguiram adaptar nem metade do que ele concebeu. 

Mapa da Terra-Média

O mundo mágico de Nárnia

O escritor irlandês Clive Staples Lewis (1898-1963) o qual era amigo de Tolkien, também decidiu investir no gênero de fantasia, mas diferente de seu amigo, ele optou por tramas voltadas para um público infanto-juvenil. Dessa forma, Lewis escreveu entre 1949 e 1954 sete livros que formam as Crônicas de Nárnia. Inicialmente ele pretendia escrever apenas um livro no que resultou em O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa (1950) que apresentava a jornada dos jovens quatro irmãos Pevensie, que em meio a Segunda Guerra, descobrem um guarda roupa com uma passagem secreta para um mundo fantástico, iniciando sua jornada para combater a Feiticeira Branca

Ilustração mostrando o leão Aslan e os irmãos Pevensie. 

Devido a popularidade da história, o público e a editora pediram uma continuação. Curiosamente a trama do livro se encerrava nele mesmo, já que após a batalha contra a Feiticeira Branca, os Pevensie estabeleceram a paz em Nárnia  governaram pacificamente pelos anos seguintes, quando já adultos eles reencontram o guarda roupa mágico e voltam para sua época. Entretanto, como Lewis decidiu escrever outras histórias, transformou sua ideia em sete livros, redigindo-os em fora de ordem cronológica, explorando outros acontecimentos desse período e até outros protagonistas, como um primo e amigos dos Pevensie. Além de que o livro O cavalo e o seu menino (1954) não conta com os personagens principais e se passa a maior parte no reino desértico de Calormânia, um dos reinos vizinhos de Nárnia, inspirado na cultura persa e árabe. 

Além do reino de Nárnia, outras localidades fantásticas são apresentadas nos livros, além disso, por conta de Lewis ser um fervoroso cristão, tendo escrito livros de apologia, vários elementos do Cristianismo foram incorporados a sua obra, além de elementos da mitologia grega, céltica, irlandesa e obviamente ideias e conceitos dos contos de fadas. Sua obra fez bastante sucesso, sendo adaptada logo cedo para a rádio e o teatro, apesar que não conquistou o cinema, em que apenas três filmes foram produzidos. 

O Dr. Seuss

Thedoro Seuss Geisel (1904-1991) foi um escritor, ilustrador, cartunista, animador e cineasta que se popularizou na literatura infantil. Seuss inspirado em Alice no País das Maravilhas, no Mágico de Oz, nos desenhos da Disney e em contos de fadas, começou a produzir seus próprios livros de fantasia infantil, puxando bastante para o lado cômico e nosense visto na obra de Lewis Carroll. Condição essa que ele criou personagens icônicos, apresentando tramas em versões fantásticas da realidade ou em mundos completamente novos. 

Seuss passou a vida escrevendo livros infantis e produzindo desenhos animados e ilustrações, na década de 1950 ele se lançou no mercado literário com algumas de suas obras mais populares como Horton e o Mundo dos Quem (1955), O Gato de Chapéu (1957) e Como o Grinch roubou o Natal! (1957), foram os primeiros livros de sucesso do autor, que contribuiu para impulsionar sua carreira na década seguinte.

Primeira edição do livro. 

Seuss escreveu mais de vinte livros, embora a maioria não fez sucesso como seus clássicos, no entanto, isso o notabilizou como escritor de literatura infantil, e como ele era desenhista e animador, ele mesmo produziu curtas-metragens animados de seus livros, os quais também se tornaram histórias em quadrinhos, peças de teatro e filmes. Além disso, por ser um cartunista que fazia sátiras políticas, alguns dos seus livros abordam temas políticos e sociais como pano de fundo das narrativas, apresentando críticas ao consumismo, ao racismo, a guerra, a indiferença, etc. 

O Ciclo de Terramar

Em 1964 no conto The Word of Unbinding, a escritora Ursula K. Le Guin (1929-2018), criou um mundo fantástico chamado Terramar (Earthsea), que consistia numa nação insular. Anos depois a autora decidiu retornar a esse mundo pouco explorado no conto, vindo a publicar o livro The Wizard of Earthsea (1968), cuja obra deu origem a sua série de fantasia mais famosa, embora não tenha sido a única. Le Guin escreveu inclusive séries literárias de ficção científica também.

No primeiro livro acompanhamos o jovem e imprudente mago Ged da ilha de Golt. Durante uma briga na escola de magia, Ged utiliza um feitiço proibido e invoca um monstro, iniciando os problemas que irão acompanhá-lo na narrativa até ele conseguir resolver essa sua culpa, além de amadurecer e aprender a ter responsabilidade com seus poderes. Por se tratar de uma obra infanto-juvenil, Le Guin abordou temas associados a vida escolar e a adolescência. Por sua vez, a autora decidiu escrever uma trilogia, contando com os livros The Tombs of Atuan (1971) e The Fartest Shore (1972), os quais apresentam outros protagonistas, e as histórias não necessariamente são continuações diretas. Então ela se deu satisfeita em encerrar a história.

