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Leandro Vilar

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Hagia Sophia: o grande templo

Erigida no século VI para ser a maior igreja do mundo, Hagia Sophia por séculos dominou a paisagem de Constantinopla (atual Istambul) como uma imponente catedral. Mas após a conquista dos otomanos, a grande catedral foi convertida como mesquita, recebendo novas obras e ornamentações, tornando-se a maior mesquita do mundo por vários anos. A presente postagem comenta alguns aspectos sobre a construção dessa igreja, sua conversão e reformas pelo Islã, sua fase como museu e como ela se encontra na atualidade. 

Vista de Hagia Sophia e seus jardins.

Antecedentes

Antes da construção da icônica Hagia Sophia, uma outra igreja existia em seu lugar, nomeada simplesmente a "Grande Igreja" (Megále Ekklesia), a qual teria sido construída durante o reinado do imperador romano Constâncio II, tendo sido inaugurada em 360 pelo bispo Eudóxio de Antioquia. Em 404 durante a fortes tumultos em Constantinopla, a igreja foi incendiada e quase ruiu, todavia, durante o reinado do imperador Teodósio II, o monarca mandou reconstruir a igreja a partir de 415, sendo feita de pedra e madeira. 

A nova versão da igreja ficou em atividade por mais de um século até que na Revolta de Nica, ocorrida em 532, a igreja foi incendiada novamente. Na ocasião a revolta teve como motivo iniciador uma suposta fraude na corrida de cavalos realizada na época, levando uma multidão enfurecida a protestar violentamente. Evidentemente que o resultado suspeito daquela corrida no hipódromo era apenas um pretexto para legitimar reivindicações de vários segmentos da sociedade, especialmente os mais pobres, que estavam indignados com os altos impostos e outros problemas sociais que acometiam a cidade durante o reinado de Justiniano I. A revolta durou uma semana e contou com saldo de mortos e várias edificações depredadas e incendiadas. 

Passado alguns dias desde a Revolta de Nica, o imperador Justiniano I ordenou que a igreja fosse reconstruída, mas também seria ampliada, mais bela e suntuosa. Assim, teve início ainda naquele ano as obras para a construção da Igreja de Santa Sofia ou Hagia Sophia. 

Uma igreja para a sabedoria divina

Justiniano tentando reverter a péssima popularidade vigente algum tempo, agravada pela revolta naquele ano, além dos boatos maldosos associados a sua esposa, a imperatriz Teodora, uma ex-prostituta, a qual diziam que ainda mantinha-se na atividade. Apesar das suspeitas de ser lasciva, Teodora era uma mulher ardilosa e sagaz, conselheira de confiança do marido, deteve grande influência política, algo que desagradou parte da nobreza e dos políticos. De qualquer forma, a nova igreja deveria expressar a prosperidade reinado de Justiniano. 

Para isso o monarca convocou Isidoro de Mileto e Antêmio de Trales para projetarem a nova igreja, a qual seria bastante alta, possuindo um domo do tamanho do encontrado no Panteão em Roma. O projeto além de bastante custoso, era ambicioso, pois os arquitetos e mestres-pedreiros temeram que não fosse possível construir com a tecnologia da época um domo tão gigantesco. Apesar disso, o desafio foi aceito. 

Em março de 532 o terreno ao redor da igreja anterior começou a ser limpado, assim como, algumas construções foram demolidas para dar espaço a nova estrutura que seria mais alta e mais larga que a antiga igreja. Justiniano não mediu gastos para seu grande templo, mandou contratar os melhores trabalhadores do império e trazer material de diferentes localidades. Com milhares de pessoas trabalhando mensalmente nas obras da igreja, ela ficou pronta em cinco anos, um feito em tanto. 

Desenho da Hagia Sophia conforme sua estrutura original construída no século VI. 

