Durante algumas décadas do século XX a cidade murada de Kowloon, na China, foi um local densamente povoado, mas de condições sanitárias precárias e uma terra sem lei, onde imperava bandidos, traficantes, mafiosos e toda sorte de gente miserável e envolvida com negócios ilícitos. Kowloon era num sentido mais ruim da palavra, uma favela de prédios sujos, desorganizados, sem água potável, de becos e ruelas escuras, um lugar inseguro, fétido e sórdido. Ainda assim, foi o lar de milhares de pessoas que sem condições de morar em outra localidade melhor, se sujeitavam aquele ambiente degradante.
Fotografia dos anos 1980 de um dos lados de Kowloon, com seu aglomerado de edificações irregulares. |
Kowloon é uma cidade chinesa sendo vizinha de Hong Kong. Suas origens remontam há séculos, mas ela nunca teve expressividade. Durante o XIX, a Dinastia Qinq (1644-1912) a partir de 1842 cedeu Hong Kong ao domínio colonial britânico, além de parte do território de Kowloon também. Naquele tempo a região era pouco habitada e ainda contava com bosques e fazendas. Na área onde se localizava uma antiga fortaleza murada, começou a se construir um povoado em fins do XIX. Porém, esse povoado não fazia parte do território britânico, apesar de estar na fronteira desse.
Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) o Japão invadiu várias regiões da China, ocupando-as, incluindo Hong Kong e Kowloon. Durante os anos de ocupação, os japoneses destruíram parte das cidades, incluindo a condição que as muralhas de Kowloon foram demolidas também, revelando seu povoado com poucos milhares de habitantes. Apesar de ser chamada de cidade murada de Kowloon, na prática, tratava-se de um distrito, não uma outra cidade, mas a nomenclatura permaneceu.
Com o término da guerra e os danos causadas por essa, muitos pobres sem conseguir moradia em Hong Kong, que seguia sob gestão britânica, passaram a ir morar no distrito de Kowloon, e como não havia mais muralhas, o local começou a se expandir de forma desordenada. Além disso, a região que possuía praticamente ausência de policiamento, tornou-se o lugar perfeito para criminosos.
Algumas edificações de Kowloon com sua arquitetura precária. A "cidade" foi considerada uma "favela vertical". |
Embora não tivesse mais muralhas, no entanto, o território da "cidade" estava limitado a 2,6 hectares e como não se tinha direito de construir para fora dessa delimitação, a solução foi verticalizar a povoação, no que resultou em décadas de construções irregulares. Kowloon se tornou uma "favela verticalizada", com edificações que ganhavam andares extras ou eram construídas sobre as menores, mas atingiam o limite de 14 andares por conta do aeroporto ser próximo. Por conta disso, as pessoas as vezes iam para o terraço dos prédios, cheios de antenas, entulho, caixas d'água, baldes (para pegar água da chuva), para ver os aviões. As crianças e adolescentes também gostavam de ir para lá, a fim de brincar de pular de um prédio para o outro.
Uma cidade fora da lei
A antiga cidade murada de Kowloon começou a crescer entre as décadas de 1960 e 1980, vivenciando um forte boom populacional por conta de imigrantes pobres de algumas regiões chinesas, mas também de imigrantes vindos do Japão, Coreia e Filipinas. Por conta da carência de segurança e policiamento, já que os britânicos nada podiam fazer porque era território fora de sua jurisdição, assim como, o governo de Kowloon era negligente, com isso o crime não apenas cresceu naquela localidade, mas passou a dominar e comandar.
Kowloon se tornou um aglomerado de cortiços e lojas, com prédios feios, colados nos outros, separados por vielas, possuindo até pontes ou passarelas improvisadas. Com exceção das ruas principais, as que adentravam o complexo eram ruelas escuras, abafadas, úmidas e sujas. Milhares de pessoas passavam diariamente por essas vias sombrias onde se podia encontrar ratos, baratas, lixo, mas também ver usuários de drogas, bêbados moribundos, mendigos, prostitutas, agiotas, mafiosos fazendo ronda. Nessa "cidade" apertada viveram de 30 a 50 mil habitantes, tornando-a a zona mais densamente povoada da China.
Fotografia de Greg Girard de uma ruela em Kowloon. No teto era comum encontrar um emaranhado de tubulações e fios, representando ligações clandestinas de água, luz e telefone. |
Emaranhado de cabos e fios numa loja em Kowloon, isso era comum devido a falta de infraestrutura organizada e as ligações clandestinas. |
A segurança em Kowloon era uma falsa sensação, pois não havia policiamento regular, os mafiosos controlavam o local e faziam suas próprias regras, incluindo toques de recolher, controle de quem tinha acesso a determinadas ruas, vielas e áreas, além de mandar espancar, prender, torturar e matar os que desobedeciam suas regras, os afrontavam ou cometiam algum erro. Eles também cobravam alugueis e exploravam os comerciantes e moradores extorquindo-os. Apesar disso, parte da população decidiu se sujeitar aos desmandos dos criminosos.
