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Leandro Vilar

segunda-feira, 20 de março de 2023

Analisando as Viagens de Simbad, o Marujo

Simbad, o Marujo é um dos personagens mais famosos das Mil e uma Noites, coletânea de contos de origem islâmica, oriundo de distintos países. Originalmente o personagem não fazia parte desse livro, tendo sido um acréscimo editorial feito pelo tradutor Antoine Galland, o qual traduziu As Mil e Uma Noites para o francês, a qual serviu de base para outras traduções. Como Galland achou bastante interessante as histórias sobre esse marinheiro de Bagdá, que teria vivido no século IX, o qual era um misto de aventureiro afortunado e desafortunado, pois Simbad da mesma forma que tinha sorte para escapar de problemas e conseguir fortuna, ele também tinha o azar de estar no lugar e na hora errados. Galland conseguiu encontrar sete narrativas sobre o personagem, e as inseriu na sua tradução. O presente texto apresenta uma breve análise dessas sete viagens, comentando aspectos históricos, culturais e geográficos a respeito, pois as viagens de Simbad eram inspiradas nas navegações árabes pelo Oceano Índico refletindo os estereótipos e lendas do período medieval e moderno.

As Sete Viagens e as aventuras de Simbad, o Marujo. George Cruikshank, c. 1821. 

Introdução

A história de Simbad é narrada por ele mesmo. A trama começa em algum momento do século IX, na cidade de Bagdá, em que um pobre carregador ouve música alta e gargalhadas advindos de um palacete, que dizem pertencer a um rico comerciante. O carregador se senta diante do muro e reclama das injustiças do mundo, desabafando porque alguns eram tão pobres e outros eram tão ricos. Um dos guardas ouve aquilo e avisa ao dono da casa que havia um homem a reclamar de sua riqueza e alegria. O rico mercador que é Simbad, já idoso, pede para falar com o carregador, esse entra na residência e diz se chamar Simbad também. Ambos ficam surpresos por terem o mesmo nome. Então o velho marujo decide contar como ficou rico, assim, ele inicia a cada noite, ao longo de sete noites, as narrativas sobre suas viagens e concede 100 moedas de ouro ao Simbad carregador por cada história ouvida.

Primeira Viagem

Simbad explica que recebeu herança de seu pai (sua família não é mencionada na história original), porém, por ele ser jovem e imaturo gastou grande parte do dinheiro de forma irresponsável e quase entrou em falência. Então pegou o restante, comprou mercadorias e embarcou num navio mercante em Baçorá rumo às Índias. Dando início a sua jornada de aventuras e desventuras. 

Nessa primeira viagem o navio após navegar algum tempo indefinido passando por vários portos, tendo negociado em todos eles, decide aportar numa ilha com algumas árvores, em meio ao oceano, para os homens poderem descansar em terra firme. Enquanto eles se reuniam para acender a fogueira o chão começou a afundar. Não era uma ilha, mas uma gigantesca baleia. Durante a condição da baleia submergir, Simbad teve o azar de ser pego pelas ondas e levado para distante do navio, conseguindo se salvar por ter se agarrado a um pedaço de madeira. Então ele ficou à deriva, já que a embarcação simplesmente foi embora, acreditando que Simbad havia se afogado junto aos outros desafortunados. 

Simbad e a baleia que parecia ser uma ilha. Peter G. Thomson, 1885. 

Porém, Simbad foi transportado pelas correntes até uma ilha, ali ele escalou a falésia e pode comer algumas frutas e beber água de um rio. Enquanto percorria aquele lugar, ele avistou uma égua numa campina, presa a um poste, ao chegar próximo ao animal ele se espantou quando homens escondidos lhe chamaram a atenção. Eles estavam escondidos em buracos no chão. Os homens explicaram que eram os cavalariços do rei e aquela égua aguardava ser engravidada pelo cavalo do mar, que todo o ano ia até aquele lugar para engravidar as éguas do rei, gerando potros de uma estirpe rara. Porém, as vezes esses cavalos marinhos se tornavam violentos e atacavam as éguas, então os cavalariços ficavam escondidos para afugentá-los. 

Simbad acompanha a peculiar prática e depois segue com os servos até a capital, onde conhece o rei Mihraj que governava aquela ilha. O nome do local não é citado em momento algum, mas Simbad diz que seus portos eram bastantes movimentados, inclusive ele reconhece navios de algumas nacionalidades. Ele mesmo reencontra a tripulação do navio que havia embarcado em Baçorá, pelo qual o leva de volta para casa. Mas antes de partir, Simbad presenteia o monarca e aproveita para comprar especiarias como noz-moscada, pimentas, canela, cravo-da-índia, mostarda etc. Apresentado esse resumo, passemos para uma breve análise. 

O primeiro aspecto a ser comentado diz respeito a grande baleia (ou peixe) que foi confundido com uma ilha. A ideia de que poderiam existir animais desse tipo remonta desde a Antiguidade. E no medievo ela era relativamente conhecida. Condição essa que na Europa temos a lenda do aspidochelone um gigantesco peixe que era confundido com pequenas ilhas. Essa criatura lendária aparece em ilustrações dos séculos XII ao XVI. Logo, nota-se que no contexto que essa narrativa do Simbad foi escrita, o autor ou autores se basearam nessa lenda comumente difundida no período. 

Manuscrito de 1270 representando um navio que encalhou num aspidochelone. 

Outro aspecto a ser citado diz respeito ao cavalo do mar. A menção a tais cavalos também é antiga, os gregos já falavam neles chamando-os de hipocampos. Esse animal aparecia em mitos gregos, romanos e fenícios como sendo uma espécie de cavalo marinho. Inclusive alguns mitos falam que esses cavalos do mar puxariam a carroça de Poseidon e outros deuses marinhos. Outros relatos falam desses cavalos indo para a terra, cruzar com as éguas e gerando uma rara e prodigiosa raça de cavalos. Inclusive alguns reis cobiçavam ter esses animais. Logo, nota-se que na primeira viagem de Simbad, encontramos essa mesma característica.

Mosaico romano mostrando um hipocampo, um cavalo do mar. 

