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Leandro Vilar

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Onna-musha: as mulheres guerreiras do Japão

Erroneamente chamadas de samurais, as onna-musha consistiram numa tradição militar japonesa vigente entre os séculos XII e XVI, a qual treinava algumas mulheres, normalmente para defender seus lares e vilarejos, porém, em alguns casos as onna-musha foram treinadas para irem ao campo de batalha, lutando ao lado de ashikagas, arqueiros e samurais. No presente texto contei alguns aspectos sobre essas guerreiras da história nipônica.

Tomoe Gozen: a "primeira" onna-musha

Não se sabe exatamente quando as onna-musha surgiram, entretanto, a primeira que ganhou fama na História foi Tomoe Gozen (?-1184?), a qual serviu o futuro xogum Minamoto no Yoshinaka (1154-1194), atuando na Guerra Genpei (1180-1185) que marcou o fim da Era Heian (794-1185) e o início do Xogunato Kamakura (1185-1333) fundado por Minamoto. 

Pouco se conhece sobre a vida de Tomoe, a principal fonte que dispomos sobre ela é o Conto dos Heike (Heike Monogatori) que narra o confronto entre os clãs Taira e Minamoto durante a Guerra Genpei. Nesta crônica histórica é citado em alguns momentos a presença de uma guerreira que liderava tropas, chamada Tomoe Gozen, a qual servia Minamoto. Entretanto, nada se sabe sobre sua origem exatamente e como ela se tornou guerreira e ganhou a confiança do futuro xogum. A palavra Gozen é um título honorífico, não um sobrenome, o que dificulta ainda mais em saber a qual família Tomoe pertenceu. Mas é possível que ela pudesse advir da aristocracia ou até da nobreza, já que naquele tempo os casamentos arranjados entre os clãs respeitados era bastante comum. (TURNBULL, 2010, p. 9). 

O Conto dos Heike descreve Tomoe como uma bela mulher de pele branca e longos cabelos pretos, sendo bastante habilidosa com o arco e a espada, e exímia na luta a pé e a cavalo. Sua bravura e força eram admiráveis e punha medo nos inimigos. (TURNBULL, 2010, p. 9-10). 

Pintura do século XVI imaginando Tomoe Gozen. 

Embora haja dúvidas quanto a existência de Tomoe, no entanto, sabe-se que no século XII já existiam algumas onna-musha (mestra em artes marciais), termo usado para se referir a mulheres que aprendiam a lutar. Normalmente elas eram instruídas no arco, na lança naginata, no combate desarmado, mas também aprendiam a lutar com espada e até outras armas. Vale ressaltar que a arte da guerra japonesa era predominantemente masculina, raramente mulheres conseguiam acessar esse meio e se destacar. (NONAKI, 2015, p. 64).  

Hangaku Gozen e o assalto ao Castelo Torisaka

É sabido que algumas mulheres chegaram a lutar no final do século XII e começo do XIII, especialmente nas primeiras décadas do Xogunato Kamamura. Sendo assim, além de Tomoe, outra guerreira que se destacou foi Hangaku, que também recebeu o título de Gozen. Pelo pouco que se conhece, ela teria sido filha de um samurai chamado Jo Sukekuni, que era vassalo do Clã Taira, a família rival do Clã Minamoto, o qual governava o xogunato. (COOK, 2006, p. 326).

Com a morte de seu pai, Hangaku decidiu vingá-lo, então se uniu a seu tio e o filho dele, que iniciaram uma revolta chamada de Rebelião Kennin (1201), a qual contestava a autoridade do xogunato. Assim, Hangaku vestiu-se de homem e entrou na tropa da família para lutar. Neste ponto, diferente do que foi dito sobre Tomoe, a qual teria recebido treinamento militar e até chefiado tropas, Hangaku atuou como uma guerreira rebelde, participando da rebelião promovida pelo seu tio Jo Nagamochi(COOK, 2006, p. 327).