Capa da primeira edição do livro, mostrando o mago Ged.
 
No entanto, muitos anos depois, Ursula K. Le Guin decidiu retornar ao mundo de Terramar, publicando Tehanu (1990), que acompanha o mago Ogion e a trama ocorre antes do terceiro livro. A série chegou novamente ao fim até que onze anos depois a autora escreveu mais dois livros: Tales from Earthsea (2001) e The Other Wind (2001), o primeiro um livro de contos, o último um romance que encerrou as histórias ambientadas em Terramar. 

As histórias de Terramar foram best-sellers nos Estados Unidos em distintos momentos e até inspirou um filme animado Contos de Terramar (2006) do renomado Studio Ghibli, apesar que a autora apontou que o filme fosse totalmente diferente de seus livros, apenas pegaram o mundo fantástico que ela criou. 

A fábrica de chocolate

Em 1964 o escritor britânico Roald Dahl (1916-1990), lançou seu livro infantil mais famoso, A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and Chocolate Factory), obra de baixa fantasia, a qual apresenta a maravilhosa fábrica de chocolate e doces de Willy Wonka, em que ele utiliza uma tecnologia misteriosa que parece ser muito mais mágica do que tecnológica a ponto de criar doces que fazem as pessoas mudarem de cor, esticarem, flutuarem, crescer pelos etc. 

Capa original do livro. 

Dessa forma, Charlie, seu avô e outras crianças premiadas pelo concurso de Wonka, tem a oportunidade de visitar essa encantadora fábrica, na qual trabalham os Oompa Loompa, um misterioso povo que é uma mistura de pigmeus com duendes, os quais atuam como operários na fábrica de Wonka, além de ajudá-lo na criação dos fantásticos doces. 

A fantasia sombria

O termo fantasia sombria (dark fantasy) é creditado ao escritor Charles L. Grant (1942-2006), especializado em histórias de terror, a ponto de despertar a admiração de Stephen King, um dos atuais mestres do terror. Grant concebeu o termo fantasia sombria para se referir a parte de sua produção literária, em que suas narrativas de terror continham monstros, maldições e forças sobrenaturais. No caso, Grant salientava que uma história de terror não necessariamente precisa ter monstros ou sobrenatural, ela pode contar com assassinos humanos. Além disso, a presença desses elementos fantásticos não necessariamente a torna uma fantasia sombria. 

Embora Grant tenha criado esse termo na década de 1970, nos estudos de literatura fantástica observou-se que décadas antes obras que poderiam ser classificadas nesse subgênero já tinham sido lançadas. Por conta disso, a fantasia sombria já existia no século XIX, antes do conceito ser criado. No entanto, é difícil distinguir naquele tempo a fantasia sombria da história de terror, pois se considerarmos apenas a presença de elementos fantásticos, obras como Frankenstein (1818) e Drácula (1897), poderiam ser consideradas de fantasia sombria? No caso, os estudiosos do assunto, dizem que não. 

Brian Stableford (2004) aponta que a fantasia sombria não poderia ser totalmente aterrorizante, pois isso a tornaria numa obra de terror, porém, esse subgênero contém elementos de terror que endossam alguns momentos ou personagens da trama. Por exemplo, o conto The Masque of the Red Death (1842) de Edgar Allan Poe (1809-1849) é considerado uma fantasia sombria, embora a obra normalmente seja classificada como pertencente ao subgênero terror gótico. Todavia, no estudo dos gêneros literários é preciso ter em mente que uma obra pode ser encaixar em mais de um gênero. 

No começo do século XX o mestre do terror H. P. Lovecraft (1890-1937), escreveu várias histórias de fantasia sombria e algumas até com elementos da ficção científica, a ponto de combinar características de três gêneros distintos. Lovecraft como outros escritores americanos do período, publicavam vários de seus trabalhos nas pulp fiction, que inclusive ajudaram na difusão do gênero terror, aventura, fantasia e ficção científica. Sendo assim, alguns dos contos lovecraftianos de fantasia sombria que podem ser citado são: A Tumba (1917), Dagon (1917), O Templo (1920) e O Chamado de Cthulhu (1928). Esses são exemplos de narrativas que abordam lugares assombrados e criaturas monstruosas adoradas como divindades. 

Página inicial de O Chamado de Cthulhu na revista Weird Tales, em 1928. 

O escritor, pintor e escultor Clark Ashton Smith (1893-1961) é considerado um dos três grandes escritores de fantasia da Weird Tales, ao lado de Robert E. Howard e H. P. Lovecraft. Como ele era amigo de Lovecraft, se inspirou em algumas ideias dele, com direito a fazer menção a monstros e narrativas que seu amigo escreveu. Smith teve uma fase produtiva na Weird Tales entre 1926 e 1936, escrevendo várias histórias de fantasia sombria e de ficção científica. Alguns de seus trabalhos de destaque são The Tale of Satampra Zeiros (1931), The Empire of Necromancers (1932) e Xeethra (1934). O trabalho com fantasia também repercutiu na pintura e escultura de Smith. 