A nova igreja foi inaugurada em 27 de dezembro de 537 pelo imperador Justiniano e o patriarca Eutiquio de Constantinopla. Segundo os relatos da época, demasiadamente exagerados, é informado que o imperador mandou realizar sacrifício de milhares de animais, além de ter distribuído farinha de trigo, pães, vinho e moedas para a multidão que o viu chegar em sua carruagem para a inauguração da igreja. Mais tarde, alguns historiadores bizantinos escreveram que Justiniano teria se gabado ao dizer que havia superado Salomão, ao construir um templo ainda maior e mais suntuoso. 

O novo templo foi chamado de Hagia Sophia, que significa Sagrada Sabedoria, uma referência a sabedoria de Deus, nomeada segundo a tradição grega do Logos (o Verbo), simbolizando também o próprio Jesus Cristo (o Verbo encarnado). O historiador Procópio de Cesareia escreveu vários elogios a igreja, descrevendo-a como uma maravilha arquitetônica, um primor digno da grandeza do império e da obra de Deus. 

O fascínio de Procópio não foi totalmente exagerado. A nova igreja possuía originalmente 81 metros de comprimento em sua máxima extensão da nave, por 73 metros de largura, tendo 55 metros de altura até o domo de 32 metros de circunferência, mesma medida do Panteão romano. Além disso, o domo possui mais cinco metros de altura, totalizando do chão até a parte mais alta do telhado, 60 metros de altura. Por essas dimensões quando foi inaugurada em 537, Hagia Sophia já era a maior igreja construída até então no mundo e ela manteria esse posto pelos séculos seguintes. 

Interior da igreja, mostrando sua imensidão. 

Entretanto, a decoração interna, com seus belos e gigantescos mosaicos ainda demoraram anos para ficarem prontos, mas antes disso, em 553 um terremoto atingiu Constantinopla, causando rachaduras na igreja, a situação piorou anos depois em 557 e 558 quando dois terremotos atingiram a cidade, dessa vez o grande domo central rachou e veio a desabar. Além da queda desse domo, os outros domos menores foram também danificados, assim como, outras partes da igreja. O imperador Justiniano mandou chamar o arquiteto Isidoro, o Moço para supervisionar as obras de reconstrução e reforma. Isidoro era sobrinho de Isidoro de Mileto, um dos idealizadores da planta original. O novo domo foi feito em parte com tijolos, o que lhe concedeu menos peso, além de ser 1,5 metro mais alto, como também recebeu reforço na sua estrutura. Entretanto, a reforma completa da igreja somente foi concluída em 562

O grande domo de Hagia Sophia visto do interior da nave. 

Após a reforma bem sucedida supervisionada por Isidoro, o Moço, os trabalhos de ornamentação da igreja foram retomados, no entanto, o imperador Justiniano não viveu para ver sua conclusão, pois o monarca faleceu em 565, aos 83 anos, uma idade bastante avançada para a época. Ele foi sucedido por seu sobrinho Justino II, em cujo reinado os mosaicos e outras decorações foram concluídos. 

Mosaicos foram feitos ao longo dos séculos e são uma das características marcantes desse templo. Além de figuras religiosas como Jesus, Maria, os apóstolos, santos, anjos e personagens bíblicos, imagens do imperador Justiniano e de outros monarcas bizantinos também foram representadas. Além disso, a igreja contou com várias estátuas de santos e até de nobres, mas com o tempo foram transferidas, roubadas ou destruídas, sobretudo, durante o período da Iconoclastia, que imperou em alguns momentos do século VIII, em que tentou-se destruir as imagens religiosas, consideradas como símbolos de idolatria. 

Mosaico do século XI mostrando Jesus Cristo, o imperador Constantino XI e a imperatriz Zoe. 

Nos séculos seguintes a igreja foi abalada por terremotos, mas resistindo a força da natureza, embora teve que passar por reformas. Todavia, o ano de 1204 foi fatídico para Hagia Sophia, Constantinopla e seu povo. A cidade foi invadida pelos cruzados durante a Quarta Cruzada, os quais saquearam, mataram e vandalizaram. O imperador Aleixo V foi deposto pelos cruzados, sendo sucedido pelo conde francês Balduíno I, coroado na Hagia Sophia como rei de Constantinopla. Todavia, essa mudança de poder acarretou problemas para a basílica e a cidade, pois ambos foram saqueados. Muitos objetos de valor e relíquias de santos foram roubados da basílica. Segundo uma antiga tradição o Sudário de Turim, originalmente estaria guardado na Hagia Sophia, mas durante o saque da Quarta Cruzada, foi levado para a Itália. 