Pintura imaginando como seria Hangaku Gozen. Yoshithosi, c. 1865. 

O caso de Hangaku é interessante devido a condição de que na história japonesa várias mulheres que foram para à guerra tiveram motivações parecidas com a de Hangaku: vingar maridos ou familiares, ou defender suas terras, famílias e suseranos. Fato esse que as mulheres que optaram em fazer isso, algumas tinham treinamento militar, outras não foram treinadas, mas sabia usar o arco e a lança, então se disfarçavam de homem e se alistavam. 

As onna-musha no Período Sengoku (1467-1615)

O Período Sengoku marcou o declínio do Xogunato Ashikaga (1336-1573), quando a partir da Guerra de Onin (1467-1477) os xoguns perderam sua autoridade sobre o país, permitindo a ascensão de daimiôs que passaram a disputar o controle de províncias e regiões, jogando o Japão nas guerras feudais que se estenderam por mais de um século. E por conta desse período de grande turbulência na história nipônica, em dados momentos houve a escassez de soldados, assim, algumas mulheres se voluntariaram para ir ao campo de batalha. 

Ohori Tsuruhime (1526-1543) era a filha de Ohori Yasumochi, sumo-sacerdote de um importante templo na ilha de Oyamazumi. Ela era descrita como valente e recebeu treinamento militar. Em 1541 seu pai e irmãos foram mortos numa batalha, Tsuruhime pegou as armas e partiu para o campo de batalha, lutando ao lado dos guerreiros que serviam seu pai. Ela inclusive divulgou a ideia de que seria a reencarnação de um avatar guerreiro que era venerado no santuário de sua família. Tsuruhime participou do ataque ao navio do general Ohara Takakoto, no intuito de matá-lo, obtendo sucesso na missão. Ela ainda participou de outras batalhas pelos dois anos seguintes. Em 1543 após ter perdido um dos conflitos, ela teria optado pelo suicídio. Tsuruhime foi comparada por alguns historiadores estrangeiros com Joana d'Arc. (NONAKI, 2015, p. 65).  

Ilustração representando Ohori Tsuruhime atacando o general Ohara Takakoto.

Houve casos de mulheres que se uniram as milícias de um ikki (grupo rebelde) que se opunha ao domínio de algum daimiô. Durante o Período Sengoku isso foi comum em diferentes momentos, havendo o surgimento de vários ikkis pelo país. Stephen Turnbull (2010, p. 17) cita o caso do Ikko-ikki, um grupo rebelde com influência budista, que atuou entre as décadas de 1570 e 1580, confrontando a autoridade e a opressão de Oda Nobunaga (1534-1582). Nos relatos da época é mencionado que algumas tropas contavam com onna-musha. Em 1575 numa grande vitória contra o Ikko-ikki, Nobunaga ordenou a execução de milhares de rebeldes, incluindo as mulheres também que lutaram ou ajudaram os rebeldes. 

No ano de 1590 durante as campanhas de Toyotomi Hideyoshi (1537-1598), no ataque realizado ao Castelo Oshi, na província de Musashi, Kaihime, a viúva do daimiô Narita Ujinaga, assumiu o controle de sua defesa, o que incluiu colocar até mesmo as servas para lutarem durante o cerco. O castelo foi capturado, Kaihime se rendeu e foi poupada, porém, algumas das mulheres preferiam saltar das muralhas, optando pela morte do que se tornarem escravas dos captores. A violência contra as mulheres durante os anos de guerra era muito comum. Em geral as nobres eram poupadas, pois se tornavam reféns ou forçadas a se casar para fomentar alianças familiares. 