Um terceiro aspecto a comentar dessa primeira viagem diz respeito as especiarias. Essa primeira ilha que Simbad visitou, ela não tem nome revelado, porém, ele diz que navegava para o Oriente, cujo mar se estendia da Abissínia (Etiópia) até as ilhas de al-Wakawak. Esse trata-se de um arquipélago fictício situado em algum lugar ao leste da Índia ou da China, podendo representar a Indonésia ou as Filipinas. Porém, pela menção da obra falar que Simbad comprou várias especiarias como mostarda, canela, cravo, pimenta etc., a meu ver o mais sensato é colocar que al-Wakwak seria uma referência ao arquipélago indonésio, conhecido por algumas de suas ilhas serem grandes produtores de especiarias, fato esse que os europeus séculos depois chamavam algumas daquelas ilhas de "ilhas das especiarias"

Outra evidência que aponta que al-Wakwak poderia remeter a Indonésia encontra-se no próprio relato, quando Simbad diz que ao visitar o porto da capital daquele país, ele viu navios de várias nações e reconheceu vários navios árabes. De fato, sabe-se que os árabes já faziam negócios na Indonésia, mas raramente iam a China e as Filipinas, já que as especiarias que buscavam não se achavam por ali.

É preciso também explanar quanto ao rei Mihraj. No caso, a palavra raj era usada pelos indianos em algumas épocas para se referir a um governante, província ou reino. Sendo assim, a tal ilha do rei Mihraj parece ter sido inspirada em alguma localidade da Índia. 

Segunda Viagem

Em sua segunda jornada Simbad parte novamente para fazer comércio. Após alguns dias de viagem, o navio em que ele estava ancorou diante de uma ilha cheia de árvores frutíferas, ali a tripulação desembarcou para descansar e coletar comida e água. Simbad diz que o local era muito agradável e depois de um passeio, sentou-se para beber vinho (embora ele fosse muçulmano, nem sempre bebidas alcoólicas eram proibidas em todas as épocas) e comer algumas frutas, então acabou adormecendo. Quando ele despertou o navio havia ido embora e esqueceram de levá-lo. 

Enquanto ele explorava aquela ilha se deparou com uma grande rocha branca, redonda e brilhante, bastante incomum. Então ele nota que a cratera onde estava na verdade era um ninho de roca, uma gigantesca ave. Simbad ver a grande ave voltando ao ninho, então usa seu turbante para se amarrar nas garras do animal e deixa a ilha. A roca voa sobre o mar e vai até outra ilha, onde há um vale profundo cheio de diamantes, mas habitado por grandes serpentes. O animal alado ia ali para caçar as cobras. 

Simbad passa algum tempo naquele Vale dos Diamantes, tendo que se esconder das serpentes, até que descobre uma forma de sair dali. Os moradores do local jogavam grandes nacos de carne no vale, fazendo os diamantes grudar nesses, então quando as rocas desciam para caçar as obras, elas acabavam pegando esses pedaços de carne em suas garras. Simbad então coleta o máximo de diamantes que consegue e novamente se amarrar a uma das garras da roca, sendo levado para outro ninho, onde é resgatado por comerciantes que iam buscar os diamantes que eram levados para ali. Depois disso o marujo fala que seguiu com aqueles mercadores até uma outra ilha onde coletava-se a cânfora e viviam elefantes e rinocerontes, os quais eram capturados pelas rocas. 

A roca é uma ave lendária de dimensões gigantescas. Normalmente é descrita como um tipo de ave de rapina, parecida com uma águia, falcão ou abutre. Ela era tão grande que fazia a terra escurecer sob sua passagem. Além disso, as rocas conseguiram capturar elefantes em suas garras. Essas aves gigantes aparecem em diferentes narrativas árabes e persas, sendo uma criatura comum das lendas daquele povo. 

Uma roca carregando um elefante. Edward Julius Detmold, 1924. 

Acerca da menção a cânfora, essa substância medicinal e aromatizante era encontrada em várias localidades da Índia, Malásia, Indonésia, Tailândia, sul da China etc., sendo difícil especificar qual desses lugares a lenda se refere. Porém, Simbad diz que nessa mesma ilha onde se produzia cânfora encontravam-se elefantes e rinocerontes. Esse dado é interessante, pois esses animais eram achados na Índia, em Bangladesh, Myanmar, Vietnã Camboja, Malásia, Indonésia e Bornéu. E se quisermos escolher uma ilha que tinha elefantes e rinocerontes podemos citar Java e Bornéu. Localidades que também se produzia cânfora e outras especiarias que Simbad comprava. 

Terceira Viagem

Após navegarem por alguns dias o navio é forçado a ancorar numa ilha por conta da ameaça de uma tempestade. O capitão alerta a tripulação para não saírem da embarcação, pois aquela ilha era habitada por pequenos homens peludos e selvagens. Os quais eram conhecidos por sua barbárie. Mesmo que os árabes tentassem lutar, os homens peludos eram mais numerosos e facilmente os venceriam. E, de fato, isso aconteceu. O navio foi capturado e os árabes foram abandonados em outra ilha. Ali eles a percorreram e avistaram um grande palácio com uma alta porta feita de ébano, ao entrarem no recinto viram na primeira sala uma pilha de ossos humanos e várias varas que lembravam espetos de carne. A tripulação ficou apavorada ao ver aquilo. 

Em seguida uma porta abriu-se e um terrível gigante negro passou por ela. O monstro tinha um único olho vermelho, orelhas grandes como a dos elefantes, suas unhas eram como garras de aves de rapina, sua boca era como de um cavalo ou camelo, possuindo dentes afiados e seu lábio inferior era comprido e pendente. Diante de abominável criatura Simbad diz que ele e seus companheiros tiveram tanto medo que acabaram desmaiando de pavor.

O ciclope negro que ataca Simbad e seus companheiros. Henry Justice Ford, 1898. 

Ao despertarem o gigante começou a averiguar cada um dos homens, Simbad foi o primeiro, mas por ser magro, foi descartado, então o gigante pegou o capitão que era um com mais carne e o matou, espetando-o com uma lança. Em seguida o levou para assar diante de uma grande fogueira. Depois de jantar o gigante foi dormir. Simbad e os demais tentaram encontrar uma forma de escapar daquele palácio, mas todas as portas e janelas estavam trancadas e ali somente vivia o gigante devorador de homens. 

