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Leandro Vilar

domingo, 1 de outubro de 2023

O que se estuda na história da sexualidade?

A história da sexualidade costuma ser mal compreendida, sendo confundida como uma espécie de Sexologia histórica, ou uma área de estudo voltada para falar apenas de práticas sexuais, que acaba gerando o preconceito de que se trata de uma forma "culta" em falar de "putaria". No entanto, o termo sexualidade no contexto historiográfico engloba não apenas as relações sexuais, mas também a orientação sexual, a sensualidade e uma série de aspectos culturais e sociais relacionados a isso, como será visto adiante. 

Para facilitar essa explicação, dividi o texto em segmentos temáticos, nos quais expliquei cada um dos diferentes assuntos e algumas abordagens pelos quais podem ser estudados a partir da história da sexualidade. Nesse quesito, uma das inspirações para esse texto adveio do filósofo e historiador Michel Foucault (1926-1984), o qual escreveu uma tetralogia intitulada História da sexualidade, publicada em diferentes anos. Nesses livros Foucault analisou o tema principalmente a partir de um viés sociocultural tratando de tabus, repressão sexual, orientação sexual, perspectiva médica etc. 

Edições francesas da História da Sexualidade de Michel Foucault. O quarto livro ainda não tinha sido lançado na época dessa foto, inclusive ele é uma publicação póstuma. 

1) O sexo na História

O primeiro tema que pode ser abordado diz respeito como o ato sexual foi e é visto ao longo da História. Aqui se trata propriamente de uma análise histórica mais tradicional, assinalando como as práticas sexuais eram compreendidas em diferentes sociedades, épocas e culturas, evidenciando o que era permitido, tolerado e proibido. Aqui o historiador ou pesquisador elenca seus objetos de estudo, recortes temporais, casos a serem investigados.

Neste ponto pode-se estudar não apenas o ato sexual em si, mas também a percepção da orientação sexual, as leis e crimes sobre o sexo, a prostituição, as representações artísticas sobre a nudez e o sexo, a pornografia, as doenças sexuais, as políticas de controle do corpo (biopolítica), a moda, a indústria da beleza, as questões morais, religiosas, políticas sobre o sexo; o erotismo, o fetichismo sexual, o casamento, a poligamia, o concubinato, a virgindade etc. Esses são alguns dos vários exemplos gerais pelos quais a história da sexualidade pode ser pesquisada. 

Neste primeiro tema apresentado pode-se estudar tais questões a partir de uma abordagem da história cultural, social, política, econômica, religiosa, artística e até mesmo num estudo interdisciplinar com a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia etc., o que revela como a história da sexualidade permite múltiplas abordagens. 

2) Nudez, corpo e sexo

Outra forma de abordagem do tema é inspirada diretamente nos estudos de Foucault, especialmente nos que ele analisou o seu conceito de biopolítica. Aqui evidenciamos como é possível estudar a sexualidade a partir da compreensão da nudez e do corpo humano. 

No caso, ambos podem ser analisados a partir das representações artísticas como pinturas, esculturas, cinema, fotografia, teatro, videogames, arte digital etc., realizando-se análises culturais, sociais, estéticas para compreender a noção de belo, feio, padrões de beleza, moda, indústria cultural. Trata-se de uma análise que pode ser aplicada tanto ao passado quanto ao presente, pois a beleza é cultural como assinalou Umberto Eco e outros estudiosos, apontando que tais noções mudam com o tempo, a cultura e o lugar. 

Os dois livros de Umberto Eco sobre a História da Beleza e a História da Feiura, nos quais ele abordou a percepção cultural sobre ambos

Mas também pode-se analisar isso através da política, da economia e da religião. No âmbito político pode-se investigar como diferentes sociedades estabeleceram normas, posturas e leis para permitir a exibição do corpo e da nudez, ou seja, até que ponto a nudez ou o corpo pouco vestido se tornava tolerável ou passava ser um crime, um atentado ao pudor. Vale lembrar que ainda hoje algumas sociedades não permitem que mulheres andem com pouca roupa, pois é considerado ofensivo. Por outro lado, quando os trajes de banho começaram a se popularizar no começo do XX, eles eram bem mais longos e menos sensuais. Quando o biquíni foi lançado na década de 1940, ele criou alarde. Foi considerado depravação. 