Graças as pulp fiction a literatura de fantasia sombria ganhou espaço no mercado literário, podendo se desenvolver e crescer e até sobreviveu a queda desse mercado de revistas, adentrando os mercado de histórias em quadrinhos e da literatura comum. Condição essa que décadas depois escritores como Stephen King, seguiram publicando em alguns momentos, algumas obras de fantasia sombria, embora é preciso ressalvar que grande parte do trabalho dele seja do gênero terror. Uma de suas obras de destaque é a série A Torre Negra (1978-2012), a qual combina elementos de fantasia sombria, terror, ficção científica e faroeste. 

Os canibais do Norte

A década de 1970 foi produtiva para a literatura de fantasia, levando ao surgimento de alguns subgêneros ou a reformulação de outros, um dos que se destacou nessa época foi a fantasia histórica com o livro Devoradores de mortos (1976) de Michael Crichton (1942-2008). Baseado na popularidade da Vikingmania, Crichton decidiu escrever um livro que mesclasse uma base histórica, com elementos de aventura e fantasia. 

Neste livro acompanhamos a jornada do emissário árabe Ahmed ibn Fadlan, que em 922 viajou pela Ásia e a Europa oriental. Em uma de suas jornadas pelo o que hoje é o sul da Rússia, Fadlan conheceu uma comunidade de vikings, que estavam realizando os ritos fúnebres pela morte de seu chefe. Crichton decidiu pegar essa especificidade para criar sua narrativa. Na história real, após o funeral, Fadlan seguiu com sua comitiva para outro destino da expedição, mas em Devoradores dos Mortos o árabe é sequestrado pelos vikings que decidem voltar para a Dinamarca, onde atuam como mercenários para ajudar um rei cujo salão é atacado por supostos monstros. 

Capa da primeira edição. 

Na Dinamarca, Fadlan e os demais personagens do romance passam a defender o salão que é atacado à noite por possíveis monstros. Mais tarde é revelado que não eram monstros e o dragão de fogo era uma farsa, todavia, o livro contém elementos de fantasia, por mostrar anões e um povo de canibais que habitava em cavernas, povo esse inspirado nas ideias das pulp fiction. Vale ressalvar que Crichton também se baseou no poema épico Beowulf (1000) para compor sua aventura. Assim, mesclando fantasia e história, o livro fez relativo sucesso e até rendeu um filme intitulado o 13o Guerreiro (1999). 

As Brumas de Avalon

A escritora Marion Zimmer Bradley (1930-1999) decidiu escrever sua própria versão das lendas arturianas, mas saindo do convencional, a autora decidiu dar voz as mulheres dessas lendas, uma decisão muito acertada, pois resultou em quatro volumes publicados na década de 1980, que compõe essa série focada em Morgana, Guinevere, Viviane, Igraine, Morgause, entre outros personagens. 

A trama dos livros segue a premissa básica das lendas arturianas com direito a alguns dos personagens clássicos e acontecimentos, o diferencial é que tais acontecimentos são narrados a partir do ponto de vista das mulheres que conviveram diretamente com o Rei Artur, alguns dos cavaleiros da Távola Redonda, ou outros personagens da narrativa. Bradley também acrescentou fortes elementos de magia, baseados na cultura céltica, além de dar um toque feminista para as personagens. 

Capa da primeira edição. 

The Witcher

O escritor polonês Andrzej Sapkowski antes de se dedicar a literatura, era um caixeiro-viajante, por conta disso, ouvia muitas histórias, se interessando especialmente pelas narrativas folclóricas de seu país. Em 1986 ele decidiu participar de um concurso literário da revista Fantastyka e escreveu um conto de fantasia chamado O Bruxo (Wiedzim), o qual ficou em terceiro lugar. 

Os amigos de Sapkowski gostaram da narrativa que apresentava a aventura de um caçador de monstros, um bruxo forte, frio, charmoso, de olhos amarelados e cabelos prateados, chamado Geralt de Rívia. Assim, eles incentivaram Sapkowski a escrever outros contos, e ele o fez nos anos seguintes, vindo a reuni-los em dois livros intitulados O Último Desejo (1993) e a Espada do Destino (1992). Quando o autor lançou esses dois livros de contos, as aventuras de Geralt e seu universo no chamado Continente, um mundo fantástico inspirado na Europa medieval, fortemente influenciado pelo folclore eslavo, com alguns elementos de mitologia nórdica e de histórias de cavalaria, já havia feito relativo sucesso na Polônia, o que levou Sapkowski a expandir aquele universo literário, vindo a escrever cinco romances, totalizando sete livros que narravam a jornada de Geralt de Rívia, da princesa Cirilla de Cintra, da feiticeira Yennefer de Vengerberg, e uma outra série de personagens. 