Alguns dias se passaram e os tripulantes eram sendo mortos a cada noite, até que Simbad e mais nove homens se reuniram e pegaram os espetos de carne e durante o sono do gigante, lhe perfuraram o olho. Depois disso eles se esconderam e esperaram a criatura abrir a porta, para que pudessem escapar. Eles então aproveitaram o restante da noite e do dia para construir jangadas e enquanto se preparavam para fugir, ouviram outros gigantes negros indo na direção deles. Para fins de análise não será preciso prosseguir com o restante da narrativa, mostrando a fuga e resgate de Simbad, então passemos para comentar dois aspectos importantes. 

O primeiro diz respeito aos homens peludos. Alguns literatos sugeriram que seriam referências aos pigmeus, povos de baixa estatura, sendo até chamados de anões negros. No entanto, os pigmeus não viviam na costa leste africana o que dificultaria o contato deles com os árabes, porém, como alguns viajantes e mercadores adentraram o continente, eventualmente podem ter ouvido histórias sobre esses povos. 

Por outro lado, na Ásia também existe lendas sobre "homens-macacos" que supostamente viveriam na Índia, China, Rússia, Mongólia, Indonésia etc. Os mongóis falam sobre os Almas, termo usado para homens-selvagens e peludos, na Indonésia temos os Orang Pendek, os pequenos homens peludos. Sendo assim, haja possibilidade de que os homens peludos que Simbad encontrou possa ser uma inspiração nos pigmeus ou uma combinação dos pigmeus com essas lendas sobre "homens-macacos". 

Ilustração de um Orang Pendek, uma criatura tida como um pigmeu peludo. 

O segundo aspecto a ser tratado nessa terceira viagem diz respeito ao gigante negro. Talvez os leitores possam ter notado algo estranho nessa narrativa, tendo a sensação que já viram algo parecido, e isso é verdade. A parte do gigante em que Simbad e seus companheiros encontraram é diretamente inspirada na Odisseia de Homero, quando Odisseu e sua tripulação chegam à ilha dos ciclopes. Ambos os relatos são bem parecidos, nos quais temos gigantes ferozes com um único olho, que comem carne humana. 

No entanto, o ciclope da história de Simbad apresenta características físicas peculiares. O fato desse monstro ter orelhas de elefante, focinho de cavalo (ou camelo) e lábios grandes lembra o estereótipo ofensivo ao dizer que pessoas negras teriam "orelhas de abano", "cara de cavalo", "nariz achatado", "beiço pendentes" etc. Isso se deve a condição de que para os árabes da época alguns povos africanos eram considerados feios, e por motivo desconhecido, os autores dessas lendas decidiram retratar os ciclopes com essa fisionomia. Entretanto, vale ressalvar que a ilha dos ciclopes em que Simbad aportou não ficaria na África, já que sua localização é indeterminada. Mas alguns estudiosos por conta da aparência do gigante, a associam às ilhas africanas da costa oriental, que podem ter servido de inspiração. 

Quarta Viagem

Simbad narra que nessa quarta viagem ele se dirigiu para o Oriente e durante uma tempestade, o navio dele chocou-se com rochedos, vindo a naufragar. Toda a carga foi perdida, mas ele e a tripulação conseguiram nadar até uma ilha próxima. Ali conseguiram água, comida e abrigo e descobriram que a ilha era povoada por homens negros que andavam nus. Esses ofereceram arroz frito em óleo de coco e outros alimentos, mas eles também ofereceram uma "erva" alucinógena, a qual Simbad foi o único a não consumir, mantendo-se em alerta. Porém, todos seus companheiros comeram da tal "erva" e ficaram alucinados, em seguida foram assassinados e canibalizados pelos selvagens

O navio de Simbad rumo a colidir com rochedos durante a Quarta Viagem. Ivan Bilibin, 1932. 

Simbad depois explica como conseguiu escapar e encontrou do outro lado da ilha, plantações de pimenta, sendo resgatado pelos coletores que o levaram até sua ilha, onde o marujo conheceu o rei daquele lugar. O rei ficou fascinado com as histórias das aventuras e apuros de Simbad e lhe concedeu uma mulher nobre para casar, convidando o marujo de Bagdá a morar naquela ilha. Após algum tempo vivendo feliz com sua esposa, ela faleceu, então contaram a Simbad que quando um dos cônjuges morria o outro deveria lhe acompanhar no túmulo

Entre aquele povo a tradição era colocar os corpos em caixões numa caverna no chão, e o cônjuge vivo era descido por uma corda e lhe era dado um odre de água e sete pães, para postergar sua vida. Simbad alarmado tentou fugir daquela condenação, mas foi levado até a tumba. Para não morrer ele começou a matar as viúvas e viúvos, lhe roubando a água e os pães, além de saquear os mortos para pegar suas joias e bens de valor. Depois disso ele encontrou uma saída daquela caverna e fugiu. Essa é a história mais sombria do marujo árabe, por conta de suas ações para poder sobreviver na tumba. 

Simbad consegue encontrar uma saída da tumba em sua Quarta Viagem. John D. Batten, 1915. 

A análise aqui será feita duas partes, já que Simbad visita duas ilhas. Na primeira ele diz que encontrou um povo de selvagens canibais que enganavam suas vítimas com uma "erva" alucinógena. A fonte não menciona que planta seria essa, mas é possível que poderia ser a papoula, da qual se faz o ópio, droga consumida na Ásia desde a Antiguidade e bem conhecida. Além disso, essa ilha dos canibais não ficaria na África, apesar de eles serem descritos como pessoas negras, pois o relato é categórico ao falar que se viajou para o Oriente. 

Provavelmente seja uma referência aos povos da Indonésia, os quais alguns têm a pele escura, além de haver informações incertas de que algumas tribos ali praticavam o canibalismo.  Simbad relata que na ilha dos canibais havia plantações de pimenta e coqueiros, outro dado que sugere ser o arquipélago indonésio, onde se cultivava tal especiaria e muitos coqueiros existiam. 