No cerco do Castelo de Hondo ocorrido em 1590 houve a participação de onna-musha, inclusive o padre português Luís Fróis (1533-1597), que relatou a respeito dessa batalha, escreveu que pelo menos 300 mulheres participaram da última tentativa de defesa, ocorrida em 1590. O castelo já estava avariado pelo cerco de meses, sobrando poucos homens para defendê-lo, então Fróis escreveu que a esposa do comandante reuniu todas as mulheres, mandou elas pegarem armas como lanças, arcos, espadas e facas, então marcharam até o portão. Algumas das mulheres, segundo o relato do padre, cortaram os cabelos curtos, outras vestiam apenas kimonos, algumas chegaram a colocar armadura. Algumas das onna-musha eram cristãs, pois carregavam rosários e crucifixos consigo. Fróis relatou que embora elas tenha matado vários homens, o exército inimigo era superior e as massacrou, mas a bravura daquelas 300 onna-musha foi registrada na História. (TURNBULL, 2010, p. 45). 

Na importante Batalha de Sekigahara (1600) que marcou o caminho da ascensão iminente de Tokugawa Ieyasu (1543-1616) para se tornar o novo xogum, nessa batalha mulheres também participaram. Foi uma das maiores batalhas do Período Sengoku, estimativas apontam mais de 150 mil guerreiros envolvidos no conflito, havendo dezenas de milhares de mortos. 

As onna-musha no século XIX

Com o fim do Período Sengoku e o estabelecimento do Xogunato Tokugawa (1603-1868), vieram os anos de paz, embora alguns conflitos eventuais ocorreram nesse meio tempo. Porém, a necessidade de se manter mulheres guerreiras se tornou desnecessária, inclusive parte dos samurais foram dispensados do serviço militar, indo tornar-se fazendeiros, comerciantes, funcionários públicos e estudiosos. Alguns até viraram ronins e mercenários. Dessa forma, somente tivemos relatos de onna-musha atuando no ano de 1868, durante a queda do xogunato. 

A Guerra Civil Bonshin (1868-1869) marcou o conflito entre os monarquistas apoiadores do imperador Meiji contra os defensores do xogunato Tokugawa. A guerra resultou na derrota do xogunato, apesar que seus apoiadores ainda tentaram reverter o resultado com novas batalhas nos anos seguintes, mas sem sucesso. De qualquer forma, em alguns dos conflitos dessa guerra civil, mulheres estiveram na frente de batalha, sendo o último relato conhecido propriamente de onna-musha em atuação numa guerra.

Com a necessidade de combatentes, mulheres foram aceitas em algumas tropas. Armadas com arcos, naginatas e as vezes espadas e rifles, as tropas femininas mesmo sem treinamento militar (somente algumas poucas sabiam lutar, pois eram filhas de samurais ou militares) foram a campo. Algumas delas se voluntariaram para defender suas famílias, terras, vingar maridos e familiares, e algumas até mesmo teriam aderido a causa política de um dos lados.. A Batalha de Aizu (1868) no contexto da guerra civil foi um marco da participação das onna-musha. (TURNBULL, 2010, p. 53). 

Onna-musha representadas numa pintura sobre a Batalha de Aizu. Adachi Ginko, 1877. 

Durante a Batalha de Aizu se notabilizaram algumas mulheres, uma delas que ganhou destaque foi Nakano Takeko (1847-1868) que empunhando uma naginata, liderava as tropas femininas. Takeko tinha 20 anos quando passou a liderar mulheres no combate na defesa de Aizu quando as tropas imperiais. A irmã e mãe de Takeko chegaram a participar das lutas, além de amigas, vizinhas e mulheres de outras localidades da região. (TURNBULL, 2010, p. 54). 

Estátua da onna-musha Nakano Takeko, em Aizubange, em Fukushima. 

Anos depois ocorreu a Rebelião de Satsuma (1877), uma revolta iniciada por apoiadores do xogunato, mesmo ele tendo sucumbido onze anos antes, ainda existiam japoneses contrários ao fim do governo dos xoguns. Assim, em Satsuma tivemos a eclosão de uma revolta que foi rechaçada pelas tropas imperiais. Na ocasião, algumas mulheres chegaram a lutar contra a polícia e o exército. 