Ilustração do bruxo Geralt de Rívia. 

Incialmente seus dois livros focavam apenas nos trabalhos de Geralt em caçar monstros, já que nesse mundo literário, os bruxos são mutantes criados e treinados para essa finalidade, porém, como Sapkowski foi incentivado a expandir a história, ele deu maior atenção a Cirilla e os outros personagens, criando uma trama sobre destino e guerra. 

Diferente de Tolkien, Sapkowski não gastou muitos anos trabalhando em sua obra, fato esse que ainda na década de 1990, ele concluiu todos os sete livros, vindo lançar um prequel em 2013, apesar que atualmente ele trabalhe em novas histórias de Geralt; no entanto, o Continente não é um mundo tão detalhado como a Terra-Média, mas isso não chega a ser um demérito. Sapkowski possui uma escrita diferente da de Tolkien, puxando para questões de intrigas políticas, traições, violência e sexo, fato esse que todas as feiticeiras de seus livros são retratadas como mulheres extremamente belas e sensuais, além do fato de Geralt ser mulherengo, pelo menos em alguns momentos da sua vida. Em seus livros ele também descreveu os problemas da geopolítica militar do Continente, algo desenvolvido ao longo da saga, além de também possuir descrições geográficas, sociais e culturais de seu mundo fantástico medieval. 

Mas se por um lado Andrzej Sapkowski não deu mais detalhes e expansões para seu universo literário, a Saga The Witcher cresceu consideravelmente com as adaptações feitas para os quadrinhos e videogames, os quais popularizaram essas histórias, originando filmes e um seriado, que expandem alguns dos conceitos criados pelo autor ou inseriram novas ideias. 

A Roda do Tempo

O escritor Robert Jordan (1948-2007) se especializou em literatura fantástica tendo ingressado na literatura na década de 1970. Embora tenha escrito vários livros, inclusive alguns sobre Conan, o Bárbaro, no entanto, a maior criação de Jordan foi a série de alta fantasia A Roda do Tempo (The Wheel of Time), em que o primeiro volume o Olho do Mundo saiu em 1990. À medida que escrevia seus longos livros, Jordan os concebeu para serem seis, mas acabou estendendo a saga para 11 volumes! Acreditando que o décimo segundo o encerraria. Entretanto, ele faleceu antes de concluir a série, legando o trabalho ao seu amigo Brandon Sanderson, que utilizando as várias anotações e recomendações de Jordan, escreveu mais três livros, totalizando 14 volumes. 

A longa trama do livro aborda centenas de personagens e acontecimentos, os quais giram em torno do destino do mundo, em que o Dragão Renascido é incumbido de derrotar o Tenebroso. Os livros são fortemente influenciados por ideias religiosas como destino, carma, profecia, bem, luz, trevas e mal. Além desse teor religioso, a trama aprofunda-se em questões de guerra, conspiração, traição, superação, política e evidentemente magia, com direito que os principais personagens mágicos são mulheres chamadas Aes Sedai, cuja sede fica na Torre Branca. As Aes Sedai se dividem em classes, identificadas pelas cores de suas vestes, o que conota também algumas especialidades de seus poderes. 

Os quatorze volumes da série A Roda do Tempo. 

Com a expansão da narrativa, a história deixa de ser centrada nos amigos Rand al'Thor, Perrin, Nynaeve, Egwene, Moiraine, incluindo muitos outros, além de apresentar outros povos, países e continentes. Por se tratar de livros volumosos, Robert Jordan foi bem detalhista nos cenários e acontecimentos, o que até concede um ritmo lento de leitura. 

A franquia foi adaptada para história em quadrinhos (pelo menos alguns dos livros), inspirou músicas, jogos de rpg e recentemente foi adaptada como seriado pelo Prime Video, em que os dois primeiros livros foram apresentados nas temporadas iniciais. Embora que a série traga várias mudanças em relação a obra original, tanto na fisionomia dos personagens, quanto na ordem de acontecimentos, omissões de personagens e momentos, etc. Por conta de serem livros longos, o seriado resume os acontecimentos. 

Os materiais sombrios

Influenciado pelas Crônicas de Nárnia, o poema épico Paraíso Perdido (1667) e outras fontes, o escritor Phillip Pullman iniciou sua série de fantasia, com a diferença de conter elementos de ficção científica. Inicialmente ele escreveu uma trilogia nomeada His Dark Materials (no Brasil chamada de Fronteiras do Universo), em que conhecemos uma realidade paralela similar a nossa Terra no começo do século XX, onde acompanhamos a jornada da jovem Lyra Belacqua e seu daemon Pan. Lyra vive na Faculdade Jordan, em Oxford, e é tratada como uma órfã, vivendo na tutela de seu tio Lorde Asriel, um aristocrata e cientista. 