Além disso, essa parte dos marinheiros serem alucinados ao consumirem uma erva, lembra também a Odisseia, em que durante a jornada de Odisseu, ele e seus companheiros pararam na terra dos Lotófagos, cujo povo consumia uma planta chamada "lotos" que era narcótica. Mas Odisseu recusou-se a usar aquela erva para não perder a razão. 

Quanto ao costume de levar um dos cônjuges para o túmulo, essa prática pode ter sido inspirada num costume fúnebre existente na Índia chamada Tradição Sati, em que algumas comunidades quando o marido morria, a viúva era cremada junto a ele. Além disso, sabe-se que no passado alguns povos mesopotâmicos, persas e de outras origens também tinham o hábito de sepultar os escravos junto aos seus donos, matando-os para que os servissem na outra vida. É possível que esse antigo costume também possa ter inspirado o relato de Simbad. 

Quinta Viagem

Em sua quinta viagem Simbad disse que ele e os demais aportaram numa ilha e encontraram um grande ovo, ele logo reconheceu como sendo o ovo de uma roca e pediu que todos saíssem dali, mas os marinheiros e mercadores ignoraram o aviso e quebraram o ovo para comê-lo, nesse instante rocas apareceram e começaram a pegar grandes rochas nos penhascos e atirá-las contra eles. Todos correram de volta ao navio, mas a embarcação acabou sendo atingida e veio a naufragar. Simbad foi arrastado pela correnteza, indo parar e outra ilha próxima. 

Marinheiros quebram um ovo de roca durante a Quinta Viagem de Simbad. Gustave Doré, 1865.

Tendo sobrevivido a mais um naufrágio, Simbad vai parar numa ilha onde vivia o Velho do Mar. O marujo ajudou aquele homem, colocando-o sobre seu ombros para que ele pudesse pegar algumas frutas, mas ao fazer isso, as pernas do homem se tornaram galhos e enroscaram o pescoço de Simbad, quase matando-o. O velho traiçoeiro havia o enganado. Ele passou dias com aquele homem preso nele, temendo que aos poucos sufocasse, então ele teve a ideia de preparar vinho, pois encontrou videiras naquela ilha. O vinho tendo ficado pronto, Simbad fez o Velho do Mar bebê-lo, embriagando-o de forma que ele o soltou, permitindo que o marujo o matasse e fugisse. 

Simbad atacado pelo Velho do Mar. Arthur Rackham, 1933. 

Ele foi resgatado por mercadores que navegaram até uma cidade de pedra com um porto movimentado. Ali Simbad passou algum tempo trabalhando na coleta de cocos, pois esses eram valiosos. Na floresta de coqueiros habitavam muitos macacos que eventualmente atacavam as pessoas, por conta disso, havia necessidade de sempre ir armado ao coqueiral para afugentar os símios. Depois de coletar muitos cocos, Simbad foi para outra cidade em Comari, onde vendeu os frutos por pimenta e aloé, depois pegou um navio de volta a Baçorá. 

Dessa quinta viagem podemos fazer os seguintes comentários. Primeiro, sobre o ovo de roca, não há novidades, já que na segunda viagem Simbad havia encontrado essa ave. A novidade que temos é o tal Velho do Mar, um ser traiçoeiro que enganava as pessoas, tornando-as seus escravos. Se desconhece exatamente a inspiração desse lenda. Alguns literatos sugeriram que esse personagem poderia ter sido inspirado em Nereu, um deus grego do mar. O qual era representado geralmente como um velho, apesar que ele pudesse mudar de forma. Nereu as vezes era conhecido por pregar peças em viajantes e em alguns heróis. 

No tocante ao coqueiral infestado de macacos tudo indica ser uma referência a Índia. No caso, esse país já era conhecido pela grande quantidade de macacos, até porque eles são sagrados em algumas localidades. E ainda hoje existem relatos de bandos de macacos causando problemas em algumas cidades e vilas. Além disso, Comari que no relato é dito ser uma ilha, na verdade refere-se a península de Camorim, situada na Índia. 

Sexta Viagem

Nessa jornada Simbad narrou que após alguns dias de viagem, o capitão do navio e o piloto estavam perdidos, e enquanto tentavam encontrar o rumo uma forte corrente levou o navio a colidir com rochedos diante de uma falésia, onde se encontrava destroços de outras embarcações naufragadas e restos de mercadorias. Os sobreviventes passaram algum tempo ali aguardando por socorro, mas nenhum navio apareceu e um a um eles foram morrendo, restando apenas Simbad. Ele comenta que chegou a cavar seu túmulo, mas decidiu arriscar em encontrar uma saída daquela praia, então achou uma caverna com um rio que seguia ao interior da ilha. Simbad pegou os destroços dos navios e montou uma jangada e pelo rio subterrâneo seguiu. À medida que navegava por ele, avistou diamantes e pérolas.

Simbad navega pelo rio subterrâneo. Milo Winter, 1913. 

O marujo aproveitou para coletar algumas joias e chegou num campo, onde encontrou ajuda. A população ali o conduziu até a capital, indo apresentar ao monarca, o qual se dizia ser Rei da Índia. Então Simbad soube que aquela ilha era Serendib. Ali ele ficou hospedado na corte e falou acerca do seu califa, que encantou o rei de Serendib, que decidiu enviar Simbad de volta a Bagdá, levando vários presentes ofertados pelo monarca como sinal de amizade.

A presente sexta viagem é curta, aqui as principais informações que temos dizem respeito a Serendib, um nome árabe para o Ceilão (atual Sri Lanka). Embora o relato se refira a esse país, ele acaba combinando também elementos descritivos da Índia, ao citar alguns animais e plantas que não existem no Sri Lanka, além da condição de que o monarca de Serendib usa o título de "Rei da Índia". Quanto aos diamantes e pérolas, vale mencionar que o Sri Lanka e a Índia são realmente lugares onde essas joias eram extraídas ou comercializadas. 

Sétima Viagem

Por fim, chegamos a última viagem do desventurado Simbad. Após entregar os presentes do Rei da Índia ao califa Al-Rashid, ele ficou tão maravilhado com aquilo que enviou Simbad novamente a Serendib para agradecer e iniciar acordos comerciais. Realizada essa tarefa, ele e a tripulação retornavam para Bagdá para informar da missão bem sucedida, mas no caminho o navio foi atacado por piratas. Os que sobreviveram a abordagem foram vendidos como escravos. 