De 1204 a 1261 imperou o governo latino sobre Constantinopla, e Hagia Sophia foi simbolicamente "convertida" a catedral católica, já que até então era uma basílica ortodoxa desde 1054, quando ocorreu o Cisma do Oriente, em que as igrejas do leste europeu e do Oriente Médio, se separaram do controle papal em Roma. Originando as igrejas de tradição ortodoxa que se mantém até hoje.

Em 1261 com o fim do governo latino, a basílica foi saqueada antes de voltar a posse dos bizantinos. Logo, os monarcas seguintes trataram de restaurar as riquezas do grande templo, além de empreender reformas em sua estrutura que já possuía mais de sete séculos. De qualquer forma, Hagia Sophia voltou a prosperar por quase duzentos anos, sendo as maiores ameaças os terremotos, todavia, o ano de 1453 mudou  um pouco o destino dessa basílica.

A grande mesquita de Istambul

Em 1453 após quase três meses de cerco promovido pelo exército turco liderado pelo jovem sultão Mehmed II, Constantinopla rendeu-se a fúria dos canhões otomanos, os quais destruíram torres, casas e abriram brechas nas muralhas. Mehmed era um homem prudente e tolerante, tendo ordenado ao seu exército que não dilapidasse e destruísse a cidade, pois ele tinha planos de torná-la a capital de seu império. Assim, no dia 23 de maio daquele ano, o sultão visitou a basílica numa sexta-feira, dia comumente no qual os muçulmanos vão as mesquitas. Mehmed II ordenou que os ulemás celebrassem as orações islâmicas e simbolicamente convertessem Hagia Sophia numa mesquita. 

Na ocasião, a chahada foi proferida, a qual trata em um dos cinco pilares do Islã, em que profere-se que Allah é o único deus verdadeiro e Mohammed foi o profeta escolhido por ele para ser seu mensageiro. Com isso, a antiga igreja ortodoxa passou a ser considerada também uma mesquita, embora que graças a tolerância de Mehmed II, as missas e liturgias cristãs não foram proibidas. O sultão permitiu durante seu governo que cristãos e muçulmanos usassem o mesmo templo para a realização de seus ritos. No entanto, Mehmed II mandou remover várias imagens de santos, pois o Islão não faz uso de iconografia humana em seus templos, apesar que os mosaicos foram mantidos. Além disso, elementos objetos, móveis e símbolos do Islão foram adicionados a Hagia Sophia. 

O interior da Hagia Sophia organizado como em uma típica mesquita, em que os bancos são substituídos por tapetes, pois as orações se faz com prostração. 

No ano de 1481, o último da vida de Mehmed II, o primeiro dos quatro minaretes que cercam o templo, foi concluído. O minarete consiste na torre usada pelo almuadem para anunciar as orações diárias (salá), assim como, proferir o chamado da oração (azan). Por sua vez, no reinado do sucessor de Mehmed II, o sultão Bayezid II (1481-1512), ele conseguiu erguer um segundo minarete, mas esse ruiu em 1509 por conta de um terremoto. 

Durante o reinado do sultão Solimão, o Magnífico (1520-1566) ele ordenou o embelezamento da mesquita, obras de reforma, e deu de presente um belo mihrab um nicho que indica a direção de Meca, a qual os muçulmanos devem se posicionar para realizar suas orações diárias. O mihrab de Solimão ainda hoje existe e representou sua vitória sobre campanhas militares na Hungria, sendo um agradecimento pelas bênçãos de Allah. 

O mihrab de Solimão, o Magnífico em Hagia Sophia. 