O primeiro livro A Bússola de Ouro (1995) somos apresentados ao mundo de Lyra, em que existe uma substância mágica primordial chamada de , a qual permite a existência dos daemon, animais falantes que são conectados com seus donos, numa conexão espiritual, condição essa que se um dos dois morrer, ambos morrem. Além dos daemon, nesse mundo existe também magia, principalmente representada pelas feiticeiras e as alguns aparatos mágicos usados pela organização religiosa nomeada Magisterium, que representa os interesses do deus referido como Autoridade.  

Capa de uma edição do primeiro volume da série. Em português ele foi renomeado como Bússola de Ouro

A partir do segundo livro somos apresentados a outros mundos paralelos que se conectam com a nossa realidade e o mundo de Lyra Belacqua, dessa forma, ela e seu amigo Will Parry começam a explorar esses outros mundos, dando continuidade a jornada que inicialmente se encerrou no terceiro livro. Embora tenha sido concebida como uma série infanto-juvenil, a trama contém momentos dramáticos e até sombrios, como vingança, experimentos com crianças, o mundo dos mortos etc. 

A obra de Pullman é marcada não apenas pela combinação de fantasia possuindo animais falantes, magia, feiticeiras e outros seres, como também contém elementos de ficção científica devido aos experimentos para estudar o Pó, as armas e veículos do Magisterium e até de outros mundos, mas também se destaca pelo tom religioso, especialmente de crítica ao Cristianismo, em que o Magisterium representa o estereótipo da Igreja corrupta e opressora, assim como, a Autoridade é uma referência a Lúcifer. Além disso, o livro também faz referências aos conceitos de pecado, carma, destino, pureza, livre-arbítrio etc. 

A trilogia rendeu um filme que não fez sucesso, mas depois virou a série His Dark Materials (2019-2022) que adaptou os três livros, embora com várias diferenças para o enredo original, uma delas foi atualizar a realidade da Terra para o século XXI. Além disso, o multiverso criado por Pullman segue em desenvolvimento, pois após concluir a trilogia, ele já escreveu outros livros e iniciou uma nova série intitulada The Book of Dust (no Brasil chamada de O Livro das Sombras). 

A guerra pelo Trono de Ferro

Na década de 1990 o escritor e roteirista George R. R. Martin publicou o livro A Guerra dos Tronos (1996), que veio a originar a série As Crônicas de Gelo e Fogo (Song of Ice and Fire), que originalmente seria uma trilogia, mas o autor estendeu a longa trama para cinco livros, embora tenha prometido mais dois para encerrar essa série, livros esses que estão a anos em produção. 

Ilustração do imponente Trone de Ferro como descrito nos livros. 

Inspirado por Tolkien, Howard e outros escritores, Martin criou seu universo fantástico, também baseado num mundo medieval, mas reunindo aspectos inspirados na Europa e na Ásia, originando os continentes de Westeros e Essos, apesar que nos seus livros ele cite o nome de outros continentes que não são retratados. Em sua obra ele nos apresenta vários reinos, povos e culturas, tendo até criado línguas e religiões. 

As Crônicas de Gelo e Fogo consiste em densos livros de mais de 600 páginas, os quais apresentam uma série de tramas e subtramas que acompanham vários personagens, as quais se desenvolvem em paralelo, tendo contato ou não entre si, focando principalmente em conspirações políticas, que giram em torno do controle do Trono de Ferro, o símbolo do poder sobre os Sete Reinos de Westeros, que é o grande mérito de sua saga literária. 

Esse tom de complôs, alianças, casamentos, justas, traições, golpes, regicídios e guerras concedem o diferencial ao mundo fantástico de Martin, que não fica preso aos dragões, mortos-vivos, espadas mágicas, gigantes etc. Além disso, sua obra conta com grande quantidade de personagens, várias casas reais e genealogias até detalhadas em alguns casos, além da descrição geográfica de várias localidades, dos brasões, castelos e cidades. 

Mapa dos continentes e ilhas apresentados em As Crônicas de Gelo e Fogo. Os principais continentes que aparecem na trama são Westeros (à esquerda) e Essos diante dele. 

Assim como visto em The Witcher e A Roda do Tempo, os livros de Martin tem um tom adulto, contendo tensão, drama, violência, sexo, elementos até pesados em alguns momentos como vícios, incesto, estupro, tortura etc., características que foram aproveitadas no seriado Game of Thrones (2011-2019) que adaptou os cinco livros e foi além, desenvolvendo seu próprio fim para a trama, que inclusive ainda hoje divide a opinião dos fãs da série e dos livros. Apesar disso, o seriado expandiu algumas ideias concebidas por Martin e ainda não exploradas em seus livros, como também entregou outras versões de seus personagens e tramas. O sucesso da trama rendeu uma série derivada House of Dragon (2022-presente). 

Além disso, Martin também expandiu as histórias por Westeros, escrevendo livros de contos, novelas, romances e até uma enciclopédia sobre seu mundo fantástico, ainda em desenvolvimento, quase trinta anos depois. Nessas obras paralelas ele explora mais sobre o passado de Westeros, especialmente sobre a Dinastia Targaryen que veio de Varília e tomou o controle do continente.