No quesito econômico a nudez e o corpo podem ser analisados principalmente através da propaganda vinculada com as indústrias da beleza, da moda e da pornografia. Por tal quesito trata-se de uma abordagem mais contemporânea, remontando ao século XIX quando começaram a se delinear essas três indústrias, hoje mundialmente difundidas. Neste caso, cada uma dessas indústrias trata o corpo e a nudez de diferentes formas, sendo a pornografia a qual aborda esses aspectos de maneira profundamente erótica e sexista, condição essa que em alguns países a pornografia é considerada ilegal, um crime. 

Em A invenção da pornografia, Lynn Hunt e os demais autores mostram como a pornografia surgiu no Ocidente, originando-se do entretenimento baseado na nudez passando para o sexo. 

Ainda no âmbito econômico a nudez, o corpo e o sexo também podem ser analisados a partir da prática da prostituição, o que permite remontar isso a Antiguidade, analisando como a prostituição era realizada em diferentes épocas da História, ora sendo proibida, ocultada e normalizada. Vale lembrar que em muitos países atualmente a prostituição é legalmente um crime, mas ainda assim por conta da falta de fiscalização e da própria indiferença das autoridades, ela segue em atividade. Sobre a prostituição também é possível analisá-la por um viés jurídico, político e ético para interpretar essa prática comercial polêmica. E por essa conjectura adentramos ao estudo legal sobre a nudez e o sexo, estudando o atentado ao pudor, gestos obscenos, sodomia (termo pejorativo para a prática do homossexualismo masculino), importunação sexual, adultério, bigamia, abuso sexual, estupro, pornografia, pedofilia, zoofilia etc. No quesito legislativo é possível analisar em diferentes épocas e lugares as normas, leis e crimes sobre essas práticas que se tornaram imorais e criminosas. 

Livro que estuda a prostituição em alguns contextos. 

No âmbito religioso esses três temas também podem ser analisados de diferentes formas a depender de como a religião escolhida os compreendia. Normalmente pode-se pensar que todas as religiões tendem a condenar a nudez, o corpo e o sexo, mas não é bem assim, inclusive há crenças religiosas que enalteciam e enaltecem isso. Vale lembrar que existiram e existem deuses e deusas da fertilidade, da beleza e do sexo. Dessa forma, existia e existem práticas religiosas associadas com tais divindades. Por outro lado, temos religiões que tratam a nudez pública como tabu, o homossexualismo e a masturbação como pecados; além de impor normas e regras para o controle do corpo. Um caso a respeito é visto no livro O martelo das bruxas (1484), obra que popularizou os conceitos de bruxa e bruxaria. Nesse livro o corpo e o sexo são malvistos, pois estão associados de forma leviana e perversa, em que as bruxas teriam supostamente relações sexuais com demônios e até mesmo praticariam a promiscuidade e outros atos sexuais imorais. 

Frontispício de O martelo das bruxas (Malleus Maleficarum) em edição de 1669. 

A nudez e o corpo também podem ser pensados por um viés sociológico e antropológico quando se estuda como ambos são compreendidos e tratados em sociedades nas quais os indivíduos vivem nus. Pode-se pensar que tal abordagem remeta apenas povos antigos, como as populações ameríndias e aborígenes, no entanto, isso não é exato. Ainda em pleno século XXI temos povos que seguem vivendo nus ou fazendo uso de pouca roupa. Sem contar que no passado ocorriam eventos em que ficar nu era comum, como o caso dos jogos olímpicos na Antiguidade. 

E vale ressalvar que atualmente temos eventos em que as pessoas ficam seminuas ou com pouca roupa, como o Carnaval, desfiles de roupa de banho, desfiles de lingerie, desfiles de roupas eróticas etc. Inclusive existe até a prática do naturismo, em que pessoas ficam totalmente nuas em praias, praças e outras localidades específicas. A forma como a nudez e o corpo são compreendidos nesses exemplos é bem diferente entre si. 

Ainda num viés sociológico, cultural e acrescentando o psicológico, corpo, nudez e sexo podem ser estudados por uma perspectiva do entretenimento e da satisfação. Aqui entra novamente a pornografia e a prostituição, mas acrescenta-se o fetichismo sexual, o strip-tease, o vouyerismo, a masturbação, a arte erótica, as casas de swing etc. Tais práticas sexuais expressam formas de entretenimento, satisfação sexual, assim como, podem ser analisadas socialmente, moralmente, psicologicamente, pois elas podem levar ao vício, a imoralidades, a transtornos e até distúrbios mentais. 