Simbad foi comprado por um rico mercador de marfim de uma terra que ele desconhecia. Ali Simbad passou a caçar elefantes pelos meses seguintes, fazendo tão bem seu trabalho que ele foi recompensado com a liberdade e se tornou o homem de confiança do mercador de marfim, o qual lhe designou como seu representante. Simbad então viajou para outras cidades para vender o marfim e os ossos dos elefantes. Até que um dia ele chegou numa cidade ao anoitecer, mas os portões tinham sido fechados e os guardas negaram acesso a ele, dizendo que ninguém poderia entrar depois que anoitecia e o campo ao redor era cheio de leões. Simbad temendo pela vida suplicou para entrar, mas os guardas sugeriram ele se abrigar numa mesquita no campo, assim ele o fez. 

Simbad é cercado pelos elefantes. Rene Bull, 1898. 

No entanto, um dos leões conseguiu entrar na mesquita e o jumento que Simbad usava como montaria saiu dessa, deixando o mercador sozinho com a fera. Ele começou a orar e o leão acabou não vendo ele e ali dormiu. No dia seguinte avistaram um jumento diante da porta da mesquita e consideraram aquilo uma ofensa, mas ao abrirem a porta o leão saiu e matou um dos homens e levou seu corpo. Os moradores viram Simbad dormindo, mas acharam que ele estava morto, porém, ele despertou e aquilo foi tomado como um milagre. Dali ele seguiu viagem tranquilamente voltando para Bagdá.  

Essa última viagem também tem pouco a nos informar. Aqui encontramos menções a piratas, elefantes e leões. Quanto a esses animais já se cogitou que a trama se passaria na África, mas isso é um engano. No relato Simbad diz que caçava elefantes em florestas, mas os elefantes africanos vivem principalmente nas savanas. Sendo assim, Simbad estaria caçando elefantes em algum lugar da Ásia, talvez Índia ou no Sudeste Asiático. Por sua vez, na Ásia também existem leões. Vale ressalvar que ele depois que foi libertado pelo mercador de marfim, seguiu por via terrestre até Bagdá, sendo assim, ele encontrou o leão no percurso. 

NOTA: Simbad é um dos personagens mais populares das Mil e Uma Noites tendo inspirado vários filmes, desenhos, peças de teatro, histórias em quadrinhos, contos e músicas. A maior parte dessa produção apresenta narrativas próprias, não necessariamente adaptam as Sete Viagens. 

NOTA 2: Em alguns momentos quando Simbad narra sua história, ele diz que tinha família, mas ela nunca é revelada. Não se sabe quantas esposas ele teve e quantos filhos. Já que Simbad quando narra suas aventuras, já era idoso e tinha uma grande barba branca, todavia, ele diz que realizou aquelas jornadas quando era jovem, tendo entre 20 e 30 anos, mais ou menos. 

NOTA 3: Diferente do que se ver nos filmes, Simbad não era um homem bonito, atlético ou guerreiro, ele em alguns momentos diz que era feio e bastante magro, por isso os canibais não quiseram comê-lo de imediato. 

NOTA 4: Em algumas das aventuras Simbad faz menções a sua religião, o Islão. Ele diz que chegou a conversar com o rei Mihrage e o rei do Ceilão sobre Alá. 

NOTA 5: No livro O Conde de Monte Cristo (1844), o protagonista adota o nome de Simbad, o Marujo como pseudônimo na Itália. 

Fonte: 

LIVRO das Mil e Uma Noites. Tradução e notas de Mamede Mustafa Jarouche. 3a ed. Rio de Janeiro, Globo, 2006. 4v

Referências bibliográficas:

HADDAWY, Hussain. Sindbad: And Other Stories from the Arabian Nights. New York, W. W. Norton & Company, 2008. 

HARDY-GOULD, J. Sindbad. Oxford, Oxford University Press, 2005. 

segunda-feira, 13 de março de 2023

Tombuctu: uma cidade universitária no Saara (1300-1591)

Durante a Idade Média, a cidade de Tombuctu, no Império do Mali, foi um centro econômico e intelectual. Sua universidade, mesquitas e madraças se tornaram referência para o mundo islâmico africano, a ponto de que vários estudantes e eruditos atravessavam longos dias de viagem pelo maior deserto do mundo para poder ir estudar em Tombuctu. Por pelo menos duzentos anos essa cidade foi uma cidade bastante importante, reunido a riqueza material e intelectual. Alguns eruditos árabes renomados chegaram a visitar essa cidade e até estudar nela. 

Origem

A data de fundação de Tombuctu (conhecida também como Timbuktu em inglês) é incerta, mas ela teria surgido por volta de 1100 como um acampamento de viagem dos tuaregues Magcharen, vindo a originar um assentamento fixo próximo as águas do rio Níger. O local era bastante propício por ficar situado entre rotas de comércio. Apesar do Saara se o maior deserto do mundo, os tuaregues, árabes e outros povos desenvolveram rotas mercantes por ali, levando mercadorias do sul da África para o norte, oeste e leste. Essas rotas conectavam o interior da África ocidental com o Mediterrâneo e indo até a Líbia, Egito e Etiópia, de onde tinham contato com mercadorias advindas da Grécia, Império Bizantino, Síria, Pérsia e até de mais longe através da Rota da Seda. 

Gravura de Tombuctu por Heinrich Bath, 1858. Ao longo de séculos a aparência da cidade se manteve estagnada desde sua fundação, condição essa que ela ainda hoje se parece com essa gravura. 

No século XIV a região de Tombuctu, que na época não passava de um vilarejo foi incorporada pelo Império do Mali (1265-1650), o que contribuiu para o desenvolvimento daquela localidade, já que o império foi bastante próspero por conta no investimento do comércio e na exploração de sal, ouro e cobre. (NAINE, 2010). 

"Um dos reinos mais importantes da savana ocidental, sobretudo entre os séculos XIII e XV, era o Mali, localizado no alto do Níger. A origem desse reino está nos povos de língua mande, que viviam em um kafu – conjunto de aldeias cercadas por terras cultivadas no vale do Níger, que formavam pequenos estados, governados pelos famas -, donos da terra, descendentes dos primeiros habitantes da região". (MATTOS, 2009, p. 21-22).