O mundo bruxo 

Em 1997 a escritora britânica J. K. Rowling apresentava ao mundo seu livro Harry Potter e a Pedra Filosofal, que iniciava a jornada por sete livros, acompanhando a trajetória escolar do bruxo adolescente durante as décadas de 1980 e 1990 numa versão mágica do Reino Unido, condição essa que boa parte da trama se desenvolve no castelo que serve como a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, situado em algum lugar da Escócia, embora a trama também ocorra em Londres e em outras localidades da Inglaterra. 

Diferente dos outros livros aqui anteriormente apresentados, em que a maioria ocorre em fictícios mundos situados na Antiguidade ou Medievo, Rowling optou pelo chamada baixa fantasia, termo usado para se referir a produções que se passam numa versão fantástica do mundo real, no caso, seu país natal. Entretanto, apesar dessa escolha, a autora soube construir ao longo de sete livros e alguns spin-offs todo um Reino Unido mágico, contando até com menções a alguns outros países também, embora esses raramente aparecem na obra. 

Capa da primeira edição britânica de Harry Potter. 

A saga de Harry Potter consiste numa produção fantástica de caráter infanto-juvenil, algo perceptível no tom das narrativas e no seu linguajar, condição essa que somos apresentados a uma aventura mágica no colegial, embora que os últimos livros acabaram se tornando mais sérios e sombrios, culminando com a fatídica Batalha de Hogwarts, em que parte dos personagens acaba morrendo, e encerrando com o destinado confronto de Harry Potter e Lorde Voldermot

Harry Potter se tornou um fenômeno mundial rapidamente, virando uma série de oito filmes, ganhando vários jogos, uma peça de teatro, um site com conteúdo extra produzido pela autora, e até rendeu a origem de uma segunda franquia de filmes, baseada no livro Animais Fantásticos e onde Habitam, que explora outros países dessa Terra mágica concebida por Rowling. 

O mundo de Malazan

Trata-se de um vasto mundo de alta fantasia criado pelos amigos Steven Erikson e Ian Cameron Esslemont no começo da década de 1980 para um jogo de RPG de mesa que eles estavam desenvolvendo. No entanto, vários anos depois, Erikson aproveitou os conceitos e ideias desse jogo de rpg e decidiu publicar livros, o primeiro foi Os Jardins da Lua (1999), iniciando uma série de dez livros, concluída em 2011. Com o tempo, Erikson escreveu outras séries ambientadas no mesmo mundo, e no caso, Esslemont também aproveitou para fazer isso. 

Mapa dos continentes e ilhas de Malazan. 

Malazan consiste num mundo fantástico em que as séries escritas por Eriksen e Esslemont transcorrem em diferentes países e épocas. Os dois amigos passaram a escrever muitos livros a respeito, expandindo as narrativas e detalhes desse mundo. Atualmente a franquia conta com 26 romances publicados. E por se tratar de histórias que não necessariamente possuem conexão direta, somos apresentados a uma variedade de personagens e tramas que se desenrolam em lugares específicos, ou durante grandes eventos que afetam diferentes livros, além de que algumas narrativas ocorrem com anos, décadas ou séculos de distância uma da outra. O mundo de Malazan é um exemplo de mundo fantástico literário constantemente ampliado pelos seus autores, algo visto com a franquia Star Wars.  

Eragon e os cavaleiros de dragões

Originalmente escrito na adolescência de Christopher Paolini, Eragon seria inicialmente apenas um livro, publicado em 2001 pelos pais do autor, já que somente em 2003, o livro saiu por uma editora, ganhando rápido sucesso. A história se passa no continente fantástico de Alagaësia, em que existe magia, dragões e outras criaturas e raças mágicas. A trama começa com Eragon, um jovem de quinze anos que é agricultor e descobre que a pedra azul que ele herdou, na verdade era um ovo de dragão. Desse nasce sua dragoa, chamada Saphira

Capas da série Ciclo da Herança. 

Com exceção do rei Galbarotrix, não havia outros dragões naquele reino, então ao saber da existência de um novo dragão, o monarca ordena que Saphira seja capturada, iniciando a fuga dela e de Eragon, o qual vem aprender sobre os antigos cavaleiros de dragão, iniciando sua jornada do herói para confrontar a tirania de Galbarotrix. Porém, ao término do primeiro livro, o herói e seus aliados percebem que a guerra somente estava começando. Paolini lançou as continuações alguns anos depois, sendo intituladas Eldest (2007), Brisingr (2008) e Herança (2011), encerrando assim o Ciclo da Herança.

À medida que ele escreveu a tetralogia, somos apresentados a outros dragões, cavaleiros, reinos e povos, como elfos e anões. Eragon também teve um filme lançado em 2006, mas devido ao fracasso de bilheteria, os planos de lançar as continuações foram descartados.