A Rebelião de Satsuma durou algumas semanas, contando com milhares de envolvidos, foi uma das últimas revoltas promovidas pelos samurais e seguidores inconformados com o fim do xogunato Tokugawa. 

Algumas onna-musha enfrentando tropas imperiais durante a subjugação de Kagoshima, durante a Rebelião de Satsuma. Yoshitoshi, 1877. 

As onna-musha foram samurais mulheres?

As vezes é possível encontrar tal referência, inclusive em livros e artigos, mas o termo estaria certo? Aqui temos um problema de interpretação e delimitação. Os samurais não eram apenas guerreiros, mas entre os séculos XII e XIX eles consistiram numa classe social militar, com direitos, deveres e regalias. Tornar-se samurai significava ascender a essa classe que poderia abrir oportunidades para um guerreiro se tornar funcionário público, subir na hierarquia militar e até se tornar um aristocrata, e em alguns casos até um nobre.

Além disso, samurais eram guerreiros juramentados a outros samurais, algo parecido com a relação de vassalagem e suserania no feudalismo europeu. Inclusive os samurais deveriam prestar votos de juramento e servidão. Quando um samurai prestava tais votos, sua família automaticamente também estava sujeita a vassalagem ao mestre dele. Por tal condição as mulheres estavam indiretamente sujeitas ao juramento feito por seus pais, tios, irmãos e maridos. Mas essa sujeição indireta não a tornava um samurai. 

Sendo assim, uma mulher nascer na classe dos samurais não a tornava um samurai, até porque havia homens dessa classe que não eram samurais, mas exerciam outros ofícios. Sendo assim, é comum manter esse equívoco que o fato de uma onna-musha ser uma guerreira isso a tornava um samurai, mas em geral elas não eram juramentadas, vinha, das classes baixas, não tinham treinamento militar. Elas estariam mais próximas do ashikaga, termo usado para o soldado comum. 

Além disso, vale frisar que no século XIX a literatura e o teatro romantizaram as onna-musha, com direito a ter livros e peças falando delas e até representando de forma fictícia algumas onna-musha famosas como Tomoe Gozen. Inclusive data do XIX fotos de mulheres vestidas com armaduras samurais, sugerindo que seria as tais mulheres samurais, mas na verdade são fotos feitas por atrizes ou modelos, ou por filhas e netas de samurais, que para orgulhar seus antepassados, faziam aquelas fotos. 
Foto de uma atriz vestida como samurai. Fotos assim se tornaram comuns nas últimas décadas do XIX por conta da popularização das histórias de onna-musha que lutaram em 1868 e 1877. 

Por fim, pode-se falar que houve samurais mulheres? A afirmação é difícil. Se a mulher não fez o juramento típico para se tornar um samurai (lembrando que o juramento era diferente dependendo da época) e se ela não era reconhecida como tal, o fato de ela ser uma guerreira, mesmo pertencendo a classe dos samurais, não a definia como um samurai. Fato esse que os historiadores japoneses até evitam usar o termo samurai mulher, optando por onna-musha mesmo. 

NOTA: O termo onna-bugeisha é uma interpretação errada de onna-musha. E hoje em dia está em desuso. 
NOTA 2: Nos jogos de videogame e alguns animes e mangás é comum vermos onna-musha, embora historicamente a presença delas fosse algo pontual em algumas batalhas. Não houve tropas fixas de mulheres. 
NOTA 3: Em Samurai Warriors 5 (2021) além das onna-musha fictícias do jogo, é possível ver guerreiras armadas com naginatas, lutando ao lado dos soldados comuns. Essas seriam as onna-musha reais. 

Referências bibliográficas:
COOK, Bernard. Women and War: A Historical Encyclopedia from Antiquity to the Present. New York, ABC-CLIO, 2006. 
NOWAKI, Rochelle. Women warriors of Early Japan. Hononu, vol. 13, 2015, p. 63-68. 
TURNBULL, Stephen. Samurai Women: 1184-1877. Illustrated by Giusepe Rava. New York, Osprey, 2010. 

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