"Na segunda metade do século XIII, o rei Uli, expandiu os domínios de seu império, passando a dominar os importantes centros comerciais da região do Sael: Ualata, Tombuctu, Jenné e Gao, além de subjugar outros povos, e passar a cobrar destes tributos à Coroa. Com a conquista destes centros comerciais, o império se tornou um dos mais prósperos do continente, entre os séculos XIII e XIV. A cidade de Jenné era um importante centro agrícola e comercial próximo das florestas, e realizava a ligação destas com a savana e o deserto ao norte. Lá se produzia milhete (tipo de milho), sorgo, arroz, algodão, criava-se gado, exportava-se couro, artesanato, ferro, cobre, madeira, barro e ouro. Parte desta produção seguia para a cidade de Tombuctu, mais ao norte, lá estes produtos seriam trocados por outras mercadorias, como sal, escravos e cavalos, trazidas do Mediterrâneo, do Egito, Marrocos e do Oriente Médio". (VILAR, 2011). 

O Império do Mali em seu auge territorial no ano de 1350. No mapa pode-se ver a capital Koumbi Saleh e as importantes cidades mercantes de Jenne, Gao e Tombuctu. 

Uma cidade universitária

Graças as riquezas que passavam por Tombuctu a cidade apesar de pequena, estimando-se que no auge chegou a ter mais de 30 mil habitantes, ainda assim, atraiu a atenção de eruditos. Nessa época a expansão muçulmana ainda se desenvolvia, apesar de que muitas tribos de tuaregues já tivessem sido islamizadas há séculos. O Império do Mali acabou adotando o Islão como religião oficial, logo, toda cidade deveria ter uma mesquita, e eventualmente em com as mesquitas surgiam as madraças (escolas), os tribunais e bibliotecas. Esses lugares no mundo islâmico andavam de mãos juntas, pois diferente do mundo cristão em que apenas o clero e uma parte da nobreza tinha acesso ao conhecimento, nos países islâmicos era incentivado que a população pudesse aprender a ler, para poderem ler o Corão. 

E com esse intuito surgiram as madraças, as quais são também referidas como escolas corônicas. Todavia, as madraças para além de alfabetizarem com base no Corão, também poderiam ensinar outros saberes como geografia, história, matemática, física, química, política, filosofia etc. Havia madraças voltadas para crianças, adolescentes e adultos, algumas eram especializadas em determinadas disciplinas e campos do conhecimento, por conta disso, o termo madraça é muito mais abrangente, podendo se referir tanto a uma escola quanto a uma faculdade. Evidentemente que os cursos mais avançados eram voltados para as pessoas que pudessem pagar, já a educação básica em alguns casos era custeada pelo governo. 

No caso de Tombuctu, três madraças foram construídas na cidade. A primeira delas surgiu no final do século XIII ou começo do XIV, sendo a madraça da Mesquita de Sancoré, a mais antiga da cidade. Em geral era comum algumas madraças serem construídas em anexos a mesquitas, já que algumas delas serviam de escolas corônicas. A madraça de Sancoré foi construída sob o patrocínio de uma rica viúva de um mercador. No século XVI a escola foi reformada, assumindo a arquitetura que ainda hoje mantém. (JUBBER, 2016). 

A Mesquita de Sancoré em fotografia de 2007. 

Por volta de 1327 foi construída a segunda mesquita da cidade, nomeada Djingareyber, que também ganhou uma madraça. Essa mesquita foi encomendada pelo rei Mansa Musa I (conhecido por ter sido o mais rico de seu império). Em 1440 foi concluída a terceira mesquita e madraça de Tombuctu, chamada Sidi Yahya, em homenagem ao seu primeiro imã. 

Assim, essas três mesquitas com suas madraças se tornaram o centro escolar e universitário de Tombuctu, por mais de duzentos anos. Condição essa que no século XVI, durante o Império Songhai (1469-1591), Tombuctu se tornou efetivamente uma cidade universitária por concentrar milhares de estudantes, os quais viajavam de diferentes localidades do mundo islâmico na África e as vezes da própria Ásia, para irem estudar ali. E parte disso somente ocorreu, pois o rei Askia Daoud (r. 1549-1583) era um homem que admirava as ciências e a literatura, sendo um mecenas bastante ativo, investindo pesadamente na educação. (KANE, 2016). 

Sob seu auspício renomados professores foram contratados e bancados pelo Estado. Livros e pergaminhos foram comprados, montando-se bibliotecas primorosas. Casas para os estudantes foram construídas, reformas de ampliação das mesquitas e madraças foram executadas. Tombuctu para além de ser uma cidade conhecida por seu mercado, tornou-se também conhecida por algumas décadas por suas escolas. (KANE, 2016). 

As madraças de Tombuctu estavam antenadas nos assuntos e ensinamentos ensinados em outras cidades importantes do mundo islâmico como o Cairo, Damasco, Istambul, Bagdá e Isfahan, lugares conhecidos por algumas das mais importantes escolas e universidades. Logo, em Tombuctu era possível encontrar professores que lecionavam uma variedade de saberes como matemática, história, geografia, filosofia, medicina, farmácia, astronomia, química, física, literatura etc. (KHAIR, 2003). 

Segundo relatos da época, na era de ouro da educação em Tombuctu, ocorrida no século XVI durante o Império Songhai, pelo menos 25 mil moradores da cidade eram estudantes advindos de outras cidades e países para ali estudar. E a população da cidade em si era em torno de 100 mil habitantes, valor considerado bastante alto para a sua região. (KHAIR, 2003). 

A mesquita de Djingareyber onde funcionava algumas importantes madraças no século XVI. 

Declínio 

Embora a Universidade de Sancoré ainda hoje exista, as madraças de Tombuctu entraram em declínio junto ao final do Império Songhai. Após a morte de Askia Daoud seu sucessor Askia Ishaq II não conseguiu conter as invasões da Dinastia Saadi, a qual governava o Marrocos, e assim em 1591, o império sucumbiu aos invasores. Sob o novo governo todo o mecenato que existia para investir na educação foi gradativamente perdido. Com isso, os professores deixaram a cidade e com eles muitos alunos foram embora. Além disso, professores que eram contrários ao novo governo sofreram perseguição, sendo presos ou executados. (KANE, 2016). 