Velhos deuses e novos semideuses

O escritor americano Rick Riordan em 2005 lançou o livro O ladrão de raios que apresentava a história de um adolescente chamado Percy Jackson que descobre ser um semideus, pois seu pai era Poseidon. Percy é levado para o Acampamento Meio-Sangue para treinar e ser educado ao lado de outros meio-sangues, lá ele conhece seus amigos inseparáveis Annabeth Chase e Grover Underwood. Percy e seus amigos iniciam sua jornada pelo mundo da mitologia grega secretamente escondido em pleno século XXI, ou seja, os antigos deuses eram reais. 

Ilustração combinando as artes para uma edição dos cinco livros de Percy Jackson e os Olimpianos. 

Com o sucesso do primeiro livro, Riordan escreveu mais quatro, criando assim a série Percy Jackson e os Olimpianos, uma obra infanto-juvenil. Mesmo tendo finalizado a série em 2009, o autor seguiu produzindo derivados, escrevendo contos e guias sobre seu mundo fantástico baseado em mitologia grega. Porém, Riordan decidiu expandir esse mundo, entre 2010 e 2012 ele publicou a trilogia das Crônicas dos Kane, em que acompanhamos os irmãos Carter e Sadie, que descobrem ser reencarnações de faraós. A trilogia se passa no mesmo mundo de Percy Jackson, no entanto, seu foco é em mitologia egípcia. A trilogia acabou se expandida nos quadrinhos. 

Capas da trilogia As Crônicas dos Kane. 

Enquanto escrevi sobre os Kane, ele voltou a investir naquilo que lhe fez famoso: a mitologia grega, escrevendo a série de seis livros chamada Os Heróis do Olimpo (2010-2014), cuja narrativa é uma continuação de Percy Jackson e os Olimpianos, apesar de não ter o trio original como protagonistas em toda a trama. A série até ganhou um spin-off de contos. 

Rick Riordan decidiu então investir numa terceira mitologia, vindo a publicar entre 2015 e 2017 a trilogia Magnus Chase e os Deuses de Asgard. Seguindo o mesmo estilo infanto-juvenil das suas séries anteriores, agora Riordan contava a história de um adolescente, que é primo de Annabeth, que descobre ser filho de Freyr. Assim, a presente trilogia inspira-se na mitologia nórdica para desenvolver seu enredo. 

Capas da trilogia do Magnus Chase. 

Concluída a trilogia sobre mitologia nórdica, Riordan retornou para a mitologia grega novamente, escrevendo a série As Provações de Apolo (2016-2020), formada por cinco livros e dois spin-offs, que segue continuando alguns acontecimentos de Os Heróis do Olimpo. Nessa série atual, o autor já apresenta versões jovens adultas dos protagonistas Percy, Annabeth e Grover. Além disso, o autor informou que está trabalhando em mais livros a respeito, que focará no trio. 

Percy Jackson e seus derivados e séries irmãs causaram forte impacto nos últimos anos, a franquia original rendeu dois filmes que não fizeram sucesso, embora que a Disney lançará em 2024 a série que adaptará O ladrão de raios, com a expectativa de adaptar os cinco livros da série original. 

Subgêneros da literatura de fantasia

Pode haver variação no nome desses subgêneros, pois alguns não possuem consenso entre os escritores, roteiristas e literatos. Além de haver casos que alguns subgêneros são bem parecidos, o que suscita confusão, assim como, um mesmo livro pode ser classificado em mais de um subgênero. 