O psiquiatra Sigmund Freud (1856-1939) chegou a comentar sobre o ato de masturbação e sua relação com a percepção da sexualidade, da identidade do masculino e feminino, da relação familiar e com outras pessoas etc., em três ensaios que compõem a Teoria da Sexualidade (1905). 

Uma edição que reúne os ensaios de Freud sobre sexualidade. 

3) Orientação sexual e identidade de gênero

Ambos os termos costumam serem confundidos pelo senso comum, mas são distintos, embora tenham conexão entre si por conta da forma como a sexualidade é compreendida. A orientação sexual refere-se a condição pela qual um indivíduo sente atração sexual, condição essa que o define como heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, assexual etc. Por sua vez, a identidade de gênero diz respeito a forma como uma pessoa se identifica culturalmente com as noções tradicionais de masculino e feminino. Assim, aplica-se conceitos como cisgênero, transexual, queer, não-binário etc. 

Sendo assim, a história da sexualidade pode abordar ambas as perspectivas. Por exemplo, analisar como o homossexualismo e o bissexualismo eram compreendidos na Grécia Antiga e na Roma Antiga, ou na Índia, na China, em populações indígenas, e até mesmo na Europa cristã medieval e no mundo islâmico. A orientação sexual nos permite fazer análises históricas mais longínquas no passado, diferente da identidade de gênero, que é um conceito contemporâneo que foi formalizado no século XX, apesar de haver alguns estudos que apliquem essa percepção para antes do século passado, o que é problemático por conta de gerar anacronismo. Embora se diga que no passado já houvesse pessoas que questionassem sua identidade de gênero, o conceito e a compreensão do que seria isso não existia, o que torna difícil sua aplicação.

Entretanto, estudar a identidade de gênero sua relação com a orientação sexual, a sensualidade e a sexualidade, é algo que vem sendo feito normalmente nas últimas décadas, condição que os estudos de gênero consistem numa área já formalizada, com suas próprias teorias e abordagens. Vale ressalvar que tais estudos não abordam apenas outros tipos de gênero, mas também estudam a própria noção sociocultural de masculino e de feminino, algo visto em livros como a trilogia História da Virilidade e O segundo Sexo de Simone de Beauvoir


Nesta temática insere-se também estudos sobre o preconceito sobre as orientações sexuais e as identidades de gênero, abordando como isso ocorreu em diferentes épocas da História, estudando os métodos aplicados para se proibir isso, o repúdio (homofobia, lgbtfobia, transfobia etc.), o deboche; passando até para os atos de violência como agressões físicas, verbais, psicológicas, culminando em crimes de assassinato. 

4) Sexo e saúde

Um dos temas abordados por Michel Foucault foi a relação entre sexo e saúde, já que ele tratou a questão da saúde em outras de suas obras, abordando-o por outras temáticas. Sendo assim, a partir da história da saúde é possível compreender o sexo de diferentes maneiras, sendo elas positivas ou negativas. Dessa forma é possível analisar através da História o que foi escrito pela literatura médica a respeito das diferentes compreensões sobre o sexo, sua necessidade, as práticas sexuais permitidas e proibidas, as doenças venéreas, os transtornos psicológicos como parafilia, pedofilia, zoofilia, necrofilia etc. 

Assim, no âmbito da saúde o historiador ou pesquisador pode analisar desde o passado ao presente como a saúde sexual foi sendo percebida, definida e desenvolvida. Aqui entra-se também questionamentos culturais, sociais e religiosos que influenciaram a percepção médica, como o caso da teoria dos quatro humores surgida na Grécia Antiga e em voga ainda na Idade Média; as proibições religiosas para o sexo antes do casamento, a promiscuidade, a iniciação sexual de jovens (como a pederastia na Grécia Antiga), a permissão ou proibição da masturbação etc.

Pelo viés da saúde também pode-se estudar os tratamentos para doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, a gonorreia, a candidíase, até chegarmos a doenças mais recentes como a AIDS e os tabus e preconceitos a ela associada. O estudo da saúde sobre o sexo e a sexualidade engloba também pesquisas sobre medidas anticoncepcionais, gravidez precoce, natalidade, aborto, educação sexual, tratamento de vítimas de abusos sexuais ou de estupro etc. 

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