Finalmente no reinado dos sultões Selim II (1566-1574) e Murad III (1574-1595), os dois minaretes restantes foram concluídos, juntos as quatro torres concedem maior imponência ao grande templo, já que cada minarete tem 70 metros de altura. Tecnicamente uma mesquita somente precisa de um único minarete, mas por questões de estética e ostentação, os sultões otomanos mandaram construir quatro deles, já que até então Hagia Sophia era a maior mesquita do mundo. 

No século XVIII, durante o reinado do sultão Ahmed III (1703-1730) esse mostrou preocupação com os vários mosaicos da mesquita, ordenando a restauração deles na medida do possível. Além de outras reformas também. Por sua vez, seu sucessor Mahmud I (1730-1754) deu continuidade as restaurações, assim como, mandou instalar uma madraça (escola) na mesquita, atualizar o acervo da biblioteca, criar uma cozinha para preparar refeições para os pobres, adicionar fontes e revitalizar o jardim. 

A mesquita de Hagia Sophia seguiu em atividade, passando por reformas, recebendo novos móveis, estruturas e até tendo seu complexo ampliado, com a instalação de outra madraça no século XIX, mais salas, fontes, reformulação do jardim, das ruas ao redor, assim como, ganhou os grandes painéis circulares contendo os nomes de Allah, Mohammed e de alguns dos califas. Por outro lado, alguns dos mosaicos que continham imagens de pessoas foram cobertos com camadas de cal ou gesso, devido ao conservadorismo de alguns monarcas da época e não quererem manter imagens religiosas na mesquita. 

Três dos grandes painéis circulares instalados no século XIX, na nave de Hagia Sophia. Da direita para a esquerda se ler os nomes do profeta Mohammed, Allah e do califa Abu Bakr. 

Hagia Sophia de museu a retorno para mesquita

Em 1935 quando efetivamente foi estabelecida a República da Turquia pondo fim a séculos da monarquia da Dinastia Otomana, o então presidente Mustafa Kemal Atatürk decidiu transformar o milenar templo num museu. Apesar da decisão, isso não significou que o antigo edifício recebeu a atenção adequada. Durante a década de 1940 e 1950, os restauradores apontaram uma série de problemas de infraestrutura como rachaduras, infiltrações, buracos no telhado, excesso de umidade, mofo etc. 

Por conta disso, Hagia Sophia chegou a ficar algum tempo fechada, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), uma base militar foi montada no edifício, chegando-se a instalar metralhadoras nos seus minaretes e canhões ao redor. Passada a guerra, o prédio não foi reaberto regularmente ao público por conta das manutenção atrasada, fato esse que as reformas se estenderam por décadas, porém, a antiga igreja e mesquita seguiu operando como museu, possuindo um acervo sobre a história de Istambul e da Turquia. 

A partir de 2013, autoridades políticas e religiosas iniciaram uma campanha para que Hagia Sophia retornasse a ser uma mesquita. As petições foram ganhando apoio popular nos anos seguintes até que em 2018 o presidente Recep Tayyip Erdogan decidiu acatar as propostas e reintegrou o grande templo novamente como uma mesquita. Na prática, o seu museu ainda continua a funcionar, mas o complexo retomou suas atividades religiosas desde então, embora que a decisão não agradou autoridades museológicas e a Igreja Ortodoxa, a qual salientou que o templo original era uma igreja antes de ser convertido em mesquita em 1453. 

Referências bibliográficas:

MAINSTONE, Rowland J. Hagia Sophia. Architecture, structure and liturgy of Justinian's great church. London: Thames & Hudson, 1988.

MARK, R; ÇAKMAKTITLE, A. S. Hagia Sophia from the Age of Justinian to the Present. Princenton: Princeton Architectural, 1992.

NELSON, Robert S. Hagia Sophia, 1850–1950: Holy Wisdom Modern Monument. Chicago: University of Chicago Press, 2004.

Links relacionados: 

O bombardeio de Constantinopla: a Queda do Império Bizantino

Os bizantinos

O legado bizantino


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