  • Fantasia de fadas: subgênero surgido no começo do XIX, que era caracterizado pelo estilo de narrativa comum dos contos de fadas, histórias curtas e simples. Entrou em declínio no final daquele século. 
  • Fantasia juvenil: subgênero voltado para as crianças e adolescentes, surgido no XIX, influenciado pelos contos de fadas também. Trata-se de narrativas curtas ou medianas, simples e leves, como exemplos, Alice no País das Maravilhas, o Mágico de Oz, Peter Pan, Sítio do Picapau Amarelo. Esse subgênero ainda hoje continua a ser praticado. 
  • Fantasia romântica: narrativas focadas no romance dos protagonistas, que se passam em mundos fantásticos, tendo surgido no XIX. É um subgênero comum de livros juvenis, alguns mangás e em desenhos animados. 
  • Fantasia urbana: surgido na segunda metade do XIX, trata-se de histórias ocorridas exclusivamente em cidades, mansões, palácios, castelos, prédios, bibliotecas, escolas etc. São narrativas que poderiam conter elementos de suspense, tragédia, romance, terror, valendo-se inclusive de tecnologia mágica. 
  • Mundo perdido: é um subgênero surgido no final do XIX, que combina elementos do gênero aventura, fantasia e ficção científica, abordando civilizações geralmente fictícias ou as vezes reais (mais representadas de forma fantástica), que guardavam geralmente algum tipo de tesouro, mistério ou perigo. Esse subgênero influenciou franquias como Tomb Raider e Uncharted. 
  • Espada e feitiçaria ou Fantasia heroica: surgido na década de 1930, é uma variação do subgênero de aventura espada e capa, com a diferença de ter mais elementos mágicos presentes. Consistem em histórias centradas num herói, normalmente guerreiro ou feiticeiro. Conan, o Bárbaro popularizou esse subgênero. 
  • Faroeste fantástico: o conceito surgiu na década de 1970, sendo conhecido também como Weird Western ou Fantasy Western, todavia, sua origem remonta a décad de 1930 com as pulp fiction. Tratava-se de histórias de faroeste com elementos fantásticos como magia, monstros e o sobrenatural. 
  • Realismo fantástico ou realismo mágico: é um subgênero surgido nas artes plásticas, mas que migrou para a literatura. Consiste em narrativas baseadas no mundo contemporâneo, focada no subgênero do realismo literário, com a diferença de se acrescentar acontecimentos estranhos e sobrenaturais que afetam diretamente ou indiretamente os personagens e acontecimentos, mesmo que tais fenômenos sejam ambíguos. O livro Cem Anos de Solidão é um clássico exemplo. 
  • Alta Fantasia ou Fantasia épica: designa as narrativas que se passam em mundos fantásticos inteiramente criados por seus autores, apresentando densidade e riqueza de detalhes. O termo surgiu no final da década de 1950 para se referir a obra de Tolkien. 
  • Média Fantasia: consiste num meio termo, pois as narrativas podem ocorrer entre o nosso mundo e um mundo fantástico, algo visto com As Crônicas de Nárnia, Percy Jackson, a Bússola de Ouro. 
  • Baixa Fantasia: são tramas que ocorrem no mundo real, mas possuindo elementos fantásticos. Por exemplo, Harry Potter. 
  • Fantasia sombria: termo surgido na década de 1970 para se referir a tramas em que o sombrio é mais marcante, além de as narrativas conterem mais elementos de terror. Alguns contos de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, além de livros de Charles L. Grant e Stephen King se encaixam nesse subgênero. Nos quadrinhos, Vampirella e Sandman são exemplos. 
  • Ficção fantástica: uma combinação de características da fantasia e da ficção científica, em que as narrativas apresentam monstros e alienígenas, magia e tecnologia avançada. Esse subgênero é muito popular nos quadrinhos e videogames, em especial em jogos de RPG. 
  • Fantasia cômica: como o nome sugere, são histórias de comédia ambientadas em mundos fantástico. Algo comum em narrativas para crianças, mas também em histórias em quadrinhos e desenhos animados. 
  • Fantasia histórica: narrativas que apresentam personagens históricos ou acontecimentos históricos num tom fantasioso. As narrativas também não precisam retratar acontecimentos reais, mas podem passar em períodos históricos. O livro Devoradores de Mortos (1976) é um exemplo. 
  • Isekai: um subgênero de origem japonesa surgido na década de 1980 para se referir a histórias em que o protagonista ou protagonistas são levados para um mundo fantástico, fosse na mesma época, no passado, no futuro. Esse mundo fantástico poderia ser plenamente mágico, ficar numa realidade paralela ou dentro de uma realidade virtual. Atualmente os isekais mais populares ocorrem em mundos baseados em jogos de RPG. 
  • Hard Fantasy: são histórias nas quais a magia é tratada como uma ciência, havendo inclusive uma lógica por trás dela. Os praticantes de magia agiriam como cientistas, respeitando parâmetros e leis. Em outas palavras, uma "cientifização da magia". Esse subgênero é inspirado no hard scifi. 
  • Fantasia de pólvora: um subgênero inspirado no subgênero steampunk da ficção científica. As narrativas se passam em mundos com armas de fogo a pólvora, indústrias, máquinas a vapor, trens, mas possuindo a presença de monstros, magia e o sobrenatural. A série Carnival Row (2019-2022) é um exemplo recente desse subgênero. 
NOTA: Histórias de fantasmas (ghost stories) é conhecido como um gênero literário, embora hoje ele seja mais visto como um subgênero dos gêneros de terror, mistério e fantasia. 
NOTA 2: O subgênero mundo perdido embora costuma ser creditado tendo iniciado em 1885 com o lançamento de As Minas do Rei Salomão, é questionável de ter sido a primeira obra, pois no século XVIII encontramos narrativas de viajantes que foram parar em mundos perdidos. E no XIX temos também o caso de Viagem ao Centro da Terra (1864) de Júlio Verne
NOTA 3: Alguns escritores e literatos conceberam outros termos para designar subgêneros de fantasia de acordo com sua temática, então é possível encontrar termos como fantasia pré-histórica, fantasia antiga, fantasia medieval, fantasia contemporânea, fantasia árabe, fantasia oriental, fantasia africana, fantasia céltica etc. 

Referências bibliográficas
BLEILER, E. E. Supernatural Fiction Writers: Fantasy and Horror. New York, Charles Scribner's Sons, 1985. 
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