Por sua vez, em Kowloon devido a falta de policiamento e fiscalização, espalhou-se toda a variedade de negócios ilícitos como prostíbulos, casas de ópio e casas de apostas. Além disso, os restaurantes e bares faziam uso de prostituição, jogatina e drogas. Na "cidade" também se estabeleceu outros negócios ilícitos como clínicas clandestinas de dentistas e médicos que operavam e consultavam sem ter licença e as vezes nem formação profissional concluída.
Um consultório odontológico ilegal em Kowloon nos anos 1980. A "cidade" concentrava dezenas de dentistas para um território pequeno. |
Esses médicos e dentistas exerciam suas profissões de forma irregular, que em vários casos geravam problemas. Apesar de não faltar clientela, pois cobravam barato e até cobravam troca de favores. As pessoas pobres acabavam se sujeitando a eles. Inclusive pobres que viviam em outros bairros ou em Hong Kong, chegavam a procurar essas clínicas para arrancar dentes, tratar ferimentos e até praticar aborto.
Além das clínicas clandestinas outros negócios sem fiscalização operavam nessa cidade criminosa como restaurantes, bares, padarias, açougues, farmácias, fábricas (de produtos diversos) etc., os quais não tinham alvará de funcionamento e a vigilância sanitária nem se quer passava por ali. Por conta disso, era fácil encontrar produtos pirateados, mercadorias contrabandeadas, mas o pior de tudo eram os remédios falsificados e os alimentos de procedência duvidosa. Em Kwoolon havia "fábricas" caseiras de macarrão, pães, bolos, doces e até os infames açougues que vendiam carne de cachorro e gato, literalmente falando.
Um açougue clandestino em Kowloon, algo comum. Alguns faziam uso de carne de cães e gatos. Foto de Greg Girard. |
Essas clínicas clandestinas e fábricas ilegais operavam em ambientes insalubres, apertados, escuros, alguns funcionando em porões. Mas vale ressalvar que devido a limitação do espaço para construir a "cidade", a maioria dos apartamentos eram pequenos, equivalendo a quitinetes hoje em dia, mas eram moradias que deveriam servir para cinco ou mais pessoas viverem da melhor forma que conseguiam se sustentar.
No entanto, nem todo mundo que trabalhava em Kowloon agia de forma desonesta, parte da população possuía seus negócios e trabalhavam duro e honestamente, embora vivessem na pobreza e sob o comando da máfia. Ali também existiam escolas e creches, e crianças passaram a infância e até parte da vida adulta morando naquela localidade marginalizada. Os dentistas e médicos que tralhavam ali, nem todos eram impostores ou interesseiros, alguns que não conseguiram passar nos exames para tirar a licença de atuação ou reprovaram nos cursos, ia para Kowloon montar clínicas e consultórios para exercer a profissão com boa intenção, mesmo que ilegalmente.
A destruição da cidade murada de Kowloon
A partir de 1987 o governo chinês e o governo britânico de Hong Kong decidiram que para acabar com os problemas sociais e criminosos associados com a cidade murada de Kowloon o melhor era desapropriar aquela zona e demoli-la. Após décadas de incompetência governamental para resolver os problemas do crime naquele distrito, a solução foi pôr tudo abaixo.
A partir de 1988 o processo de desapropriação e remoção das famílias teve início, durando cinco anos para ser finalizado. Parte dos moradores não gostou de ter que se mudar, apesar de viverem num local precário, o sentimento de lar existia ali. Por outro lado, os que viviam ali por não terem condições de comprarem casas ou pagar o aluguel em outras localidades, aceitaram de bom grado a mudança e a ajuda fornecida pelo governo. Dessa forma, em março de 1993 teve início o processo de demolição do complexo.
Vista aérea da antiga "cidade" murada de Kowloon em 1989, época que sua desapropriação já tinha iniciado. |
Foram semanas de atividades para demolir todos os edifícios e depois mais alguns meses para remover os escombros, sendo que as obras terminaram em 1994. No lugar da antiga cidade do crime foi construído um grande parque arborizado, com lago, quadras esportivas, quiosques e até uma zona arqueológica foi desenterrada, mostrando os vestígios da antiga fortificação ali existente. O Parque da Cidade Murada de Kowloon valorizou todo o território ao redor, concedendo frescor e beleza a aquele canto sombrio e miserável que um dia havia sido.
Referência bibliográfica
LAMBOT, Ian. City of Darkness: Life in Kowloon Walled City. s. l: Watermark, 2007.
Referências da internet
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