Diante disso, no século XVII, a economia e a educação de Tombuctu entram em declínio, não voltando a se reerguer como antes. As escolas ainda continuaram a funcionar, mas tendo perdido muito de seus investimentos, professores e alunos, por conta disso, algumas bibliotecas tiveram que serem transportadas para escapar de serem saqueadas ou confiscadas. Parte dos professores migraram para o Egito, a Etiópia ou a Ásia. Outros que aceitaram viver sob o novo governo, se mudaram para o Marrocos. 

Referências bibliográficas: 

JUBBER, Nicholas. The Timbuktu schools for nomads. London, Nicholas Brealey Publishing, 2016. 

KANE, Ousmane Oumar. Beyond Timbuktu: An intellectual history of Muslim West Africa. Cambridge, Harvard University Press, 2016. 

KHAIR, Zulkifi. The University of Sankore, Timbuktu. Disponível em: https://muslimheritage.com/the-university-of-sankore-timbuktu/

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo, Contexto, 2009. (As sociedades africanas). 

NIANE, Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansão manden. In: TAMSIR, Djibril (ed.). História Geral da África – vol. IV: África do século XII ao XVI. 2ª edição, Brasília, UNESCO, 2010. 

Links relacionados: 

África Dourada: Tombuctu, Zanzibar e o Grande Zimbabué

Mansa Musa I: o rei do ouro

A expansão islâmica: VII-XII

quinta-feira, 9 de março de 2023

A origem da Torre Eiffel: um símbolo da modernidade

A Torre Eiffel é provavelmente a torre mais famosa na atualidade, sendo visitada por milhões de pessoas todos os anos. Essa gigantesca torre se tornou um marco na paisagem parisiense há mais de um século. E isso é tão marcante que hoje em dia seria difícil imaginar Paris sem sua torre de terro forjado. Mas saiba que foi considerada a possibilidade de se demolir a torre após seu propósito inicial. Além disso, quando ela foi inaugurada teve muita gente que não gostou de seu visual, considerando sua presença uma afronta a bela arquitetura parisiense. 

A Torre Eiffel fotografada em 1889 no ano de sua inauguração. É possível ver diante dela os prédios e pavilhões da Exposição Universal de Paris de 1889. 

Origem

O projeto da Torre Eiffel foi encomendado pelo engenheiro Gustave Eiffel (1832-1923) que fez carreira projetando pontes ferroviárias e algumas estradas. Em 1868 ele abriu sua própria construtora a Eiffel et Cie, o que impulsionou o crescimento de seu nome, incluindo elaborar projetos para outros países como Hungria, Áustria, Portugal, Chile, México, Estados Unidos etc. Dez anos depois a empresa já era mundialmente reconhecida, condição essa que ela foi contratada para construir os pavilhões e prédios da Exposição Universal de 1878, o que marcou o primeiro contato de Eiffel com esse tipo de evento. 

As exposições universais começaram a serem realizadas em 1851, iniciando em Londres. Tratava-se de grandes eventos públicos para apresentar novas tecnologias, exaltando a Revolução Industrial e o progresso tecnológico. Era comum nessas exposições serem apresentados trens, automóveis, motores e outros tipos de máquinas e equipamentos. As exposições aconteciam em diferentes países ocorrendo com temporalidade irregular, pois algumas exposições se separavam das outras em quatro anos, mas outras em cinco, três ou dois anos. De qualquer forma, em 1889 foi decidido que a exposição daquele ano seria novamente realizada em Paris. Como Eiffel havia trabalhado na edição de 1878, sua empresa foi contratada novamente pelo governo para construir os pavilhões e prédios, mas dessa vez pediram que uma atração turística fosse feita. 

Gustave Eiffel então chamou dois engenheiros da sua empresa, Maurice Koechlin (1856-1946) e Émile Nouguier (1840-1897) para projetarem uma torre. Como a empresa de Eiffel era conhecida por suas estruturas em ferro e aço, a torre deveria se inspirar nesse estilo, tendo como referência as pontes produzidas pela companhia. Condição essa que que o material escolhido para se construir a torre foi o ferro fundido. E isso também se deve ao motivo de ele ser mais fácil de ser forjado, além de que incialmente a torre seria uma atração temporária, permanecendo de pé enquanto durasse a exposição universal. 

Planta da Torre Eiffel feita por Maurice Koechlin por volta de 1884. 

De início Eiffel não aprovou o projeto de Koechlin e Nougiuer, então chamou seu arquiteto veterano Stephen Sauvestre (1847-1919), pedindo que ele "embelezasse" a estrutura. Dessa forma, Sauvestre concedeu arcos decorativos, um pavilhão de vidro e outros ornamentos. Eiffel se agradou da nova versão e comprou a patente. Em 1885 ele exibiu o projeto para a Sociedade de Engenheiros Civis, dizendo que a aquela torre simbolizaria a arte da engenharia moderna, o progresso tecnológico e científico, sendo também um monumento para saudar o centenário da Revolução Francesa. 

Apesar de parte dos engenheiros presentes terem ficado entusiasmados com aquele projeto, ele foi considerado bastante oneroso, ambicioso e até inviável por alguns. Críticas foram feitas a questões estruturais. Além disso, o governo parisiense não aceitou a proposta de Eiffel de imediato, em 1886 um concurso para se escolher o monumento de exibição na Exposição Universal de 1889 foi realizado, no final o projeto de Eiffel acabou sendo o vencedor, no entanto, em 1887 a prefeitura de Paris apenas ofereceu 1,5 milhões de francos para as obras, mas Eiffel havia estimado o gasto em 6,5 milhões, então ele fez uma contra oferta: ele aceitaria aquele valor do governo, investiria do próprio bolso o restante da verba necessária, mas o lucro com os ingressos sereia totalmente dele. A prefeitura aceitou e a torre começou a ser construída naquele mesmo ano. 

Fotos sobrepostas mostrando a construção da Torre Eiffel entre 1887 e 1889. 

Estrutura

O local de construção da torre foi o Champ de Mars (Campo de Marte, nome dado a praças diante de bases, quartéis ou escolas militares) uma das maiores praças de Paris, situada diante da Escola Militar. As obras começaram em 28 de janeiro de 1887, mas somente em junho começou-se a erguer a torre, os meses anteriores foram necessários para a construção das fundações. Milhares de esboços foram produzidos para retratar as mais de 18 mil peças que formavam a estrutura, pois originalmente o projeto foi concebido para depois de algum tempo ser desmontado. Sendo assim, ele foi concebido de forma pré-fabricada para facilitar o desmonte, que felizmente nunca aconteceu. 

Originalmente a torre tinha 300 metros de altura (atualmente são 330 por conta da antena), sendo formada por 18.038 peças feitas de ferro forjado e algumas de aço, conectadas por 2,5 milhões de rebites. Eiffel empregou seus melhores construtores, soldadores, mestres de obras etc., para construir a monumental torre, a qual se tornou a mais alta estrutura construída pela humanidade até então. Na época isso inclusive gerou dúvidas. Engenheiros e arquitetos temiam que aquela torre tão alta poderia sucumbir as forças dos ventos, outros achavam que o peso da estrutura (estimado em 7 mil toneladas) acabaria não aguentando. Apesar desse pessimismo a torre foi concluída em dois anos. 

A Torre Eiffel possui três andares, o primeiro que é maior, abrigava na época da inauguração três restaurantes e um bar. No segundo andar se encontrava laboratórios para testes envolvendo altitude e mais um mirante. O terceiro andar que é o mais alto, continha o escritório de Eiffel, posto de correio e um mirante. Conectando esses andares foram construídos elevadores, embora que com o tempo suas posições e quantidades variaram. Mas ainda hoje é possível usar as escadas. 

Gustave Eiffel também fez questão de prestar homenagens. Como a torre era um símbolo da modernidade, dos tempos do progresso e das ciências, Eiffel mandou gravar o nome de 72 cientistas, que segundo ele, foram importantes para o desenvolvimento das ciências, de tecnologias e da história da França. Os 72 nomes são divididos em quatro grupos de dezoito nomes, e rodeiam o primeiro andar. 

Os nomes de Laplace, Dulong, Chasles, Lavosier e Ampère, entre os homenageados na Torre Eiffel. 

Inauguração

Antes mesmo da inauguração ser realizada na Exposição Universal de 1889, a própria construção da torre já era uma sensação desde 1887 quando começou a ser erguida. Os jornais parisienses noticiavam empolgados a obra que crescia. Apesar que críticas negativas também vieram. Pessoas se manifestaram contrárias a obra não apenas por temer que a torre poderia cair por conta do vento, mas porque aquela torre era muito grande, era muito extravagante. Alguns defendendo um discurso artístico, diziam que aquele colosso de ferro forjado era uma afronta a bela arquitetura e paisagem parisiense. 

A Exposição Universal de Paris de 1889 ocorreu de 6 de maio a 31 de outubro e como já era esperado a Torre Eiffel foi a grande sensação daquela edição. Estima-se que mais de 30 milhões de pessoas tenham visitado a exposição que contou com mais de 25 mil expositores de 35 países, incluindo o Brasil. 

Cartão comemorativo da Exposição Universal de 1889, mostrando a Torre Eiffel e os pavilhões e prédios construídos para o evento no Champ de Mars. 

Quando a torre começou a funcionar em 6 de maio, os elevadores ainda estavam sendo instalados, mas isso não impediu que os visitantes subissem seus mais de mil degraus para chegar até o topo. Como a torre possui três andares, os ingressos eram vendidos por andar: 2 francos para o primeiro, 3 para o segundo e 5 para o terceiro. E nos domingos todos os ingressos tinham desconto de 50%. A bilheteria da torre contabilizou até 31 de outubro, dia do encerramento da exposição, mais de 1,8 milhão de visitantes.

Como havia sido acordado por Gustave Eiffel, o lucro dos ingressos ficaria com ele, afinal ele teve que investir quase 70% do orçamento para construir a torre, pois o governo não quis acreditar seu projeto. Além disso nesse mesmo acordo foi sugerido que a torre somente seria desmontada após vinte anos. O governo aceitou, mas como a torre fazia tanto sucesso para fins de turismo e até era usada para experimentos científicos, quando chegou em 1909, ano em que ela deveria ser desmontada, o governo decidiu mantê-la. Nesse tempo que vigorou o contrato exclusivo de Eiffel, ele conseguiu recuperar todo o dinheiro investido nas obras, modificações e reformas, além de ter conseguido mais verba para outros empreendimentos. 

NOTA: Originalmente a torre era pintada de marrom-avermelhado (ou acobreado), a partir de 1968 mudou-se para tons de marrom-acinzentado (ou bronzeado) que ela mantém hoje em dia. Todavia, a Torre de Tóquio que é inspirada nela conserva a cor vermelha. 

NOTA 2: Eiffel depois que se aposentou, dedicou-se ao estudos meteorológicos e aerodinâmicos, realizando experimentos na torre.  

NOTA 3: Em 1901 o aeronauta e aviador brasileiro Alberto Santos Dumont voou de dirigível ao redor da Torre Eiffel ganhando um desafio. 

NOTA 4: O alfaiate e inventor austríaco Franz Reichelt (1878-1912) foi a primeira pessoa a morrer a pular da torre. Ele num experimento para testar seu traje-planador, pulou do primeiro andar a 60 metros de altura, mas o teste falhou. Como ele era relativamente famoso, o experimento chegou a contar com cobertura da imprensa, sendo fotografado e até filmado, sendo possível ver a colisão dele. 

NOTA 5: Atualmente a torre conta com dois restaurantes: o Le 58 Tour Eiffel no primeiro andar e o Jules Verne no segundo andar. 

Referências bibliográficas: 

HARVIE, David. Eiffel: The Genius who reinvented himself. Stroud, Sutton, 2006. 

HARRIS, Joseph. The Eiffel Tower: Symbol of an Age. London, Paul Elek, 1975. 

LINK: 

Lista dos 72 cientistas homenageados na torre